Foi numa tarde ensolarada que me despedi de Paul em frente ao Sítio da Ressaca. Nunca mais nos vimos.
Algumas imagens permaneceriam na memória. Moacir e Adriana pelados em Paranapiacaba. Moacir de boca carnuda, magérrimo, Adriana de cabelos cacheados.
Estavam apaixonados. Paul e Marcos cha...Continuar leitura
Foi numa tarde ensolarada que me despedi de Paul em frente ao Sítio da Ressaca. Nunca mais nos vimos.
Algumas imagens permaneceriam na memória. Moacir e Adriana pelados em Paranapiacaba. Moacir de boca carnuda, magérrimo, Adriana de cabelos cacheados.
Estavam apaixonados. Paul e Marcos chapados de lança perfume, Marcos correndo no meio do mato, e os borrachudos almoçando o nosso sangue. Os jantares com vinho tinto e macarronada ao molho branco.
Paul havia nos ensinado a beijar na boca. Daí em diante todos nos cumprimentávamos assim. Eu o havia conhecido numa oficina de xilogravura, comentei sobre poetas que havia encontrado uma semana atrás e não sei exatamente como marcamos uma reunião na biblioteca Monteiro Lobato. Foi assim que tudo começou. Éramos todos muito jovens.
Lembro-me dos primeiros poemas dito na roda uma semana depois no Jabaquara: “Os meus erros pago eu com penitência e solidão, que o destino fez-me artista, poeta de coração...” – Por tantos anos esses versos ficaram soando na minha cabeça: Nunca terei mansão... Nunca teria mansão... Talvez nem mesmo o dinheiro da condução... – Tempo de penúria aqueles. Repetia sempre a mesma frase: Dias melhores virão.
Despedimos-nos lá. Paul me abraçou e disse: Não desisti não irmão. Nesse momento eu imergia nas profundezas das artes plásticas. O desenho já fluía das minhas mãos. Nelson Roco no ateliê modelava cabeças, bustos. Havia os desenhos ágeis que ele fazia durante os nossos ensaios. Encantou-me tudo aquilo, corpos que surgiam no espaço branco, tudo isto estava latente. Paul subiu em sua moto e fiquei observando ele partir. O grupo havia terminado.
Mas as imagens permaneciam, as aulas de voz e de corpo, o jeito incisivo que Paul dirigia todos nós, como um irmão mais velho nos conduzindo. Depois ainda havia a roda da verdade onde todos diziam exatamente o que pensava um do outro. As caras pintadas, quanta coisa antecipamos, nossos poemas urbanos declamado em voz alta pelos parques da cidade. Agora havia tudo acabado. Tem tantaantena... Tem tantaantena... Tantantena... tantantena que eu fico tan-tan!
Adeus Paul... Não desiste não irmão.
Quando os dias são portas do tempo. Como vou esquecer esta frase. Havia chegado a AIDS, tudo havia mudado. Queríamos diretas já. Na casa do Moa nos acabávamos dançando Bob Marley. Uma cerveja, um baseado já era o suficiente. Dias melhores virão meu irmão, dias melhores virão. Escorro macarrão com batatas, faço limonada das asperezas, lavo alface com agrião. Dias melhores virão. Ligo o rádio na voz do Brasil para me fazer companhia.
Anos depois (exatamente hoje) estou de frente ao parque da independência ouço Cazuza. “Ideologia eu quero uma pra viver”. A bandeira do Brasil tremula. “Brasil mostra a tua cara, quero ver quem paga pra gente ficá assim”. Trinta e tantos graus de calor, os gatos Frajola e Margô estão exauridos no chão da cozinha, corto limões para uma caipirinha, tomo uma cerveja gelada, pico cebola e amasso o alho para o arroz e penso: “Como se tivesse em vez de olhos binóculos ao contrário o mundo se distancia...”. Ana aproveita para jogar água nas plantas.
Volto novamente para aquela foto em preto e branco, nós todos de mãos dadas no parque do Ibirapuera. No olhar uma força desafiadora pros tempos que viriam. Hora de armar barricadas, arrumar as malas, tirar o pó dos poemas... Inúteis... Inúteis... Inúteis...
Mas dias melhores virão. Moleques batendo latas. E as montanhas de Minas. Ah! As montanhas. Os arranha-céus das cidades. São Paulo, Londres, Belo Horizonte. Agora em cada periferia um sarau. Agora sabemos dizer não.
A bandeira do Brasil tremulando lá no parque, o cheiro bom da comida que eu preparo meticulosamente entre um gole e outro de caipirinha, os gatos, os bichos todos do mundo, enfim é a vida desprezando a morte. “São flores caindo e flores murchado, mas uma voz aclamando: A primavera não tarda a chegar!”.
Escrevi isto a tantos anos, antes mesmo do grupo, eu estava num ônibus lotado, uma menina morena me inspirou, estávamos no final dos anos 70.
E dias melhores vieram da mesma forma que também vieram perdas. Nossos caminhos cruzaram e se descruzaram tantas vezes. E mais sonhos erigidos e mais perdas. É assim como no samba: “Levanta sacode a poeira e dá volta por cima”.
Neste domingo de frente pro parque da independência uma frase de Zeca Baleiro soa da caixa de som: ”Quero ser o caçador, ando cansado de ser caça.” Então eu tomo uma pequena dose de cachaça e me lembro de Paul quando nos despedimos naquela tarde ensolarada: Não desiste não meu irmão, dias melhores virão.Recolher