Entrevista de Luiz Antonio Valente Guimarães
Entrevistado por Lucas Torigoe
Barcarena, 17 de setembro de 2020
Projeto Memórias de Barcarena
Entrevista HYD_HV001
Transcrita por Selma Paiva
P1 – Você me fala, então, pra começar, mesmo, o seu nome completo, data de nascimento e local.
R1 – Meu nome é Luiz Antônio Valente Guimarães, eu sou natural de Barcarena e nasci aqui em Barcarena, mas acabei, por condições de destino, ter que ir pra Belém, nascer na Santa Casa de Misericórdia, no dia 25 de agosto de 1970.
Então, toda minha vida começou aqui no interior de Barcarena, um pouco mais distante aqui desse ponto em que nós estamos, do Rio São Francisco.
Toda minha família é dessa região, de uma localidade chamada Tracuateua e nós vivemos até os anos 70, quando a sede do município não existia.
E meus pais são naturais dessa região e tem uma história bem curiosa, porque a minha família é natural daqui e tem algumas intervenções de tradições portuguesas.
Eu me tornei Guimarães porque um ancestral meu, em algum tempo, é de origem portuguesa, daí o Guimarães no nome.
Mas toda a minha família é natural desse rio, são ribeirinhos que viviam da atividade da pesca, da agricultura e até os anos 70, até quando eu nasci, nós morávamos nesse local.
Meus irmãos, nós somos em torno de cinco irmãos, alguns deles, outros, que nasceram falecidos.
Meu pai chama Raimundo Pinheiro Guimarães.
Ele foi um carpinteiro e aprendeu a lidar com o ofício de madeira e a minha mãe chama Maria Valente Guimarães, é dona de casa.
Tem uma fase da vida que ela trabalhou como empregada doméstica em Belém, até os 13, 14 anos, depois retornou pra Barcarena e acabou, depois, ficando com meu pai.
A minha família, totalmente ligada à vida rural, tem grupos diferentes: os Valente Guimarães fazem um segmento e os Cravos são outro grupo, que é parte da minha mãe.
P1 – Você quer começar falando, então, o grupo da sua mãe? Pode ser? Dos seus avós.
R1 – Os meus avós da linhagem da minha mãe são Cravos daqui do Murucupi, dessa região aqui, que hoje é a Vila dos Cabanos.
Era essa região aqui que eles moravam.
São artífices e alguns deles, tinha um que tinha um talento incrível, era músico.
Chamava alguma coisa Leal, Leal Cravo.
Liberato Leal da Silva Cravo, era meu avô.
Talentoso, tinha uma banda de música aqui na Vila do Murucupi e os outros eram artífices, alguns com habilidade em arte de madeira, de música e tinha uma banda de música, que naquela época eles se reuniam, pra fazer as festas aqui.
Então, quando tinha festa de santo e festas religiosas, eles tocavam.
Chamava Banda dos Cravos.
Essa era uma parte do nosso elo familiar, do lado materno.
Mas todos, aqui, tinham roças, trabalhavam com atividade de produção de abacaxi, produziam pequenas atividades agrícolas.
Então, esse era um elo da nossa família, do lado materno.
P1 – Pode dizer, então, só pra registrar o nome do seu avô, da sua avó maternos.
R1 – A minha avó, a gente chamava – engraçado – Tia Gorda.
Era Gordolina o nome dela e o apelido dela chamava Tia Gorda.
Mamãe chamava Tia Gorda pra ela.
E talvez por Gordolina, uma distorção do Gordolina.
E o meu avô era o Liberato Leal.
Então, eles viveram aqui nessa região.
Eu não tive oportunidade de conhecê-los.
Ouvi muitas histórias sobre eles e sobre o talento dele.
Minha mãe me conta uma história muito interessante porque, como ele era compositor, sabia fazer partituras, tocava, ele construía muitos registros musicais.
Mas é interessante porque, naquela época, acreditava-se que quando as pessoas morriam ou deixavam os seus materiais, poderiam causar algum tipo de assombração.
E o incrível é que, depois que ele morreu, os parentes, temendo que algum tipo de problema houvesse, do retorno dele, acabaram queimando todas as partituras dele.
A escrivaninha onde compunha as músicas.
E os instrumentos acabaram deixando.
Infelizmente, nenhum dos nossos ascendentes, descendentes, tiveram a mesma tradição, de aprender música.
Outro dia fiquei feliz de estar andando de carro e eu tive oportunidade de ver um programa da TV Cultura e aí o repórter dizia assim: “Agora nós vamos ouvir uma composição de um amigo meu lá de Barcarena, Liberato Leal da Silva Cravo” e acabaram tocando e eu fiquei muito louco, porque eu queria ter aquela gravação, porque era o único registro que eu tinha daquela época que ele compunha.
Acabei nunca alcançando porque, na época, era vedado acesso a esse material, exceto se fosse da família.
Embora nós fôssemos da família, eu não consegui obter essa gravação.
P1 – Ele tocava o quê?
R1 – Ele tocava saxofone.
Mas todos os instrumentos de sopro, porque aqui tinha muitas festas religiosas, aqui no São Francisco, tinha sempre a festa de São Francisco, que é no dia 3 de dezembro e eles fazem músicas e tinham bandas de música.
Então, ele era um dos que fazia essas festas e música de sopro, né? Fazia esses acompanhamentos.
Então, era muito solicitada a banda dele.
A Banda dos Cravos.
Ele era um dos tocadores.
P1 – E de onde que veio essa questão de queimar as coisas do morto? Não era só na sua família? Como é que era?
R1 – Na verdade, eu acredito que essa tradição, de não deixar nenhum tipo de objeto dos mortos, é um pouco temerosa e supersticiosa.
Vem de uma superstição.
Acreditava-se que os bens do morto pudessem vir, trazer algum tipo de lembrança, um retorno dele.
Era uma ideia de medo, mesmo.
Era muito comum, eu acredito, as pessoas queimarem as roupas, desfazerem dos objetos que eles tinham.
É verdade que hoje tem gente que faz o contrário: guarda como recordação, como memória das pessoas que faleceram.
Eu, realmente, depois, como neto, ficava pensando: “Poxa, seria muito legal se esse documento, esse material, estivesse lá, pra poder testemunhar essa fase e esse lado da família que, infelizmente, não teve um desenvolvimento futuro”.
A gente acabou ficando no que ele fazia e não conseguimos, de fato, obter essa linhagem da tradição da música na nossa família.
Mas eu acho que aqui e acolá, a gente tem bons ouvintes.
(risos)
P1 – O que mais você já ouviu falar da história da sua família, da sua mãe também? Tem alguma história que marca a família? Algum marco da família da sua mãe.
R1 – A minha família é bem interessante.
Tem muitas histórias, das quais eu sei e outras, de fato, eu não tinha muito.
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mas minha mãe contava muitas histórias.
Uma delas era bem interessante: a minha avó.
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quando a mãe conta as histórias dela, ela já é uma viúva.
Então, só ela que tinha o poder, como se fosse uma matriarca da família.
Mas era uma pessoa de muita força.
Isso é bem legal, porque geralmente se tem ideia de que as mulheres são, sempre, acompanhantes dos maridos e, ao contrário, ela, a Gordolina, a Tia Gorda, era muito tida como uma pessoa, assim, de muita força na família, de tal modo que tem uma história que ela conta, que é bem interessante, porque um dos filhos dela acabou que convivia e, naquela altura, tinha vizinhos e vizinhas que acabavam tendo, enfim, namoravam meio que escondido e o relato é que uma moça que morava, que era vizinha, acabou vindo pra casa dele e, durante a noite, sempre vinha pra casa dele.
O resultado dessa história é que ela engravidou dele e, naquela altura, a mãe da moça chegou lá a dizer que ela tinha que, obrigatoriamente, casar com ele.
Então, aí veio uma história que eu achei muto curiosa, que ela perguntou assim: “Escuta, você tem que casar, tem que assumir e tal”.
Aí ela perguntava pra ele: “Você tem que casar com ela, de fato? Você gosta dela e quer viver com ela?” Aí ele dizia: “Não, essa foi uma relação por acaso e tal”.
Aí a ameaça da mãe da moça era assim: “Se você não casar, ele vai preso”.
E o que foi que ela fez? Optou pela prisão dele, mandou que ele fosse preso, fosse pro São José, que é uma cadeia de Belém, ele acabou ficando preso seis meses, que era pra ele aprender a se comportar e não mexer com a filha da vizinha, do que assumir o casamento.
Bom, eu não sei dizer se, depois que ele voltou lá, teve continuidade nesse relacionamento, mas o fato é que dela dizer que ele deveria assumir e ir preso e consentir a prisão, pra mim é bem simbólic
o, porque o comum seria mandá-lo sair, do que fazê-lo casar ou ser preso.
Então, ela admitiu a prisão.
Então, eu achei isso muito curioso e de uma força muito grande, porque ela era a mulher da casa.
Então, essa história é muito marcante pra nós, mandar o filho pra prisão, por exemplo.
Quem faria isso, né?
P1 – E eles cresceram, então, você falou, nessa região?
R1 – Cresceram aqui nessa região.
P1 – Qual era o nome, mesmo?
R1 – Essa região do lado materno era uma comunidade chamada Mangarito.
Hoje ela fica localizada atrás do hospital municipal.
É uma área que fica, antes de chegar aqui, perto de uma ponte.
Então, minha família era desse lado.
E interessante que o lado da minha mãe é de um lado do rio e o lado do meu pai é de outro lado do rio.
Então, na verdade, quando eles se uniram, um passou pra casa do outro.
E moraram aqui na Tracuateua, que é essa comunidade, que fica aqui, mais próximo, também.
É o lado do meu pai.
Eles moraram aqui um bom tempo, depois eles mudam pra cidade.
P1 – Você sabe como é que eles se conheceram?
R1 – Bom, a história é bem interessante, porque a minha mãe, com onze anos.
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era muito comum aqui em Barcarena, as famílias serem muito humildes.
A minha avó teve dez filhos.
A minha mãe era uma dessas dez filhas.
E, geralmente, as condições econômicas não eram tão favoráveis.
Então, era comum que as pessoas tivessem dificuldade e a minha família também teve uma tradição de ser empregada doméstica em Belém.
Então, o que acontecia? Uma das primeiras tias mais velha foi trabalhar em Belém, na casa de família e, nesse local, então, ela ficou trabalhando e depois foi chamando outras irmãs, pra trabalharem em casas semelhantes.
Então, a minha mãe foi uma dessas.
Ela é uma segunda filha e a minha tia chama Tia Didi, o nome dela é Elpídia, foi trabalhar, então ela acabou levando a minha mãe pra trabalhar na casa de uns judeus.
Depois ela trabalhou na casa dos judeus, depois trabalhou na casa de um grupo de familiar de origem árabe, né? Mas esses judeus, chamados Larrat, ela conviveu com eles criando os filhos deles, vigiando os filhos.
Nessa altura, então, eles mandavam, como forma de pagamento pra ela, uma pequena cesta básica pra mãe, que ficava aqui no interior.
Por outro lado, pra minha avó, era menos um alimento que ela tinha que dar.
Era menos um filho que ela tinha que alimentar, então, porque estava morando na casa de outras pessoas, né? E a minha mãe, então, ficou, com onze anos, cuidando dos filhos dessa família.
Depois passou pra outras casas e foi mudando.
Então, acredito que até uns 15, 16 anos, ela ficou morando nessas famílias, mudando de casa e, quando ela fica em Belém, engravida de uma pessoa que, pra nós, da família, os filhos, ela nunca contou, de fato, quem era.
Só que ela veio grávida e voltou para o interior, pra casa da mãe.
E aqui ela teve a nossa irmã, que é a irmã mais velha, chamada Regina e passou a morar aqui no interior, na casa da minha avó, que já tinha falecido, que era a mãe, que estava morando no interior.
Ela volta.
As outras irmãs ficaram morando em Belém, como empregada doméstica.
E ela volta pra cá.
E o meu pai era casado, tinha casado com uma outra senhora, chamada Anália, teve também dois filhos, que são meus irmãos por parte de pai, que é o Manoel e o outro é o Flávio.
Só que a minha mãe.
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a esposa do meu pai faleceu, ele se tornou viúvo.
Então, ambos tinham filhos, de relações diferentes.
E aí, num dado momento, eles.
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e a mamãe conta uma história bem interessante: não houve namoro.
De repente ela estava criando uma filha sozinha e ele estava criando dois filhos só.
E aí ela, inclusive, disse que ela chamava de ‘seu’ Raimundo o meu pai.
Meu pai tinha mais ou menos uns dez anos mais velho que ela.
E aí ela pega, um dado momento e diz assim.
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ele vai lá e a avó diz assim: “Por que tu não vai morar com ele?” Aí foi na casa visitar, foi convidá-la pra morar com ele: “Você não quer morar comigo, em casa?” “É, bom, melhor ir morar com ele”.
Então, assim, foi uma coisa muito típica da zona rural, talvez não é uma coisa que houve relacionamento anterior.
Então, ela foi pra ele ajudá-la a criar a filha e ela ajudar a criar os outros filhos dele.
Acabaram se unindo.
Desse relacionamento tiveram mais cinco filhos, que somos nós, já, filhos desse casal.
Ela teve, ainda, a gravidez que não tiveram tido os filhos, porque acabaram morrendo durante o parto e eu sou o último dos filhos.
Eu sou o filho caçula.
A gente chama assim.
Os outros irmãos são mais velhos.
P1 – Eu queria perguntar dos seus irmãos, mas antes disso, como é que é, então, a família do seu pai?
R1 – Meu pai é uma história bem interessante, porque o meu pai é.
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o nome da minha avó chamava Helena dos Anjos Cardoso.
Essa linhagem dos Anjos Cardoso até hoje eu tento buscar.
Eles são, aparentemente, bem de vida, donos de propriedade aqui e eu não sei como é essa relação familiar deles aqui.
Mas o fato é que minha família eu já localizei aqui, numa propriedade de terra, que é o Tracuateua.
A minha avó, chamada Helena, então, teve relacionamentos não formais.
Ela teve filhos de maridos diferentes.
Meu pai é filho de um pai, né e os outros.
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ela teve três filhos e, desses três filhos, todos eram de pais diferentes.
E ela, sozinha, criava, então, esses filhos.
E meu pai, então, era filho de um cidadão chamado Augusto Vasconcelos, que nunca o criou.
Então, ele foi criado só com a mãe.
Meu pai, então, veio de uma família muito criativa.
Eles eram.
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além de trabalhar na roça, na vida rural, ele era artífice, trabalhava com madeira.
E muito curioso, eles eram muito curiosos por inventar coisas.
E a minha avó, assim, morava só com eles, no interior e ele, depois, quando criança, foi desenvolvendo, começou a fazer objetos de madeira.
Ele virou carpinteiro, mas ele começou fazendo maletas.
E depois, consertando banjos, instrumentos musicais.
Mas aquilo era diversão.
Ele disse que era um lazer.
Ele fazia aquilo pra se divertir.
A propósito, chegou um tempo que aquilo virou a profissão dele, mas meu pai era, então, uma pessoa que vivia desse tipo de atividade.
A madeira e a atividade da roça era o que consumia a vida dele.
Não teve formação escolar.
Aprendeu a lidar com a vida escolar na prática.
Ele sabia ler, escrever, mas não frequentou atividade escolar.
Às vezes ele dizia que ele aprendeu fazendo contas com as pessoas, era caixeiro de uma família, aqui na Vila de São Francisco, mas então não era uma pessoa que tinha essa frequência escolar.
Muito cedo ele acabou desenvolvendo essa atividade de aprender fazer ofícios de madeira e atividades de consertos pequenos, pequenas atividades de reparos de objetos que as pessoas tinham.
Como aqui tinha muito tirador de santo, as pessoas faziam aquela coisa de fazer festa de santo que chama, né? Acho que é isso.
Então, as pessoas usavam banjo, violões, mas rústicos e feitos aqui, então, quando quebrava algum objeto, ele ia lá e consertava aquilo.
Depois ele passou, mesmo, fabricar.
P1 – Um luthier, no caso.
R1 – Um luthier, digamos assim, rústico, né? Aprendeu a fazer.
Até na idade adulta ele ainda fazia isso.
P1 – Em ambos os casos da sua família, você falou que eles trabalhavam na roça.
Você sabe como é que era? Eles falavam pra você? O que eles contavam?
R1 – Olha, por incrível que pareça, essa parte eu acompanhei, não só morando aqui, como também já quando a gente morava em Barcarena.
Lá na sede.
Porque, assim, meu pai era carpinteiro.
Ele faleceu agora, esse ano, mas ele foi carpinteiro a vida toda.
Então, naquela altura, ele sempre fez muitas obras: escolas, pontes.
Então, ele tinha uma atividade muito frequente, mas não era, assim, contínua.
Então, tinha, sempre, ausência de salários, né? Meu pai chamava Raimundo Pinheiro Guimarães e acabou, por conta desse ofício dele, ser chamado de ‘seu’ Breu.
Por causa, talvez, da relação com a atividade.
E era negro também.
Mas, enfim, como ele fazia atividade com madeira, então nem sempre todo mundo construía e tinha trabalho pra fazer.
E a roça era, um pouco, intervalo entre aquilo que ele fazia como profissão e as necessidades que tinha que suprir, de casa.
Então, o que acontecia? Nesse período, sempre, a minha mãe mandava fazer roça, que eles trabalhavam.
O regime era muito comunitário.
Por exemplo: como, às vezes, ele estava trabalhando, geralmente ela convidava as pessoas da comunidade pra fazer mutirão.
As pessoas cortavam, faziam a roça e depois limpavam e ela ia, depois, plantar.
Fazia isso com os filhos mais adultos, que são os meus irmãos.
Eles, então, a ajudavam a fazer esse tipo de atividade, que era plantar, geralmente mandioca, milho, que eram, geralmente, os produtos que mais faziam, mas também se plantavam coisas diversas, como gergelim, pequenas coisas, mas não com a finalidade, a não ser consumo imediato, né? E meu pai, quando não estava com outra atividade, a acompanhava nesse tipo de ofício.
Quando a gente mudou pra Barcarena, por incrível que pareça, lá ele também ainda continuou fazendo isso, embora a gente tivesse, por exemplo, meu pai tivesse, já, trabalhando mais e os meninos também tivessem atividade, mas ainda, lá na sede, tinha uma área.
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a cidade não cresceu muito rapidamente, ficou retida, então tinha umas áreas de terra muito grandes, lá a gente conseguiu terrenos que serviam também, como plantio.
E eu me recordo que eu acho que com uns 12, 13 anos, a gente ia pra fazer roça, farinha e eu já ia, acompanhando essa fase.
Então, assisti muito de perto essa ideia de plantar, de colher, de fazer farinha.
Então, a gente ia pra aqueles retiros plantar, eu ajudei, antes de ir pra escola ou depois da escola, a gente sempre ia pra esse tipo de atividade.
P1 – E como era ________ (25:20) fazer farinha?
R1 – É uma história bem interessante, porque eu me lembro disso na minha infância.
Assim, era uma aventura, pra mim.
Eu me lembro mais de lá, daqui alguma coisa.
Daqui, por exemplo: a minha mãe, como não queria deixar e não tinha essa ideia de creche, então levava sempre os filhos pra roça.
Então, daqui eu me lembro uma coisa bem interessante, porque a gente ia pra roça pra brincar, na verdade, apesar de muito calor, muitas formigas e muito inseto, às vezes.
Mas geralmente, quando a roça queimava, ficavam as raízes das árvores e eu me recordo que lá ficava uma raiz de uma árvore que dava um formato de um cavalinho e, enquanto eles capinavam, roçavam e faziam qualquer coisa, eu subia e amarrava uns cipós e ficava brincando de cavalo naquilo.
Acabava que eu não trabalhava muito.
Então, eu só ia pra ajudar.
Eu tinha o quê? Uns cinco anos, talvez.
Cinco, seis anos.
E eu acabava participando, os vendo trabalharem e eu sempre ficava.
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chegava um tempo que eu estava muito exausto, calor e com fome e ela, ali na rotina do trabalho, tinha que ir só depois do meio dia, ficava lá e eu dizia: “Mamãe, vamos embora, eu quero ir me embora pra casa”.
Quando não, ela deixava na casa da minha avó, que ela morava, então, aqui e eles iam pra roça.
E eu ficava lá na casa dela.
Mas sempre dizendo assim, eu ficava reclamando, porque a nossa casa já era de madeira e já era pintada de cal e a gente vinha pra zona rural, na casa da minha avó, que era feita de madeira rústica, coberta de palha e ela me recorda que eu dizia assim: “Mamãe, vamos embora, porque essa casa aqui não é tintada”.
Minha avó brincava com essa ideia de tintada.
Já lá em Barcarena, quando a gente ia, eu me lembro que a gente ia bem cedo, sempre seis horas da manhã, muito cedo pra essa rotina de trabalho, acordava muito cedo e eu me lembro que a gente ia e então, quando chovia, o mato ficava molhado, no caminho o mato pegava frio na perna da gente, a gente tinha que caminhar cerca de trinta minutos pra chegar no local que era a roça.
Então, lá, uma cabaninha pequena e a gente tinha que ir pra roça.
Que, geralmente, era dividido em dias de trabalho.
Dias antes a gente ia arrancar a mandioca.
Que era um trabalho bem pesado, porque era feito no sol, arrancar aquelas raízes enormes.
Eu me lembro que disso eu já participava com, mais ou menos, uns 12, 13 anos, a gente fazia isso.
Geralmente a gente ia.
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eu estudava de tarde e, de dia, eu ia pra lá com ela.
Então, trabalhava até, mais ou menos, uma hora.
Às vezes eles ficavam lá e eu vinha embora, pra ir pra escola.
Então, esse exercício: arrancar mandioca, colocar e levar pra colocar num poço.
Geralmente fala poço, porque vai ficar de molho essa mandioca, pra poder ficar mole, pra fazer parte de uma mistura com outro tipo de mandioca.
Dias depois vai e arranca outra quantidade de mandioca, que vai ser misturada com aquela, aquela vai ser ralada.
Então, na pequena casa, que é a casa de fazer farinha, meu pai fez um objeto que antigamente se usava ralo, pra ralar a mandioca, pra misturar e fazer farinha e depois ele desenvolve uma coisa que chama catitu.
Na verdade, é um rolo cheio de serras pontiagudas, que girava em velocidade.
Aquilo vira um motor de girar.
Só que aquilo era feito manual.
Então, tinha uma roda grande, que era acoplada a essa pequena e aí a gente girava aquilo lá e daqui as pessoas ficavam empurrando aquela mandioca pra ralar, pra misturar, pra fazer a farinha.
Então, esse era um serviço extremamente perigoso, mas eu me lembro que meus irmãos mais velhos e a minha mãe faziam isso, enquanto eu e meu irmão mais jovem fazíamos girar a roda, pra mover a farinha, fazer a farinha.
Então, esse era um exercício que a gente via.
E depois fazia coisas, mas acabava que a gente achava aquilo uma aventura de lazer e sempre feito entremeado com a escola.
Eu me lembro que a gente sempre fazia esse exercício.
Então, vir pra mata trabalhar e depois voltar levando farinha, era uma parte que a gente viveu, assim, uns anos lá em Barcarena, já.
Disso eu me lembro muito bem.
Era uma coisa que era bem interessante e divertida pra nós, porque acabava ocupando o nosso tempo, né? Hoje a gente já diria que era pesado, complicado, porque a gente tinha ferrada de bicho, de mutuca, de carapanã, né? Mas, enfim, a gente sempre levou isso como lazer, a nossa atividade desse exercício de fazer farinha, de trabalhar na zona rural.
PAUSA
P1 – Eu queria te perguntar, você contou essa história agora, que você falou que vocês moravam no interior e aí vocês foram pra Barcarena.
É isso?
R1 – Isso.
P1 – Como é que era essa diferença, então? Onde que era esse interior? Barcarena era o quê? Você sabia que era diferente, né?
R1 – É assim: pra gente compreender um pouco essa história, é interessante compreender o que é Barcarena, de fato.
Então, o que nós chamamos hoje de Barcarena, não existia até os anos 60.
Então, o que existia em Barcarena era a Vila de São Francisco, que é um pedaço aqui da cidade.
Isso aqui foi uma colônia jesuítica, fundada no século XVII.
Então, era aqui, em torno desse local, que é a Vila de São Francisco, que fica aqui próximo e esse lado daqui.
Isso aqui tudo foi Belém.
Foi um espaço de ocupação de Belém.
Isso aqui é um distrito de Belém, que existe desde o princípio da colonização.
Então, toda sede municipal, toda atividade municipal, Barcarena, então, vira parte de Belém, é uma comunidade, isso aqui foi uma aldeia indígena dos índios Gibiriés.
Depois dos índios Gibiriés, então, se torna emancipada por colonização portuguesa e vira, ganha nome de Barcarena, de uma cidade portuguesa, portanto e aí, o que acontece? Todas as comunidades estavam no lugar que estava aqui em torno, né? Então, a Vila de São Francisco, que a gente chama, era então a cidade de Barcarena.
O distrito de Barcarena, um distrito de Belém.
E tudo isso aqui era um, então o espaço que as pequenas comunidades viviam.
A nossa comunidade ficava cerca de meia hora de canoa, a remo, que as pessoas andavam de remo, de lá, pra Vila de São Francisco, que é o Tracuateua.
Então, durante muito tempo, todos os meus irmãos se criaram ali, no Tracuateua e estudando ali, naquele pedaço.
Por volta dos anos 60, então, já era uma campanha que existia há muito tempo, eu fui descobrindo isso depois, né, estudando a história da cidade, que havia uma intenção dos prefeitos de mudarem a cidade pra a curva do rio, que é o Mucuruça, que é um rio que faz um contorno mais amplo, que leva pro Rio Amazonas.
Então, todos os barcos que vêm e vão pro Rio Amazonas, passam por essa via.
Naquela época, Barcarena ficava mais dentro e então o rio ficava isolado, a cidade não crescia, não desenvolvia, porque todo o circuito marítimo passava por ali.
Então, a ideia era levar a cidade, de onde estava, que era essa vila colonial, pra essa cidade aqui.
Então, nos anos 60, a cidade, depois de muitas, muitas tentativas, acaba fazendo o processo de mudança dessa sede pra lá.
O prefeito, na época, chamava Dicão.
Chamava Raimundo Alves da Costa Dias.
Ele era o prefeito e concretizava um sonho de outros prefeitos.
Tinha um chamado Frederico Vasconcelos, que começa o processo, mas ele que consegue levar a sede, inaugurando a prefeitura lá, em 1962.
Então, quando a cidade inaugura lá, nesse pequeno núcleo, os governos da época começaram a tentar povoar aquele lugar, porque todo mundo morava na zona rural.
Inclusive a minha família.
A gente morava no Tracuateua; outros moravam no Mangarito; outros moravam aqui, no Murucupi.
E moravam, gravitavam espalhados em várias comunidades.
Então, naquela altura, os prefeitos da época começaram a fazer visita nas casas das pessoas, convidando as famílias pra se mudarem pra lá.
E qual era a promessa, então? “Olha, vão pra Barcarena, porque lá vai ter escola, hospital e mais oportunidade pra todo mundo”.
E, em troca, eles estavam oferecendo um terreno gratuito, dando o terreno, a escolha.
Quer dizer: as pessoas podiam chegar lá, pegar um terreno e davam madeira pras famílias virem morar.
Bom, a cidade, quando começou, foi nos anos 60, nós só saímos dez anos depois, em 1970.
Meu pai relutava, porque tinha a mãe que criava porcos, galinhas, tinha roças.
Então, ninguém queria sair, muito, da zona rural.
Até que um dia todo mundo estava crescendo e precisava estudar.
Meus irmãos estavam jovens, já estávamos adolescentes e a escola, aqui, só ia até, sei lá, o ensino muito primário, então terceira série, segunda série e já estava ficando com idade maior.
Então, convencidos disso, a minha mãe e o meu pai resolveram, muito relutantes, sair daqui e ir morar lá em Barcarena.
A escola foi esse incentivo, pra ir.
Escola, terreno, casa, mas todo mundo não queria, porque estava todo mundo habituado a morar aqui na zona rural, na nossa comunidade, Tracuateua.
Então, ninguém queria sair.
Mas nos anos 70, então, eles pegaram e resolveram vir pra Barcarena.
Isso é bem interessante porque, por incrível que pareça, eu estava com cerca de dois anos, três anos, eu acho, era 1972, meu pai disse que a gente começou a construir a casa nos anos 70, em 1971 ele termina uma pequena casa, que a gente vai morar, que é na Cronge da Silveira e eu me lembro que, então, ele veio e tem um caso bem inusitado, porque até hoje, lá na casa da minha mãe, tem um pequeno guarda-roupa, um pequeno roupeiro de gavetas e cara, eu tenho a sensação e eu me lembro por causa do relato de minha mãe, mas eu tenho a sensação que eu me lembro de eu ter vindo dentro da gaveta.
Foi um dia de chuva, a gente veio de lá, eles colocaram todos os móveis dentro de uma canoa, de um pequeno barco e todos os móveis que estavam na casa eram esse guarda-roupa, esse pequeno roupeiro e umas cadeiras, uns banquinhos, umas mesinhas.
Eu me lembro que pouca coisa, mas eu me lembro desse roupeiro.
Então, como começou a ficar nublado e a chover, eu me recordo dela ter aberto e colocado - e depois ela me conta essa história – dentro da gaveta, pra proteger.
Colocou alguma coisa pra me proteger e eu vi dentro daquela gaveta.
Tanto que eu tive que ir lá nessa casa, eu digo assim: “Quando todo mundo foi embora, esse aqui é o local que eu vim (risos) de lá de Tracuateua, pra Barcarena”.
E ainda está guardado lá.
Eu digo que ele é bem mais velho que eu, esse móvel.
(risos)
P1 – Não vai queimar?
R1 – Não.
Aquilo vai ficar guardado.
Já é parte da minha história.
(risos)
P1 – Você não tem lembrança __________ (38:29)?
R1 – Tenho.
É bem interessante, mas tenho, sim, porque eu me lembro do dia, era um dia meio nublado e eu me lembro coisas que são bem interessantes, de criança.
Eu me lembro, por exemplo, de uma vez que a gente vinha de lá, eu vinha com pouca idade e então, o barco que a gente vinha, começou a dar umas marolas, que a gente marolas, mas umas maresias pequenas e ele começou a ameaçar afundar e a gente vinha - eu, meu irmão, que é um pouco mais velho, são três anos mais velho que eu – e a minha mãe começou a ficar desesperada, que achava que o barco poderia afundar e a gente estava dentro, né? E eu me lembro dela fazendo, chamando umas senhoras que iam em um pequeno outro barco do lado, gritavam pra elas irem e virem.
E eu tinha pouca idade, então essas memórias me lembram muito bem disso, porque esse sair daqui da zona rural, pra ir pra Barcarena e fazer de barco, fizemos muitas vezes isso.
Então, entre essas lembranças me lembro dessa, de eu estar colocado dentro.
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deles falando: “Olha, vai chover, bora colocar e o que a gente vai colocar?” Aí coloca uma manta pequena e eu vou pra dentro daquela coisa lá.
Bom, isso eu me lembro vagamente, dessa cena de eu estar colocado ali e esperar a chuva vir e a gente veio numa chuva bem pequena, mas veio chovendo até chegar em Barcarena.
Depois, daí eu não me lembro mais de nada.
(risos) Mas isso ficou muito marcado na história.
P1 – E chegando aqui em Barcarena.
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hoje chama-se como essa região?
R1 – Bom, as localidades continuaram com os mesmos nomes.
Tracuateua continua Tracuateua.
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é claro que as pessoas, gradativamente, nos anos 70, começaram a mudar, por causa desse incentivo de morar na sede e o que era, por exemplo, Barcarena aqui, passou a ser chamado de Vila de São Francisco.
Antes chamava São Francisco Xavier de Barcarena.
Depois, agora, só fala São Francisco, porque passou a ser chamado Barcarena pra lá.
E, por incrível que pareça, se chama Barcarena só ali.
Aqui, Vila dos Cabanos, é Barcarena, mas chama Vila dos Cabanos.
Acaba se segmentando esses espaços.
Vila do Conde, por exemplo, é Barcarena.
Faz parte do município de Barcarena, mas quem mora na Vila do Conde, chama Vila do Conde: “Eu estou indo pra Vila do Conde”, como se não fosse Barcarena.
Mas é por conta dessa compartimentação, essa complexidade, que agora a gente já ouvia falar.
Essa diferença que tem, como foi criado de forma diferente, como foi unificado o município.
Mas lá é a sede do município, então ali ficou Barcarena, que é o local que a gente, hoje, chama onde está a prefeitura, a Câmara Municipal, onde é o centro administrativo.
Então, por isso que acabou recebendo esse nome de Barcarena.
Então, às vezes chama Barcarena sede.
E tudo gravita em torno.
É Barcarena, mas tem nomenclaturas dessas localidades.
P1 – O que você se lembra da sede, como era?
R1 – Bom, é bem interessante lá porque nós moramos sempre na Cronge da Silveira.
É a primeira rua de Barcarena, que é a rua principal.
É uma avenida, a Avenida Cronge da Silveira e meu pai foi nos anos 70 pra lá, 1971 ele construiu a casa e é bem interessante, porque quando ele chega lá, o prefeito disse assim: “Olha” – meu pai construía muita coisa pra prefeitura – “Breu, escolhe qualquer terreno pra ti aí” e ele tinha uma quadra toda pra escolher terreno, onde ia edificar nossa casa.
E ele escolheu um terreno só, de dez por trinta e ele poderia escolher três terrenos e a mamãe brigava, depois, com ele, dizia assim: “Poxa, Raimundo, por que tu não pegaste? Hoje nossos filhos iam crescer e iam morar perto da gente”.
E na época ele não quis, porque tinha saúva.
Crescia.
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o terreno era descampado e depois começou a dar um bocado de saúva lá e eu me lembro que ele falava disso e depois, quando eu estava um pouco criança, a gente brincava por ali e eu via aqueles montinhos de casa de saúva, então aquela era a razão porque ele não quis escolher aqueles terrenos, do lado.
E a gente construiu uma casa, então, lá.
Uma casa de madeira, não era tão grande e então nós começamos a morar ali.
Daquela rua eu me lembro muita coisa.
Passei toda a minha infância ali.
Eu me lembro da rua totalmente de terra batida, sem energia elétrica porque, quando nós chegamos lá, ainda me lembro vagamente da gente ter uma lamparina dentro de casa guardada, porque a luz ia só.
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era energia a motor, a diesel, então ligava as seis horas da manhã e desligava as onze da noite.
Então, durante esse intervalo de tempo, todo tempo tinha energia, mas sempre era muito regrada e falhava muito a energia.
Sempre quebrava o motor e, invariavelmente, a gente ficava no escuro.
E, naquela altura também, a gente tinha tubulação de água e, quando faltava energia, faltava água.
Então, dessa época eu me lembro que, quando faltava água, todo mundo tinha que tomar banho no rio.
Então, a gente era muito.
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não tem água, o que fazia? Mamãe levava roupa pra lavar na beira do rio e a gente era muito ligado a isso.
Então mamãe ia lavar roupa no rio, a gente, todo mundo ia tomar banho.
Enquanto ela lavava a roupa, a gente ficava nadando.
Mas só que eu não sabia, ainda, nadar e ela ficava lá lavando roupa e eu ficava numa área mais seca, numa enseada, ficava ali, até que depois eu aprendi a nadar, mas ficava cheio de lama e tal, mas aquilo era um lazer incrível.
Então, não ter luz, também não ter água, era sinônimo de lazer, porque a gente tinha oportunidade de brincar muito na água, ali.
E rua também, como não tinha muita passagem de carro, todos os garotos que eram da nossa idade, nossos amigos que cresceram ali, a gente fazia campinho de futebol.
Então, a rua era um espaço extremamente divertido.
A gente arrancava capim, fazia as traves de futebol, colocava ali, dividia e a gente brincava de bola ali, naquele intervalo.
Não passava carro, apesar de ter uma serraria, que isso é bem interessante: a gente morava numa rua e, no final da rua, tinha uma serraria.
Hoje eu olho aquilo com uma certa recordação de temor.
Eu não deixaria meu filho, por exemplo, fazer isso.
Mas naquela época a gente estava brincando e passava uns caminhões cheios de toras de madeira amarrados somente por um fio de aço, mas aquilo era.
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sabe? Vinham seis, sete toras amarradas e a rua ficava cheia de buracos e, então, quando ele vinha, fazendo.
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e a gente estava brincando de bola, às vezes brincando de qualquer brincadeira, com caroço, a gente usava caroço de tucumã, que é uma fruta aqui da Amazônia, a gente usava pra brincar, como se fosse de peteca e usava aqueles caroços ali e a gente brincava no lado, enquanto o carro passava, né? Depois que ele passava, a gente voltava de novo pra rua, né? Então, isso era bem legal.
E atrás da nossa casa era um terreno que pertencia a um senhor lá chamado Claudomiro e tinha muitas mangueiras lá.
E essas mangueiras davam frutos e lá a gente fazia, desse espaço, um lugar que a gente ia apanhar manga e brincar, porque a gente acabou fazendo um campo de futebol também, debaixo dessas mangueiras.
Ali foi uma fase, também, muito interessante.
A gente brincou muito debaixo daquelas mangueiras, corria por trás do quintal, porque não morava ninguém e subia nas árvores, pra apanhar esses frutos, ali.
Então, dessa fase, assim, tem muitas histórias.
E tomar banho no rio.
O rio era, assim, um local de lazer, a gente cresceu acho que nessa primeira infância, depois na juventude, o rio era tomar banho, brincar ali naquela área e depois ir nadar, se lavar no rio e voltar pra casa.
(risos)
P1 – Que rio que é?
R1 – Rio Mucuruça.
Esse que passa na frente da cidade.
Então, o rio era um lazer, assim, impressionante.
A gente sempre estava ali.
P1 - Que história que marcou muito essa primeira infância, que você gosta de contar?
R1 – Olha, deixa eu te falar: essa parte de brincar ali.
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teria inúmeras, mas eu registraria aqui duas delas.
Lá na serraria tinha um campo que serravam muitas toras de madeira, então, ao lado dele, ficava umas montanhas enormes de serragem.
E, assim, tinha vigia, então ninguém podia entrar ali, mas dia de domingo não tinha ninguém.
E aí, o que fazíamos? Todo mundo ia pra ali.
Então, do lado desse campo enorme de serragem, tinha um outro quintal, que era de uma família também e tinha um pomar, que tinha muita jaca, muitas frutas ali, manga e tinha muitos amigos ali que iam pra ali e faziam, então, uma coisa: tiravam jaqueiras das jacas e enterravam debaixo da serragem.
As jacas estavam só maduras, mas não estavam moles, amolecidas e ali faziam esse tipo de arte de criança, né? Essa foi uma fase bem interessante, porque a gente chegava lá na serragem, eles diziam assim: “Espera aí, vem aqui”.
Chegavam lá, desenterravam e tinha serragem e tinha jaca pra gente comer ali.
E uma coisa mais engraçada daquela época também foi que, como a serragem era muito densa, dava mais ou menos um metro, um metro e meio de serragem pra debaixo da terra, o que criança daquela época fazia era um negócio, assim, absurdo: eles começaram a cavar, faziam um fosso grande e depois cobriam aquele fosso com pedaços de madeira e jogavam folhas de árvores ali.
E aquilo era a tal da Batcaverna.
Todo mundo ia pra ali e se escondia.
Aquilo era um negócio terrível.
Olhando pros dias de hoje, era terrível, porque aquilo dava muito sol, muito calor, mas a gente estava ali, todo mundo estava na Batcaverna.
PAUSA
P1 – Eu achei interessante que você falou que era terrível, mas vocês gostavam.
R1 – Claro! Aquilo era muito interessante.
Era muito lazer.
Eu acho que a nossa infância foi muito divertida nesse ponto, por que o que a gente tinha? A gente não tinha preocupação, por exemplo.
Se hoje, por exemplo, as pessoas têm facilidade com tecnologia, nós tínhamos o sossego.
Se não tinha energia, por exemplo, uma coisa que é bem legal: a gente nunca conseguia assistir um filme que dava depois das onze, que era um filme de kung fu, que a gente tinha pouca idade, não tinha televisão na nossa casa, inicialmente.
Nós íamos assistir televisão na casa de uma vizinha.
E essa história também é bem interessante.
Eu até registrei essa história, porque eu tinha, mais ou menos, uns nove anos e a gente não tinha televisão.
A Cronge da Silveira tinha três televisores, só: na casa de uma vizinha que ficava, ela não deixava ninguém assistir, só ela assistia e tinha outras duas casas que tinham televisores.
E essa vizinha era amiga da minha mãe e então, toda noite, quando ia começar a novela, a gente corria pra lá.
A gente ia assistir televisão na casa dela.
Meu pai ficava muito indignado com isso, porque todo mundo jantava e não terminava de jantar, porque tinha que ir assistir televisão, a novela.
E nós, naquela altura, eu estava com uns sete, oito anos, a gente sempre corria pra lá e assistíamos a televisão.
Eu acabava, então.
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como a gente ia pra lá e ficava noite, invariavelmente eu dormia e eu já vinha no colo da minha mãe de lá dessa casa, pra nossa casa.
Então, uma dessas noites eu peguei.
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quando a gente ia pra lá, eu já levava o lençol comigo, porque eu sabia que eu ia dormir, ia ter carapanã e então eu ia me cobrir e ficava lá.
Ela só vinha quando terminava a novela e eu já vinha dormindo.
Então, uma dada noite eu peguei, fui, nós jantamos às pressas, porque ia começar a novela das sete, sei lá e eu pego, minha mãe já tinha ido e eu fui, cheguei lá e me lembrei que tinha esquecido o lençol e aí, então, eu peguei e resolvi correr e voltar pra pegar o lençol que estava em casa.
Quando eu cheguei em casa pra pegar o lençol, fui rápido, peguei na cama o lençol e a Rua da Cronge era de chão de terra, mesmo, não tinha asfaltamento, não tinha piçarra, nenhum tipo de compactação, era uma rua, mesmo, ainda, feita de chão e então, de vez em quando, a prefeitura passava e capinava, só que deixava os montinhos de lixo, pra depois o carro passar e recolher.
Só que alguém, por algum tipo de razão, quebrou uma garrafa de vidro e deixou naquele monte lá, jogou dentro daquele monte e a rua era muito escura, porque a gente não tinha.
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somente as luzes das casas que abriam a janela é que davam alguns focos de luz, das casas abertas pras ruas.
Os postes, até que lá tinham energia, mas nem sempre funcionavam.
Então, na rua que a gente morava e da minha casa pra casa da senhora que morava era mais ou menos uns 50 a 60 metros.
Entre a distância que eu corria, pra chegar até lá.
Então, na corrida que eu fui levando o lençol debaixo do braço, eu não vi o monte de lixo que estava com os vidros quebrados.
Cara, pisei naquele vidro! E eu senti que alguma coisa tinha machucado meu pé, mas eu não sabia o que e nem o quanto.
Então, quando eu passei num desses focos de luz, eu percebi que alguma coisa estava molhando, de onde eu estava vindo.
Quando eu cheguei lá na casa, que eu ia com o lençol correndo, quando eu entrei, que estava claro, né, estava assistindo televisão e eu vejo meu pé, meu pé estava totalmente cheio de sangue.
Cara, aquilo foi terrível.
Na verdade, ali que eu fui chorar, porque eu não sentia dor nenhuma, né? Não estava sentindo dor nenhuma, na verdade.
Eu era criança e tal.
Aí eu peguei, ficou aquilo, minha mãe ficou desesperada e eu me lembro dos vizinhos correndo pra pegar Merthiolate, aqueles remédios pra colocar e tal e me colocando num pequeno sofá, colocando meu pé exposto pra lavar, cuidar, né? Naquele dia meu pai ficou zangado e meu irmão, que já era mais velho, trabalhava na serraria, disse: “Não.
A partir de hoje a gente não vai mais andar na casa de ninguém”.
Aí foi, dias depois, comprou uma televisão preto e branco de 20 polegadas e a gente começou a assistir televisão em casa.
Eu digo que o corte do meu pé foi interessante porque, com isso, a gente ganhou uma televisão.
(risos) Mas o interessante foi que os vizinhos que a gente ia assistir televisão na casa deles, deixaram de ir pra lá e vieram tudo pra casa da minha mãe.
(risos) Isso foi bem engraçado.
Eles vieram todos.
Deixaram a televisão da casa da vizinha e vieram pra nossa casa, porque eles tinham uma relação de amizade muito interessante.
Era bem legal.
P1 – E assistia o que na sua casa?
R1 – Olha, a gente, da televisão, assistia geralmente uns deseinhos que davam de tarde.
E tinha muito, por exemplo, eu me lembro, daquela altura, tinha uns retrôs da Marvel, tipo Batman, alguma coisa assim, tinha Aquaman, eu me lembro.
Mas era uma animação bem antiga, mesmo.
E me lembro, depois, do Elo Perdido, do Ultraman.
Aquilo era bem legal, a gente via aqueles monstros, aquela luta dos monstros e tal.
E tinha uma sessão infantil, que dava às cinco da tarde e era bem legal, porque a gente brincava durante o dia e tomava banho e quando a gente assistia televisão na casa da vizinha e a minha mãe dava banho na gente, tomava banho, passava um talquinho e ia sentar na frente da televisão dela lá, assistindo esses desenhos animados.
Era sempre cinco da tarde.
A gente assistia e depois vinha embora pra casa.
Mas depois tinha uma programação muito, assim.
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acabava que também a gente tinha, assistia televisão, mas a gente vivia muito na rua.
Eu digo que a rua era bem legal, porque era bem mais divertido o rio.
Eu me lembro uma fase que a gente viveu muito no rio, tomando banho no rio, brincando, pescando siri, por exemplo.
Quando chegava essa época, agora, que não dá chuva, a água fica salobra e aí dá siri na água, que é uma coisa que não é muito comum pra nossa região.
E a gente pegava, eu me lembro que eu estava com 14, 15 anos e a gente ia pegar cabeça, tripa de frango, colocar numa linha, fazer umas iscas, pra pescar siri.
Aquilo era mais divertido.
A gente nem comia o siri, gostava de pegar o siri.
Era bem legal pegar aqueles caranguejos ali, aquela coisa, era bem uma aventura legal.
Mas isso foi bem bacana.
P1 – Hoje você diria que você gostava mais de fazer o quê?
R1 – Eu acho que eu vivi de temporadas.
Eu me lembro que eu gostava muito de empinar papagaio.
Eu fazia rabiola, eu acho que de uns sete anos em diante.
Meus irmãos faziam isso, né? Fazer cerol, passar cerol na linha, cortar papagaio, aquilo era muito divertido.
Então, mas tinha uma fase.
Aquilo era mês de julho.
Era, invariavelmente, aquilo.
Aquilo virava nossa cabeça.
E eu acabei aprendendo a fazer papagaio.
Então, às vezes eu corria e, às vezes, quando alguém tinha linha pra me dar, eu pegava a linha, mais interessado na linha, porque eu fazia e depois até eu mesmo vendia aquilo.
Acabei vendendo e tal, era bem divertido.
E acabava ganhando algum dinheiro em torno disso.
E, depois disso, tinha fase desse tipo de brincadeira.
O rio era sempre nessa fase de não ter água, rio ou então, depois do jogo de bola, rio.
Era uma coisa muito atrativa.
Isso foi até a juventude.
O rio é bem interessante porque, pra gente que morou em Barcarena, praia era uma coisa que era muito surreal.
Não existia essa frequência.
Primeiro que não existia transporte efetivo.
Segundo que o Caripi, que é hoje uma praia frequentada ou então a praia da Vila do Conde, ou mesmo Trambioca, eram locais de muito difícil acesso.
Então, quem queria nadar, se divertir ou ir pra um balneário, tinha que ir pro rio.
Quem tinha veículo, que não era coisa comum, pra todo mundo, ter carro.
Bicicleta, por exemplo, nós não tínhamos.
Então, era muito difícil.
Então, pra todo mundo, sobrava o quê? Ir pro rio.
E o interessante que não era só a nossa família, das pessoas mais humildes.
Todo mundo acabava fazendo ali.
O rio era um programa de domingo.
Era bem legal, porque dava muita gente ali, nadar na beira do rio.
Então, tinham pontes na cidade.
Se a gente for à Barcarena, eu morava na Cronge, entre a Miguel Costa e a Jerônimo Pimentel, então essa parte de trás do rio fica a uma quadra da beira.
Dali a gente já está no rio.
Aquela parte chamava Prainha.
Então, da Prainha, a gente ia pra ali.
Quem morava na parte mais da frente da cidade, pro outro lado, também tinha outras prainhas que iam e era um local.
E a água, apesar da quantidade de moradores, não tinha esgotamento, depósito de esgoto.
Então, a água ficava limpa.
Ninguém tinha muito esse preconceito contra o rio.
Hoje, se a gente for lá, as pessoas não querem tomar banho no rio, a gente não vê mais ninguém nadando, né? E aquilo era um programa muito frequente: tomar banho no rio.
E era bem legal e era, também, cheio de histórias porque, por exemplo, pra nós tinha uma área que era muito sociável, vamos dizer assim.
Que a gente tomava banho, que as mulheres lavavam roupa, ficavam lá.
Quando não tinha água, todo mundo fazia trabalho ali, nadava ali.
Era, assim, uma área pública.
Tinha uma área mais retirada, que geralmente era considerada uma área assim, vamos dizer, cheia de preconceitos quanto a ela.
Quando um indivíduo queria namorar, levava a moça pra ali.
Então, assim: “Tu foste pra Prainha?” Ficava, assim, uma fala meio (risos) suspeita.
Então, essa era uma fase meio nebulosa da cidade.
Mas a gente tomava na parte da Prainha que era a parte sociável.
A parte mais longe, retirada, que o pessoal, geralmente, tinha um certo preconceito.
Mas era uma área, assim, tranquila.
Era um local que as pessoas moravam.
Embora fosse área, que tinha os donos e os donos não queria que as pessoas ficassem ali, mas sempre a gente burlava aquilo e ficava ali tomando banho.
Era uma fase bem legal.
E a outra era assim: brincar na rua, de bandeirinha, de pira-esconde.
Isso se fazia sempre à noite, quando as mães estavam assistindo televisão, né? Essa é uma coisa bem legal de contar: que, na nossa casa e no local que a gente morava, quando a gente tinha televisão, todos os vizinhos da minha mãe e do meu pai, eles tinham muitos amigos e uma relação muito afetuosa com eles.
Então, todo mundo vinha assistir televisão na nossa casa.
Então, era uma época de gente muito fumante.
Hoje eu olho, conto isso pros meus filhos, eles não acreditam muito bem nisso, mas todo mundo fumava naquela sala.
A sala de assistir televisão, as senhoras, tinha uma que fumava cachimbo e ela levava uma pequena lata de carne e, dentro dessa lata de carne vazia, ela guardava tabaco, que é cortado manualmente.
A gente chama tabaco de ________ (01:01:51).
E ela fazia, então, essa caixinha, guardava o cachimbo e ela fumava aquele cachimbo na sala, assistindo televisão.
Era Dona Guiomar.
Tinha a minha mãe, que acabava, aqui e acolá, acendendo um cigarro pequeno e tinha outras duas senhoras que, às vezes, fumavam.
Então, a sala virava um monte de fumaça.
PAUSA
R1 – Lucas, a sua formação é Jornalismo?
P1 – História.
R1 – Que legal, cara! Trabalha com História Oral?
P1 – É.
R1 – Eu fiz doutorado aqui e uma parte em Portugal, na cidade de Lisboa.
Foi uma fase boa, em 2014.
Apresentei a tese em 2016 e a publiquei pela Paco, lá de Itajaí.
Itajaí, não.
Como é que chama? É lá de São Paulo.
É Jundiaí.
Eles têm uma publicação muito legal, enfim.
ORIENTAÇÕES
R1 – Então, a nossa sala, da casa da minha mãe, virou um espaço que todo mundo fumava.
Era bem interessante.
Então, essas senhoras acendiam cigarro.
Essa era a sala das mulheres, porque eles iam acompanhadas dos seus maridos.
Então, a Dona Deolinda, a Dona Guiomar, eram vizinhas da minha mãe e elas levavam seus maridos.
E, na sala oposta, ficava a sala dos maridos, jogando baralho.
Ou dominó.
E também, igualmente, todos fumavam ali.
Enquanto eles ficavam fumando, a gente ficava na rua brincando.
E cada um levava, tinham amigos, também crianças.
Eles iam pra casa assistir televisão, mas eles também levavam seus filhos.
Então, enquanto eles jogavam, assistiam televisão e fumavam, a gente estava jogando e correndo na rua, brincando de pira, bandeirinha, pira-esconde.
Então, era bem divertido.
Mas era terrível, porque eu olho e digo assim: “Poxa, como todo mundo fumava naquele local!” E as crianças estavam ali, a gente estava no meio deles, não existia essa separação, nem proibição de uso desses espaços.
E o engraçado dessa história é que, quando todo mundo terminava de assistir televisão, que a gente ia deitar, naquela altura também tem uma particularidade bem interessante, porque nossas casas daqui e lá em casa, não tinha essa ideia de um quarto pra cada pessoa.
Então, geralmente, por exemplo: nós éramos cinco irmãos e cada um, na casa, um dormia na sala, outro dormia no corredor, outro dormia num outro ponto e tinha dois quartos, que dormiam as minhas irmãs e um outro, que dormia meu pai, com minha mãe e, como nós éramos muito crianças, dormia no mesmo quarto que eles.
Dormia eu e meu irmão mais velho, um pouco, que eu.
É claro que em locais diferentes, mas a gente dormia naquele mesmo quarto.
Então, quando a gente ia deitar, depois de ter assistido televisão e todo mundo ter fumado, chegava no quarto pra dormir e eles, igualmente, no mesmo quarto, acendiam, cada um, um cigarro.
Engraçado porque eu contava isso, depois, pro meu pai e ele parou de fumar e ele brigava quando alguém chegava fumando, aí eu contava pra ele: “Você lembra, papai, quando tu chegava pra dormir e eu chegava pra dormir e o senhor acendia um cigarro?” E eu pegava, como eu deitava na cama e ele dormia numa rede, deitava na rede, sentava e acendia o cigarro e eu chegava no quarto, então, ele pegava, acendia o cigarro e eu pegava o travesseiro e abanava, assim: va va va va, assim bem rápido, né, me embrulhava e deixava só o nariz do lado de fora.
(risos) E ele dizia assim: “Poxa, já está com ______ (01:08:11) aí”.
Só que ele não sabia qual era a agonia que eu estava sentindo.
E a minha mãe, acendiam, cada um, um cigarro e eu ficava no quarto.
E os dois fumando.
Eu dizia assim: “Poxa, agora o senhor se lembra, como é que é isso, porque agora uma pessoa está, sei lá, a dez, quinze metros, fumando e está sentindo o cheiro de cigarro aqui”.
Então, você imagina como é que a gente vivia.
Mas também, relacionado a isso, é bem interessante porque, naquela altura, quando a gente via tanta carteira de cigarro na rua, isso foi também objeto de brincadeira pra nós, porque isso virava dinheiro.
Era bem legal, porque era impressionante: tinha muita carteira de cigarro e a gente juntava aquelas carteiras de cigarro, fazia dinheiro.
Eu posso me lembrar bem disso, porque a gente conviveu muito.
Carteira de cigarro Hollywood valia cinquenta, carteira de um cigarro chamado Arizona valia dez, carteira do cigarro Continental valia cinco.
E tinham as carteiras que valiam cem.
Todas que não fossem desse grupo valiam cem.
LS, Carlton, eram carteiras valiosas e então valiam cem.
Era cem, cinquenta e dez.
Só que tinha uma carteira que não tinha valor, que era Gaivota.
Não sei por que a gente nunca deu valor pra aquela carteira.
Não se juntava carteira Gaivota.
E a gente fazia, então, coleções e aí começávamos a brincar com peteca e pagava a carteira, quem acertasse no outro, pagava a carteira, assim: “Vamos brincar agora, o valor é cinquenta, aposto cinquenta, então tinha que pagar cinquenta quem ganhasse”.
E a gente andava, então, épocas, com o bolso cheio de carteira de cigarro.
Aquilo era bem engraçado, porque a gente tinha muito.
Depois, com uma certa idade, a gente começou a usar aquelas carteiras de cigarro como dinheiro, mesmo e tem um jogo na festa do Círio, que é o de dados e tem clubes, então meu irmão é bem habilidoso, ele desenhava o dados dos clubes Santos, Botafogo, Flamengo, virava jogo e aí sacode os dados, faz a banca de aposta e a gente apostava.
Cara, aquilo era uma febre! Foi bem interessante aquilo, brincar.
Então, o cigarro, se era danoso, se a gente olhar pra trás, era e é, de fato, mas acabava aproveitando esse material todo do cigarro como lazer.
(risos)
P1 – Tudo era brincadeira.
E você falou que o pessoal fumava.
O pessoal bebia também?
R1 - Não.
É bem interessante.
A nossa família não é alcoólica.
Todos são católicos, sempre foram.
Meu pai, quando nasci, minha mãe conta uma história bem interessante dele.
Ele bebia.
Então, meu pai trabalhava, a gente morava aqui no Tracuatuea, como eu falei, mas ele trabalhava, às vezes, lá na cidade.
E, invariavelmente, ele vinha sempre de manhã, acordava muito cedo, cinco da manhã, pra ir de remo, até chegar em Barcarena, trazia o meu irmão mais velho, às vezes o acompanhava e eles vinham trabalhar fazendo casa, reparo na prefeitura, construções diversas e, quando ele voltava, ele bebia uma cachaça.
E chegava embriagado.
Então, essa fase dele, de beber, foi antes de eu nascer.
Então, eu não assisti essa fase dele.
Então, ela me contava coisas, assim, dele ficar muito embriagado, chegar remando, às vezes cair na água ou não conseguir subir, porque a nossa casa, no interior, ficava retirada de uma ponte, então tinha que andar por sobre um miritizeiro, que é uma árvore que ficava lisa, escorregadia.
Ele tinha que subir, às vezes levava, caía.
Então, foi uma fase difícil dele.
Bebia, né? Era alcoólatra, talvez.
Mas, quando eu nasci, essa fase dele tinha esgotado.
Eu não sei explicar como.
Mamãe fala que houve um tempo que ele ficou muito embriagado e tem a minha irmã mais velha, acabou brigando, dizendo que não podia fazer aquilo e tal e talvez, em torno daquilo, ele ficou sensibilizado e um dia ele resolveu e parou de beber.
Os meus irmãos, só um deles bebe excepcionalmente, mas às vezes bebe até demais, mas não é uma rotina de estar em casa, as pessoas bebendo.
Não tem essa coisa, como fumar.
Fumar todo mundo fumava, sentava e fumava.
Beber não é uma coisa que foi um transtorno pra nós.
Mesmo depois da gente adulto, a gente conviveu com a bebida, mas não que fosse algo rotineiro, já vamos fazer festa e todo mundo beber.
Até hoje a gente faz assim: excepcionalmente, numa festa comemorativa, a gente - Círio, Natais, tal – reúne, mas é bem regrada essa questão de beber.
Não é uma coisa muito frequente, ali.
E nem corriqueira.
Acho que isso, na juventude, eu fiz um pouco mais, mas excepcionalmente.
PAUSA
P2 – Rapaz, eu peguei essa SUA época da carteira.
Do dinheiro.
R1 – Do dinheiro.
Carteira, cara, eu me lembro dos meninos.
.
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P2 – A gente tirava as bordas, né? Cortava aquelas bordas que dobravam e ficava no formato de dinheiro.
R1 – É.
P2 – E a gente brincava.
R1 – Isso vocês não brincavam pra lá? Não chegaram? Tu já é da época do computador? (risos)
P2 – Eu tenho 42 anos.
R1 – Eu tenho 50 anos, cara.
P2 – Da época do dado? Eu também.
R1 – É.
A gente brincava de fura-fura, que é aquilo que é um espeto, feito de raio de bicicleta, jogava, pra fazer.
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P3 - _________ (01:15:11).
R1 – Nossa, aquilo era bem.
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hoje eu olho, cara, coisas que a gente não daria pros nossos filhos fazerem, mas a gente brincava aquilo, aquilo parece que era tão absurdamente natural!
P1 – Minha pergunta agora pra você é sobre religião.
Você falou que sua família era muito católica.
Como é que era?
R1 – A religião, pra nós, entrou em casa, eu me lembro, desde a infância, com ladainha dentro de casa.
A minha mãe é muito religiosa, então a gente sempre teve esse contato com festa de santo dentro de casa.
E era bem engraçado, porque isso tinha muito a ver com o nosso lazer.
Geralmente, as senhoras tinham momentos que faziam ladainhas, que são rezas, dentro de casa, domésticas e às vezes são rezas que são feitas de caráter programado ou excepcional.
Por exemplo: dia de tal santo, Nossa Senhora de Nazaré.
Geralmente a santa Nossa Senhora de Nazaré peregrina na casa das pessoas.
Então, uma vez ia pra nossa casa.
E é bem legal porque, embora nessa época eu estivesse bem pequeno, a gente brinca na rua, à noite, eu não assistia esses ritos.
Eu via, eu assistia, achava demorado, porque elas cantavam muito, rezavam muito e, enquanto eles estavam fazendo rito lá, a gente estava brincando de bandeirinha na rua.
E me lembro muito bem dos senhores fazendo aqueles cantos e tal etc e a gente está na rua brincando, mas a gente está de olho numa coisa que era bem, bem, bem atrativa pra nós, porque depois de cada festa, sempre tinha um chocolate.
Saía um chocolate, uma bolacha e o interessante, quando terminava esse rito, todo mundo corria pra cozinha e o impressionante é que nós chegávamos primeiro, na frente de todo mundo.
(risos) Mas eu sempre acompanhei esses ritos.
Eu, quando criança, frequentei a igreja, pra fazer catecismo, com sete anos.
Acho que sete anos eu já estava na igreja, fazendo, participando desse tipo de coisa.
Meu pai sempre me levava pra assistir missa.
Meu pai, minha mãe.
E a gente participava dos Círios, de novenas, sempre desses ritos que eram muito familiares.
Digo que nós éramos católicos por cultura familiar.
Hoje já é mais disperso, a gente já não seguiu muito esse rito com as nossas famílias, de alguma forma, mas assistimos e convivemos muito bem com isso.
Então, os Círios, pra nós, era sempre uma festa muito coletiva, uma oportunidade da gente ir pra rua.
Não só acompanhar, como vestir roupa nova, comprar roupa nova e porque o Círio começa sempre num domingo e termina no outro, então é uma semana inteira que existem festas que a gente pode participar.
E festas que tem brinquedos que estão lá na rua e então: carrinho pra gente comprar, bola e brincadeiras que sempre ocorrem no entorno do Círio.
Então, pra nós, sempre o Círio era mais que uma festa religiosa.
Era uma festa que a gente poderia participar de muita coisa, né? Meus pais, não, eram mais rigorosos e tal, participavam de todos os eventos religiosos e a gente não.
Dentro da idade da gente, a gente frequentou e preferiu certas coisas, porque era muito mais a rua, o que estava na rua, do que, às vezes, ficar em torno do evento religioso.
P1 – Uma vez por ano?
R1 – Uma vez por ano, sempre no mês de novembro tem esse rito, que é o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, lá em Barcarena.
E aqui, na antiga sede, tem o Círio de São Francisco, no dia 3 de dezembro, em uma semana anterior que acontece.
Nós vínhamos também pra esse daqui porque, do ponto de vista da nossa memória, o Círio de São Francisco é o que tem mais memória afetiva com meus pais.
Como eles moraram sempre pra cá, eles me contam muitas mais histórias de viver aqui e participarem dessa festa de São Francisco Xavier, que é o santo que tem muito a ver com a tradição da vida familiar desses moradores antigos, que antecederam à existência da sede.
Então, eles conseguiram viver muito mais coisas: as festas, as bandas de música.
A minha mãe me conta de ter visto o meu avô tocando, então, nesses coretos, pra todo mundo ver.
Ela tem muita memória dessa fase de participar do rito da festa e depois assistir esses rituais do entorno, né? A barraca da santa, onde se comia, servia alimentos.
Aí eles compram alimento ali, consomem e convivem naquele ambiente.
Então, eles têm essa memória, muito do Círio daqui, né? E das festas do entorno, né? Então, essa é uma fase bastante presente pra gente, sabe, de religiosidade que, enfim, a gente consegue visualizar.
P1 - _________ (01:22:18) a existência das outras religiões ________ (01:22:28)?
R1 – Olha, pra ser bem franco, assim: nós tivemos uma relação, por exemplo, a gente participou muito dos ritos católicos, né? Acho que eu comecei a ver, por exemplo, o movimento da cultura afro, já na universidade.
Por que, o que acontecia? A gente tinha, por exemplo, algumas pessoas praticantes na cidade, mas era muito restrito, né? Quer dizer: tinha, por exemplo, uma senhora que fazia curas, tirava algum tipo de serviço, que era pra além daquilo que era comum no rito católico.
Mas não tinha uma profusão, né? Nem representação religiosa também.
Outras atividades religiosas, mais os protestantes, evangélicos, que a gente via, assistia, eu tenho muitos amigos e tal e convivia com eles.
Mas eu sempre vi como iguais.
Diferentes e iguais, vendo o pessoal falando na rua, com as caixinhas de som, pregando.
Essa, talvez, tenha sido nossa proximidade, mas pra mim não era tão diferente do católico que, às vezes, tinha aquela relação.
A gente, às vezes, ia pro aniversário de alguém que era amigo, evangélico, a gente ia lá.
Sim, mas assistia o casamento de um amigo que era evangélico, casava com outra pessoa.
Tinha amigos em comum, a gente acabava frequentando o rito, mas enfim, talvez tenha sido essa a nossa maior relação com esse tipo de diferença, né?
PAUSA
P1 – Eu te perguntei sobre, então, _______ (01:25:03) indígenas, se você tinha algum contato, assim.
R1 – É assim: próximo de casa sempre teve pessoas que tinham saberes de fazer curas.
A gente pode dizer que isso tem a ver com um traço da cultura indígena.
Por exemplo: uma senhora que era puxadeira e benzedeira.
Então, ela morava perto de casa, chamava Dona Augusta.
Então, não frequentemente, estava ali perto.
Ela, sempre as pessoas que ficavam grávidas ou que tinham alguma luxação no corpo, ela estava lá.
Fazia garrafadas e tal.
Era muito comum ver, passar na frente da casa dela e alguém estar sentado num banquinho e ela estar fazendo benzeduras.
Então, acho que isso, talvez, tenha sido.
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eu digo que a nossa família também tem traços da cultura indígena.
Então, sempre a gente tem.
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minha mãe tirava, por exemplo, óleo de castanha de andiroba.
O óleo de andiroba, que alguém pode ver só o óleo e não sabe muito bem como isso tem um segredo, de um saber muito específico pra fazer e eu me lembro da minha mãe fazendo isso, porque colher as castanhas de andiroba tem uma lua específica pra pegar, tem um dia pra cozer, tem um dia específico pra colocar, uma forma específica pra pegar e colocar esse tipo de produto.
Nem todo mundo pode assistir.
Por exemplo: se uma pessoa que está grávida chegar próximo, pode secar e inibir a tirada do óleo.
Tudo isso eram superstições que eram muito fortes nessa época e eu acho que tinha uma relação com esses ritos, né, da cultura ancestral de outros povos.
Acho que a minha mãe é um pouco porta voz dessa ideia.
(risos)
P1 – Comida também.
R1 – Sim.
Maniçoba é uma coisa que é muito típica da gente.
A minha mãe é uma exímia cozinheira, né? Eu acho muito legal, porque a gente conviveu com isso.
Fazer comida de roça: maniçoba, tacacá, algumas coisas que são típicas da nossa região.
E que tem essa coisa do costume ancestral.
Talvez a gente está tão embebido com a cultura indígena, que a gente não consegue perceber isso como uma coisa estranha pra nós, entendeu? O falar, o se comportar, por exemplo: ir pra roça.
Gapuiar.
Não sei se tu já ouviste falar disso.
É importante relatar isso: eu digo que a minha mãe é muito mais previdente do que meu pai, por exemplo, porque papai trabalhava no imediato e a minha mãe sempre fazia economias e o que, pra nós, é economia? Eu olho pra trás e vejo isso, por exemplo: ela sempre criou galinhas no quintal, pato.
Então, nosso quintal, ela conta, eu vi isso no nosso quintal de casa, cheio de criações e aqui no interior, quando a gente morava pra cá, ela diz que sempre tinha porcos, galinha, animais que, quando não tinha uma atividade econômica mais rentável, o que fazia? Ia lá no quintal, pegava um animal, matava e pronto, tinha almoço.
A gente nunca teve problema de falta de alimento, porque tinha sempre essas reservas que estavam, ali, guardadas.
Sempre digo que ela é mais previdente, porque nunca deixou de assistir esses momentos de falta de alimentos.
Então, as nossas vizinhas, por exemplo, como a gente morava lá, por vezes tinham o hábito de convidar minha mãe pra gapuiar.
É uma atividade extremamente indígena, porque vai para um igarapé, geralmente em horário de maré seca, a maré tem que estar seca, não pode estar grande; tem que entrar lá e, geralmente, dentro dos igarapés, que ficam dentro das matas, ficam águas paradas, represadas.
E esses locais ficam cheios de camarão e peixe, que não conseguem sair pro rio.
O que se faz? Duas barreiras chamadas mocoocas.
Portanto, são duas barreiras que podem represar o rio, em dois pontos, fecha aquilo e, naquele local, se faz uma mexida na água, até que a água fique totalmente.
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deixe os camarões, o que estiver ali, tontos, entontecidos e aí acaba retirando o camarão que está lá.
Camarão, tira peixe.
E aquilo era um exercício que comumente se fazia, quando em tempo de dificuldade ou mesmo por costume.
Sempre teve uma época do ano que eles saíam: “Bora gapuiar”.
E eu me recordo de ter ido algumas vezes fazer isso.
E acompanhar, com meu irmão, com meu tio que infelizmente faleceu, pra tirar turu.
É um.
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sei lá como eu posso chamar? Um verme que dá na madeira, que fica como se fosse um verme que está ali e aquilo é comestível.
Então, parte-se a madeira, abre e está cheio de turu.
E eu me lembro daquilo com um certo nojo, porque era bem diferente, eu nunca consegui comer aquilo, mas era bem comum.
Então, eu acho que essa tradição está muito próxima das coisas dos índios, né? Mas como a gente fazia costumeiramente, a gente não consegue separar.
Pra nós era muito normal.
Nós tínhamos, aqui, na nossa região, muitas famílias que tinham aspecto indígena muito presente, né? Tinha uma amiga da nossa mãe, que é a Dona Eva.
Se você olhar, você vai ver uma pessoa de uma característica indígena muito presente.
Pra te recordar sobre essa relação de proximidade, uma vez meu pai fazia barcos, canoas pra um padre chamado Padre Luiz, se não me engano.
Era o pároco da cidade e costumava pescar.
Ele chegava lá: “Breu, cadê não sei o quê?” e sempre enchia o saco do meu pai por causa de fazer o barco e aí meu pai fez uma canoa pra o padre e um certo dia ele foi pescar e trouxe bacu.
É um peixe bastante espinhoso, tem umas garras, assim e a gente sempre achava que ele comia cocô.
É um peixe que sempre a gente tem uma certa diferença com ele, porque diziam isso.
Nossa! É claro que, enfim, não era isso.
Então, é um peixe bem grande e ele trouxe: “Olha, Breu, o que eu trouxe pra ti” e tal, chegou esse dia, porque ele tinha construído o barco pra ele e ele estava trazendo, de presente pra ele, um peixe.
Um bacu.
Cara, nós olhamos, ele estava vivo ainda, fazendo, puxando água e tal.
A gente ficou olhando, era pequeno, eu fiquei olhando pra aquilo, aí minha mãe: “Tá legal, vamos ver quem vai comer”.
Não.
Nós ficávamos assim, né, por causa do preconceito contra o peixe.
E aí, engraçado, minha mãe fez um peixe enorme, bem bacana, mas nós todos já tínhamos preconceito com o peixe, ficamos distantes, né? “Quem vai comer?” Ninguém.
Fez a panela, alguns poucos comeram alguma coisa e ficou uma panela cheia de bacu lá em casa.
E eu me recordo que, nesse dia, essa senhora, que é a Dona Eva, tinha brigado com o marido e ele também, todos têm aspecto muito indígenas, ela chegou em casa umas nove da noite, aí: “Maria, Maria, estou com fome, estou com muita fome.
Tu não tem nada pra gente comer?” Ela falava assim, assim.
Aí: “Eva, tem um negócio aí, tu quer comer? Está aqui” Era o dito bacu, que tinha sobrado, que ninguém queria comer, né? Ela disse assim: “Ótimo! Está tudo bem, eu quero, eu quero, coloca aqui.
Eu não vou nem sentar na mesa”.
Ela sentou no chão: “Me deixa sentar bem aqui”.
Ela trouxe os meninos dela, uns três ou quatro, sentaram no chão, ali, cada um pegou um prato e sentaram lá, colocaram farinha e comeram toda a panela de bacu.
E era bem legal, porque, assim, se tu olhar pra aquele tipo de comportamento, não admitiria pra outros que: “Sentar, não”.
Então, parecia que a gente estava ali, mais próximo de alguém que tinha ancestralidade indígena.
(risos)
P1 – Nessas idas ao rio, você aprendia a pescar também, era uma coisa que você gostava?
R1 – Olha, eu digo que nós pescávamos, assim, por lazer, geralmente.
Eu tinha um tio que era engenheiro agrônomo e, sempre que ele vinha pra Barcarena, nos convidava pra ir pra beira do rio: “Bora pescar”.
Vinha, trazia linha e tal e nós íamos pra lá.
Eu acho que era o tempo maior que a gente ficava, assim, por lazer, porque a gente ia pro rio, pra nós, pra brincar, pra pescar.
A gente, às vezes, ficava pensando muito: a gente vai pescar, mas a gente não vai pegar o peixe pra comer, a gente não tinha essa relação de pegar o peixe pra comer.
A gente ia, mais, pra se divertir.
Então, como ele ia pra lá, às vezes levava uma garrafa de bebida e ficava lá passando o tempo e, como ele queria levar isso pra nós, alguém pra companhia, acabava levando a gente e aí ia, meu irmão mais velho, ia ele e ficávamos lá, com uma linha, pescando.
Eu acho que a época do siri foi o tempo que eu mais ficava na beira do rio.
Eu gostava de ir, pra poder pegar o siri.
Mas eu ia e gostava muito dessa relação, mas era também, muito mais, pelo lazer de pescar, menos pela necessidade de consumir.
Porque acabava que eu pegava siri, acabava chegando em casa e deixando, às vezes até não comia, né? É uma coisa bem interessante, porque eu gostava mesmo da sensação de estar capturando o bicho.
Pegava, ele vinha ali com a garra presa na isca e eu pegava, quando pegava, ficava assim.
Que legal! Era muito bacana! (risos) Era muito divertida essa história.
P1 – Nessa época você conhecia _________ (01:35:29)?
R1 – Olha, por incrível que pareça, é assim: nós fomos muito, acho que durante muito tempo, ligados ao nosso lugar.
Sabe, essa ideia de frequentar Belém, pra nós, era um lugar muito distante.
Eu me recordo de ter ido uma vez à Belém, tomar vacina.
Não tinha vacina.
Essa vizinha que a gente assistia televisão na casa dela disse: “Amanhã vamos levar todo mundo pra tomar vacina e vamos pra Belém”.
Belém, pra nós, assim, era um lugar bem distante.
Apesar da minha mãe ter morado lá, a gente ia muito pouco, sabe? A gente ia quando precisava dessas coisas, né? E nós fomos dessa vez, então, saímos à noite pra lá, num barco que levava verdura pra Belém, pra amanhecer lá em Belém, pra tomar vacina, acho que no posto da Ceasa.
Hoje eu não me lembro exatamente onde foi.
Mas tomamos vacina e logo depois retornamos pra Barcarena.
Nós íamos, por incrível que pareça, muito à Abaetetuba.
Como não tinha, em Barcarena, sede do que a gente chama de INSS, na época seria o Inamps, né? O local de aposentadoria, Funrural.
As minhas avós, tanto a minha avó materna, como a avó paterna, eu não conheci nenhum avô, quando eu nasci todos os avós já tinham morrido, a minha mãe aposentou, então cuidava da aposentadoria deles e, como a gente morava aqui e os outros irmãos moravam em Belém ou no interior, quando elas precisavam receber a aposentadoria, vinham pra Barcarena e a minha mãe pegava e as levava até Abaetetuba.
Nós pegávamos um barco, um ônibus e íamos pra Abaetetuba.
Então, essa era uma das viagens que mensalmente acontecia e eu sempre acompanhava a minha mãe, porque tinha uma coisa bem legal nessas idas: ir à Abaetetuba significava comer coisa diferente.
Lá tinha uns biscoitos, umas roscas que só tinha em Abaetetuba pra vender, que era uma rosca feita de tapioca.
E tinha alguma merenda especial que a gente sempre comia, quando ia pra lá.
(risos) Então, eu gostava muito dessa viagem, quando a mamãe falava: “Vamos levar as avós pra receber”, eu já estava pronto, ali, pra viajar.
Mas, regularmente, a gente não tinha esse deslocamento.
Meus pais foram muito fixos.
Meu pai raramente trabalhou fora de Barcarena.
Uma vez trabalhou em Outeiro, fazendo um trabalho na casa de alguém que morava em Barcarena e tinha uma casa lá e alguma reforma em alguém, em uma casa em Belém, mas regularmente morava em Barcarena.
Minha mãe também pouco saía.
Começou a sair, mais, quando uma de nossas irmãs foi morar em Macapá, que ela acabou viajando pra lá, pra visitá-la e, às vezes, pra acompanhar o nascimento das filhas, que nasceram lá.
Mas também, sozinha.
Então, não era uma coisa que a gente tinha esse deslocamento de sair de casa, migrar, fazer passeio pra longe.
Então, eu acho que a gente teve uma infância muito pregada, ali.
Acho que, quando eu cheguei a ficar jovem, que eu fui estudar na faculdade, fazer universidade e, depois que eu comecei a viajar.
Foi ali que eu comecei a viajar pra outras cidades e conhecer outras coisas.
P1 – Como é que vocês faziam pra chegar, nessa viagem? Como você fazia, quanto tempo demorava?
R1 – Geralmente a gente saía de manhã cedo, seis da manhã ou antes.
Era um transporte da Rodomar.
Era uma das poucas empresas de transporte que tinha aqui.
Era uma empresa de transporte e mantinha o monopólio em Barcarena.
Era uma viagem de um pouco mais de uma hora, uma hora e meia, pra chegar lá.
Eu acredito que isso, porque os carros iam, sempre, parando, fazendo paradas contínuas, até chegar em Abaetetuba.
E geralmente a gente ia nesses ônibus, onde ia, todo mundo, pra lá.
Tinha viagens comuns de Barcarena pra Belém.
O interessante é que, em Barcarena, foi uma sede dessa empresa, porque ela era como se fosse um entroncamento.
PARTE 2
P1 – Eu ia te perguntar agora sobre a escadinha, seus irmãos.
Você é o caçula.
Como é que é isso?
R1 – Bom, eu sou o irmão mais novo de uma família de cinco, de pais que se uniram, como eu falei já, com família já constituída, né? Meu pai tem dois filhos, que é o Flávio e o Manoel, são só filhos do meu pai, com uma senhora que acabou falecendo, por nome Anália.
A minha mãe tem uma filha, que é a Regina e que é a filha, também, que ela teve, fora, antes de conhecer meu pai.
Depois deles tem, portanto, o meu irmão mais velho, que é o Cláudio, carpinteiro e seguiu, muito, a carreira do meu pai e a gente diz que, por opção, ele deixou de seguir carreira de estudo, ele sempre abdicou disso, foi uma escolha, às vezes, mas ele é um cara talentosíssimo, aprendeu a fazer arte de madeira como meu pai, mas também faz casa de alvenaria, hoje é um construtor.
Muito habilidoso.
Um outro irmão, chamado Raimundo Nonato, que chama de Dunga pra ele, em casa ele é o Dunga.
Ele também estudou, é pedagogo, fez Matemática, depois saiu Pedagogia e virou professor também.
A outra irmã chama Dalva, é pedagoga, tem uma carreira de formação como professora e ela tem uma carreira ligada à educação universitária.
Então, ela não só lecionou em Barcarena, assumiu direção e é formada doutora em Pedagogia, leciona na universidade federal.
E, depois dele, tem eu.
Então, é essa geração de irmãos.
E cada um.
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na verdade, nós temos hoje uma família de professores, que viramos professores por.
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e essa é uma história bem interessante, porque eu digo que nós não escolhemos a profissão, ela foi nos possibilitada pela condição que o município nos fornecia.
Não existia, na nossa família, não éramos professores.
A nossa geração é que se tornou professores.
A gente pegou.
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era a oportunidade que tinha, de trabalho.
Nós vivemos numa fase que todo mundo estava começando a descobrir a oportunidade de emprego e a sala de aula era um caminho.
Eu sempre digo que a gente.
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hoje nossos filhos estão escolhendo, já estão fazendo e tal, estão estudando e escolhendo profissões, dizendo assim: “Eu não quero ser isso, eu não quero ser aquilo” e nós, não.
Acabamos trabalhando, quando a gente viu, eu digo: “Eu não estudei pra ser historiador e nem tampouco escolhi a História.
Eu desprezei outros cursos e escolhi História, por questão de oportunidade, facilidade”.
Depois eu posso te detalhar isso daí.
E, na verdade, meus irmãos também foram, um pouco, assim.
Acabamos, fomos trabalhando e tinha oportunidade de trabalho na escola, né? Então, eles acabaram, todos, um professor de Matemática, o meu irmão era, primeiro, professor de Matemática, depois ficou orientador pedagógico.
Uma outra minha irmã sempre foi diretora, trabalhou com escola e depois foi pra direção de escola.
E foi pra cidade.
Então, temos essa linhagem de atividade.
Os outros irmãos também.
A minha irmã Regina virou professora também e o outro irmão, o Manoel, também, como meu pai, foi da área de trabalho de carpintaria, marcenaria, de ofícios com habilidade com madeira.
Tem uma fase longeva, que ainda não está contada.
Fase de escola, fase de formação, é uma fase bastante cheia de relatos.
É interessante!
P1 – Isso começou com seus pais, se voltar pra Educação?
R1 – Não sei.
Mamãe e meu pai têm uma coisa que eu acho muito legal na vida deles: foi deixar a gente muito livre.
Eu sempre prezo isso pros meus filhos, eu digo assim: “A liberdade é um direito de escolha”, que a gente nunca teve essa obrigatoriedade de fazer algo.
Eles sempre insistiram pra que nós estudássemos, mas não era uma coisa rígida.
Acho que a gente ficava, muito, olhando pelo ombro um do outro.
Meus irmãos são muito inteligentes.
Eu sempre os achei muito inteligente, até mais do que eu.
E eu sempre os via com muito zelo com aquilo que faziam, sempre muito perfeccionista no que faziam.
Mesmo aqueles que não estavam estudando.
Então, mesmo aquilo que eles faziam, faziam a coisa bem, ali, acabada.
Não queriam que houvesse problema.
Então, mesmo se eles fizessem uma coisa material, meus irmãos que faziam sempre estavam preocupados em a coisa funcionar corretamente.
E eu acho que isso é muito legal.
Então, tinha um pouco.
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quem está lá atrás, no fim da fila, fica olhando com mais medo, porque sabe que tem que cumprir uma reta mínima pra chegar até ali.
Então, meus irmãos, por exemplo, pra contar o caso da Dalva: a Dalva saiu daqui do interior com onze anos e tinha estudado até, mais ou menos, a quarta série, era o que tinha.
Daí pra frente não tinha mais formação, educação.
E ela já estava, de certo modo, atrasada, em relação à cidade que tinha lá.
Então, ela chega em Barcarena e não tinha comprovação daquilo que ela tinha estudado lá.
Chega em Barcarena, então e ela começa de novo.
Faz uma espécie de adequação, pra ver se ela tinha habilidades de estudo, estuda até uma série, que em Barcarena tinha o Grupo Escolar Cônego Batista Campos, que era uma escola que.
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talvez a primeira escola de Barcarena com uma formação mais elevada e tinha, se não me engano, até a quinta série, daí não tinha mais formação.
Não tinha mais escola em Barcarena.
O que aconteceu? Ela foi obrigada a ir pra Abaetetuba, estudar.
Essa minha irmã sempre ficou fugindo da cidade, por conta de educação.
E a minha mãe sempre cuidou de manter-nos sempre ali, frequentando.
Apesar de todas as dificuldades: não ter transporte regular, não ter possibilidade de acesso a livros.
Me lembro que ela conta uma coisa bem legal: as meninas que eram mais velhas, a Regina e a Dalva, estudavam e usavam uma roupa única, estudavam em horários diferentes.
Então, a Dalva ia num horário, usava a roupa, fazia a aula, quando ela voltava da escola, ela passava, a Regina trocava aquela roupa e usava aquela roupa pra ir de tarde, porque estudava na mesma escola.
Quer dizer: essa era uma fase bastante, enfim, de início desse esforço, mas sempre os nossos pais tentavam manter isso aí e nunca a gente soube que houvesse desistência, paralisação, dificuldade de estudar.
As dificuldades existiam, mas assim, impedimento de estudar, não era uma razão pra sair da escola, entendeu? Já nós, os mais novos, não, já estudamos, todos, em Barcarena, apesar das dificuldades.
Por exemplo: eu estudei em Barcarena, na escola e a escola sempre transitava.
Estudava no Cônego, mas o Cônego enchia e voltava pra outra escola, entendeu? Mas já tinha o grau de formação em Barcarena, já era possível, tinha do primeiro até o segundo grau, estudei totalmente m Barcarena.
Mas isso nunca houve impedimento do meu pai criar problemas, dizer: “Não temos como manter”.
Isso eu considero que foi o grande incentivo que eles fizeram pra gente.
Então, isso foi muito positivo, porque a gente teve sempre, dentro de casa, um espaço muito acolhedor pra aprendizado.
Como eu falei anteriormente: meu pai era muito curioso, não de estudar, inventivo, mas ele era muito capaz de observar e muito atento.
O irmão dele, que era meu tio, era muito criativo e inventivo, que era bem legal.
Por exemplo: uma vez, ele queria fazer um casco movido a uma manivela.
Ele queria fazer uma força mecânica, pra poder fazer o casco.
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usar sem remo.
Imagina um cidadão, no interior, pensar nisso! E aquilo era um lazer pra ele.
Então, de repente, ele fez, usou algum instrumento lá e fez uma manivela que poderia mover uma hélice em um casco.
Quer dizer: e eles eram adultos, brincando de ser criança, entende? Então, eu acho que esse ladro criativo, de um certo modo, era uma coisa que a gente compartilhava com muita facilidade, em casa.
Até hoje eu digo que, pra nós estudarmos, sempre foi um lazer.
Nunca foi uma dificuldade.
É, sempre, desafiador, pegar e ler livros inteiros.
Não era aquela coisa, aquele fardo, de dizer que tem que ler.
Não.
Ler era uma coisa, um desafio, porque a gente sempre via alguém fazendo isso.
Alguém estava lendo, alguém fazendo um trabalho mais denso.
Isso era muito comum, para o nosso exercício de casa.
E eu digo que o grande contraponto do papai com a mamãe, era sempre deixar a gente livre, pra isso.
Então, nunca nos obrigou a trabalhar, chegar e dizer: “Olha, vocês têm que trabalhar, porque não tem comida” ou: “Não estou dando conta de sustentar”.
Não.
Pelo contrário, ele sempre deixou muito livre isso.
Nós não tínhamos essa obrigatoriedade de trabalhar, porque a gente tinha que manter a casa.
Não, sabe? Por outro lado, também tinha uma tranquilidade de não cobrar, de não ter essa necessidade de estar: “Olha, eu quero comprar isso, eu quero ter aquilo”.
Não.
Negativo.
Todo mundo foi, a seu tempo, tendo os meios que eram possíveis, entendeu? Então, eu penso que esse incentivo pra formação educacional, tinha a ver com essa liberdade de estar.
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a única cobrança era assim: “Vamos estudar.
Tem que estudar”.
Claro que nós já tínhamos uns tios que estavam, já, estudando e sempre contavam coisas bacanas da educação e isso era um estímulo pra nós, entende?
P1 – E você foi estudar primeiro nessa escola?
R1 – Interessante! Eu estava com sete anos e eu ainda não ia pra escola.
Minha mãe.
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eu estava com muito medo de sair de casa.
Apesar de eu andar muito na rua, mas eu tinha muito medo de ir pro meio de pessoas, né? Eu acho isso muito legal, porque hoje eu tenho um filho autista e eu olho nele algumas coisas que eu aprendo e eu digo que eu tinha um pouco de nuance disso, que é o medo de gente.
Às vezes eu ficava, assim, desesperado.
Ir ao mercado, por exemplo, pra mim, era um transtorno.
Ouvir aquela zoada de cara gritando, batendo faca, gritando no mercado, ecoava.
Então, nessa altura, quando a mamãe falou que eu ia estudar, eu fiquei com medo e relutante de ir pra escola, porque achava que ali era um lugar do diferente, era muita gente.
E gente que eu não conhecia.
Aí eu me lembro que tem uma senhora na frente de casa que tinha.
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que ensinava de forma particular.
Era a professora Raimundinha, Raimunda Delgado.
Até hoje eu a chamo de minha professora.
E ela continua morando na frente de casa.
Então, ela disse: “Olha” - e era o meio do ano, pra começar o ano seguinte – “então tu vai te acostumar na escola, tu vai estudar ali”.
Então, foi ali que eu comecei a ir pra escola, pra treinar o que era o estudo formal.
Passei acho que uns três ou quatro meses atravessando da minha casa, pro outro lado da rua, pra ir pra casa da professora Raimundinha.
E lá eu comecei a ter contato com escrita formal e horário.
Aí, no ano seguinte, eu fui estudar no Cônego, que era a escola que já existia em Barcarena, a primeira escola de nível fundamental, naquela época, de primeiro grau e eu fui estudar e fazer a primeira fraca.
A escola tinha dois níveis de formação.
Essa história de ter, por exemplo, jardim, jardim I e jardim II, não, tinha a primeira fraca e a primeira forte.
E eu fui pra uma turma, como era aluno estreante, da primeira fraca.
Que era ver se, naquele ano, eu conseguia vencer (risos) pra ir pra segunda série.
Então, os primeiros seis meses eu fiz um curso nessa fase preparatória de primeira fraca e, no segundo semestre, eu já estava fazendo a primeira forte.
(risos) E foi bem engraçado, porque eu consegui habilidade pra ir pra segunda série.
E foi assim que eu comecei, nessa escola Cônego, que fica na São Francisco.
Essa escola foi a primeira que eu estudei.
E depois, no ano seguinte, eu fui matriculado no Cônego novamente, só que a escola estava tão lotada de pessoas.
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isso era 1977, eu comecei, com sete anos de idade.
Eu nasci em 1970, então em 1977 eu comecei a estudar.
Em 1978 eu fui estudar, a escola estava lotada, a nossa escola voltou pra escola antiga, que era o Grupo Escolar Cônego Batista Campos, o primeiro grupo, que era a primeira referência da escola, lá.
Então, eu estudei a segunda série lá, voltamos, virou um anexo da escola e eu voltei a estudar ali.
E é uma escola bem cheia de história ali, porque era o primeiro prédio público de uma escola estadual e eu tenho memória bem interessante dali, porque a escola fica na beira da praça, então a gente tinha uma escadaria lá e eu me recordo de ir pra lá e, como a aula começava sempre às sete.
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engraçado, eu chegava seis e meia (risos) e eu sentava lá e ficava um monge de garotos sentados.
Minha mãe fez um short de tergal, eu podia entrar de bermuda pra estudar, não era obrigado a ir de calça comprida e eu, então, sentava na escadaria da escola e ficava ali.
Ali eu esperava todo mundo chegar, pra todo mundo entrar na escola e era bem engraçado que, de tanto eu sentar - é uma soleira de cimento – naquilo, cara, um dia eu fui olhar e minha calça não estava tudo, já carcomida, de tanto eu sentar ali! (risos) Mas era uma escola bem interessante.
Eu tinha muitos amigos, que até hoje são colegas meus, de trabalho, enfim e todos eles se conheceram ali naquele ambiente da escola e muitos professores que ainda - hoje aposentados, né? – foram educadores daquela fase.
Foi uma fase muito, muito bacana, de aprendizado.
P1 – Alguns professores te marcaram?
R1 – Sim, sim, sim, sim.
Eu acho que muitos dessa fase inicial tinham muito mais uma relação maternal comigo.
Eu acho que foi uma fase que eu me sentia, um pouco, filho deles.
Era a extensão da minha família e eles faziam esse papel.
Por exemplo: tem uma professora que é minha colega, Rosa Helena, que eu digo que eu sempre não cresci na escola, eu era muito pequeno.
Enquanto meus colegas cresceram, eu fiquei estacionado, numa altura pequena.
Mas eu não cresci tanto, também, né? Mas eu era bem menor.
E, por causa disso, eles me chamavam de Toquinho.
Então, eu era Toquinho e tal.
E, cara, eu chegava na escola, essas professoras chegavam e me abraçavam e eu ficava muito, muito, muito envergonhado, porque acabava que ela tinha uma relação muito maternal comigo.
Ela e a Maria do Céu.
Eram duas professoras que faziam sempre isso: vinham lá, me abraçavam, me beijavam e eu ficava, assim, cara, muito, muito.
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então, por causa desse comportamento delas, eu tenho essa lembrança afetiva, né? Já outros eu tenho uma lembrança, assim, de temor, sabe? De medo.
Quando eles chegavam na escola, era como se a gente tivesse que sentar, realmente e ficar quieto.
Então, era esse lado, já, mais de respeito, de força, que acho que era muito comum, da escola, naquela época.
Então, acho que, nessa fase, dos primeiros contatos, era assim: uma fase de afeição e outra fase de medo.
Eu acho que a parte de formação, mesmo, eu acabei tendo muito mais quando eu fui para o ensino fundamental maior e depois com o ensino médio.
Lá eu tive muitos educadores que foram pessoas que abriram caminho pra gente.
P1 – Fundamental e médio foi o.
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R1 – A primeira, educação fundamental, foi sempre no Cônego.
Eu estudei da primeira fraca até a oitava série, que era chamada, naquela época.
Já o ensino médio, eu fui pra o segundo grau, que era o José Maria Machado, que é a escola do ensino médio, que é lá.
Então, lá eu estudei do primeiro até o terceiro ano, lá.
Fiz Contabilidade.
Técnico em Contabilidade.
E depois, um ano, eu fiz Magistério.
Mas essa parte de fazer Magistério foi só uma estratégia, porque minha irmã ia ser candidata a direção da escola e é bem legal, isso, dizer, porque no passar do tempo, isso fica risível.
Ela precisava de alguém que fizesse campanha pra ela.
Ela ia ser candidata a direção e, se eu não fosse aluno, eu não podia fazer campanha pra ela, nem votar nela.
Aí ela: “Não, faz o seguinte: te matricula de novo e vem fazer campanha pra mim”.
Aí: “Beleza, então, vou me matricular”.
Me matriculei no Magistério, só que, naquela altura, já fazia cursinho também, mas eu me matriculei no Magistério e fiz um ano de Magistério.
P1 – Você já falou um pouquinho, mas como é que começou o seu contato com História? Você tinha alguma ideia, nessa época? Ou você começou a ter uma ideia?
R1 – Então, não, não, não.
Eu posso voltar um pouco e te dizer o seguinte: quando eu comecei a estudar no ensino fundamental, eu acho que eu tive muita lembrança de medo, sabe? Eu acho que eu estudava muito.
Meus irmãos sempre foram muito bons.
Eu acho que eu não posso dizer que era com um certo medo.
Meus irmãos eram bons, assim, sempre muito bem destacados no que eles faziam.
O meu irmão mais velho, que tem três anos mais velho que eu, o Dunga, era um cara muito bom em Matemática, em fazer as coisas, tinha uma letra muito bonita.
A minha irmã, a Dalva, que ia pra Abaetetuba, era muito, muito boa de escrever e escrevia muito bem, entende? Então, eu penso que, em casa, eu tive muito mais horizonte pra estudar, porque acabava que eles me ilustravam muito mais.
Na escola, não.
Eu acho que, quando eu estudava na escola, de quinta à oitava série, tinha um certo receio, porque, às vezes, tinha professor que fazia muita agressividade, né? Chegava cobrando ordem, mas com muito grito, com muita força.
Então, isso causava um pânico.
Tem um professor que é meu amigo hoje, eu brinco com ele, que eu digo assim que ele é meu amigo, hoje, que é o professor Sidnei e eu dizia: “Sidnei, eu estudei a vida inteira com você, com o pé gelado”, porque quando ele entrava na sala e sempre gritava e falava de forma muito efusiva contra os alunos, que eu sempre ficava com medo e meus pés ficavam, sempre, frios né? Hoje eu brinco com ele, porque a gente virou amigo, colega de trabalho também, mas ele, na época, foi meu professor.
E eu acho que, assim, foi uma fase de aprendizado que era nesse nível.
Já quando eu fui para o ensino médio, eu já não precisava chamar os professores de senhor.
Eu os chamava: “Antônio, ei.
Araci, fulano”.
Chamava como se fossem iguais.
E isso deu muito incentivo e muita liberdade.
Eu acho que aqueles caras me deram mais liberdade pra entender o que era estudar e eu estava mais relaxado.
Tem um professor de Educação Física, que era o professor Ícaro, um cara super criativo, né? Era um professor de Belém que lecionava Educação Física e inventou os jogos internos, então, da escola.
Então, nessa época, eu peguei e corria, eu era corredor de cem metros rasos.
Era bem legal isso, porque eu me destaquei muito fazendo corrida.
Apesar de não ter altura, eu tinha velocidade.
E acabei ganhando muitas medalhas e tal, por conta disso.
Estudei Contabilidade e estudava.
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outro professor que era muito legal era o Antônio Miguel.
Antônio também virou meu colega de trabalho, depois.
É um cara, assim, tinha uma capacidade incrível na área de Exatas, Física, Química e tal.
Naquela altura eu achava que eu ia fazer Engenharia.
Eu tinha o horizonte, que eu olhava aquilo que ele fazia nas fórmulas, tudo me convidava pra ir pra área de Exatas.
Só que, quando ia chegar o final do ensino médio, eu olhava e não tinha horizonte pra ter isso, pra ter oportunidade de estudar.
Nós chegávamos, não tinha tradição de estudo na área de Exatas, em Barcarena.
Eu tinha feito Contabilidade e Contabilidade era um curso que era técnico.
Então, a gente estudava, no primeiro ano, Matemática, História, Geografia, todas as disciplinas básicas, mas quando chegava no segundo e terceiro ano, só foram matérias da área de formação profissional.
Então, era Matemática Comercial, Contabilidade Comercial, curso de Contabilidade, Contabilidade, Contabilidade.
Ou seja: as matérias que iam cair no vestibular, a gente não sabia nada.
Cara, então, no terceiro ano, eu imaginei: “Agora eu vou parar de estudar.
Eu não posso parar de estudar”.
Eu era muito jovem e eu queria continuar estudando.
E aí eu fiquei: “O que a gente vai fazer?” Aí, quando eu fui fazer o vestibular, eu me lembro bem disso, a primeira vez eu fiz pra Contabilidade.
Como eu estava fazendo técnico em Contabilidade, eu achava que a minha formação automática era contador.
Fiz vestibular pra Contabilidade.
Só que, quando eu cheguei na prova do vestibular, fórmulas de Química, de Física, coisa que eu nunca tinha visto na escola, porque a gente tinha visto Matemática Financeira, qualquer coisa daquele tipo de formação, mas nada que pudesse estar na prova de vestibular.
Então, não passei.
Primeiro vestibular, pra Contabilidade, foi perdido.
No ano seguinte eu peguei, então, junto com um grupo de amigos, fizemos, organizamos um cursinho.
Então, o cursinho partiu muito mais dos alunos para a escola, do que a escola fez para os alunos.
Então, em 1989, era uma alternativa correta.
Fizemos então, eu organizei, junto com os amigos que queriam estudar, reunimos numa manhã os professores que tinham algum tempo ocioso ou disponível, não é bem ocioso, mas disponível e os convidamos, pra que eles pudessem dar aula pra gente.
Aí eles disseram assim: “Olha, dá pra dar aula domingo”.
Aí, enquanto a gente estava conversando, na época, com eles, eles disseram assim.
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aí um amigo lá que, naquela altura, namorava com a minha irmã, que era já sobrinho do prefeito, disse assim: “Cara e seu arranjasse pagamento para os professores? Será que dava pra eles darem aula de noite, um tempo mais extenso?” Aí, beleza.
Apresentaram a proposta, o prefeito disse que pagaria as horas dos professores, pra eles trabalharem e darem aula pra gente.
Então, assim, surgiu um curso noturno, que ia dar aula pra gente estudar e se preparar pro vestibular.
Então, ali começamos um cursinho pré-vestibular, que até hoje existe no município e, naquela altura, eu era um dos alunos que queria agora fazer História.
Fazer História, não, eu queria fazer um vestibular.
Eu não sabia exatamente pra que.
Esse meu amigo, que é o professor Antônio Miguel, então, na época, todo mundo muito empolgado pra fazer vestibular, o vestibular é dividido, então, em grupo de formação.
Tinha CB, pra Ciências Biológicas; tinha CE, pra Ciências Exatas e tinha CH, pra Ciências Humanas.
E aí, então, o curso básico que tinha era curso pra Ciências Humanas.
Então, Ciências Humanas era o curso que todo mundo ia fazer.
Aí, na época, ele disse assim: “Olha, quem quiser, aqui, estudar Exatas, eu estou disponível pra dar aula pra vocês, mas depois da aula”.
Ou seja: a gente tinha aula de sete às onze da noite e, de onze, até o momento que a gente suportasse, ele ia dar aula de Exatas.
Só ele.
Ele ia dar aula de Física, de Química, de Matemática.
Então, durante a semana, a gente ficava, sim, mas era depois das onze.
Então, na época, eu estava muito esperançoso: “Bom, eu vou me preparar pra fazer Engenharia”, que era um pouco daquilo que eu imaginava que eu tinha alguma.
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vislumbrava de longe aquela ideia.
Então, começávamos assistir aula das sete até as onze e ficávamos na escola de onze até a resistência.
PAUSA
R1 – Então, o cursinho a gente começa ali, aquele pessoal funda o cursinho e o Antônio dava aula, então, depois das onze, pra nós, de Matemática.
Nós começamos um grupo de mais ou menos umas 15 pessoas, fazendo só parte de Matemática e Física e tal.
Mas era muito pesado.
A gente foi perceber que a quantidade de material que a gente tinha que dar conta, pra concorrer no CE, ia ficar exaustivo e a gente já estava cansado, né? Estudava das sete às onze, depois das onze até três da manhã, por exemplo.
E fazia aula, fazia aula e Matemática e Química e tudo, pra nós, era muito estranho porque, no ensino médio, a gente não tinha tido nenhum tipo de experiência com esse grau de profundidade de Física, de Química.
Então, pra nós era muito diferente.
E aí, quando virou o semestre, nós pensamos e dissemos: “Não, Antônio, eu te agradeço muito, mas eu não vou conseguir resistir”.
Aí, todo mundo, CH.
Quer dizer: eu fui um dos que foi para o CH.
Mas, até aí, sem nenhum plano do que ser, do que fazer.
Eu me lembro muito bem que, quando a gente foi fazer inscrição, eu tinha um amigo, que é meu compadre hoje, nós estudávamos juntos, é o José Pina, nós estudávamos, fazíamos o cursinho juntos, tal e ele: “Bora estudar” e a gente com a ficha de inscrição do vestibular.
O que a gente vai fazer? O que nós vamos fazer? Aí eu disse assim.
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olha, cara, eu fiquei tão frustrado com Contabilidade, que eu olhava pra aquilo e dizia: “Eu não tenho vocação nenhuma pra estar em escritório, em repartição”.
Então, pra mim, isso foi o sintoma.
Então, eu peguei tudo que tinha escritório, que eu imaginava: Contabilidade, Economia, sei lá, Direito e fui cortando.
Não, não, não, não, não quero.
Depois, Pedagogia minha irmã já faz.
Tal coisa.
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eu fui descartando tudo que tinha.
No final, vimos que sobrou História e Geografia.
Aí eu disse: “Cara”.
Naquela altura eu tinha estudado bastante História, eu sabia um pouco mais, achava que eu sabia bastante e disse: “Olha, vamos fazer o seguinte: ‘Tu faz Geografia e eu faço História, pra gente não competir um com o outro’”.
Bom, ali foi dada a decisão.
Na verdade, ninguém tinha noção: “Eu quero fazer isso, eu vou ser aquilo, vou ter aquilo”.
Não tinha muito bem.
Mas, no fundo, eu achei que foi uma boa escolha, no final.
Hoje eu acho que (risos) eu não tive problema com essas decisões, sabe? Foi uma escolha por acaso, na verdade.
Nunca fiz uma predisposição.
E também nunca tive um professor que me dissesse.
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você vai olhar pra ele e sentir que eu queria parecer com ele.
Acho que depois, na universidade, eu descobri o que eu queria ser, de fato.
(risos)
P1 – Como é que foi a faculdade, você fez FPA?
R1 – Fiz FPA.
Cara, foi uma fase da vida.
Eu acho que a universidade foi uma fase da minha vida.
Muito mais do que estudar, foi uma fase que eu aprendi muito a me encontrar como pessoa, né? Porque foi assim: eu morava em Barcarena, sempre em Barcarena, estudando e morando.
Eu me lembro muito bem que, quando a gente começou a fazer cursinho, o nosso grande sonho, que até marejava os nossos olhos, era dizer assim: “Nós vamos morar em Belém”.
Isso era uma coisa muito diferente pra nós, que era oportunidade de sair de Barcarena e ir morar na capital.
O lugar que a gente só ia por acaso, né? E agora a gente ia ter a oportunidade de ficar lá.
E, pra nós, Belém é um lugar totalmente surreal.
Não sabia nem o que era Belém.
Tanto quando eu passei no vestibular, a minha mãe foi me levar pra ir morar na casa da minha tia e eu conhecia zero Belém.
Eu não sabia nem onde ficava a universidade e nem sabia como voltar para Barcarena.
Eu me lembro que ela foi fazer um dia pra me mostrar como pegar o ônibus no Ver o Peso e, do Ver o Peso, eu ia pra casa da minha tia, era uma rota e, da casa da minha tia, qual o ônibus que eu pegava pra ir pra universidade.
Só.
E, pra minha sorte, esse meu amigo também passou em Geografia.
Então, ele era mais velho que eu e a gente acabou, eu disse: “Olha, Pina, nós vamos morar juntos lá na casa da minha tia, a gente vai pra lá”.
E ele já sabia um pouco mais os caminhos do que eu.
E isso foi bem legal, porque a gente chegou pra morar na casa da minha tia e eu, a cidade, pra mim, era muito estranha.
E, na época que a gente foi morar lá, chegamos na universidade, curso de História e logo dentro de uma batalha, pela meia passagem.
Cara, isso foi.
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a gente chegou lá, todo mundo disse: “Olha, o curso de História tem a função de combater tudo”.
E eu me recordo da gente chegar na universidade, acho que uns dois meses depois de ter chegado, uma grande revolta em Belém, dos estudantes, pra reivindicar meia passagem.
Chegamos lá e o DCE chamando todo mundo, o Centro Acadêmico de História chamando todo mundo pra ir numa reunião e depois decidiu-se que ia sair numa marcha, da universidade, pela cidade, pra pedir as passagens.
Esse dia foi muito interessante, porque eu não conhecia Belém, nem o meu amigo conhecia nada de Belém e nós nos metemos numa grande saída de todos os cursos da universidade, que pega uma rua chamada José Bonifácio, até a Praça do Operário.
Andando.
Da universidade, pra lá.
E todo mundo marchando.
E, detalhe: era bem interessante, porque os estudantes da universidade - tem uma área que tem muito bambuzal, bambu - cortaram os bambus, tiraram cada tronco de bambu enormes e colavam um cartazinho desse tamanhinho e eu não sabia que aquele bambu era uma arma.
Pra mim era um cartaz, né? Todo mundo com um bambu enorme e todo mundo cortando aqueles bambus e levando e eu não entendia muito bem aquilo.
E, quando a gente começou a andar, quando chegou na Praça do Operário, aquilo virou uma arma e começaram a depredar ônibus, a quebrar os ônibus, quebra ônibus daqui, quebra ônibus dali e eu comecei a ficar assustado com aquilo.
Chegamos na Praça do Operário, todo mundo se juntou com os alunos do ensino médio de Belém, que estavam sem passe de transporte também.
Ficou uma multidão de alunos lá somado à gente, que vinha da universidade.
Encontramos outros, o pessoal das escolas técnicas.
Eu sei que ficou uma multidão.
Descemos a rua, que é ali a.
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não, como chama aquela rua que vai da Praça do Operário pra dentro da.
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Avenida Nazaré, né? Que dá aquela rua lá.
Eu sei que nós pegamos aquela via e, quando eu vi, todo mundo começou a tirar as pedras portuguesas das calçadas e começou a fazer um lote dentro das blusas e eu comecei a ficar assustado, cara.
E todo mundo começou a ir e eu me lembro que a gente ia naquele corredor, isso era umas cinco pras seis da tarde, chegamos perto do Museu Goeldi e começou a haver uma grande depredação de ônibus, jogavam pedra nos ônibus, quebravam os ônibus.
Eu me lembro de um repórter cinematográfico em cima do ônibus, filmando e o pessoal jogando coquetel molotov pra dentro do ônibus, queimando o ônibus e eu comecei a ficar assustado com aquilo e atrás da gente vinha um grupo de policiais da Patam, chamava Patam, a polícia super aguerrida, porque ela vinha acuando a gente e provocando o pessoal, atrás.
E a gente no meio, aquilo não tinha como correr, mais, né? E a gente foi naquela marcha e as pessoas dos prédios da Avenida Nazaré começaram a jogar água.
Eu não sei se era água de fato, mas jogavam líquido em cima da gente e gritavam, lá de cima do prédio e a gente naquele corredor.
Bom e eu assustado, porque não sabia exatamente onde eu estava.
Eu não conhecia Belém, né? Eu só estava junto com meu amigo e sabia que a gente ia pra algum lugar.
E páaaaaaaa, a gente anda, anda e aquilo, onde parava, tinha sempre um atrito.
Me lembro bem de chegar na frente do Jornal Liberal, que era, então, representante da Globo.
Eu estou falando de 1990, isso.
De repente todo mundo diz assim: “É aqui a Globo, que faz não sei o que”.
O cara subiu com o microfone e começaram a atirar as pedras portuguesas nos vidros da TV.
Paaaaaaaa, joga vidro, joga vidro e a Patam também dando pancada nas pessoas.
Eu me lembro que, no dia seguinte, todo mundo tinha um troféu nas costas, que era uma pancada roxa (risos) daquele ato.
E aí chegamos, andamos, andamos, andamos, quando a gente viu, chegamos na Praça da República.
Cara, ali, pra mim, foi o dia mais terrível, assim e, assim, era uma estreia.
A polícia estava toda lá.
Muita, muita, muita polícia: polícia feminina, polícia de carro, polícia com cavalo e acuando todo mundo.
Eu não lembro muito bem, mas eu e meu amigo conseguimos ficar juntos, saímos, conseguimos atravessar o comércio, tudinho no escuro e chegamos no local que ficava atrás da prefeitura, que é a Praça Felipe Patroni, lá tinha uma saída de ônibus, nós pegamos um ônibus, mas a cidade estava totalmente tumultuada, por causa desses vários quebra-quebras que estava e não tinha nenhuma linha fazendo o mesmo roteiro.
Eu me recordo que nós chegamos lá e pegamos o ônibus, que eu sabia que ia pra casa da minha tia, só que ele não ia, ele não foi, aliás, ele foi embora.
Nós dentro do ônibus, beleza, quando eu vi o ônibus, o motorista parou num local e disse: “Olha, pessoal, eu não vou mais daqui, porque estão quebrando ônibus pra ali e não dá pra ir pra lugar nenhum”.
Aí: “Onde nós estamos?” “Estamos na Matinha”.
Cara, pra mim, Matinha era um lugar que eu nem sabia o que era! (risos) Ficamos na Matinha.
Tivemos que pegar um táxi, pra chegar na casa da minha tia.
A minha tia estava assistindo TV e a gente chegou lá: “E aí, como foi a aula?” “Foi tudo bem”.
A gente não contou.
No outro dia o jornal estava cheio de denúncia sobre quebra-quebra de ônibus e a gente estava lá.
(risos)
P2 - __________ (39:38).
R1 – Exatamente.
Os ônibus, quando começaram a chegar ali perto do museu, rapaz, os caras entravam e começaram a quebrar.
Na época quebraram acho que mais que 15 ônibus.
Foi um negócio assim, uma noite.
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isso eu contei pra um amigo da minha cidade, ele estava fazendo uma pesquisa sobre o movimento e ele disse: “Cara, tu estava no meio?” Eu digo: “Estava.
(risos) Involuntariamente, mas eu estava”.
P1 – Foi seu primeiro dia de aula?
R1 – Não.
Foi assim: a gente tinha começado há uns dois meses, logo depois, mas eu ainda estava aqui, assim, não sabia absolutamente nada de Belém e, pra mim, foi terrível, porque.
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e quando fui chegar na casa da minha tia, ela estava assistindo televisão e a gente suado, com medo, porque a gente tinha participado daquilo e eu disse assim: “Tia” e ela disse: “Onde estava?” “Não, a gente estava na cidade e tal”, com a cara toda, mas tinha participado de tudo aquilo.
(risos)
P1 – Eu queria perguntar pra você, antes da gente falar da história de Barcarena e tal, qual o tema que você pesquisou, sua pesquisa mesmo e por que você pesquisou isso?
R1 – Eu sempre, na época da formação, eu tive muitas experiências de pesquisa.
Então, na verdade, às vezes, eu fui sempre convencido a pesquisar aquilo que era mais.
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eu estava muito a fim de aprender.
Era bem isso daí.
Por exemplo: eu comecei a estudar e, na época, quando eu comecei, o meu orientador, na graduação, foi uma figura muito interessante e era um cara muito inteligente, que é o Audrey.
Ele estudava imaginário.
Então, estava começando a chegar a história francesa na universidade e então eu tinha muito o leque desses estudos.
E a gente começou a estudar.
E, na época, eu comecei a estudar literatura de viagens, viajantes e tal, pra estudar o imaginário das viagens.
Então, essa foi uma fase que eu dediquei, uma fase de aprendizado e fiz a minha monografia final de curso da graduação.
Então, essa foi uma diferença.
Se eu dissesse que eu escolhi, não.
Eu acabei me deixando envolver por aquele tipo de trabalho.
Eu tinha interesse, muito, em aprender aquilo que a gente estava fazendo, já fazia pesquisa num grupo chamado PET, que era um grupo de treinamento de pesquisa e acabei, naquela época, dando asas pra esse tipo de movimento.
Aprendi e fiz isso.
No intervalo eu fiz uma especialização, que foi no Núcleo de ___________ (42:37) Amazônicos e lá era um curso sobre história de cidade.
A história da cidade e tal, mas era filosofia do Walter Benjamin.
Então, naquela altura, era uma coisa assim que estava chegando, novo também e era uma linha que estava estudando, por causa do estudo da cidade, estudo da metrópole, estudo da leitura da cidade, a partir do foco do Walter Benjamin.
E eu pesquisei a história de um cemitério em Belém, que é o Cemitério da Soledade, que era, muito, essa impressão urbana da leitura da morte.
Na verdade, eu tinha muito material pra isso e, naquela época, eu não tinha visão do que isso significava como pesquisa.
Eu lembro que eu não acessei muito a fonte, fiz a pesquisa, mas o foco era a leitura do Walter Benjamin.
Quando eu vou pro mestrado, eu já saí de tudo isso e fui pra o estudo das moradias em Belém.
Na verdade, eu tinha feito um projeto pra estudar, era uma legislação urbana, que são os códigos de posturas da cidade e, na época, não tinha muito horizonte sobre isso e um professor, na época, que foi meu orientador do mestrado e do doutorado, que é o Antônio Otaviano Vieira Júnior, um professor lá da minha cidade, do Ceará, que fez concurso para Belém, me estimulou a estudar a vida domiciliar, as casas, moradias de Belém, com foco em estudar a família.
Família e cidade.
Era um pouco da tese de doutorado dele e que eu acabei estudando isso pra Belém.
E foi uma experiência muito interessante, porque eu acabei aprendendo, me dedicando a estudar a evolução urbana de Belém, num período, que é o colonial e depois, uma fase da história das moradias, em relação da vida em domicílio, a vida do cotidiano, o que é e a vida que era intimidade, enfim.
Então, foi uma fase de aprendizado desse tipo de relação.
Já no doutorado, eu tinha uma história pra Barcarena, tanto que eu disse assim: “Não, agora eu quero estudar o que eu quero fazer”.
Tanto que, quando eu fiz o projeto de doutorado, eu tinha muito claro: “Até aqui eu estudei o que eu queria aprender, muito mais como aprendizado metodológico.
Agora eu quero um tema”.
E, na época, eu queria estudar, porque tem uma história em Barcarena, que depois eu tenho certeza que outras pessoas vão falar também sobre isso, que é a história de uma casa, que é uma casa de escravos que teve aqui, que é a história da Fazenda Cafezal.
Uma casa com muitas memórias produzidas e que nunca se desenvolveu uma história sobre isso.
Então, na época, eu disse: “Bom, eu acho que agora é o momento de eu começar a estudar o que eu quero, porque eu acho que posso produzir uma resposta pra população local”.
Fiz um projeto e, naquela história, tem o dono da fazenda, que era um personagem totalmente desconhecido.
Era um português chamado Fortunato.
E eu só sabia isso: Fortunato era um português.
E eu achava que a história dele poderia render.
Apresentei a proposta dele para o doutorado e assim eu comecei a apresentar uma ideia de um português, mas eu queria estudar a casa.
Mas a história tinha que ser a de Barcarena.
Quer dizer: a primeira vez que eu levava pra Belém uma história de um local.
Só que, quando eu cheguei lá na universidade, o projeto foi muito bacana, foi aprovado para o doutorado, mas eu comecei a levantar material e não tinha material suficiente pra fazer uma tese de doutorado.
O orientador disse assim: - pesquisei seis meses – “E aí, Luiz, o que você conseguiu?” “Algumas coisas do Fortunato, alguma coisa do Cafezal”.
Aí ele diz assim: “Tu acha que isso é suficiente pra fazer uma tese?” Aí eu: “Eu acho que não” “Então, vamos ampliar, vamos pesquisar a imigração portuguesa”.
Então, assim, levantei mil e trezentos portugueses vindo da Europa pra cá, de Portugal pra cá, todos pra Belém e assim desenvolvo uma pesquisa.
No fundo, eu também estava me envolvendo, porque eu estava estudando a história do Fortunato, continuava envolvido com isso e também descobrindo uma coisa que, pra mim, hoje é muito interessante, que é a história de movimento.
A nossa cidade é de imigrantes.
Se a gente perguntar pra cada morador daqui, todo mundo veio de algum lugar ou está aqui por alguma situação.
Que, queira ou não, também, eu aprendi muito mais sobre a minha cidade olhando a história das pessoas que migram, entende? Então, no fundo, também, a história de estudar os portugueses lá atrás me ajudou a entender muito mais e até responder muito mais coisas do que hoje eu vivo aqui na cidade.
P1 - ___________ (47:00)?
R1 – Barcarena, por estar próximo de Belém, sempre, em muitos momentos, tiveram o que eu pudesse dizer: camadas migratórias.
Por exemplo: ainda no século XIX, essa região da Amazônia, foi área de muita exploração da borracha, mas também de colonização pra atividades agrícolas.
Então, teve um grande movimento de nordestinos pra cá, né? Isso sem falar nos portugueses que já tinham vindo pra cá, trabalhar e muitos ficaram aqui em Barcarena.
Mas tem, então, uma leva de nordestinos que vão ficar nas ilhas, que vão permanecer em Barcarena e que vão criar laços de trabalho aqui, né? Então, eu considero que esse é um fluxo de imigração, que ficou diluído no meio das pessoas.
Hoje, por exemplo, uma pessoa chama de arigó, pra outro, sem saber que arigó é um termo usado pra migrante que vem do Rio Grande do Norte.
Ou que vem do nordeste, de um modo geral.
Arigó é um termo pejorativo pra classificar esse indivíduo não nativo, né, que veio e que ficou.
E que tem várias famílias descendentes desse tipo de região, do nordeste.
Pra cá vieram também, por exemplo, muitos japoneses, colônias japonesas que ficaram na Ilha das Onças, na Ilha Trambioca, fundaram uma colônia, que é a Colônia do Urucuriteua, de japoneses e, pra bem da verdade, hoje nós temos famílias que estão arregrados na cidade como os Ogawas, Shin Osaka, que vieram dessa leva, que hoje se mesclaram com as famílias tradicionais e que formam famílias locais.
Mas, no passado, foram imigrantes.
Tem sírios libaneses que vieram pra cá trabalhar, família Caiat, que são de origem síria, que vieram pra cá.
Tem os Apolattis, que são italianos.
Tem portugueses de vários tempos diferentes.
Enfim, eu fui percebendo que nós temos uma cidade que tem vários fluxos migratórios, anteriores à chegada do grande empreendimento, que é a Albras.
Quando a Albras chega e a Alunorte, nos anos 80, Barcarena vira uma terra multifacetada.
Porque tiveram japoneses, os nordestinos, de toda paragem do Brasil veio gente pra cá.
Por isso que, portanto, eu digo que Barcarena é uma cidade que foi sempre se modificando com o passar do tempo, com relação a questão da característica populacional.
É uma cidade, hoje, que tem muitos matizes de sotaques, muitas linguagens.
Então, entre os nativos, uma série de indivíduos que migraram em tempos diferentes.
P1 – Como é que são as regiões aqui de Barcarena? Digamos que a pessoa não conheça (49:54).
R’ – Como localizaria? É como eu lhe falei: Barcarena tem uma sede inicial, que é a Vila de São Francisco.
Eu diria que tem quatro núcleos primeiros.
Um é a Vila de São Francisco, que é o local que Barcarena vai iniciar o povoado.
Lá tinha uma tribo de índios, segundo relatos e dados, que era dos índios Gibirié, que é uma tribo de índios que vai ser catequizada por jesuítas e que vai dar origem ao povoado.
Mais pra adiante tinha uma outra tribo de índios, que eram os Mortiguras.
Outra tribo de índios, que vai ter uma redução de jesuítas lá, que é uma espécie de missão religiosa.
Talvez a mais importante dessa região, que é da Vila do Conde, que hoje virou Vila do Conde.
Lá era a Missão dos Mortiguras.
Uma missão muito importante, porque chegaram a ser trazidos pra lá muitos índios pra serem aldeados ali: índios do Marajó, das circundantes, pra virem serem catequizados ali.
Essa é uma história bem interessante, porque virou um povoado muito importante, que era o povoado de Mortigura.
Depois ele passa a receber o nome português, que é o nome Vila do Conde.
Ali virou Barcarena, lá virou Vila do Conde.
Depois tem um outro povoado, que é o povoado do Cafezal, mas o Cafezal tinha um local que era anterior a ele, chamado de Canapijó.
Portanto, é um local que também teve uma ocupação dos jesuítas, que era um povoado também de ocupação mais nativo.
Nativos catequisados e jesuítas que ficaram ali, como uma espécie de local de descanso.
E tem o Itupanema, que é uma ligação com o Conde.
Tudo isso aqui era o que a gente poderia chamar Barcarena mais tradicional.
E pequenos povoados aos arredores, como tem ali Acaraú, a Ilha das Onças e tinha outros povoados que, depois, tudo foi virando, se transformando em Barcarena.
Pequenos povoados, pequenos sítios que existiam, de famílias que foram crescendo e se constituindo de uma forma mais adensada.
Mas quando eu te falo em cidade: São Francisco, Conde, Itupanema e aqui o Canapijó, que depois se torna Cafezal.
Essa condição fica mais ou menos até todo o século XIX e isso é Belém, uma extensão de Belém.
Na verdade, os belemenses que moravam lá na capital tinham as suas propriedades aqui e entendiam isso aqui como uma extensão de Belém.
Isso aqui é Belém.
Isso aqui não é Barcarena.
Barcarena era um distrito, como hoje ainda existe Outeiro, Mosqueiro, Icoaraci, continuaram como distrito.
Barcarena era um distrito de Belém.
Isso vigorou até os anos 43, 1943.
Em 1943 houve um grande processo de reordenamento territorial do país, não só do Pará, mas do país e, portanto, foram redefinidas fronteiras dos municípios.
E Barcarena, então, nessa época, se emancipa de Belém e vira um município.
Então, esse município passou a agregar não só aquelas pequenas localidades já existentes, como também agregou outros subdistritos, que ficaram agregados a Barcarena, virando um município, então, com vários agregados de municípios.
A Ilha das Onças, que era Belém, passou a ser Barcarena; Acaraú, que era Belém, ficou Barcarena.
Enfim, Barcarena virou um território bastante amplo, que saía do contexto de domínio de Belém.
Isso em 1943.
E a sede ficava lá onde é o São Francisco, certo? Então, lá era a sede e, em torno dele, gravitava um grupo de localidades pequenas.
PAUSA
R1 – Eu fiquei pensando, quando eu voltei pra casa, porque eu não consigo ser só eu.
Às vezes eu digo assim: “Porra, eu não sou professor aqui, eu não posso ficar falando como um professor.
Eu tenho que falar como um morador e é diferente de falar como um morador, porque às vezes eu não consigo me lembrar de ter ficado falando como um morador.
Às vezes eu tenho que estar explicando alguma coisa que é fruto não da vivência, mas da experiência de pesquisa, né? Aí eu digo: “Não, eu tenho que separar esses universos, porque uma coisa é você ficar dizendo: ‘Aconteceu isso.
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’”
P1 – Mas no seu caso, _________ (55:53), além da vivência, vocês tiveram, assim, uma imersão no processo que, raramente a sociedade _________ (56:05) vai e não precisa, ter, inevitavelmente, na fala, esse viés.
R1 – Porque esclarece, inclusive, um bocado de coisas que, às vezes, a gente acha que foi por acaso e não foi.
P1 – O Cafezal, por exemplo, quando nós chegamos aqui, eu conheci, claro, a parte da frente e algumas dezenas das 365 janelas que tem lá e me lembro o olhar de susto ali e de temor, quando nós olhamos uma sacada que tinha e não enxergávamos o fundo, que era onde jogava.
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R1 – Diziam que era o sumidouro, né?
P1 - .
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lá os escravos e tinha lá ponta de lança, não sei o que, apodrecia o corpo.
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R1 – (risos) Essa história é bem interessante!
P1 – Cafezal eu tenho duas lembranças: é esse porão.
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aliás, três: o porão, a chaminé que tinha lá.
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R1 – E as janelas.
P1 – As janelas, mas tinha __________ (57:17), foi um tronco lá no quintal, onde eles castigavam os escravos.
R1 – Poxa, cara, eu fico muito.
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lamento, porque eu era.
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como eu falo: eu não tive essa experiência de sair.
Eu acho que houve um tempo que, em casa, a nossa vida era a Cronge, mas pra mim, terminava no mercado.
Eu ia no mercado, porque a gente ia fazer compras e voltava.
Ir pra praça já era um negócio que tinha que ter um evento e acompanhado de pai.
Eu digo que a gente foi descobrir isso já com uma certa idade.
Então, tinha um certo temor de sair pra lá, mas era coisa de criança.
(risos)
PAUSA
P1 – Como é que foi, então, (58:20)?
R1 – Olha, eu posso dizer assim que essa história da africanidade, eu acho que é uma coisa que é muito mais escolar do que da vivência.
Quando eu te falei que eu não vi aqui em Barcarena, quando criança e mesmo depois, muito pouco essa ideia de fazer terreiro, por exemplo ou representação simbólica, que dissesse: “Olha, ali naquela comunidade, tem um grupo de pessoas que cultivam ou cultuam um rito ou uma festa de origem africana”.
Eu acho que foram muito poucas experiências nesse sentido.
Eu sei que, por exemplo, era muito comum ter festa de São Tomé, de São Sebastião, da Conceição.
Talvez isso fosse uma nuance dessa tradição, né e algumas pessoas negras que eram donas de festas ou que faziam ladainha.
Mas isso muito matizado, talvez muito distante de dizer assim: “Isso aqui nós somos, porque nós somos descendentes de um grupo africano”.
Eles nunca se disseram dessa forma.
Eu acho que hoje, depois que a gente começou a pesquisar, identificar, é que tem vindo de uma forma, da informação da pesquisa para a comunidade e a comunidade diz assim: “Então, beleza, se vocês estão dizendo que eu sou, eu sou dessa origem”.
Por exemplo: o próprio Cafezal, que é um local que a gente sabe, por ter uma evidência material de que ali tinha uma casa de um senhor de engenho e que essa casa de engenho certamente tinha escravos e que esses escravos existiram, na verdade, se a gente fosse perguntar há tempos atrás, eles não iam dizer assim: “Não, talvez eu lembrasse de alguma coisa, a minha vó falava disso”, mas não era uma memória muito viva, sabe? Até hoje eu fico pensando se, talvez, essa era uma forma de esconderem as suas origens, por causa de um certo medo.
Ou um certo preconceito quanto a isso, sabe? Todo mundo se achava: “Eu sou morador do Cafezal”.
Alguns contavam muito história.
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eu acho que o Cafezal é muito cheio de mitos.
E os mitos do medo.
O medo, por exemplo, de ser.
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de ir pra beira do local, que era o sumidouro, que isso ficou muito mais forte, das visagens da casa grande, que era o local onde tinha corrente de sacrifício, que as pessoas arrastavam, ouviam essa memória de que correntes saíam de dentro da casa, né? Mas essa coisa de preservar uma memória, um rito, uma tradição, parece que não ficou muito evidente, né? Eu digo que, hoje, depois que eu comecei a pesquisar, mas na profissão de professor, eu comecei a identificar isso muito mais forte, sabe? Forte, assim: em algumas localidades, a existência de uma população com tez e características, mas que também não via, em si, esses ritos muito fortes, essa herança, né? E recentemente eu descobri, num local que está totalmente abandonado, que é um local chamado de.
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é um assentamento, que fica perto de um local bastante distante e que é um local que é cheio de relatos históricos, que ficou inacessível à população, porque ninguém acabou tendo identificação nos jornais, publicações, que foi um grande mocambo de fuga de escravos, que ocorreu em meados do século XIX, eles fugiam pra esse local e lá se mantiveram entre 1850 a 1880.
É um local que eles fugiam de Belém e acabaram permanecendo ali, escondidos dos senhores, né? E que, pra minha surpresa, é em Barcarena.
E como é um local que tinha um nome lá, chamava Engenho Mocajuba e tinha o Mocambo de Mocajuba.
E como aqui tem um local, no município do Pará, chamado Mocajuba, mesmo os historiadores que pesquisavam, achavam que Mocajuba era o município de Mocajuba.
E, na verdade, Mocajuba era uma localidade dentro do Rio Arauaia, que fica em Barcarena, que é um local bastante incrível, porque é uma pequena ilha, circundada de um grande lago e que era um lago de refúgio dos escravos, ali.
Tem uma espécie de grande estratégia de fixação ali.
Por isso que eles duraram cerca de trinta anos ali, entende? E é um lugar extremamente fascinante, porque tem essa memória, mas não tem morador residente ali, porque foram presos e o que existe de relato daquela época é uma terra abandonada, mas com evidência documental de que ali existiu esse tipo de local, onde houve resistência escrava.
Já em Barcarena, os descendentes da Fazenda Cafezal foram libertos, assim, foram dadas alforrias pra eles e eu creio que muitos deles ficaram morando nos terrenos residentes.
Tem muitas famílias que a gente consegue perceber, neles, todos os emblemas dessa época, que é a família da Dona Carlota, por exemplo, que é um pessoal que mora dentro do Rio Acaraú.
E muitas pessoas que moram no Cafezal, que a gente consegue perceber.
Eles têm, certamente, uma ligação com ancestrais que foram escravos.
Mas, por incrível que pareça, ficou muito pouco disso.
Tem uma festa de Santana, que é uma festa que é a padroeira do Cafezal e que tinha, na fazenda Cafezal, essa festa.
Que talvez, isso, se a gente for observar, a festa de Santana tem uma festa com cultos afros, né, que é também uma das divindades que compartilha o sincretismo religioso.
Mas isso ficou muito mais o rito católico, do que necessariamente o rito afro.
P1 - ____________ (01:04:54)?
R1 – Eu acho que, como eu te falei, a relação com o rio foi muito antes da Albras.
Acho que tinha muito essa coisa do homem virado com a cara pro rio.
A cidade.
Tanto que ela nasce da foz com o rio.
Hoje eu acho que.
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quando as estradas começam a surgir, é como se a população virasse as costas pra água, embora tenha contato.
Eu me lembro muito das coisas chegando pelo rio.
Tudo chegava: transportes, as pessoas transportavam.
Embora hoje haja isso, esse circuito pelo rio, mas por exemplo: o rio já não é um lugar que se toma banho.
Não é um local onde se lava roupa, mais.
Até porque a eficiência desses serviços, começaram a ser atendidos pela cidade.
E a pesca, mesmo, só mais longe.
Aqui tinha uma colônia de pescadores, a Zona 13, que tinha muitos pescadores que viviam da pesca.
Hoje ainda existem remanescentes desse grupo, que desenvolve atividade de pesca, mas já não têm, talvez, essa mesma força de produção.
Tanto que muito do que chega do pescado de Barcarena, vem de Abaetetuba, vem de Vigia, de outras cidades, que dedicam-se à pesca, com mais questão de abastecimento do mercado.
Já em Barcarena tem uma pesca, sim, mas é artesanal, já familiar, que não supre, talvez, mas também a população, se a gente comparar a população de Barcarena de 1970 a 1980, era minúscula, que a pesca daqui talvez garantisse essa sustentação da população.
Hoje ela não supre.
Então, tem que, realmente, comprar de outros fornecedores de fora, pra atender as necessidades locais, mas ainda tem uma população tradicional, que vive e cultiva alguma atividade relacionada a pesca, mesmo agricultura, mas que, quer queira ou não, foi conduzida a viver nos serviços urbanos.
Por exemplo: muitos filhos deles foram educados pra ir pra escola, pra fazer atividades que já não os convida pra voltar pra atividade rural.
E isso é uma contradição muito grande, né, pra cidade.
P1 – Isso tem a ver com a vinda da empresa aqui?
R1 – Exato.
Essa é uma fase bastante agitada da cidade.
Eu considero, assim, um divisor de águas, acho que dentro do que a gente poderia chamar da Barcarena mais antiga e tradicional, pra Barcarena capitalista e urbana.
Acho que tem esse limite ali, de compreender um pouco esses horizontes.
Por quê? Porque, se a gente compreender o que era a Barcarena dos anos 80, era uma cidade bastante fechada dentro dos seus espaços, que vivia das atividades da coleta, da pesca.
As oportunidades giravam em torno do que a cidade fornecia, né? E assim: os indivíduos trabalhavam dentro daquilo que era muito próprio do fazer local.
Só pra tu teres uma ideia disso, pra ser bem materializado, teve um prefeito em Barcarena, nos anos 1970, uma das grandes oportunidades dele fazer geração de emprego, foi fazer uma casa da farinha em Barcarena.
A casa da farinha, portanto, era uma casa que ficava hoje onde é a São Francisco com a Lameira Bittencourt e lá ele construiu uma casa, que ia ter a função pública de trazer que o morador que fazia farinha pudesse fazer ali o seu ofício, dentro de uma casa que era da prefeitura.
Então, com fornos, com local pra fazer tudo aquilo e que, nos arredores todos da cidade tinham roças.
Então, as pessoas que trabalhavam sozinhas poderiam trazer pra ali, pra fazer os seus trabalhos.
E talvez, salvo engano, eu imagino que também ajudar a vender o produto que ele tinha.
É verdade que aquela casa nunca funcionou efetivamente com produção.
Depois ficou abandonada.
Talvez porque os moradores, muito presos aos seus costumes dentro dos seus roçados, não queriam se dar ao trabalho de trazer de lá, pra essa casa e fazer a farinha dentro da cidade.
Mas aquilo talvez fosse a visão de um governo que achava que era oportunidade de emprego, gerar emprego, naquela altura, dos anos 70.
Casa de farinha, portanto, era um trabalho que era aquilo que se via como vislumbre de profissão ou de atividade pra uma cidade que tinha muito pouca oportunidade de empregos.
Já quando as empresas começam a chegar, nós tivemos toda uma sorte de mudanças.
Seja um processo de desenraizamento da população que vivia nessas áreas aqui, que tiveram que ceder seus espaços pra que fosse construída toda essa estrutura que hoje existe aqui: casas, cidades e os locais pra implantação das empresas.
Houve um remanejamento da população.
Então, essa é uma modificação da vida tradicional de muita gente, que teve que se readequar em outros espaços.
E, por outro, a chegada de milhares de pessoas pra cá, de todos os lugares, que certamente não tinham sequer planos de chegar em Barcarena naquela altura e que vieram pra essa cidade, recomeçar ou construir uma vida.
Construir a vida daquilo que estava sendo previsto e, de repente, nem se perceberam, já estavam também envolvidos aqui nessa cidade, refazendo as suas próprias vidas.
Então, com a chegada da empresa, também veio um novo incremento comercial, Bancos, comércio, escolas.
Escolas que iam até um certo grau, começaram a se multiplicar, aumentando a oportunidade de estudo pra vários níveis e locais.
O que era estudar, por exemplo, só em Barcarena, no Cônego, de repente apareceu aqui o Eduardo Angelim, que é uma outra escola do estado; o Padre José Delgado, na Vila do Conde.
Depois, escolas em Barcarena mesmo, de outros níveis e tal.
Então, isso diversificou muito a oportunidade de estudo.
Aqui as escolas privadas, como era o Anglo Americano, depois, trazendo outros profissionais de educação e outros níveis de oportunidades.
Enfim, não há como pensar que Barcarena, entre 1980, rompe, divide um pouco esse nível de entendimento.
E é também uma fase da chegada do grande capitalismo local.
As pessoas, já, muito mais preocupadas com viver pensando no fora, o que é estudar e ter esse nível de entendimento.
A fábrica, hoje, precisa de mão de obra qualificada.
Essa é uma linguagem muito forte aqui.
Eu tenho que estudar agora, não porque eu preciso não parar de estudar, mas porque eu posso trabalhar numa empresa.
Então: “Eu tenho que preparar mão de obra pra essa finalidade” - dizem os empresários – “os moradores precisam estudar, porque senão não terão oportunidade de emprego”.
Então, esse é um novo discurso que a cidade começa a absorver, quando esse novo fenômeno econômico vem pra cidade, entende? Então, esse é um divisor de águas, sem dúvida.
P1 – E como é que você vê essa nova fase?
R1 – Olha, eu acho que não tem direito sem avesso, né? Eu acho que não há como pensar a economia do Estado, porque temos que compreender que a chegada do grande projeto em Barcarena não é uma política de Barcarena.
É uma política do governo brasileiro, para a dinâmica econômica da Amazônia.
E, por outro lado, de interesse econômico pro estado.
Então, quando Barcarena é inserida nesse projeto.
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quer dizer: Barcarena está dentro de uma geopolítica econômica que insere dentro desse projeto.
Quer dizer: poderia não ser aqui.
Poderia ser, por exemplo, como era previsto lá em Mosqueiro, mas como lá é um balneário, pra fazer o porto seria lá e resolveram trazer o porto pra cá, toda a atividade econômica que seria pra lá, veio pra cá e, com ela, vem toda a sorte de empreendimentos, mas também, o que nós tivemos? Como toda atividade econômica massiva, ela trouxe, num fluxo muito rápido, uma série de alterações de vida, sejam aquelas referentes a.
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por exemplo: de repente você tinha um assassinato em Barcarena a cada ano; de repente você teve, sei lá, dezenas de assassinatos, por conta de quê? Por conta de uma grande quantidade de pessoas que vinham pra cá e que trabalhavam; outras que não conseguiram emprego e que, por conta disso, acabaram se convidando pra espaço de violência e que a violência passou a ser uma rotina muito mais presente.
Seja violência do assassinato, seja aquela dor: o carro bateu, sofreu um acidente aqui e acolá.
Então, isso virou muito mais próximo, né? Era, também, um outro lado, né? Outras atividades que chegaram e impuseram pra população um outro ritmo de vida, que não era mais aquela da tradição, da quietude: “Ah, vou fazer mais roça, esperar ela grilar, produzir e eu trabalhar”.
Não: “Agora eu tenho que trabalhar, porque senão eu não tenho como comer”.
Então, isso é muito mais gritante.
Não tem mais fornecimento de farinha, eu tenho que comprar a farinha.
Então, eu tenho que produzir farinha, eu tenho que ter emprego.
Aí, de repente, aquela família que vivia da roça, não tem mais aquela atividade.
Vou ter que ter dinheiro, senão não como.
Então, eu penso que foi uma mudança de vida em vários setores.
Eu penso que, pra nós, foi uma coisa que a gente demorou a entender.
Acho que até hoje a gente ainda não entendeu muito bem, né? Por que, o que aconteceu? Também surgiram cidades apartadas.
A vila, hoje aberta, a gente está aqui, fazendo tudo isso aqui, mas pra nós, que morávamos na cidade tradicional, parece que era uma terra de estrangeiros, que não queriam se misturar com os nativos.
E, quer queira ou não, isso era muito diferente.
Era um modo de vida diferente.
Era um modo de vida exclusivo pra moradores estrangeiros e um modo de vida pra quem estava na localidade.
Eram escolas pra atender as populações que vinham pra viver aqui e tinha um outro modo de vida pra aqueles que viviam do lado de lá.
Quer dizer: se a Albras trouxe uma cidade com uma infraestrutura muito mais eficiente, ela restringiu também o uso pra determinado segmento, certo? E isso, quer queria ou não, criava um fosso de divergência social.
Hoje felizmente muito mais quebrada essa ideia, muito mais aberta e muito mais tentando-se desfazer esses horizontes.
Mas que, queira ou não, isso era muito presente, né? Eu me lembro disso com muita força.
Por exemplo: eu me lembro de duas vezes presenciar duas coisas que eram muito fortes pra quem era nativo.
Por exemplo, uma coisa era assim.
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me lembro de uma vez pegar um ônibus, indo pro Caripi e o ônibus passava por dentro da Vila das Cabanas e me lembro da gente parar debaixo de um poste e, de repente, o locutor que estava falando, dizer assim: “É, realmente” – isso eu estou falando de idos de 1991,1992, então muito ainda no início das coisas, ainda estavam muito diferente as coisas – “a vila está ficando cada vez mais violenta, realmente.
Tem violência e tal, mas é o pessoal de Barcarena que vem pra cá roubar, porque eles vêm de lá pra cá, roubam aqui e depois voltam pra lá, porque aqui não tinha”.
Quer dizer: os ladrões eram de lá.
Os ladrões não estavam aqui.
Aí eu dizia: “Poxa, será que, de fato, era.
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”.
Quer dizer: evidentemente que talvez esse fosse um olhar muito preconceituoso, essa relação entre moradores.
E outra coisa que foi, também, muito emblemática, que hoje eu olho com um filtro com essa fase de transitoriedade, era assim: eu me lembro que eu fui presidente de seção eleitoral em Barcarena, já jovem e eu estava dentro da prefeitura e tinha votação.
Hoje eu olho isso como matéria de entendimento sobre essa ideia do pertencer ao lugar.
Ou não pertencer, né? E eu me lembro que mesmo a vila, depois de cerca de dez anos, tinha muito morador, eu suponho, que não transferia os seus títulos dos locais onde eles tinham a sua vida.
Então, muita gente de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas, qualquer lugar, mantinham-se com a esperança que iam.
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aqui era um local de passagem.
Eu estava aqui, mas não ia ficar aqui.
Portanto, ele não se dispunha a transferir o seu título pra cá.
Ele continuava com o título da sua região.
E por que eu digo isso? Porque lá, na fila de votação, às vezes, era bem pequenina e a fila de justificativa de voto era enorme.
E todos eram funcionários das empresas, que iam lá justificar seu voto.
E eu acredito que isso durou por muito tempo.
Até o morador perceber, olhar pra trás: “Poxa, já passou dez anos, vinte anos e eu estou aqui.
Eu não vou sair mais daqui.
Não vou voltar mais pro meu lugar”.
Quer dizer: os pais morreram ou então deixou a família lá, já construiu aqui, já casou aqui, construiu patrimônio e olhar: “Não, agora eu sou morador de Barcarena”, entende? Então, eu acho que isso, pra mim, são nuances de uma cidade que demora a se entender como uma cidade.
Ela vive apartada por muito tempo, com essas diferenças, né, de não parecer ser, pertencer ao local.
Acho que hoje não.
Acho que as pessoas estão se entendendo como barcarenense, independente do seu nível migratório de tempos e, de alguma forma, já se apropriando desse lugar: “Não, eu pertenço a esse lugar.
Eu vivo aqui.
Eu produzo aqui.
Eu quero que esse lugar se entenda como parte da minha vida”.
Eu penso que não só o morador que chegou recentemente, como os que já estão aqui.
Então, um morador de lá frequenta aqui, participa do comércio daqui, vive e entende que a vila também é parte sua.
Até porque, muitos já moram aqui, entende? Já não é mais aquela coisa diferente: “Não, eu não vou pra vila, porque eu não sou morador de lá”.
Não: “Eu sou morador de lá, eu venho frequentar o clube, eu vou na pizzaria, no restaurante, na festa, no show.
Não, eu sou desse lugar”.
P1 – Guarda várias localidades diferentes ________ (01:20:10) maior?
R1 – Eu acho que hoje tem um esforço pra quebrar essas diferenças.
Acho que nós tivemos fases de tensão disso.
Só pra te situar nisso, é bem interessante notar: 1986, a Vila do Conde, onde está o porto, a Portobras, onde está toda a parte de escoamento da produção, que é uma parte muito importante, tentou se separar de Barcarena e criar um novo município pra lá.
Porque o morador do Conde se achava desprestigiado economicamente.
Apesar dele estar com o porto no seu território, ele dizia: “Barcarena não faz nada por nós.
Então, se a gente se separar, vamos ficar com o porto e com a riqueza dali”.
Então, inicia-se uma campanha pra separar o município de lá, faz um grande protesto, a cidade vira um choque de tentativa de separar e criar um novo município.
Isso aconteceu em 1986 e depois isso volta a acontecer em 1996.
Se não me engano, 1996 ou 1994, 1984, não lembro bem que data, mas houveram dois movimentos separatistas, porque Conde não se entendia como parte de Bacarena e estava insatisfeito com os benefícios que tinha lá e queria criar um novo município.
Quer dizer: isso era muita tensão.
As localidades estavam muito fechadas em si próprias.
A vila, em si, a Conde, em si e Barcarena, na sede, lá, também.
Só que as decisões políticas eram tomadas por Barcarena.
Na época eu me lembro que um prefeito chamado Laurival Campos Cunha inicia um movimento chamado Quem Ama Não Separa, que justamente dizia assim: “Se você ama Barcarena, não separa a cidade”, que era justamente pra mantê-la unida e, de fato, aconteceu, acabou que não se separaram, mantiveram-se e depois, como houveram leis nacionais que prorrogaram as emancipações municiais, garantiram-se, portanto, essa unidade territorial e até hoje está aí, não há movimento separatista.
Hoje cada vez mais.
E acho que os políticos também começaram a fazer política, mais, tentando atender as necessidades desse vasto território.
P1 - __________ (1:22:43)?
R1 – Olha, eu, hoje, acho o seguinte: Barcarena é uma cidade que, talvez, não haja possibilidade da gente pensá-la pequena.
Por conta do que nós temos aqui, Barcarena é uma cidade, sei lá, do capitalismo de ponta do país.
As empresas que estão aqui ditaram um ritmo.
Eu acho que nós não temos como pensá-la como uma cidade que vai estar sempre retrocedendo.
Talvez a gente sempre vai imaginá-la crescendo exponencialmente em termos populacionais e economicamente também.
Por conta dessa demanda de riquezas que escoam por Barcarena.
Então, hoje, eu não consigo olhar uma rua do mesmo jeito todo dia.
É muito difícil a gente pensar numa cidade como um lugar consolidado.
Nunca as construções estão quietas.
Eu sempre olho isso.
Eu olho uma casa, você passa e a vê esse ano, quando você passa, ela já está de uma forma diferente.
Ou seja: parece que nunca a gente termina de construir a cidade.
A cidade também se move, porque ela cresce em fisionomia, em extensão.
Não há um dia que a gente não veja um bairro que tenha crescido, maior; não haja uma nova construção, uma nova extensão de coisas, uma nova empresa chegando e uma nova demanda de moradores chegando de outros lugares, vindo pra cá.
Então, eu acho que isso tem sido uma rotina pra gente, desde os anos 80.
A gente nunca imaginou que Barcarena fosse ficar do tamanho que está, mas a gente consegue olhar: “Poxa, a cidade era até ali”.
Aí você vê a rua, já não está mais até ali, já está chegando em tal lugar.
Então, penso que essa é uma configuração que a cidade vai, sempre, ter.
É difícil a gente imaginar cidades estáticas.
Você vê, às vezes, tem áreas aqui da nossa região, do norte, que até tem desnível populacional.
Teve menos pessoas, cresceu, então cresceu muito pouco.
Barcarena não.
A cada censo nós temos um crescimento de percentuais significativos.
Isso pra falar em população.
Se a gente falar em alargamento territorial, é muito maior, né? Hoje eu acho que nós temos aí um prazo, talvez, de pouco mais que cinco ou dez anos, que não vai haver mais separação entre Barcarena, a sede lá e Barcarena, aqui.
Então, nós vamos ter uma extensão territorial contínua.
Hoje a gente ainda consegue ir daqui pra lá e passar fase de mata, que era muito mais frequente.
A gente entrava numa estrada, só mato de um lado e outro.
Hoje, cada vez mais a gente vê mais casas ligando esses lugares.
Então, eu acho que o futuro de Barcarena é um pouco isso: é uma cidade que vai crescer, vai se urbanizar cada vez mais, mas sempre trazendo essas dificuldades, ainda, de compreender.
Porque a velocidade do crescimento, às vezes, não demanda à igual equidade de tudo isso.
Tem muitos bairros periféricos, onde ainda há situação desassistida.
Nós temos clareira, dentro daqui, onde tem um nível de pauperização muito grande.
Que são as pessoas que reivindicam as áreas quilombolas hoje, que são pessoas remanescentes dos antigos habitantes tradicionais e que vivem em condições precárias ainda e que é difícil de mantê-los nesse oásis de possibilidade, próximo da empresa, que se esparrama e as empresas crescem.
Então, não dá pra mantê-los ali.
Esse é um problema a ser resolvido, urbanamente.
Quer dizer: como manter pessoas que vivem da condição tradicional, numa cidade que se urbaniza e cresce economicamente, com empresas que crescem e demandam terreno? Então, esse é um problema a ser pensado, porque ela vai ser engolida.
Não tem como.
Na minha opinião, não há como manter essas populações muito próximas desses lugares, do ponto de vista da segurança ambiental, enfim.
PAUSA
R1 – Isso é ponto de debate muito forte.
E tem muitas vozes nesse debate aí.
Porque eu tive uma fala conciliatória, mas ela é bem aguda, né?
P1 – ___________ (01:27:33).
R1 – Sim, vão ter outras vozes que vão.
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eu sou muito mais, aqui, mediador.
(risos) Mas tem vozes de um lado e de outro, né?
P1 – Na verdade, agora, é só uma última pergunta, mesmo, que é como foi, pra você, contar a sua história?
R1 – Pra mim foi.
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aqui, na minha cabeça, me passavam muitas histórias: de infância, passava um pouco da minha vida próximo desse momento aqui com vocês, mas no fundo me veem muitas sensações de emoção porque, pra cada uma dessas lembranças, me vem fases da minha vida, que eu achava que merecem ser conhecidas, mas são muito particulares e eu acho que são muito boas.
Às vezes eu olho com uma certa tristeza, quando eu me lembro da dificuldade de ver, por exemplo, quem não conseguiu estudar, como eu tive oportunidade ou situação de precariedade, de ver a cidade com algum sofrimento e pessoas também e que bom que a gente consegue olhar isso com uma certa lição de vida, né? Por quê? Porque, embora tudo isso tenha passado na nossa vida: lavar a roupa na beira do rio, passar noites de escuro, às vezes saber, por exemplo: meu pai é uma pessoa que lutou muito e minha mãe, a gente nunca teve essa ideia de dizer, eu não posso contar que nós passamos fome, nunca tivemos isso.
Eles sempre tiveram muito capricho de ter, sempre, alimento, pra gente comer.
E sempre liberdade pra gente estudar.
PAUSA
R1 – Estava falando do meu pai.
Então, meu pai é uma pessoa que sempre lutou muito pra gente poder estudar e sempre ele tinha uma meta que eu acho que foi muito ilustrativa, que eu acho que a grande ambição dele era almoço, comer.
Não exageradamente.
Assim: ele nunca pensou em fazer fortuna, guardando dinheiro pra comprar objetos, qualquer coisa que fosse de função cumulativa ou capitalista.
A ideia dele, quando ele trabalhava e que ele se sentia que ele estava com alguma recompensa maior, ele comprava comida diversificada pra gente.
Então isso, pra nós, é muito ilustrativo, de uma pessoa que não tinha ambição cumulativa, mas estava muito preocupado com a nossa satisfação.
E isso era, pra nós, muito nobre da parte dele, que era essa ideia de poder reservar pra gente estar bem, satisfeito com o que fazia.
A mamãe, talvez, fosse o contraponto: aquela que queria capitalizar, guardar, que estava pensando lá na frente.
Eu acho que talvez seja esse contraponto que se combinava.
Então, quando eu falo isso pra vocês, me vem à mente essas ideias, de como eles foram muito importantes nesse ponto de equilíbrio, pra nós, nessa história de vida.
Eu digo que eu nunca teria chegado a ser doutor e estudar ou ter formação também, se não tivesse esse chão e essas nuances da vida.
Porque, pra mim, eu acho que estudar sempre foi um exercício corriqueiro.
Estudar, na nossa casa, é uma diversão que todo mundo leva a efeito, sem sacrifício.
E eu fiquei muito feliz, porque ele faleceu ano passado, meu pai.
Aliás, esse ano.
Ele faleceu na véspera dele completar 97 anos.
E muito do que eu conto de história, ele era meu interlocutor.
Meu pai era uma figura que tinha uma memória muito incrível, ele era capaz de recordar de coisas, de pessoas, de atos.
Eu acho que, depois que ele se aposentou e não trabalhou mais, a gente sempre tinha muito diálogo e eu me alimentava de história com ele.
Sempre que tinha algum nome, algum lugar, alguma coisa, ele me contava e, quando ele ficou doente, enfim, eu ficava: “Poxa, vou perder meu interlocutor” e eu fiquei muito feliz porque, quando eu estava estudando, muito do que fazia, eu acho que ele acabou levando, também, essa memória, consigo, porque ele viu tudo que eu pude fazer, ele acabou também colhendo um pouco disso.
Não só ele, como minha mãe.
E eles ficaram felizes de saber que a gente está estudando, estamos chegando em algum lugar.
E eu me lembro, pra mostrar como isso tem a ver com memória e tal, eu peguei e resolvi publicar meu livro e eu queria fazer, eu não tinha isso como meta, mas depois que eu estudei tanto e, enfim, a gente sofre muito pra produzir uma tese de doutorado e de repente você fica assim: “Vai ficar na gaveta”, eu digo: “Não.
Isso vai ter que sair”.
Então, eu me lembro que eu peguei e fui na Câmara Municipal.
Isso é um relato afetivo muito bom.
Porque eu sabia que lá em casa ele ligava o rádio pra ouvir o que a Câmara.
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ele já não saía de casa, ele ficou doente, com um ferimento no pé, que não cicatrizava e tal, então eu via sempre que ele estava lá.
Daí eu peguei e falei para os vereadores assim: “Olha, eu estou falando não somente pensando em vocês, mas no meu pai, porque eu sei que ele, lá, está torcendo muito por mim” e por tudo aquilo que eu fazia porque, pra mim, era um lazer, mas pra ele era uma gratidão, saber que aquilo que ele tinha feito e depositado em nós, estava surtindo efeito.
Não efeito monetário, talvez.
Mas sabendo que a gente deu um destino pra aquilo.
E eu recordo quando eu cheguei lá em casa e ele disse assim: “Falou de mim na Câmara, né?” e riu e tal.
Então, cara, não tinha pagamento maior pra mim.
Então, quando eu senti que aquilo que eu estava fazendo serviu pra minha família, pros meus pais, eu acho que foi muito legal.
Mais do que uma satisfação financeira, a satisfação que eu sabia que tinha um valor pras pessoas que eu tinha carinho.
E aquilo servia pra alguma coisa.
Então, pra mim, isso foi muito bacana, saber que as histórias que eu fiz foram boas.
São coisas que ajudam as pessoas a se entenderem, a aprenderem e eu acho que isso, pra mim, é gratificante.
Mais do que uma recompensa financeira, uma recompensa de estar deixando um legado pras pessoas.
Obrigado!
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