Me lembro de estar assistindo Sister Kenny na Sessão da Tarde, um filme que mostrava a vida de uma enfermeira que tratou de crianças afetadas pelo surto de poliomielite nos Estados Unidos. Lembro da luta que ela teve com os médicos detentores de toda a verdade! Fiquei muito impressionada com a f...Continuar leitura
Me lembro de estar assistindo Sister Kenny na Sessão da Tarde, um filme que mostrava
a vida de uma enfermeira que tratou de crianças afetadas pelo surto de poliomielite nos Estados Unidos. Lembro da luta que ela teve com os médicos detentores de toda a verdade! Fiquei muito impressionada com a força dessa enfermeira. Eu não vejo uma relação direta do filme com a minha carreira, mas é uma história que eu consigo associar. Ser fisiatra pra mim era uma coisa de alma, algo que eu sempre soube que queria ser. Só não sabia que chamava Fisiatria. Era uma certeza tão grande que as pessoas falam: “Nossa, mas você tem deficiente físico na família?” “Não, não tenho” “Mas então de onde veio essa certeza?”, e pensando, pensando, pensando, a única coisa que eu lembro foi desse filme, dessa enfermeira que, realmente, acaba tratando os pacientes com métodos físicos - o que a Fisiatria faz. Ela tratava com calor as crianças com poliomielite aguda contra a vontade dos médicos que queriam a imobilização da criança.
Eu sempre me interessei por espasticidade, que é um aumento do tônus da musculatura, que faz o músculo ficar muito rígido - o que dificulta a mobilidade. E os tratamentos que nós tínhamos na época não eram satisfatórios. Aiás, eram muito insatisfatórios. Comecei ler, pesquisar e foi quando saíram os primeiros trabalhos nos Estados Unidos de aplicação de toxina botulínica na perna. Comecei entrar em contato com a empresa farmacêutica nos Estados Unidos, a Allergan, que produzia a toxina, pra saber melhor o quê que era essa toxina. Até que a Allergan Brasil entrou em contato comigo. Foi uma coincidência das estrelas.
Fui para os Estados Unidos fazer um curso de aplicação de toxina botulínica. Hoje não pode mais, mas naquela época podia esterilizar agulha. Então eles aplicavam a toxina num paciente e já descartava a agulha. Falei para o meu professor: “Eu posso catar do lixo?”, o professor olhou pra mim com aquela cara! Eu falei: “Eu vou lavar e esterilizar. No Brasil não tem essas agulhas e eu quero aplicar nos meus pacientes!” Ele falou: “Você quer pegar, pega!” Catei as agulhas, enfiei na mala e trouxe para o Brasil. Aqui, esterilizei e comecei a
aplicar toxina botulínica nos pacientes.
Eu era a única do país que aplicava. Tive menos problema com os pacientes do que com os próprios colegas. Muito menos. Mas os resultados falavam por si, né? Resultados realmente maravilhosos: criança que começa a andar, pacientes que começam a mexer a mão, coisas que parecem milagre. Juntei os dados, porque eu sempre tive muito cuidado com a colheita de dados com os pacientes, e queria divulgar na Escola Paulista. Mas, lá, vetaram e não queriam que eu divulgasse.
Isso foi em 1995. Eu era presidente da Sociedade Paulista e, assim como eles me chamavam de revoltada, nariz empinado, enfim, tudo o que, na verdade, era o meu jeito independente, divulguei pela Sociedade. Dei uma entrevista para um jornalista que fez uma matéria muito correta na Folha de São Paulo. Quando saiu no jornal, a Globo viu aquilo e ligou pra Escola Paulista furiosa. “Como que a Escola Paulista deu um furo de reportagem para a Folha de São Paulo e não para a gente?” Conseguiram com que a Globo fizesse uma entrevista comigo. Eu tomei o máximo de cuidado para não ter sensacionalismo. À noite, na hora do Jornal Nacional, eu estava em casa, sentada na minha cama quando o Sérgio Chapelin fala a seguinte chamada: “Chega ao Brasil droga revolucionária que faz criança paralítica voltar a andar!” Gelei, fiquei paralisada. E entra uma reportagem que não tinha nada a ver. Com a reportagem ainda no ar, toca o telefone da minha casa. Se identifica como uma mãe de Santa Catarina: “Onde a senhora está que eu estou levando o meu filho agora! Quando apareceu o seu nome na reportagem, liguei para a telefonista em São Paulo, que me deu o seu número. Eu queria ser a primeira a ligar pra senhora!” Naquela noite, a Central Globo de Jornalismo de São Paulo recebeu quatro mil telefonemas durante a noite. Os telefones da Escola Paulista ficaram congestionados por mais de 15 dias. Em casa, meu telefone tocava de manhã, de tarde, de noite, de madrugada. A gente trocava rolo de fax como rolo de delegacia.
Até que ligaram do Conselho e Ética da CRM: “A Escola Paulista vai entrar com um recurso contra a Matilde.” Fui para a Rede Globo na manhã seguinte. “Daqui não saio, daqui ninguém me tira, vocês vão ter que me dar argumento. Eu nunca falei isso. Em nenhum momento. Vou perder o meu CRM!” Foi aquela loucura, ninguém queria assumir a frase sensacionalista.
O Jornal Nacional, na época, era editado no Rio de Janeiro. E já eram seis horas da tarde. Até que o chefe da Rede Globo de São Paulo falou: “Olha, doutora, não tem jeito. O Rio de Janeiro não quer assumir.” “Mas eu vou perder o meu CRM”, ele falou: “Olha, só tem um jeito: falar direto com o Doutor Roberto Marinho. Mas se eu fizer isso, vou passar por cima da minha chefia e eu vou ter que colocar o meu cargo em disponibilidade”. Ele chamou todo mundo numa sala: porteiro, faxineira, todo mundo! Porque todos estavam vivenciando aquela loucura com os telefonemas que não paravam. “A gente que fez a reportagem aqui sabe que ela não tem culpa. A doutora vai perder o CRM. Quem vem comigo?” Sabe Sociedade dos Poetas Mortos? Eu me embasbaco até hoje quando eu lembro. Começou a levantar um, depois o outro, o outro... Eu já não chorava mais: soluçava. Se eu me emociono hoje, imagina na hora. Ele pegou o telefone, colocou no viva voz e ligou para o Roberto Marinho, que falou: “A culpa foi nossa? Então você faça o que a doutora exigir!” Meu pedido: “Quero uma declaração de vocês dizendo que eu não tenho nada a ver com isso. Quero o original da fita com a entrevista para mostrar que eu nunca falei isso e quero que vocês se retratem hoje no Jornal Nacional.” Ele: “Sim senhora”.
Eu peguei a carta, peguei a fita, levei direto para o CRM. Isso aconteceu em abril. Até dezembro daquele ano eu atendia no consultório das sete da manhã à uma da manhã, para dar conta de atender todas as pessoas que me procuraram, telefonaram ou passaram fax, todas! Sem exceção. Eu liguei pra todo mundo dando uma resposta.
Eu fiz a minha parte, eu tenho a minha consciência tranquila que tentei limpar a bobagem da melhor maneira possível. Mas fui muito criticada, as primeiras vezes que eu apresentei sobre toxina botulínica nos congressos era aquela discussão danada. Hoje em dia ninguém mais tem dúvidas se toxina botulínica funciona ou não para espasticidade. O tempo mostrou que eu tinha razão, mas foi muito difícil. O próprio tipo de relação que nós temos com o paciente e com a família.
A palavra-chave de sucesso em ser um médico bem sucedido é você ser coerente, sempre. Ser estudioso, ser dedicado e ter uma linha de coerência, porque as pessoas podem gostar ou não gostar de você. Mas ninguém pode falar que você é incoerente. Você tem que ser honesto, principalmente, com você mesmo. Porque o maior engodo é quando você se auto-engana. Eu acho que você tem que toda noite deitar e falar: “O que eu produzi hoje? Qual foi o meu rastro?”, e se o seu dia não foi produtivo o suficiente, você que se corrija no dia seguinte para fazer bem feito aquilo que você se propõe a fazer.
A crueldade na Medicina é inaceitável. Eu já perguntei para um paciente: “Como foi eu falar pra você que você nunca mais ia andar?” “Doutora, foi muito difícil, mas você foi a única pessoa que nunca mentiu pra mim”. Eu fui a única pessoa que nunca mentiu pra ele naquela situação tão difícil. E ele me agradecia por isso. Então, são coisas impagáveis. Do mesmo jeito que enche o olho d’água naquela situação super estressante, enche o olho de água quando eu lembro dessa conversa com esse paciente. Acho que eu não seria outra coisa na vida. Eu nasci para ser médica e nasci para ser fisiatra. Sou aquilo que eu queria ser. Inclusive, também sou mãe.
Eu sempre fui muito crítica, muito perfeccionista, então achava que eu não seria uma boa mãe. E tinha a minha carreira, uma coisa muito importante pra mim. Só que chegou uma hora que o relógio biológico bateu e, naquela época, batia mais cedo: o deadline era aos 30 anos! Hoje em dia, mulheres com 40 anos ainda estão pensando em engravidar, né? Então a minha gravidez do ponto de vista emocional foi muito turbulenta, eu tinha muitas dúvidas se eu seria competente na maternidade e tudo mais. Em relação a minha filha, apesar dela muitas vezes não reconhecer ou gostar disto, ela é em muito aspectos muito parecida comigo e é por isso que a gente se atrita também, muito - assim como foi com minha mãe que hoje eu tanto admiro. Eu acho que minha filha é muito inteligente e responsável. Ela é uma grande mulher!Recolher