P/1 – Gerald, você pode falar o seu nome completo?
R – Gerald Thomas Sievers, S-i-e-v-e-r-s.
P/1 – Seu local de nascimento e a data.
R – Nova York, em 01 de julho de 1954.
P/1 – Seus pais são de Nova York?
R – Não, meu pai é alemão, minha mãe é de Wales, País de Gales.
P/1 ...Continuar leitura
P/1 – Gerald, você pode falar o seu nome completo?
R – Gerald Thomas Sievers, S-i-e-v-e-r-s.
P/1 – Seu local de nascimento e a data.
R – Nova York, em 01 de julho de 1954.
P/1 – Seus pais são de Nova York?
R – Não, meu pai é alemão, minha mãe é de Wales, País de Gales.
P/1 – Como é o nome do seu pai?
R – Hans Gunther Sievers. E minha mãe, Ellen Lilly Renate Thomas, que virou Ellen Lilly Renate Thomas Sievers.
P/1 – E seus avós paternos?
R – Alemães, quer dizer, essa história se bifurca, porque eu tenho o pai que me criou, que é o pai que eu amo, que é o meu ídolo da vida e eu tenho um pai biológico, que eu fui saber aos 28 anos, que é outra pessoa. Quando eu falo pai eu estou falando do cara que me criou, que me ama, que eu amei, que me escreveu uma carta sabendo que eu não era o filho biológico dele, mas ele sabia, ele endossou, ele me amou e foi do cacete, entende?
P/1 – Mas você conhece a história do seu pai biológico, esses que são da Alemanha?
R – Biológico?
P/1 – É.
R – Meu pai não biológico é da Alemanha.
P/1 – Ele te criou desde pequeno? Desde que nasceu?
R – Desde o dia zero.
P/1 – E esses avós? Você teve contato?
R – Não, campo de concentração, quer dizer, ele nem judeu era, mas foram para o campo de concentração any way, porque trabalhavam para resistência dentro da Alemanha pelas forças aliadas, a favor das forças aliadas. Então, Hitler matou do mesmo jeito.
P/1 – É mesmo? E por parte de mãe? Seus avós maternos?
R – Minha avó eu conheci. Paula Landsberg Thomas.
P/1 – Você chegou a conviver com ela?
R – Muito, infelizmente, sim. Uma víbora, uma pessoa que levou o próprio filho dela ao suicídio.
P/1 – Irmão da sua mãe?
R – Irmão da minha mãe. Minha mãe foi descobrir o irmão dela mais velho, ela com nove e ele com 17 anos, ele enforcado no banheiro, porque ele era gay. Não que a minha avó se opusesse, ao contrário, ela só queria que ele se tornasse amante de um oficial da Gestapo, da SS, para que eles se safassem, você vê como é cruel. E ele estava apaixonado por um cara e ele optou pelo suicídio. Quem achou o corpo no banheiro foi a minha mãe, e minha avó culpou a minha mãe pelo resto da existência dela por esse evento, como se minha mãe aos nove tivesse capacidade de enfocar o cara de 17.
P/1 – E como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Olha! Sinceramente, depois que me revelaram, aos 28 anos que eu não era filho dele, eu fiz um rewind do tape e comecei a entender que metade do que me disseram não era verdade, entende? Eu acho, a minha impressão, é que se conheceram em Londres, logo depois da guerra, porque meu pai foi um herói da guerra, porque lutou pela resistência, mas não foi aceito na Inglaterra, porque era alemão e não adiantava explicar, “Não, alemão é alemão, não adianta,” até explicar já tinha levado porrada e tal. Eles se mudaram para New Jersey porque meu pai conseguiu uma transferência da Lloyd’s Insurance Company para Prudential, nos Estados Unidos. Em New Jersey também o clima não estava muito para alemão, mas já tinha muito imigrante alemão de décadas anteriores, então, era melhor do que a Inglaterra. Eu tenho a impressão que se conheceram em Londres, mas pode ser que os dois tenham se conhecido em Belmar, New Jersey, eu não tenho muita certeza.
P/1 – Como é que sua mãe foi parar lá?
R – Imigrou para os Estados Unidos? Ela imigrou primeiro para o Brasil antes da guerra. Minha mãe estava estudando com Piaget em Genebra Psicologia e Francês, minha mãe era fluente em não sei quantas línguas. E quando estourou a guerra minha mãe voltou para Londres e se escondia no metrô de Hampstead, que era muito profundo, era um bunker, as V2 voavam em cima, do Hitler, as bombas, e ela se escondia lá e a Europa ficou inabitável. A Inglaterra, Londres, Liverpool, Manchester, Bermingham, ficaram inabitáveis depois da guerra.
P/1 – Você estava falando que sua mãe se refugiava no metrô.
R – Eu falei que a Inglaterra geralmente todos os países bombardeados, depois da guerra estavam um desastre. Metade das pessoas que podiam imigrar, imigravam e procuravam uma nova vida num continente novo. Então, minha mãe primeiro veio para o Brasil, muito estranhamente ser babá do Chico Buarque e da Miúcha contratada pelo Sérgio Buarque de Holanda, mas não deu certo, porque ela ensinava inglês, alemão e francês para as crianças e depois ela tinha que comer na cozinha com as empregadas que comiam com as mãos feijão e arroz, ela ficava muito chocada com isso. Ela pediu demissão e voltou para Nova York, para New Jersey. Mas é, ué, o que eu vou dizer? Você está rindo? Mas um dia, se você entrevistar o Chico, a gente fala muito sobre isso, eu e Chico falamos muito sobre isso, sobre minha mãe.
P/1 – E aí ela contou para você como foi esse período no Brasil? As impressões dela?
R – Eles vinham de navio, eles desceram na Praça Mauá no Rio, viram pessoas comendo manga e babando manga e ficaram muito chocados. Isso vindo de uma guerra, onde corpos mortos estilhaçados, todo mundo, mas o que mais chocou mesmo foi uma pessoa chupando uma manga de sunga na Praça Mauá. Eles não entendiam muito bem isso. Aí alguém falou: “Olha, São Paulo é melhor, em São Paulo as pessoas comem manga com faca em casa.” E aí vieram tentar a vida em São Paulo, mas não deu certo.
P/1 – Ela saiu do Rio e veio para São Paulo nessa mesma vinda para o Brasil?
R – Foi aí que ela foi parar na casa da Chico Buarque. A família do Chico Buarque era paulista.
P/1 – Mas ela já era casada?
R – Não, não era. A família Buarque de Holanda é de São Paulo.
P/1 – Foi aqui no Pacaembu?
R – Foi, exatamente, no Pacaembu.
P/1 – Aí ela voltou para os Estados Unidos?
R – Voltou.
P/1 – Foi aí que você nasceu? Foi nesse período?
R – Foi, eu nasci em 54. Eu não sei exatamente quantos anos mais velho o Chico é, o Chico deve ter 70. Então, se o Chico tinha nove, deve ter voltado em 1952, talvez 51, eu não sei ao certo.
P/1 – E em que local você nasceu? Onde vocês moravam quando você era pequeno?
R – A cidade chamava Belmar e é na costa, chama Jersey Shore, que é a praia de New Jersey, é horrível. Mas eu nasci num hotel, eu nasci no Gramercy Park Hotel, porque meu pai estava fazendo um estágio na Prudential, que fica ali em Madison Square, não Madison Square Garden, mas Madison Square, que é na 23, entre 23 e 28, na Quinta Avenida e Madison Avenue. A Prudential Insurance era ali, então, ele andava perto, eram quatro quarteirões do Gramercy Park, que era Lexington Avenue com Gramercy Park, Rua 21. Minha mãe estava grávida, era quente, um verão quente, primeiro de julho é quente, e aparentemente não deu tempo de chamar a ambulância para me levar para o Bellevue ou Beth Israel, que tem ali do lado.
P/1 – E você é filho único?
R – Sou. De todos.
P/1 – Desse pai e do outro.
R – Não tem, eu sou filho único. (canta) Eu não posso ficar mais nem um minuto com você, sinto muito amor, mas não pode ser. Sou filho único, tenho minha casa para olhar. Eu não posso ficar (batuca a mesa). Não tem essa música? A Maria canta, né?
P/1 – E você ficou quanto tempo lá?
R – A gente voltou para o Brasil quando eu tinha sete anos.
P/1 – Por que vocês mudaram?
R – Porque meu pai foi mudando. Não deu certo lá: “Escuta, vai para América Latina e tenta Caracas, tenta Buenos Aires, tenta Montevidéu.” Enfim, ele tinha um irmão estabelecido em Caracas já, meu pai, que era reitor da Universidade Federal de Caracas.
P/1 – Tudo isso que você está falando é o não biológico.
R – É o não biológico. Eu não falo do meu pai biológico, tudo é o não biológico, mas é quem é meu pai.
P/1 – Aí ele tinha esse irmão aqui em Caracas.
R – Tinha irmão em Caracas, eles passaram um tempo lá, obviamente não gostaram. Passaram um tempo em Buenos Aires e Montevidéu, obviamente não gostaram, voltaram para o Rio, gostaram e se estabeleceram no Rio. E aí eu fui chamado, me juntei.
P/1 – Por quê? Quando eles vieram você não veio junto?
R – Fizeram uma excursão de reconhecimento, eu fiquei com minha avó, em New Jersey.
P/1 – Com a mãe da sua mãe?
R – Eu não conheci os outros, a única avó que eu conheci é a mãe da minha mãe.
P/1 – Como era a sua infância lá? Como é que foi? Quais eram as brincadeiras? Com quem você brincava?
R – Nossa, foi horrível! Realmente foi horrível. A gente morava em cima dos carros da minha avó.
P/1 – O que é isso?
R – Ela tinha vários carros, ela tinha uma mansão, mas a gente morava nos fundos, num quartinho, num one bedroom em cima dos carros, é mesmo. E um dia eu fui acusado por ela, eu tinha seis anos, ela era viciada em ópio, ela era viciada em morfina, opiáceos em geral. E um dia algum ladrão evidentemente tentou fazer uma conexão elétrica num carro gigantesco, que era um Cadillac enorme, rabo de peixe e conseguiu andar alguns metros. Você acha que eu, eu nem alcançaria, seis anos, e ela quis me espancar com um cinto. E ela chegou ao ponto de levantar o braço para me espancar, só que a língua enrolou e ela travou. E eu fiquei no chão morrendo de rir dessa cena, e quanto mais eu ria, mais ela ficava enfurecida, e ela virou uma estátua de sal ali. Foi de fato, foi horrível. Era uma comunidade judaica muito mean, mesquinha, maldosa. Muita gente se maltratando, sabe?
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – No kindergarten.
P/1 – Na escola.
R – Quatro anos.
P/1 – Você tem lembrança desse período? De professores? De amigos?
R – Não, eu não tenho. Eu tenho lembrança que eu tinha um peixe inflável de plástico, um tubarão, ficava jogando ele. Me lembro de um carrinho de madeira que eu tinha também, não tenho muitas lembranças.
P/1 – Mas você brincava com outras crianças lá?
R – Se eu brincava? Eu não tenho lembrança, sinceramente não tenho. Eu tenho lembrança de chegar num Colégio Brasileiro de Almeida, no Rio, e não falar uma palavra de português e minha mãe quis me matricular numa escola brasileira para que eu aprendesse o português, porque eles nunca aprenderam. E eu ali, todo mundo (fala como se estivesse falando algo em outro idioma) e eu me lembro da professora falando meu nome e eu me mijei completamente, e a calça era de brim cinza, então, ficava preto mesmo, sabe? E aí todo mundo riu mesmo e eu era o único estrangeiro, o Rio de Janeiro não estava equipado para estrangeiros como São Paulo estava, então foi um inferno, é só o que eu posso dizer, foi um inferno. Eu falei, um dia eu me lembro que eu falei: “Olha, quer saber de uma coisa? Ou eu me viro aqui ou eu morro,” Charles Darwin. Então, vamos subir a mangueira, vamos tocar samba, vamos falar: “Qual é meu irmão,” senão, é a lei da floresta. Então, acabei me safando por esse lado.
P/1 – Você chegou aqui você tinha quanto? Sete anos?
R – Sete.
P/1 – Qual foi a sua impressão quando você chegou?
R – Eu não tinha impressão de nada. Eu me lembro que quando me disseram: “Você está indo para o Brasil,” eu não sabia o que era isso. Mas eu lembro que na minha cabeça veio não sei o quê, alguém, não sei se minha avó, minha mãe, alguém tinha importado um suco de caju, que tinha um enorme caju desenhado a mão, pintura, e eu achei que o Brasil tinha a cara do caju. Então, eu me lembro de um garoto desenhando a bandeira brasileira, colorindo, e ele falou: “Você já foi pegar teu boletim?” E eu achei que boletim era o nome da bandeira brasileira. (risos) Então, ele pintava de vermelho a parte que é verde, eu achava que aquilo estava certo. Eu fui reprovado tantas vezes, eu era chamado pela diretora do colégio, foi duro.
P/1 – Que colégio que era?
R – Brasileiro de Almeida, da família Tom Jobim e Tônia Carrero, que eu fui dirigir depois, como diretor.
P/1 – O colégio era deles?
R – É da família Brasileiro de Almeida. Tônia Carrero Brasileiro de Almeida, Antônio Carlos Jobim Brasileiro de Almeida, é o nome, essa família aristocrática do Rio tinha esse colégio.
P/1 – E que bairro você morava?
R – Leblon, mas a escola era em Ipanema.
P/1 – Você ficou até que idade nessa escola?
R – Olha! Eu fui para o Pedro II logo depois, que é uma escola pública, não sei. Eu sei que a minha atenção foi desviada para desenho e pintura, então, eu virei aluno do Ivan Serpa e do Hélio Oiticica. Então, eu fui parar também na casa do Ziraldo. A minha parte de desenho, de teoria, eu tinha que sentar numa sala em Copacabana, onde tinha Vergara, Gerchman, Hélio, enfim, Lygia Pape, não Clark, mas a Pape, Antonio Manuel, onde discutiam Duchamp.
P/1 – Como é que você foi parar lá?
R – Porque o Ivan me recusou no curso prático no Museu de Arte Moderna, ele falou: “Esse menino é muito inteligente, ele vai para o Centro de Discussão,” eu fui numa sala em Copacabana. E eu cheguei lá eu tinha nove anos e todo mundo tinha 30, imagina? Aí no caminho de volta para casa eu andava pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana, parava na Galeria Alaska e ficava intrigado com os travestis, e entrevistava travesti. E eu ficava, eram super amorosos, carinhosos, não é esse barra pesada de hoje, eram pessoas lindas e tal. Aí, era uma coisa natural, eu passava por ali todo dia, andava a pé, não via a hora de sair da discussão de Duchamp e Juan Gris, Tristan Tzara, Dadaísmo, Surrealismo, eu queria comer pizza lá na Galeria Alaska com as travecas, entendeu? E foi assim. Depois eu saí do colégio com 12 anos e a família voltou a morar no Tennessee, no interior do Tennessee, que é pior, Knoxville,Johnson City e Bristol, são três cidades chamada tri-cities, Unicoi County, enfim.
P/1 – Seu pai foi transferido para lá?
R – Foi. Fiquei um ano no Tennessee, mas eu já era garoto de cidade grande, eu era garoto de Rio de Janeiro, cosmopolita, praia, de repente estava numa cidade de mil habitantes. Nossa, eu fiquei um ano numa depressão horrorosa. Aí meu pai também entendeu que não ia dar, depois a gente voltou para o Rio via Nova York e eu fui estuprado num hotel e aí começou tudo, minha vida sexual, quero dizer.
P/1 – Vamos voltar, quer dizer, deixa eu entender.
R – Eles entenderam. Não é a entrevistadora quem tem que entender, não, é quem vai ver. Eu estou até hoje tentando entender, meu amor, você não vai entender.
P/1 – Não, não é do estupro, eu quero entender a geografia. Do Tennessee vocês foram...
R – Não se voa do Tennessee direto para o Brasil, né?
P/1 – Claro. Aí vocês pararam lá.
R – Poderia via Miami...
P/1 – Vocês fizeram uma parada.
R – Fizemos, porque meu pai tinha que se explicar na Prudential e passamos uma semana.
P/1 – Lá em Nova York.
R – Certo.
P/1 – E aí, o que aconteceu?
R – E aí, eu estava no quarto um dia, eu falei: “Eu vou descer e pegar uma Coca Cola”, tinha aquelas máquinas embaixo, no Paramount. E um cara, no elevador do hotel, me empurrou para fora, me levou para o laundry room, que é a lavanderia, que cada andar tinha uma e pá. E falou: “Se você falar alguma coisa para os seus pais eles morrem.” Aí eu fiquei da cor, eu já não sou lá muito negro, mas eu fiquei da cor. Claro que quando eu voltei para o quarto minha mãe sabia que tinha acontecido, primeiro porque eu tinha demorado um tempo a mais, e ela me viu, ela me conhecia, ela falou: “O que aconteceu?” Aí eu fui direto para um banho quente, sangrando, e ela entendeu tudo. A gente saiu do hotel aquela noite e foi para outro, mas não denunciamos o cara, quer dizer, não que eu saiba.
P/1 – E aí vocês já estavam vindo para o Brasil?
R – Aí quando eu cheguei no Brasil...
P/1 – Você estava com quantos anos?
R – Já estava com 13 e aí oficializei meu namoro com o Hélio Oiticica mesmo. Ele estava louco para me comer, então, pronto, agora vamos lá, o que você quer que eu faça? E ele era, de fato, um cara muito interessante, um dos mais interessantes.
P/1 – Você tinha 13 anos?
R – Treze. Olha! Para você ter ideia, eu casei pela primeira vez em Londres com 16, a coisa começou lá. Eu sou, realmente, muito apressado, só a ejaculação não é precoce, mas o resto é.
P/1 – Aí com 13 anos você veio para cá e vocês foram morar onde? Voltaram para o Leblon?
R – Aí Ipanema dessa vez, um apartamento na Prudente de Morais em Ipanema, que é paralelo à praia. E eu não aguentei mais do que um ano, eu falei: “Olha, eu vou para Nova York, eu vou voltar para Nova York.” A minha cultura era toda americana, era ouvindo Hendrix, era ouvindo Blues, era ouvindo os grupos, mesmo sendo ingleses, The Creamers, essas coisas. Mas o centro era Nova York. E como a gente ia muito para Londres por causa da família também, e lá eu ia também, enfim, essa coisa de rock n’roll, Woodstock estava rolando. Eu falei: “Eu vou para Nova York, eu não estou aguentando esse pessoal de camisa Lacoste.” Eu já tinha o cabelo até aqui, tenho uma foto da Marisa Alves de Lima, famosa, e eu não aguentei. E eu voltei para Nova York e me prostituí durante quase um ano. Porque lavar prato daria um dólar e 50 por noite e prostituição me daria 150 dólares por noite. Bom, óbvio que eu fui pelo lado mais bruto, grutesco e doloroso, porque não tem nada de glamoroso para um garoto pegar casais num Hotel Hilton, no caso.
P/1 – Eram casais? Eram homens? Ou casais?
R – Casal, homem, casal hetero, casal, tudo, mas era muita escatologia, eram sempre evangélicos que se davam as mãos de Wyoming, Idaho, Iowa, iam trepar em Nova York, fazer tudo e voltavam para segurar as mãos das crianças e say a pray antes da refeição. Eu conheci a hipocrisia ali, logo.
P/1 – Mas você foi morar com quem lá?
R – Eu morava com o Hélio.
P/1 – Você foi morar com o Hélio lá e você se prostituía?
R – É.
P/1 – E seus pais já tinham...
R – Meus pais sempre foram meus melhores amigos, melhores. Eles sabiam de tudo.
P/1 – Sua relação com eles era bastante...
R – Era maravilhosa. Os meus maiores encorajadores, torcida, nunca falaram nada de ruim. Se eles não aprovavam, eles pelo menos eles não diziam nada, eles me deixavam solto.
P/1 – E a sua relação com o Hélio lá?
R – Ele ficava com a metade do dinheiro, é isso que você quer saber? “Metade do dinheiro é meu, boneca, vem aqui.” Até que eu não aguentei mais.
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram lá?
R – Ele ficou uma eternidade, eu mudei para Londres. Eu fui para Londres logo depois de Woodstock, 69, início de 70 eu fui para Londres, com 16. Só que eu fui com quatro mil dólares! Entende? Eu saved, guardei, acumulei quatro mil dólares na época. Você tem ideia do que seria isso hoje? Eu cheguei no National Westminster Bank lá em Kingsway, que é o centro de Londres, Kingsway é em Holborn, ali no centro de Londres. Eu entrei numa agência no National Westminster e eles não queriam que eu entrasse por causa do cabelo, da aparência hippie e tal, eu falei: “Can I please have a word with the manager?” “What exactly do you want?” Eles fumavam todos cachimbo atrás do vidro, eu falei: “I wanna talk to open an account” “Oh, really? Like what?” eu falei: “I’ve got four thousand USdollars” “Oh, come this way, please,” assim, antes de chamar a polícia: “How did you get this amount?” “I sort of inherited from my parents. But here it is, it’s cash” “Oh, we don’t really want to know this, we open all kinds of accounts, savings account, current account.” E até hoje eu tenho essas contas, o-three-eight-five-six-nine-two-five (03856925) é a minha primeira conta, o-three-eight-five-six-nine-two-five, Kingsway, Lincoln's Inn Fields, a primeira agência com 16 anos. E dois meses depois eu estava casando.
P/1 – Com 16? Com quem?
R – Jill Francis Drower, uma bailarina do Covent Garden.
P/1 – Você já tinha tido alguma namorada mulher? Já tinha se apaixonado?
R – Milhões de mulheres, muitas. Você acha que Woodstock era o quê? Era mulher, lama, sexo, claro, surubas incríveis na casa do Hélio com Gal, desculpa Gal, mas já falei isso antes, já botei os teus peitos para fora e não é a primeira vez. Com todo mundo, surubas, milhares.
P/1 – Como você conheceu a Jill?
R – Conheci a Jill. Bom, quando eu fui para Londres o Hélio falou: “Procure o Caetano e o Gil,” eu falei: “Não vou procurar, não tenho o menor interesse, desculpa” “Não, eles estão perdidos no exílio, com o Guilherme Araújo.” E eu calhei de um dia ligar para o Guilherme e o Guilherme estava com a Jill, que estava recém-chegada de Paris, de um grupo de dança Susan Bird ligado ao Peter Brook. Aí foi instant love e dois meses depois a gente estava casando. Ela era seis anos mais velha do que eu, ela tinha 22 e eu tinha 16, durou dois anos.
P/1 – Como foi o casamento?
R – Eu não sei. Como foi o casamento? Foi muita suruba, naquela época era normal, assim, muita gente. O pai dela, o Tenence Drower era um ex-âncora da BBC que teve câncer nas cordas vocais e tudo, foi a pior coisa. A mãe dela se apaixonou por mim, foi uma coisa meio Teorema de Terence Stamp, sabe? Foi meio estranho. E eu me apaixonei pela primeira modelo negra da Revlon, a Helen, americana, chinesa, negra e judia, então, as minorias todas estava ali. E ela linda e a primeira...
P/1 – Lá em Londres?
R – Em Londres. Ela é americana, mas morava em Londres. E aí eu falei: “Olha, quer saber de uma coisa? I don’t really care, I mean, vamos em frente com ela.” E, claro, que eu feri profundamente a Jill, que botou espiões atrás de mim, me fotografaram para não ter coisa no divorce court, sabe assim, uma coisa, totalmente, porque eu teria dado na hora, claro, a coisa do divórcio.
P/1 – Você se mantinha como lá em Londres?
R – Primeiro que eu tinha esse acúmulo de dinheiro, mas depois eu fui trabalhar na Bolsa do Café, em Covent Garden, provando café.
P/1 – Como que era?
R – Provando café. Como era?
P/1 – Que interessante.
R – Porque eu via, os ingleses botam na porta, tipo: “House to let” que é “for rent” é to let, ou, aí bota um i no meio e vira toilet, todo mundo faz isso, toda placa tem um i no meio, toilet. Ou os ingleses botam: Jobs wanted, interview inside. Aí eu passei, coffee, hum. Eu tinha uma temporada longa no Brasil, bebia café. Let’s pull the strings, né? Eu falei: “I’m just in from Brazil,” nem perguntaram. Aí tinha um monte, numa mesa redonda, bebendo, cuspindo, bebendo, cuspindo, disgusting, horrível. E eu só fui descobrir na segunda semana que eles seguravam o copo de café contra a luz, “Eles estão tendo um delírio cafeínico aqui, né?” Eles estavam vendo o óleo que flutuava. E era assim que se classificava um café pela acidez, arábica, robusta, era classificado pela torrefação, pela acidez, pelo óleo, porque esse óleo é que faz mal, esse óleo que gruda no intestino, no estômago e não deixa com que o suco gástrico ataque a comida. Que aula, hein? Nossa!
P/1 – Você ficou quanto tempo fazendo isso?
R – Até não aguentar mais beber café. (risos) Eu não sei quanto tempo, acho que talvez uns cinco meses. Aí eu vi, eu tinha já um carro, eu dirigia ilegalmente, eu tinha comprado um MGB, que é um MG conversível. Eu dirigia otimamente bem, mas eu tinha que fazer driving lessons para ter a carteira e eu não passei. Porque como eu já sabia dirigir eu não ficava olhando no espelho e trocando a marcha, não olhava no espelho e não olhando no espelho a cada oito segundo e trocando a marcha e ele fazia (barulho de palma), eu tinha minha manhas, já. Você tem mais duas chances. Eu não passei em nenhuma delas porque eu dirigia feito um doido mesmo. Aí um dia eu estava no metrô vendo o Evening Standard, que é o jornal tabloide que tem no metrô, e o Evening Standard tinha um anúncio: “Emergency drivers wanted” menos a polícia, fire and ambulance. Eu me matriculei, liguei para o número que estava lá. Na época tinha que se ligar, depois é que se enfiava a moeda, fazia pipipi, aí você botava uma moedinha de dois pence ou de dez pence e, às vezes, não entrava, que sistema horrível! Mas podia ligar a cobrar. Eu liguei a cobrar e no dia seguinte eu estava numa cidadezinha chamada High Wycombe, que é perto de Londres, Norte, onde eles tinham construído toda uma cidadezinha artificial para gente poder aprender a derrapar e tudo, e assim foi. E durante nove meses eu dirigi para o Royal Free Hospital em Hampstead. Não tem muita aventura não, não tem muito acidente na Inglaterra, então, é uma velhinha que está com dor de cabeça na Marks & Spencer, é um gato que foi parar num, sabe? No máximo, um alguém que tinha derrapado de uma motocicleta, ou de uma Moped na época, scratch, não tinha nada. E acabei horrorizado, porque eu tinha que pegar junkies de heroína em Piccaddily Circus Station e levar eles para Tooting Bec, que Tooting Bec é longe, no sul de Londres para um rehab, e eles fugiam todo dia. E todo dia eu pegava o mesmo pessoal na estação de Piccadilly Circus. Um dia eu falei para o meu superior: “Esse sistema não funciona, eles estão aqui todo dia. Eu não aguento mais ficar levando esse pessoal” rebellious, porque eles eram agressivos e para uma methadone clinic lá embaixo, é isso.
P/1 – E seus pais continuaram aqui.
R – Continuaram no Brasil.
P/1 – E você vinha visitá-los?
R – Vinha, pegava e vinha de barco, vinha de Lloyd, vinha de Itanagé, Itaipé, Ita, Itu, esses nomes de navios cargueiros. Pagava 25 dólares por dia e ainda era a viagem mais barata, porque na época era BOAC, British Caledonian que voavam e era caro, então, eu vinha de navio, sei lá, eu trouxe todas minhas mulheres para o Brasil.
P/1 – Aí você tinha uma turma aqui também?
R – Não, não.
P/1 – Quando você vinha você não tinha uma turma? E você vinha aqui e você ficava com seus pais um tempo?
R – Bom, eu vinha mais, ficava pouco tempo, ficava um mês no Brasil. Eu voltei para Nova York depois de uns... Eu voltei para Nova York, eu fiz, eu entrei para Amnesty International e era o pior período do Brasil, início da década de 70, 72, Médici, exilados, torturados. A gente fazia campaign for urgent action e campaign against torture. E eu passava o dia no aparelho de telex, eu passava no aparelho de telex, Convergência Socialista, tinham sido presos o
nosso informante Piveta, Luiz Eduardo Greenhalgh, algumas pessoas informando, e eu enlouquecendo para que o rei da Suécia, a rainha da Bélgica, todo mundo mandasse telegramas urgentes para release dessas pessoas para o gabinete do Almirante de Sá Bierrenbach, Almirante Hélio Leite no Superior Tribunal Militar em Brasília. Eu quebrava meus dias, meu filho dormia numa cesta ali do meu lado, era uma loucura.
P/1 – Você já era pai nesse momento?
R – Era.
P/1 – Quem que era a mãe?
R – Não falo sobre isso.
P/1 – Mas ele morava com você?
R – Morava.
P/1 – Vamos lá. A gente parou no pedaço da ditadura.
R – Ditadura, exilados.
P/1 – Médici.
R – É, Médici.
P/1 – Exilados e você...
R – Era da Amnesty International.
P/1 – E que você tinha esse lado já desde essa época.
R – É esse meu lado aqui. (risos)
P/1 – E que você...
P/1 – Posso voltar um pouco antes? É péssimo, mas é...
R – Ao que? Aos 12 anos e meio.
P/1 – Você fez Bar Mitzváh?
R – Eu fiz. Foneticamente, eu não decorei nada, eu ficava olhando aqueles negócios ali, direita para esquerda, aquela Torá desenrolando, eu não sabia nada. Aí o cara ficava soprando no ouvido: É o reino, é o reino (fala enrolado). E foi lá, foi um desastre.
P/1 – Mas você fez Bar Mitzváh, tinha costumes religiosos? Sua mãe seguia a tradição?
R – Não, não, ninguém. Eu não fui criado como ele que reza kadish e rasga o espelho e bota coisa preta quando o pai morre, nada disso. Eu sou judeu sim, mas eu não tenho, eu sou agnóstico, eu não sou engajado religiosamente, politicamente engajado na religião, não sou. Acho que talvez sirva para muita gente para fulfill, para preencher um lado espiritual qualquer, mas o meu lado espiritual é muito desenvolvido por outros lados, então, não preciso de Moisés, nem Aarão.
P/1 – A sua mãe era judia, o seu pai era judeu também?
R – Mas eu já falei isso aqui.
P/1 – O seu pai não.
R – Eu já falei que não era, era protestante.
P/1 – Ah, é verdade.
R – Meu pai era protestante e era comunista. Então, era ateu por exigência do partido!
P/1 – Quando você era pequeno se discutia política na sua casa?
R – Política sim. A gente ouvia The Voice of America e BBC World Service. E minha mãe era fanática por Winston Churchill. Meus pais eram fanáticos pelo John Kennedy e o primeiro dia que eu me lembro dos meus pais no chão, chorando, cortinas fechadas, foi por causa da morte do JFK. Eu tinha nove anos e eu já entendia muita coisa, mas eu não sabia o nível de tortura que seria para eles, isso em plena Ipanema.
P/1 – Ah, porque nesse período você estava no Rio.
R – Em pleno Ipanema, cortina fechada, vão para o chão. Um ano depois, golpe militar, meu pai vai para o chão, cortinas fechadas. Ele jurou que tinha visto um tanque no meio da rua. Podia até ter visto. “Vamos embora de novo” “Como embora de novo? Não é possível, a gente acabou de chegar” “Vamos embora porque virou um país de governo militarizado”. Meu pai tinha horror de juntas militares, ditadores e tal. Ele tinha passado pelo crash de 29, ele levava malas de dinheiro para conseguir um pedacinho de pão que a inflação no crash de 29 era uma loucura, que levou à ascensão do terceiro reich, né? Meu pai viveu tudo isso em tempo real. Então, ele tinha pavor de autoritarismo, de governo, de Goebbels, tudo que parecesse com uniforme, tudo que parecesse com essa estética, assim, pavor. Então eu fui criado muito legal, muito bem dentro desses parâmetros. Mas a gente já estava com meus 18 anos.
P/1 – Mas você estava morando fora, mas você voltava aqui para visitar os seus pais? Ou você já estava morando aqui?
R – Pera aí, meu amor, que idade a gente está falando?
P/1 – Você tinha uns 17, 18 anos. Você passava telegramas? Você tinha uma atuação muito...
R – Na Amnesty International. Nessa época eu não podia vir ao Brasil, porque eu era visado pelo DOPS e pelo DOI-CODI e pela Oban, eu não podia vir ao Brasil. Eu vim em sigilo com 24 anos, a mando da Amnesty, para fazer um levantamento do nome de todos os presos políticos, em todas as prisões políticas, em todo Brasil. Só que no aeroporto Galeão do Rio de Janeiro um cara do Jornal do Brasil chamado Carlos Rangel chegou e falou: “Eu sou do JB e eu vou dar um depoimento a teu respeito, que você está no Brasil. É melhor você falar do que você não falar, porque se você não falar...”. E me fotografaram de frente e de lado como polícia, com o título, página inteira do caderno principal do Jornal do Brasil: Thomas, pintor e artista de teatro, veio para o Brasil para ver e ouvir, pronto. E aí, falava da Amnesty e eu não pude mais me mover. Eu entrei nos presídios para fazer os levantamentos, mas tudo muito difícil, DOPS me seguindo, Ruth Escobar em São Paulo me ajudando muito, no Barro Branco aqui, Itamaracá na Bahia, ou Pernambuco não me lembro, enfim, Ponta Porã, imagina! Curitiba, Frei Caneca, onde eu fiz amizade com o Alex Polari e o filho do Nelson Rodrigues, o Nelsinho. E onde eu fiquei sabendo, de fato, como foi a morte do Stuart Edgard Angel por causa da mãe, ela me falou, a Zuzu ainda estava viva. Então, eu fiz um dossiê chamado Dossiê Brasil. Com a ajuda do Gabeira que já estava morando em Estocolmo como motorista de metrô, trem subterrâneo eu ia dizer, (risos) underground train, e o Liszt Vieira e um cara ligado ao Miguel Arraes em Paris, Sérgio...
P/1 – Luiz Figueira do Rio.
R – Luiz Figueira do Rio. Meu grande amigo até hoje, se é que não morreu, mas acho que não. E uma menina Moema, exilada em Portugal, da Ação Popular, um suíço Jean alguma coisa que era da VPR, o Alex Polari, enfim...
P/1 – Você era de alguma organização?
R – Não, eu era da Amnesty, que era imparcial, eu não podia torcer para nenhum partido. Eu torcia pelo respeito aos direitos humanos e a gente criou uma categoria chamada ‘preso de consciência’ que é aqueles que não pegaram em armas, como o Soljenítsin, por exemplo, na Rússia, na União Soviética, por se expressar. Como o caso do Jacob na Argentina, sei lá o pai do Marcelo Rubens Paiva, alguns que não pegaram em armas, muitos não pegaram em armas e foram presos de consciência, como o Pasquim inteiro, Ziraldo, Millôr, Paulo Francis. O Millôr não foi, porque o Millôr era esperto, mas o meu ex-sogro Ziraldo, enfim, todos eles presos lá em Bangu, torturados, Jaguar. Era Jaguar, Fortuna, Ivan Lessa, Ziraldo, enfim, a turma do Pasquim, menos o Millôr.
P/1 – Você estava com 18 anos nessa época.
R – Estava.
P/1 – Você já estava fazendo teatro?
R – Já. Eu tinha feito Balcão aqui em São Paulo.
P/1 – Quando que você começou?
R – Não sei quando eu comecei. Eu me encantei. Eu visitava os ensaios do Balcão, da Ruth e do Victor aqui na Rua dos Ingleses e eu ficava impressionado com aquele texto do Genet, eu ficava impressionado com aquela espiral, aquele cilindro, aquela loucura e eu acabei ajudando e ajudando o Victor Garcia, café e tal, e dava opinião para os atores. Bom, pula para frente, eu estou sentado lá em Londres, no ensaio do Peter Brook, Sonhos de uma Noite de Verão, dando palpite, chegando cada vez mais perto e os atores me pedindo para comprar um chá, um café, eu ia e eles mesmos: “Como é que você acha que eu estou fazendo essa cena?” “Eu acho que você devia fazer...” E eles iam, faziam e perguntavam, eu falava: “It’s marvelous, great, fantastic, you know.” Aí eles olhavam para mim, eu falei: “Hum, vou fazer alguma coisa certa.” Mas eu só fui fazer num teatro em Hoxton. Hoxton é east end de Londres, atrás de uma igreja, Hoxton Theatre Company, Hoxton Church Theatre Company. Eu peguei uns trechos de Genet, que ele tinha me dado no Brasil, que ele escreveu sobre os palestinos, Action for action, montei isso. E o Peter Hall, que era o diretor do National Theatre foi ver, estava de cadeira de rodas, tal e eu nunca esperava que o establishment fosse me ver, um bando de loucos chamados Exploding Galaxy. De repente, o Peter Hall com a perna quebrada foi ver e falou que ele queria conversar comigo e ele me convidou para fazer A Tempestade, do Shakespeare no teatro experimental do National Theatre. Aí, três meses depois tinha piquetes do lado de fora, “This is our tax pay money, we’re not supporting this kind of bullshit,” pedindo minha renúncia, saíram as críticas e as críticas foram tenebrosas, porque eu fiz A Tempestade de trás para frente, eu comecei com o solilóquio do Próspero e inverti, botei ela ao avesso. E eu notei uma coisa muito estranha que eu tinha notado na minha época de prostituição, que se as críticas são ruins o elenco não quer mais olhar para você. Eu passava: “Hi” e eles abaixavam a cara e continuavam, eu falava: “Nossa! Que horror,” aí eu fui no escritório do Peter Hall, que sempre dizia que não estava
e eu dizia: “Eu quero close the production” fechar, sei lá, encerrar a produção, e ele falou: “Very well, we’ll do that.” E no último dia, eu tinha um stage manager muito estranho. Eu, numa depressão profunda, porque eu tinha chegado o mais jovem diretor do National Theatre a entrar e o mais jovem a sair, porque eu estava expulso. Naquela época se fumava em teatro, ele falou: “Tem um cara aí de Nova York que quer falar com você” eu falei: “Eu não quero falar com ninguém” “Não, ele é um produtor importante, ele faz o Shakespeare Festival em Nova York e ele quer falar com você,” Joe Papp. Aí, o Joe Papp: “Hey kiddo, if you ever wanna go back to New York, give me a call, here is my card,” eu falei: “Wow! Did you like it?” “I loved it, I loved it.” Eu fiquei olhando, minha casa, a casa da minha tia em Belsize Park, fiquei olhando ali, fiquei pensando. Eu morava em Putney, lá no sul, minha tia morava em Belsize Park, minha vida terminou em Londres, sabe de uma coisa? Eu vou aceitar esse convite e vou. Liguei um dia de um orelhão, botei um monte de coisa: “Can I speak to Joe Papp?” “Oh, he’s not” “Oh, come on, I’m the guy from London, stop...” “Stop this routine.” Ele veio ao telephone: “Are you the kiddo I just saw in London?” “Yeah” “Come on to New York, you’ll be welcome.” Aí eu fui, ele me deu um apartamento ótimo e me deu A Tempestade para fazer no Delacorte Theater no Centra Park, é Shakespeare in the Park, a mesma Tempestade, com Raul Julia. Só que dessa vez os helicópteros estavam ali, helicópteros para jogar os corpos no lago e tal. A crítica fabulosa, eu falei: “Eu vou comprar espaços nos jornais da Inglaterra para publicar essa crítica, esfregar na cara dos meus parentes todos que,” mas eu falei: “Quer saber de uma coisa? Fuck them, não vou publicar nada.” E comecei uma carreira maravilhosa em Nova York. Aí eu briguei com o Joe Papp logo depois, porque ele queria que eu dirigisse Václav Havel e todos os novos tchecos e poloneses e eu falei: “Não, não é para isso que eu vim. Eu vim para dissecar os clássicos, eu vim para desconstruir o que existe ou então fazer minha própria coisa. Eu não vou aqui dirigir uma peça, uma kitsch drama de um polonês qualquer.” E aí, Ellen Stewart, a La MaMa, a própria, minha mãe mesmo, falou: “Honey, that place is not good. It ain’t no good baby, you come over to my place right now. I’m around the corner from you, baby, I’m around the corner.” Aí eu fui: “Welcome to La MaMa”, aí ela botou um sotaque francês, ela adorava falar em haitiano. “Welcome to La MaMa. What do you want to do here, honey? Whatcha you wanna do?” “I don’t know” “Well, you do whatever you want”. Eu falei: “Bom, eu tenho quatro coisas do Beckett que eu quero fazer.” Aí, meu amor, o resto você vai no Google, fala para o Google ler ali no meu site, está tudo ali, o resto realmente é tudo documentado.
P/1 – Você começou nas Artes Plásticas, assim, desde novo você falou.
R – Comecei.
P/1 – Quando você estava se prostituindo em Nova York você também, você comentou, você desenhava também? Você estava fazendo trabalho para o New York Times?
R – Não, eu fiz para o New York Times mais tarde. Eu combinei o La MaMa com o New York Times.
P/1 – Ah, nessa época.
R – É. Então, era um dia infernal para mim, porque eu começava a dar aula de teatro no La MaMa às dez da manhã, era uma turma de dez ao meio-dia, de meio-dia às duas. Às três, eu ia para casa receber a What would be the story of the day, the political writing. Podia ser Henry Kissinger, Richard Nixon, Carlos Fuentes, mas era um tema, qual era o tema? Eles me falavam, Jerelle Kraus, que era minha editora falava por telefone e eu tinha que, em três horas, fazer uma metáfora daquilo tudo. Então, pera aí que eu vou agora, cadê a caixa de microfone? Vou ilustrar essa conversa. Então, não eram desenhos, mas o que eu fazia no New York Times eram verdadeiras mirabolâncias. Eles me davam, olha o espaço que eles me davam, então, eu tinha que fazer uma metáfora que não era cartoon, era metáfora, o que era muito difícil. Olha, essa é uma foto original com a sombrinha, eu fazia a sombrinha, a sombrinha saía assim, eles tinham que comprar uma nova máquina. E, por exemplo, o tamanho do origami feito de jornal fake que eu fazia. E esse era uma caixa dentro de uma caixa com crass label dentro. E esse é o mais conhecido, esse ganhou todos os prêmios do Art Department, New York, Art Directors Club, tudo. Então, a primeira capa do Vanity Fair, a primeira capa do Atlantic e aqui tem, enfim, aqui tem os desenhos. A maior parte daqui está no MoMa de Nova York. Enfim, é isso.
P/1 – Essa coisa do desenho, quer dizer, ela sempre veio com você.
R – Eu desenho as peças, né? A minha peça nasce de um desenho. Isso tudo feito com muito café, então, é óbvio que a introdução não poderia deixar de ser uma xícara de café fake em cima de uma xícara fake. Mas a única coisa real aqui são os círculos deixados pela própria xícara. Deixa eu ver, o que é que vem de peça! Ah, isso aqui, ó, Processo. Esse é o Processo de Kafka, A Trilogia de Kafka que eu fiz com a Beth Coelho e tal, aqui, isso nasceu desse desenho. Então, aqui, essa é a sala do congelamento do Instituto Médico Legal, da peça que eu fiz com o Marco Nanini chamada Um Circo de Rins e Fígados, há dez anos. Você viu alguma peça minha?
P/1 – Vi a última. Voltando. Essa época que você estava em Nova York você voltou, quer dizer, voltou não porque você nunca saiu, não ficou indo e vindo.
R – Olha, vou falar um texto bem perto do microfone, é Beckett: “that time you went back that last time to look was the ruin still there where you hide as a child, when was that.” Em português: “Aquela vez, aquela última vez, em que você voltou para ver se as ruínas ainda estavam lá onde você brincava, onde era aquilo?” Minha vida é isso, entendeu? Essa é um texto do Beckett que eu encenei com Julian Beck, mas a minha vida é isso. É revisitando ruínas, onde elas estavam? Estão sempre em algum lugar. Tem sempre alguma ruína em algum lugar.
P/1 – Onde você estava com 28 anos que você falou assim que você descobriu que seu pai...
R – Eu estava passando um mês de férias no Rio, porque o New York Times era impiedoso, não dava férias. Eu fiquei cinco anos sem sair de Manhattan.
P/1 – Você ganhava bem lá?
R – Nossa, 350 dólares por desenho, naquela época? Você tem ideia do que é isso? É uma loucura. Uma capa do Vanity Fair, seis mil dólares, era muita, muita coisa. Então, um dia o La MaMa me deu férias e o New York Times me deu férias. E eu vim com a Daniela Thomas, filha do Ziraldo Alves Pinto, eu vim passar uma semana no Rio, e nessa fatídica semana ela me falou isso. Um mês, desculpa, eu passei um mês no Rio e durante esse um mês ela me falou isso, e para você ter noção do que acontece quando você ouve uma coisa dessas, o joelho, você perde a noção de onde você está, você olha para tudo. Você faz um replay da tua vida inteira e pensa se cada beijo foi honesto ou não, cada abraço foi, que tudo é uma encenação, a vida inteira foi uma encenação. É por isso que eu estou bem no teatro, só me sinto bem no palco, e na cama porque é pau, cu (risos). Ela tem um tempo para rir e para parar de rir. O riso dela, ri, parou.
P/1 – E você quis ir atrás, saber como foi?
R – Inicialmente nenhuma vontade, só depois do ataque de 11 de setembro.
P/1 – Mas ela te contou como é que foi?
R – Claro, contou.
P/1 – Como é que foi?
R – Como é que foi o quê?
P/1 – Que seu pai era outro.
R – Ela tinha um amante por 17 anos e meu pai não se opunha. E acho que o pai que eu chamo de pai, que eu amo, tinha algum problema sexual ou era gay, não sei, mas não havia, eles não tinham relação sexual. Minha mãe foi ter relação sexual com esse cara cujo esperma encontrou o ovo dela e nasci. Mas o meu pai não se opôs a isso, endossou isso, me escreveu uma carta linda no dia que eu nasci e eu não tive a menor vontade de encontrar esse cara. Mas aí eu fiquei sem dinheiro um dia na minha vida, depois de 11 de setembro de 2001, vendo da minha janela o ataque ao World Trade Center. E não tinha mais teatro para fazer, não tinha mais nada, acabou tudo naquele dia, acabou tudo dali para frente, e eu falei que eu vou atrás desse cara. Fui, fui para Zurique e alguém, numa sinagoga, me indicou quem ele era, porque eu não tinha ideia quem ele era. Eu fui para ele e falei, em alemão: “Eu sou teu filho biológico, Gerald,” aparentemente ele falou assim: “Eu sei”, mas eu ouvi blau, o som do universo saindo. Mas a amiga que foi comigo falou: “Não, ele falou sim”. E aí, nas últimas três filas você pode sentar junto com mulher, porque sinagoga divide que nem muçulmano, e eu sentei com a minha amiga e fiquei olhando para carequinha dele ali. Ele sabia quando levantava, quando sentava, com a bíblia. E uma hora ele saiu e eu o segui, desceu as escadas e tal, eu o segui e ele entrou na Mercedes mais inacreditável que eu já vi, acho que a Mercedes-Benz construiu um blindado, um tanque para ele. Ele entrou naquele carro, tinha um chofer, e atrás tinha uma outra Mercedes igual com a Mossad israelense protegendo ele. Eu falei: “Esse cara realmente é muito rico, esse cara realmente é muito poderoso,” eu não tinha me dado noção ainda de quanto. Aí eu fui, entrei em contato com uma prima minha, que ele não falava diretamente comigo, mas a prima falava. E ela falou: “Venha aqui no escritório que a gente vai te dar um dinheiro,” E me deram dez mil dólares, que não é nada, em notas de 20 numa caixa de sapato. Eu olhei para aquilo, achava: “Nossa, eu estou riquíssimo,” mas eram notas de 20 usadas, amarelas, dez mil, imagina, para quem está achando que vai sair de lá com dois milhões, saí de lá com dez mil, mas já foi uma boa ajuda.
P/1 – E nunca mais teve contato?
R – Não, nunca mais. Ele guardava tudo meu, ele me seguia pela imprensa, é um doido, óbvio, que tinha um news clipping de imprensa escrita e de vídeo, de televisão, que ele guardava debaixo da cama dele em sacos plásticos pretos, mas não queria me encontrar, não queria me ver.
P/1 – Nessa época você era casado com a Daniela?
R – Não, não. Eu separei da Daniela em 87, isso eu estava casado, sabe que eu não sei, Com a Gilda, com a Fabi, com a Fernanda. Não sei, estava casado, já era a Fabi, Fabiana Guglielmetti, é uma atriz que fez muito espetáculo meu.
P/1 – E nesse tempo, você sempre ficou morando, sua base foi em Nova York. Você voltou para o Brasil, nunca voltou a...
R – Eu nunca morei no Brasil, eu nunca tive, sempre hotel.
P/1 – Você nunca teve uma casa sua aqui?
R – Não, nem quero.
P/1 – Nem no Rio.
R – Não.
P/1 – Com nenhuma das tuas esposas, você sempre morou lá.
R – Lá. Morei na casa da Nanda porque a Nanda ganhou um prêmio de Cannes quando tinha 18 anos, montou no meio da Floresta da Tijuca uma casa onde eu fui picado por aranha, dengue, tudo, eu falei: “No more” ela vinha passar três dias comigo em Nova York e voltava para fazer o espetáculo quinta, sexta, sábado e domingo. Domingo ela pegava o voo e segunda ela estava comigo lá. Não, nunca tive. Eu não sei como pagar uma conta de luz no Brasil. Eu sei em Londres e eu sei em Nova York, mas eu não sei no Brasil como é, não tenho ideia de como é pagar uma conta. Para mim tudo é hotel, está tudo incluso aqui.
P/1 – E seus pais continuaram morando no Rio?
R – Sempre.
P/1 – Sempre lá.
R – Sempre. Meu pai morreu em 84, meu pai morreu no mesmo mês em que eu estreei o meu maior sucesso, o All Strange Way, uma prosa que o Beckett me deu, vai: “It looks better on a written page, but you might try doing it on a stage.” Ele falou para mim, eu falei: “Well, that’s why I do on the stage” “É melhor numa página escrita do que num palco, mas se você quiser”. Nossa, tínhamos 70 críticos na plateia, 70 críticos do mundo inteiro. Setenta! Quatro já é uma merda, né? Setenta, o que você faz? Distribui sorvete de pistache? Eu também não sei.
P/1 – Você tinha planos, assim, quero fazer tal coisa? Como é que foi acontecendo, desenvolvendo esses trabalhos? Todos, que você foi virando essa...
R – Essa entidade.
P/1 – Essa entidade do teatro.
R – Olha! Eu realmente...
P/1 – Você tinha esse desejo?
R – Tinha. Eu tinha a vontade revolucionar o teatro e realmente revolucionei o teatro, então, não é exatamente unpredictable, não era uma coisa além dos oceanos, era uma coisa muito plausível para mim, eu sabia tudo, eu sabia onde estavam os erros, eu sabia como fazer para manipular a plateia, eu sabia como fazer para criar a caixa preta do crânio, o crânio dentro do pensador teatral. E não foi difícil, aliás, foi muito fácil, difícil foi quando eu comecei a escrever os próprios textos. A partir de Carmem com Filtro, com Fagundes, Electra com Creta com a minha companhia Beth Coelho e tal, aí começou a ficar difícil. Eu falei: “Nossa!”
P/1 – Quando você decidiu criar a sua primeira companhia?
R – Quando Julian Beck, que estava no meu palco, morrendo, em Nova York, no La MaMa falou: “You must get away from New York” “Você tem que sair de Nova York. Os atores aqui vêm todos cansados, porque são todos garçons e motoristas de táxi, vai para o Brasil, porque você fala português e faz lá numa grande escala, uma escala Broadway, o que você faz aqui na Off-off-Broadway, constrói e faz para você uma household name no Brasil e volta que você vai estar na capa do Arts & Leisure, página inteira e você vai conquistar.” Como um profeta tudo isso aconteceu assim.
P/1 – Ele falou isso antes.
R – Ele falou isso em 85. Em 88 eu voltei com a Trilogia Kafka para o La MaMa e na capa do New York Times, a capa do jornal para o qual eu trabalhava, não trabalhava mais, mas todo mundo ali: “How did he ge there? How is that possible? He was doing drawings for the Op-Ed page and now he is front page.” Ninguém entendia no jornal, porque eu fui no prédio comprar o jornal antes dele sair nas bancas, no domingo, todo mundo: “Hi! You’re back on the night floor?” “No, I’m not back on the night floor.” Enfim, tem umas coisas engraçadas.
P/1 – Você chegou a fazer faculdade, universidade, alguma coisa?
R – Fiz, na Biblioteca do Museu Britânico, British Museum.
P/1 – Como que é? Numa biblioteca?
R – É um lugar cheio de livros.
P/1 – Autodidata?
R – Mais ou menos. Londres tinha uma coisa chamada LEA, in a London Education Authority, que era um, como traduz isso?
P/2 – Autoridade municipal de...?
R – Era Greater London Council, que era gerente do LEA London Education Authority, Departamento de Educação de dentro de Londres. E eu tive um tutor, eu tive que arranjar um tutor, uma carta de uma pessoa ligada a teatro. Minha tia conseguiu que eu encontrasse duas pessoas: Steven Berkoff e o Ronald Hayman, o biógrafo de Brecht, Beckett, Artaud, todo mundo. E ele me entrevistou longamente, eu falei nossa, e ele falou: “You asked me gorgeous, marvelous. And by the way, handsome, you’re a nice boy.” Claro que ele queria me comer também, mas ele escreveu uma carta para o British Museum Reading Room Library, onde o Marx escreveu O Capital, onde Jung escreveu O Homem e Seus Símbolos, enfim, onde tem tudo. E eu fiquei seis anos lá, seis, me formei em Filosofia e Literatura Comparada.
P/1 – Você ficou seis anos lá e fez Literatura Comparada, mas como é que era? Você tinha que ter tipo uma autodisciplina?
R – Você sabe, eu não tinha, não. Eu era bem anárquico, eu pegava um autor, por exemplo, Arthur Koestler, aí pegava Descartes e pegava Rimbaud. E eu espalhava eles assim e começava a ler um e continuava lendo a mesma frase em livros diferentes, entende?
P/1 – Como assim?
R – Ah! Meu Deus, tem que explicar tudo para essas pessoas.
P/1 – Você pode desenhar também.
R – Então, eu abro dois livros assim. Eu começo a ler uma frase aqui, que continua aqui, que continua aqui e no fim eu não sei quem é o autor daquilo, eu fiz essa colagem literária, na minha cabeça, totalmente criação minha, ou melhor, interpretação minha. E lá eu li tudo o que eu pude ler, inclusive o original do Capital, em prusso. Mas como eu falo alemão o prusso não é tão diferente, é uma variação, não é saxônico, mas é prusso, mas é alemão.
Barry – But you had to write assays about it, you did.
R – Yeah, yeah, eu tinha que escrever uma vez por mês páginas, assays, como é? Ensaios, ensaios, para provar para o Ronald Hayman que eu estava de fato fazendo. E ele lia e: “But this is going a little bit too far, isn’t it? I mean, this is a little outrageous” eu dizia: “Well, I don’t know, I mean, you know” e eu falava: “You know, I don’t think Kafka is all that amazing” ele era o biógrafo do Kafka, “You know, I have reservations about Franz Kafka” ele: “What!? How dare you? Who are you? You’re a tweet, you’re a tweet” e eu dizia: “Well, I might well be a tweet, but I have my opinions” “Well, prove to me, then. Prove. Give to me real evidences that Kafka isn’t all that amazing.” Aí eu fui vasculhar um autor que eu não me lembro agora, eu acho que é húngaro ou romeno, enfim, daquela mesma região, ex-império austro-húngaro lá.
P/1 – Seus pais liam muito, essa curiosidade?
R – Não, meu pai era muito simples. Meu pai era um operário da Opel na Alemanha e depois um pedreiro, bricklayer.
P/2 – Então você provou que Kafka não era tão amazing?
R – Não, não tenho como provar. Eu citei um autor que eu realmente não me lembro o nome, é romeno, de onde Kafka... Eu acho Kafka o maior de todos até hoje, e sempre achei também, mas era uma briguinha pessoal que eu queria ter com o Ronald. Então, eu só quis, eu citei esse tipo, não é Ceausescu, mas é
Ionescu, é um desses que termina com cu, que todo romeno termina com cu, Ionescu, Ceausescu. E provei que era uma desses meio surreais também, bobagem.
P/1 – E a sua mãe?
R – Minha mãe estudou com Piaget, então era uma intelectual, era uma psicóloga intelectual, cheia de problemas. Mas seguia o grupo The Who onde eles iam, minha mãe era groupie do The Who.
P/1 – Jura?
R – (imita voz feminina) “The Who! Really? Are they playing in Leeds? Let’s go to Leeds!”. Leeds é uma cidade horrorosa no centro norte da Inglaterra, horrível! “No, I’m not going to Leeds” “Well, you must drive me there!” “I’m not gonna drive, you take a train” “Oh, you really are something, aren’t you?” Era muito engraçado. E ela entrava no meio da garotada, todo mundo drogadésimo e ela ali, (risos) muito engraçado. Eu não podia nem tocar nos discos do The Who, não podia tocar em Tommy, não podia tocar em nada. “These records are mine, if you want, you can buy your own,” muito engraçado. O Barry entende essa entonação de aristocrata, mas Barry é escocês, ele não conta. (risos)
P/1 – Aqui no Brasil você teve apoio de alguém? De alguma entidade para fazer a montagem das suas peças?
R – Danilo Santos de Miranda, você acabou de ver ele lá embaixo.
P/1 – Quando foi a primeira vez?
R – Há 30 anos atrás quando eu trouxe Electra com Creta para São Paulo. Para o mesmo Sesc Anchieta onde você viu Entredentes. Eu estive naquele teatro já muitas vezes.
P/1 – Há 30 anos atrás o Sesc deu esse apoio, como é que foi?
R – Não é apoio, o teatro precisa de uma peça que habite o palco. Na época tinha um produtor, não me lembro, acho que era o Yacoff Sarkovas o produtor e a gente ficou em cartaz. Lembra?
P/1 – Lembro.
R – E a gente ficou em cartaz no Museu de Arte Moderna, no Rio, sete meses. Naquela época uma peça ficava sete meses de terça a domingo, era uma doideira. E viemos para São Paulo estouramos, aquela rua parava, era uma loucura, era uma doideira. E o ano seguinte foi a Trilogia Kakfa no Teatro da Ruth Escobar, mas já feito para ir para Nova York, para o La MaMa, e para Viena, e para Munique, para Hamburgo, enfim, turnês mundiais.
P/1 – Você passou momentos de crise, assim, financeira?
R – Eu estou numa agora.
P/1 – É mesmo?
R – Financeira?
P/1 – Financeira.
R – Claro! Muitas. Você quer que eu seja específico?
P/1 – É.
R – Quantos zeros a menos eu tinha no banco? Olha, depois de 11 de setembro, depois de Nine/Eleven, quando eu procurei meu pai biológico. Noventa e três não foi um ano muito bom para mim, 93, eu não sei muito bem, 92 foi um ano muito bom, eu estava excursionando com Flash and Crash com as Fernandas e o Hamburgo tinha me pedido uma peça, o Teatro Nacional de Hamburgo tinha me pedido uma peça, eu fiz o Saints And Clowns, um fracasso fenomenal, um horror, e tudo muito caro, tudo custou uma fábula. E foi um fracasso fenomenal. (silêncio) Antigamente não tinha isso, o entrevistado pega, começa a digitar e entra em um outro mundo aqui. A Dani, deixa eu mostrar a Dani para vocês.
P/1 – A sua mulher?
R – É. Barry chega mais perto, chega todo mundo mais perto, agora é a vez de vocês. Então, eu voltei de Hamburgo arrasado para Nova York, numa depressão horrível. Foi horrível mesmo, fiquei três meses debaixo da cama, foi horrível. Até que eu voltei com o Império das Meias Verdades e me levantei de novo. Mas tem muito isso, tem muito, muito, muito. Em 2009 eu escrevi um Manifesto que está publicado em tudo quanto é site me despedindo do teatro de vez, agradecendo aos deuses por terem me dado uma puta vida maravilhosa, enfim. Eu falo muito do Daniel Barenboim, falo dos palestinos, israelenses, que ele fez essa ponte cultural e que eu não tinha sido capaz de fazer e logo no ano seguinte eu volto com a London Dry Opera Company.
P/1 – Por que você anunciou isso? Você sentia isso?
R – Porque eu tenho um blog muito lido. O blog é muito acessado e eu tenho muito fã e, ao mesmo tempo, muito estudioso, e muita gente de teatro vai ali ver qual é o meu último pensamento, e o melhor lugar para anunciar é o blog. E saiu e todo mundo me ligou. Mas não, na verdade tchum, acabou, é melhor se retirar quando a gente está em alta, como atleta, do que ir começando a minguar, dirigir pequenas coisinhas aqui e tal. Só que eu não mantive a promessa, eu montei a London Dry Opera Company logo no ano seguinte, 2010 e fiz o Throats no Pleasance Theatre, fiz o Gargólios que veio para cá, foi para Curitiba no ano seguinte e tudo com a Maria de Lima que você viu e companhia. Está tudo nesse site, entra no Geraldthomas.net, que você vê o Philip Glass falando ao meu respeito, você já viu?
P/1 – Vi.
R – Viu? Viu o Philip?
P/1 – Vi e li o blog.
R – Ah, ok. Bom.
P/1 – A gente não falou do Philip Glass, mas tudo bem.
R – Pode falar, esse eu falo com prazer.
P/1 – Como que vocês se conheceram?
R – Ele veio ver o meu espetáculo com o Julian em 85, 84, eu não sei. O Julian era o ícone dessa geração, o Living Theatre era o ícone desse pessoal. E ele veio, ele veio cumprimentar o Julian, depois ele quis cumprimentar a pessoa que dirigiu e era eu. E ele: “My name is Philip Glass, I’m a composer,” eu falei: “Hey, I know exactly who you are, and I love your work” “Really? You know, I live around the corner.” Eu fui na esquina e ele morava literalmente um quarteirão atrás do La MaMa, pronto. No mês seguinte já estávamos aqui no Pão de Açúcar, pensando, ele já estava compondo para o Quartett, do Heiner Müller com a Tônia Carrero e Sérgio Brito e pronto, começou tudo aí e não parou até hoje. Esse depoimento que ele dá a meu respeito é muito legal, né?
P/1 – Muito.
R – Você viu?
P/1 – Vi. Eu ia falar da sua filha, essa sua filha. Como que foi? Você casou?
R – Bom, você sabe como é que faz um filho, né?
P/1 – Sei, mas como você conheceu a mãe, foi aqui no Brasil?
R – Foi. Ela era rainha da bateria de Padre Miguel.
P/1 – Como vocês se conheceram?
R – Eu tocava, eu toco, aponta aqui, (batucando). Então, eu tocava caixa, eu tocava surdo, eu tocava repique na Mangueira e na Rocinha e em Padre Miguel. E tinha essa mulata linda, rebolando a bunda aqui na minha frente. Eu falei: “Hummm” ela falou: “Hummm” a gente se encostou ali, quando da dispersão da praça lá do sambódromo foi crau ali, e uns outros craus depois, ela falou: “Ih, acho que tem um baby aqui dentro”.
P/1 – Como é o nome da sua filha?
R – Milene. Porque ela nasceu na virada do milênio, (risos) Milene. Complicada a garota, é uma idade complicada, 13 para 14, imagina. Por que vocês são tão difíceis, hein? Me explica.
P/1 – Acho que a gente pode ir encerrando, né? Vamos encerrar. Vamos encerrar a entrevista. Eu queria que você falasse um pouco, se você quiser, se não tiver cansado, do SOS Dignidade, essa causa do tráfico...
R – O trabalho do Barry?
P/1 – É.
R – Eu acho muito bom. Tanto é que eu participei, eu em Londres, você em Glasgow, acho, a gente estava trocando e-mail sobre qual é a melhor maneira de construir um estatuto, ou mandato, como é que faz sem ser, onde que entra a educação, onde que entra cultura, behavior, onde entra tudo isso. E eu fui à caça de patrocinadores. Infelizmente na época era a Síria que estava estourando, né? Ou era Líbia, ou era tudo, e as pessoas estavam mais preocupadas com gente morrendo na Síria do que algumas travecas sendo espancadas aqui na Rua Augusta. Então, no momento, naquela hora, não era propício, isso faz dois anos, alguma coisa assim. A Síria estava no início da sua chacina diária, a Líbia já tinha passado por Muamar Kadafi eu acho, e Egito em plena revolução, então, as pessoas estavam mais focadas nisso. Eu acho que talvez dando uma acalmada agora eu possa retomar o trabalho com o Barry e fazer. Eu acho, assim, dignidade nem deveria ser discutido, é um ponto pacífico, né? É incrível que não seja, né? É incrível que exista uma coisa chamada discriminação ainda, seja do que for, não é de sexo, mas de religião, de cor, de qualquer coisa assim. Você exercitar o preconceito, seja lá qual for é uma loucura, é uma loucura em 2014, é uma loucura mesmo, assim. Às vezes eu penso, sabe, é melhor a gente ser invadido por alienígenas, porque todo mundo se une contra eles. Porque o ser humano não tem jeito, a gente é predador e a gente que humilhar, a gente quer diminuir, a gente quer torturar aquela outra pessoa ali. E isso é um absurdo para mim. Eu venho de família assassinada em campo de concentração. E eu nasci com o Holocausto na cabeça, essa ideia de que: “Olha, eles vão chegar para você a qualquer hora e vão tirar tudo de você e você vai ter que se mudar.” Eu vivo com isso, eu vivo com essa ideia o tempo todo. Tudo é muito transitório, tudo é muito efêmero, então eu tenho três bolsas e eu vivo dessas três bolsas. Minha casa não tem decoração nenhuma, tem uns pôsteres de peça e tal, mas não tem muita coisa. Se quiser ver minha casa você acessa no meu site o programa do Amaury Júnior que foi lá em casa e filmou a casa inteira. Mas eu simplesmente não entendo que uma pessoa possa ser classificada como cidadão de segunda categoria por qualquer motivo, isso para mim é uma incógnita, eu não sei como uma pessoa trata uma outra pessoa mal, seja por qualquer motivo, sem conhecer a pessoa, pela aparência dela. Como assim? Eu entendo que você possa ter medo de uma pessoa que está com uma arma na mão, aí tem um símbolo envolvido, e um símbolo letal, né? Mas não entendo como uma pessoa pode olhar para uma outra pessoa e já classificar, e já repudiar, isso para mim é impensável. E se a minha arte não servir também para cobrir, fazer uma ponte entre as camadas sociais, unir, fazer uma ponte nesse canyon social e, às vezes, de diferentes expressões humanas e humanísticas. Por isso que eu sempre estou engajado em alguma coisa política, ou social, ou ambas as coisas. E eu acho que o projeto do Barry é muito bom, muito bom, é muito pertinente.
P/1 – Bacanésimo, obrigada.
R – À disposição.
FINAL DA ENTREVISTARecolher