Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Tarcísia Mônica Mazon Granucci
Entrevistada por Tereza Ruiz
Mogi Mirim 12/11/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_27
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
P/1 – Primeiro, Tarcísia, fala pra gente o seu nome completo, data e o local de nascimento.
R – Tarcísia Mônica Mazon Granucci. Eu nasci dia 11 de janeiro de 1960. E?
P/1 – Local.
R – Mogi Mirim.
P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe, se você souber também data e local de nascimento.
R – Eugênio Mazon. Não sei a data. Sofia Idalina Mantovani Mazon. Também não sei a data.
P/1 – E o local onde eles nasceram você sabe?
R – Nasceram em Mogi Mirim.
P/1 – O que os seus pais faziam profissionalmente, Tarcísia?
R – Meu pai era filho de agricultor e foi agricultor por muito tempo. Depois se transformou num empresário de empresa de ônibus. Ele entrou no ramo dos transportes. A história do meu pai é muito querida, muito bacana porque ele era um agricultor por um bom tempo e aí ele mudou pra uma cidade próxima aqui que é Conchal, uma cidadezinha pequena e a prefeitura de Conchal precisava trazer os estudantes de Conchal pra Mogi Mirim, porque a partir da quinta série só existia escola aqui em Mogi Mirim pra esses alunos. Então ele sempre muito empreendedor e visionário, ele falou: “Poxa vida, tem uma oportunidade aí de eu sair do campo, do serviço mais pesado”. Ele comprou uma Perua Opel de madeira, na época era uma perua, você imagina, isso foi em 54, 1954, e ele começou a transportar essas crianças de Conchal pra Mogi Mirim. E aí iniciou então a empresa que hoje é Viação Santa Cruz, o Grupo Santa Cruz que é muito grande, é uma empresa hoje muito forte no setor, se não me engano é a 14ª no país, mas começou assim, essa história do meu pai que é... E o meu pai sempre muito preocupado também com a educação, com as crianças, porque ele não teve possibilidade de frequentar uma escola, de ir pra escola. Pra você ter uma ideia eu chegava em casa da escola, eu era pequena, sete, oito anos, ele falava: “Filha, o que você aprendeu hoje? Conta”. E eu me lembro de eu ensinando coisas assim que eu achava bacana, oxítona, paroxítona e ele superinteressado até pra me valorizar enquanto estudante. Era um amor de pessoa. Meu pai viveu até os 70 anos. Minha mãe também morou a vida toda no sítio, na roça, né? Casou-se com o meu pai, eles tiveram 14 filhos, 11 são vivos, eu sou a 11ª. Eu sou a caçula de uma turma aí. E a preocupação do meu pai e da minha mãe sempre foi com os outros de ajudar, colocou a gente pra dar aula de catecismo muito cedo pros vizinhos, pras crianças dos vizinhos. Meu pai também e minha mãe sempre muito preocupados, aqui em Mogi Mirim tem o Educandário. Na época o Educandário aqui era um orfanato e meu pai uma vez por ano pegava o ônibus, que aí ele já tava numa condição um pouquinho melhor, e levava as crianças pra praia, porque ele queria que as crianças conhecessem o mar. Eu imagino que seja uma coisa que tenha faltado na vida dele de infância, então ele e a minha mãe sempre muito preocupados em fazer trabalho social, em colocar nós filhos pra trabalharmos com isso também. Então isso foi sempre uma constante em casa.
P/1 – E ele trabalhava, você falou que ele trabalhou durante muito tempo como agricultor, né?
R – Sim.
P/1 – Era uma propriedade dele mesmo, da sua família? Ou ele trabalhava na propriedade...
R – Num primeiro momento dele e dos irmãos, enfim, dos pais. E depois ele comprou o próprio sítio em Conchal, que foi o primeiro sitiozinho que ele comprou e começou a plantar. Mas não ficou tanto tempo com o sítio porque aí apareceu essa possibilidade de iniciar o transporte pra alunos. Enfim, eu falo que de certa forma não tem por que eu não estar fazendo o que eu faço hoje, porque isso tava plantado há muito tempo, né? Era uma postura muito do meu pai e da minha mãe essa preocupação com o bem comum, com o social, com poder fazer a diferença no local que você está. Eu tenho um orgulho imenso e um amor imenso. Hoje eles não estão vivos, mas eu tenho um orgulho e uma honra mesmo de ser filha do meu pai e da minha mãe.
P/1 – Você cresceu nesse sítio? Quando você nasceu, eles ainda viviam no sítio?
R – Não. Segundo os meus irmãos mais velhos eu nasci em berço de outro. Eles ainda lutavam muito com a vida, né? Eu não vivi. A gente divide lá em casa os pés vermelhos, que viviam com o pé na roça e os mais novos, porque a gente já tava numa outra fase, já tínhamos voltados pra morar em Mogi Mirim. Eu nasci aqui em Mogi Mirim. E alguns dos mais velhos nasceram em Conchal, então tem uma divisão. Nessa época quando eu nasci ele já era empresário de ônibus. Eu nasci em 1960, a empresa começou em 54, então tem um tempinho aí. Aí a vida já estava um pouquinho melhor.
P/1 – Você sabe qual que é a origem da sua família, Tarcísia?
R – É italiana. Meu pai os avós vieram na primeira imigração, de navio, foi a primeira imigração. E minha mãe também. Eles nasceram no Brasil, mas os avós são italianos.
P/1 – E você sabe qual que é a história do teu nome? Quem que escolheu? Por que é que você se chama Tarcísia?
R – Então, o hospital aqui em Mogi Mirim era administrado por freiras, por irmãs, e elas faziam os partos. A irmã que atendeu minha mãe no meu nascimento se chamava Tarcísia e minha mãe acabou escolhendo o nome dela pra me dar.
P/1 – Uma homenagem assim.
R – Em homenagem. Que ela disse que era uma pessoa supercarinhosa, amorosa, então foi isso.
P/1 – Conta um pouco como é que era essa casa de infância, a casa em que você passou a infância e o bairro, como é que era Mogi Mirim naquela época também.
R – Então, é uma quadra daqui. Porque aqui na época quando eu era criança não era centro isso aqui, né? A cidade de Mogi Mirim era pequena, mas a gente sempre morou ali, eu sempre morei muito próximo. A gente mudou de casa, mas era no mesmo terreno. Uma casa de 11 filhos é uma casa que não tem horário pra nada e meus pais sempre muito abertos, então a gente podia trazer os amigos pra almoçar quando quisessem. Então mesa sempre cheia de gente, a comida sempre dava, minha mãe dizia que fazia milagre porque sempre tinha lugar pras pessoas virem, os amigos e o pessoal quando ia pra baile vinha todo mundo dormir em casa também. Era muito amorosa, uma família desorganizada, era sempre muita bagunça, minha mãe sempre muito brava e tudo, mas era difícil conseguir ter um ambiente organizado com tantos filhos pequenos. Mas era sempre muito gostoso, os irmãos sempre amorosos, a minha mãe tinha uma preocupação de levar todos nós pra missa todo domingo. A gente sempre chegava atrasado porque até conseguir arrumar todo mundo e ainda além de chegar atrasado era um batalhão entrando na igreja, né? Mas ela sempre nos levou pra missa, sempre, a vida toda, ela e meu pai. Deram esse exemplo e cobravam também. A vida não tá muito boa? Você tem ido a missa? Era essa a pergunta. Então era uma vida muito gostosa, muito carinhosa, muito alegre, tinha muita leveza em casa, sabe? A gente tava sempre rindo, sempre... Encarava a vida com leveza. Os problemas sempre existem, mas isso vai dar certo, isso a gente vai resolver e realmente Deus sempre nos abençoou muito, abençoou muito a minha família.
P/1 – Era uma casa grande?
R – Grande, mas assim, nessa época quando eu nasci o dinheiro ainda não era tão constante, então eram cinco homens e seis mulheres. Então as seis mulheres dividiam um quarto. Então era muita mulher, um quarto gigante, que na época parecia gigante. Os meninos ainda tinham um quarto pra três e um quarto pra dois, e o quarto da minha mãe e do meu pai. Eu tive uma bronquite na minha infância, isso pra mim foi muito forte, e eu tinha falta de ar, meu Deus, a família toda muito preocupada, muito cuidadosa comigo. Foi muito gostoso. Foi muito bom.
P/1 – Mas essa bronquite era uma coisa crônica assim que você tinha desde pequena, é isso?
R – É. Eu sarei.
P/1 – Por que te marcou?
R – Eu nem sei se era bronquite mesmo. Acho que era porque aquela época também médico era sempre muito complicado.
P/1 – Por que você acha que te marcou essa coisa da bronquite?
R – Por que eu acho que me marcou? Acho que porque eu acordava à noite, era levada pro hospital à noite com falta de ar. Isso foi nos meus seis anos, por aí. Então é uma coisa que eu me lembro do sufoco.
P/1 – E passou?
R – Sarei. Nem lembro mais. Passou.
P/1 – E as brincadeiras de infância, Tarcísia? Do que você brincava? Com quem você brincava? Quais eram as suas brincadeiras favoritas?
R – Olha, tinha uma senhora que trabalhava em casa que era a nossa empregada que era uma segunda mãe pra mim, que é a Neusa. Ela tinha quatro meninas e a segunda era da minha idade. Então eu tinha irmãs, mais irmãs ainda. Por eu ser caçula e aí minha irmã acima de mim ter falecido logo quando nasceu eu fiquei um pouquinho distante do seguinte que é o meu irmão, que é o Francisco, que dos homens é o mais novo. Menino com menina quando é pequeno não é companheiro, ele mais me irritava do que a gente brincava, hoje a gente se ama muito. Então eu tinha essas quatro amigas que eram filhas da moça que trabalhava em casa, da senhora Neusa, e era muito gostoso. Não lembro nenhuma brincadeira em particular, mas assim, éramos muito companheiras de fazer comidinha, brincar de casinha, de bonecas. Depois numa idade de brincar na rua, aquele momento que você brinca um pouco a hora que volta da escola que a mãe deixa brincar um tempo na rua de queimada, de mamãe da rua, pra depois você chamar pra tomar banho, jantar. Enfim, também tive essa fase que foi muito gostosa. Mas é isso.
P/1 – E da escola quais que são as primeiras lembranças que você tem?
R – De abandono. Uma dificuldade muito grande. Eu vivia descalça então eu tinha uma dificuldade enorme de ir de meia pra escola. Era uma coisa que me irritava demais porque fazia ruguinha no sapato e aquilo... Então eu tive muita dificuldade de me adaptar no começo na escola. Foi difícil pra mim. Escola pra mim sempre foi um problema. Nunca fui uma boa aluna, sabe? Parecia que a escola não entendia o que eu... Eu me sentia um ser que não era dali. Escola pra mim foi bem complicado. Eu fui pro Colégio Imaculada, que é uma escola muito boa aqui em Mogi, aos sete anos, pra primeira série. Lógico, algumas coisas eram boas, tinha amigas queridas e tudo, mas sempre com nota ruim e com muita dificuldade na escola. Pouco adaptada à escola.
P/1 – Teve algum professor marcante da sua fase assim de ensino básico?
R – Professores... Tinha uma freira que dava aula de religião que era muito querida e ela cantava muito. A gente cantava músicas de igreja e tudo. Era bacana. Era gostoso. Mas escola nunca foi o meu forte, não.
P/1 – Você lembra quando você era criança o que você queria ser quando crescesse? Assim, a primeira vez que você pensou em alguma coisa.
R – Outro dia achei uma redação, era aeromoça. Eu acabei lendo a redação e... E modelo. Eu li esses dias. Era isso.
P/1 – Tem relação, né? Porque as aeromoças eram mulheres bonitas assim, tinham que ser mulheres bonitas. Você lembra por que você teve essa ideia assim? A primeira vez qual que era a referência pra pensar em ser aeromoça, por exemplo.
R – Aeromoça por viajar, que eu acho que é uma coisa que eu amo até hoje. Gosto muito de viajar. E modelo acho que essa coisa de menina, né? De ser meio Barbie, um pouco isso.
P/1 – E nessa fase de infância assim, Tarcísia, você se lembra de alguma história, um episódio que tenha te marcado? Essas coisas que ficam na lembrança assim.
R – Eu uma vez com uma amiga a gente economizou um ano todo, isso foi bacana, e a gente colocava numa latinha esse dinheiro e tinha um lugar que a gente enterrava isso no quintal porque no final do ano a gente olhou, contou esse dinheiro, fomos numa loja que vendia cobertores e aí a gente comprou. Isso eu acho que eu devia ter uns nove anos e aí deu pra comprar, sei lá, três, quatro cobertores, eu não lembro exatamente, desses cobertores bem baratinhos pra gente dar pras pessoas. Isso é uma coisa que me marcou assim na infância.
P/1 – E vocês doaram?
R – Doamos. Sim.
P/1 – Onde vocês foram doar os cobertores?
R – Eu não lembro exatamente disso, mas nessa época tinha muita gente que precisava, né? O consumo era muito diferente de hoje, mas eram famílias que precisavam. A gente acho que foi num bairro e doou. Eu não tenho tanta memória das coisas assim, dos detalhes. Eu tenho uma maneira de entender as coisas um pouco mais generalista e os detalhes acabam passando. Uma coisa da minha infância mesmo que eu lembro que uma vez a mamãe nessa correria de ir pra missa e levar todo mundo, chegou na igreja a hora que ela me colocou no colo ela falou: “Cisa, você está sem calcinha”. Não se lembraram de colocar, que eram muitos filhos, né? Muita correria. Que mais? Essa coisa da gente dar aula de catecismo sem mesmo saber bem o que a gente estava fazendo, mas esse processo mesmo de viver isso.
P/1 – Como é que foi isso? Onde que vocês davam aula? Qual é a sua lembrança dessa época, desse momento?
R – Isso pra mim é mais claro. Era no quintal lá de casa, eu ia nos vizinhos e falava: “Vocês querem ter aula de catecismo? Eu vou dar aula de catecismo. Depois vai ter um lanchinho, vai ter uma coisa”. E aí juntavam lá cinco, seis, sete crianças e aí eu ensinava a rezar Ave Maria, Pai Nosso, enfim. Era mais uma brincadeira do que propriamente uma aula séria porque eu também na época tinha 11 anos, sei lá, 12 anos, era outra criança com várias crianças. Mas eu entendo que, hoje olhando pra isso vejo que minha mãe queria que a gente vivesse essa experiência de servir, servir o outro e poder dar o pouquinho que a gente tem, dividir com o outro um pouquinho que a gente tem, do que a gente sabe.
P/1 – Você se lembra da sua primeira comunhão?
R – Não.
P/1 – Deu aula de catecismo, mas se esqueceu a primeira comunhão.
R – Que coisa. E não tenho nem foto disso. Que coisa, né?
P/1 – E você fez todo o ensino básico na mesma escola? Nessa escola...
R – Sempre no Colégio Imaculada. Eu fiz o colegial no Monsenhor Nora, que é uma escola pública, que o Colégio Imaculada na época ia só até a oitava série e era de freiras, era tudo certinho, direitinho. E aí quando a gente ia pra escola pública aí a gente podia ter um pouco mais de liberdade e tal.
P/1 – Fez até a oitava então.
R – Isso.
P/1 – E você lembra se na transição da infância pra adolescência, isso ainda no Imaculada, o que mudou na sua vida em termos de passeios, de amigos, de interesses? Como é que foi assim essa mudança da infância pra adolescência?
R – Então, eu acho que a escola pública é cada um por si, é bem mais solto. Então eu comecei a fumar, coisa que eu não fazia, a gente saía mais, já estava mais velho também, a namorar. Era mais gostoso, acho que era uma fase de mais liberdade também, de poder viver um pouco mais.
P/1 – E você saía pra onde? O que você fazia pra se divertir?
R – Mogi Mirim na época tinha um clube que é Grêmio Mogimiriano. Depois apareceu outro que era o clube, que eles ficavam um pra cima da praça e o outro pro lado debaixo da praça. Aí a gente ia a um, se não tava muito bom ou o rapaz que a gente tava paquerando não tava naquele a gente descia, atravessava a praça, entrava no debaixo. E a gente meio um footing também, sabe? Desse tempo que ia e voltava. Gostava muito de dançar, muito. Fiz balé, dos nove aos 14 anos eu fiz balé, tinha uma bailarina que veio pra Mogi Mirim, ela vinha de fora pra dar aula, a Gisleine, um amor. E aí tive várias amigas que faziam balé com a gente, comigo. Uma experiência boa, cheguei a dançar de ponta um pouquinho, mas aí acabei também saindo, não foi por aí.
P/1 – E esses bailes nos clubes como é que eram? O que tocava? Como é que vocês iam vestidos? Como é que eram? Conta um pouquinho pra gente.
R – Eu participei do baile de debutante lá em Mogi Mirim. Naquela época também as meninas debutavam e tinha essa coisa de ir de vestido branco e tudo. Foi bacana, participei do baile da rainha da cidade também, fui candidata e ganhei de Miss Alegoria na época.
P/1 – Como é que era esse baile de rainha da cidade?
R – As empresas, cada empresa apoiava uma candidata, uma menina, daí tinha o traje típico e o traje de gala e tinha que dançar, fazer a dança típica. Foi bacana. E os outros bailes eram bailes mais tradicionais assim. A gente chamava de brincadeira dançante que acabava um pouco mais cedo, não era um baile que ia até as quatro ou às três da manhã. Era muito gostoso. Muito gostoso.
P/1 – E você lembra assim das músicas, das roupas, da dança?
R – Eu peguei a fase da Rita Lee, na minha adolescência, que era muito bom. A Rita Lee estourou essa época, veio pra Mogi Mirim fazer um show, superirreverente. Não pode entrar todo mundo pro show dela e ela o tempo todo ela falava com quem estava lá fora no clube, vai ter uma invasão aqui porque ela foi bem polêmica assim na maneira de conduzir e tudo. Isso foi marcante assim, pra uma cidade do interior pequenininha ter um espetáculo desses foi bacana. Eu sempre gostei de Milton Nascimento assim, tenho uma paixão. Na minha adolescência não era muito comum meninas da minha idade que gostassem desse tipo de música. Acho que sempre fui meio introspectiva também na minha adolescência. Mais triste do que muito eufórica e tal. Gostava de dançar, gostava de passear, mas era uma menina muito tímida também, sabe? Então tinha uma paixão por Milton, Ivan Lins, Belchior, pra mim foi muito forte.
P/1 – Tem uma canção em especial assim dessa fase que tenha te marcado, que você gostasse especialmente?
R – Não me ocorre.
P/1 – Não lembra agora.
R – Se eu me lembrar de alguma coisa eu te falo. Agora não lembro.
P/1 – Tá bom. Tá certo. Então na adolescência de diversão eram mais esses bailes, era isso?
R – Isso. Vida de interior é um pouco isso, né? Você vai pra escola a semana toda e aí chega no final de semana você quer ir pra brincadeira dançante, você quer encontrar todo mundo. Eu fiz parte... A gente vai lembrando, né? Fiz parte do Interact que é um grupo de jovens que se organizam pelo Rotary Club. O Rotary é dos mais velhos e aí tem esse clube, é um clube de serviço também: “Dá de si antes de pensar em si”. Era o lema do Interact. E aí era muito gostoso, essa fase nesse trabalho era muito bom, que eu acho que foi dos meus 14 aos 18, eu fui tesoureira, eu fui secretária, a gente aprendia a se organizar, planejar, eventos. Então a gente trabalhava em quermesse, colocava lá uma barraca, conseguia levantar recurso e fazia depois um trabalho nos bairros de doação de brinquedos ou de roupa. Eu acabei organizando uma vez uma exposição dos artistas aqui de Mogi Mirim no Clube Recreativo. Então nós fomos buscar os pintores de Mogi, os escultores e fizemos uma... Nós, meninos, levando as obras de arte desse pessoal pro clube e aí durava uma semana. Então a cidade toda ia visitar. E Mogi era muito pobre em termos de cultura nessa época. Então foi bem gostoso e foi bem interessante participar e organizar isso. Apresentação de balé, tinha uma bailarina aqui muito boa e aí então ela também fez várias noites de apresentação dos números. Pelo Interact também nós fazíamos a Campanha do Agasalho todo ano. Então tinha um calendário organizado, fazíamos reuniões. Os integrantes do Interact pagavam uma mensalidade, a gente organizava isso. Em termos de entender como é que uma proposta se organiza em termos de planejamento, começo, meio e fim, foi muito importante, foi muito forte na minha vida o Interact, muito forte. Porque é uma coisa que a gente não aprende na escola, a fazer uma reunião, a dividir. Porque o trabalho de escola é sempre aquela coisa, tem um que faz e os outros tiram nota junto, não tem muito essa preocupação de ensinar isso pra gente na escola, a realmente dividir por funções e todo mundo realmente se sentir responsável por aquilo que tá sendo planejado e produzido. O Interact deu muito isso, me deu muito, eu aprendi muito mais do que na escola com relação a se organizar, a planejar e tudo. Tínhamos o jantar de gala que eles falavam que era escolhido os dois interactianos uma vez por mês pra jantar junto com os rotarianos. Então a gente ia todo bonito e tal e ia jantar, porque era um jantar muito bacana. Éramos jovenzinhos tratados com certa valorização mesmo, então era muito bacana. E por isso também eu acabei indo passar um ano na Austrália como bolsista pelo Rotary Club, que eles fazem esse intercâmbio de jovens. E aí eu poderia escolher alguns países, mas não sei o porquê eu escolhi o mais longe que tinha que era a Austrália.
P/1 – Que idade você tinha?
R – Eu tinha 16.
P/1 – E aí como é que foi essa experiência na Austrália?
R – Fiquei um ano na Austrália. Fui sem falar nada de inglês, naquela época os cursos também existiam, mas: “Ah, não. A gente aprende lá”. Sei lá, meio vamos ver. E a gente quando tem certa ignorância do que vai viver parece que a gente encara com mais facilidade, né? Eu fiquei um ano na Austrália, frequentei a escola pública lá, conheci um pouco do país, é maravilhoso. Foi uma grande experiência. Muito sozinha, muita solidão, mas também uma abertura pro mundo de entender um pouco mais do que é você nessa imensidão.
P/1 – Você se lembra de algum episódio marcante nessa viagem pra Austrália?
R – Eu tive que passar dez horas em Los Angeles entre um voo e outro e minha mãe falou: “Olha, filha, você vai, você vai encontrar anjos. Você vai sozinha, mas fica tranquila que vai dar tudo certo”. Minha mãe tinha muito isso muito forte. E aí nessas dez horas que eu tive que ficar no aeroporto, imagina, aeroporto de Los Angeles é um mundo, pra uma menininha do interior, uma caipirinha, né? Porque a gente nova, a primeira vez que estava viajando sozinha. E realmente tinha uma família que eles também tiveram que esperar e me disseram: “Fica com a gente”. E aí eu acabei passando o dia com eles. Muito humildes. Faz pouco tempo inclusive que eu me lembrei disso, porque são coisas que a gente esquece, né? Enfim, eles foram muito, muito, muito carinhosos.
P/1 – Eles eram brasileiros, americanos?
R – Eles eram chilenos. Eles eram chilenos e foram muito amorosos. Eles também meio perdidos, sabe? Era um casal já de idade, que eu imagino de idade, mas provavelmente deviam ter a minha idade, menos, e eles estavam com duas crianças. Eles foram muito amorosos. Aí eu peguei o voo pra Sydney, eles não foram no mesmo voo. Cheguei lá, demorei pra achar a pessoa que tinha ido me buscar, o rotariano que tinha ido me buscar com a plaquinha. Fui pra essa cidade pequena que é uma cidade no interior da Austrália, fica umas três a quatro horas de Sydney. Primeiro a família, tudo diferente, comida diferente. Era uma família que morava num sítio também, criavam cavalos e foi uma experiência bem diferente. Eu ficava três meses em cada casa, fiquei em quatro famílias. Foi muito difícil os primeiros seis meses pra me adaptar, mas eu tinha o compromisso de que eu tinha que ficar o ano, eu não fui pra voltar antes, não fui pra reclamar, eu fui pra ficar um ano e enfim, fiquei.
P/1 – Você se comunicava com a sua família às vezes?
R – Só carta, né? Telefone aquela época era horrível e o serviço também era ruim, que o telefone chiava e tudo. Mas eu escrevi muita carta nessa época, recebi muitas cartas dos amigos e tudo. Aquela época ir pro exterior era grande, né? Era uma coisa importante, não é como hoje que todo mundo vai. Foi bom.
P/1 – E a relação com a escola, que você disse que aqui você não tinha uma relação tão boa, como é que foi a experiência com a escola lá?
R – Então, eles designaram um professor pra me ensinar inglês. Foi muito bom. Todo dia eu tinha as aulas, algumas aulas e tinha aulas de inglês, então foi muito bom. Aprendi, um ano aprendi na marra, né? Os jovens também na Austrália muito simpáticos e, enfim, você é sempre como um bicho diferente que aparece aí todo mundo quer conhecer, quer se aproximar, quer entender essa coisa de achar que o Brasil era só selva. Então todo mundo tinha muita curiosidade, os jovens. Mas achei muito interessante a escola, completamente voltada pro esporte, uniforme bonito. Tinha aula de culinária na escola, que aqui não existia, achava superbacana. E tinha uma matéria que era noção de cuidar de uma casa, que eu achei também que era muito diferente de tudo que a gente vive. Mas era uma escola de, sei lá, três mil alunos. Era uma escola muito grande. A Austrália o clima é muito parecido com o nosso, então também isso era bacana, não é que estranhei tanto. Toda sexta-feira era dia do esporte, eu ia pra piscina o que era muito bom, tinha um clube que era usado pela escola, naquele dia todos os alunos podiam escolher o esporte que faziam e tinha essa possibilidade de ir pra piscina. Acho que a coisa mais forte da Austrália pra mim assim é a questão da solidão, foi forte, mas é de estar no mundo, sabe? De entender um pouco mais desse universo, de entender, poxa vida, eu posso tanta coisa, eu posso realizar tanta coisa. Porque a cidade de Mogi é sempre... Na época também muito menor do que é hoje, muito interiorana, muito pequenininha. Então convivi com gente do mundo inteiro, porque tinham interactianos e bolsistas da China, do Canadá, da Nova Zelândia, dos Estados Unidos. Americano era o maior grupo, tinham muitos. A gente viajou durante um mês e meio, três ônibus de jovens do mundo inteiro. Então muito rico, muito bom. Acho que é acordar pro mundo, sabe? É entender que o mundo fica muito maior, Mogi Mirim é só uma célula. Foi muito bom. Eu vim da Austrália muito animada. Acho que o sofrimento nos refina também, nos permite sermos melhores como pessoas. E aí quando eu vim o Interact estava passando uma fase difícil porque nós tínhamos um menino negro, que queria muito fazer parte do Interact e na época algumas pessoas do Rotary acharam que não era bom porque a gente nem sabia se o menino tinha problema ou não em termos vamos dizer problemas mais sérios. Nós entendíamos que ele era um jovem que ele tinha que participar conosco, ele tinha que viver o que a gente tava vivendo de igual pra igual e que ele sempre quis apoiar, ajudar. E aí quando eu cheguei da Austrália esse problema tava bem grande assim e aí eu voltei pro Interact. Compramos uma briga com o Rotary assim homérica, fechamos o Interact por conta disso. Na época a gente ficou superorgulhoso disso, sabe? De fazer justiça, de entender que aquilo era uma injustiça com uma pessoa que não merecia. Foi muito forte isso pra todos os envolvidos, pra esses jovens todos que estavam vivendo isso. A gente comprou uma briga de gente grande. E no fim o Interact depois disso não existiu mais. É por isso que em alguns momentos, puxa vida, que pena que muita gente não pode viver e aprender tanta coisa com o Interact, com o que eu vivi lá.
P/1 – Mas vocês continuaram como grupo de alguma maneira depois desse rompimento co...
R – Por um tempo sim, mas depois essa estrutura do Rotary e do Interact ela te dá condições de que isso se perenize, porque a gente sem essa estrutura isso com o tempo foi se perdendo. Mas enfim, a gente entendeu que fez justiça, fez valer o nosso direito de ser humano e dele de cidadão, de fazer a coisa... Todo mundo ficou orgulhoso na época.
P/1 – Era uma causa justa.
R – Não é?
P/1 – E essa experiência que você teve social assim no Interact você se lembra... Porque você mencionou que vocês faziam arrecadação aí depois faziam doações, você se lembra de algum momento também que tenha sido uma experiência que tenha te marcado diretamente no trabalho... Você falou uma coisa de organização e gestão, mas direto no trabalho assim mais social, com comunidades que eram mais... Enfim, que precisavam de ajuda. Vocês tinham esse contato direto?
R – Com as pessoas humildes? Sim. A gente fazia campanha de porta em porta primeiro, de bater nas portas: “Eu sou da Interact, a gente está fazendo uma campanha de alimento ou de agasalho...”. E era uma farra. A gente não tinha noção do desdobramento disso. Era muito prazeroso estar num grupo de trabalho e poder fazer isso. Então a gente, sei lá, acordava cinco horas da manhã, juntava-se, vamos, vamos, organizava quem poderia ir com os carros, ir a caminhonete pra poder ir carregando essas coisas, dividíamos por bairros pra executar isso. Era um dia de muito trabalho, era muito gostoso. E depois juntava aquela pilha de coisas, tem fotos de tudo isso, de muita coisa e aí fazendo os pacotes, separando pra levar pras famílias. Então era muito bacana. Era muito bom. Era essa sensação de saber que de alguma forma você está fazendo uma diferença na vida do outro.
P/1 – E esse contato com a realidade dessas famílias pras quais vocês doavam assim, como é que era isso pra você, você lembra sua impressão, como é que era a experiência?
R – Eu acho que quando a gente é meio jovem a gente não tem essa noção tão clara, né? A gente está muito na gente, sabe? A gente está muito em si. Então assim, a gente fica feliz de fazer, mas é muito por você também. Não sei se a gente... Não sei, não. Acho que a gente não tinha o alcance disso. Era gostoso, era prazeroso, mas não era tão altruísta. Não acho que a gente tinha essa consciência, sabe?
P/1 – Nem uma situação que tenha te causado um impacto específico assim?
R – Não. Era farra. Era uma farra. Era muito gostoso assim. Era muito mais egoísta do que... Eu poderia aqui dizer ah, não... Mas não é. Eu acho que é uma atitude de ter alegria de fazer porque você tem um grupo de amigos que gostam de você, que você gosta de estar com eles e quando você se organiza no coletivo todo mundo se apoia e você pertence a esse grupo que você gosta e que gostam de você. Você exerce certa liderança nesse grupo e isso é gostoso também, é importante. Eu vejo que era muito mais por isso do que pelo: “Poxa, como a gente é bonzinho, como a gente tem um coração de ouro”. Eu acho que a gente não tem esse alcance, sabe? Eu acho que muito da vida do que a gente faz de bem também a gente faz mais pra gente do que pro outro. A gente faz muito mais pra se sentir bem e feliz do que propriamente pra causar um bom impacto na vida do outro. Que bom que causa, né?
P/1 – Que ótimo que causa.
R – Que ótimo que causa, né? E que muita gente queira ficar feliz consigo e continue fazendo pros outros. Mas a gente no fundo é egoísta mesmo, um pouco egoísta, não tem jeito.
P/1 – E a questão da faculdade assim, Tarcísia, depois que você retorna de viagem. Em que momento você começa a pensar nisso assim, como é que você decide o que você vai fazer e como que é esse processo de ingresso na faculdade? De decisão de uma carreira, de um curso e de ingresso.
R – Eu tive uma dificuldade com a volta porque eu praticamente fiquei um ano sem escola. Era muito física, matemática, química, meu Deus, pra mim sempre foi um terror. Então quando eu cheguei eu levei pau na escola já no primeiro ano. Falei que eu tenho um problema com a escola. Acho que por isso que eu presido o ICA também, acho que tem muita influência nisso. Porque eu acho que a criança tem que viver outras coisas, a escola, o modelo da escola não cabe pra todo mundo. As crianças não conseguem se desenvolver nesse modelo escolar que está quadrado, amarrado e isso sempre me incomodou e eu fui vítima disso, porque eu sei que eu não sou burra, eu sei que eu poderia ter me desenvolvido em várias coisas e não tive essa oportunidade na escola e sempre me senti incapaz. Aí eu volto, levo pau na escola, mas aí, enfim, vou, prestei vestibular pra Administração, cursei dois anos, achei que não era isso e aí eu voltei, fui fazer Letras. Enfim, fiz Letras, na época eu vim com inglês relativamente bom, fui dar aula aqui na escola, no Fisk, dei aula de inglês acho que uns quatro anos. Então eu fui professora nesse tempo. Daí eu me casei, logo depois eu me casei, tenho quatro filhas, quatro mulheres lindas, queridas, amorosas.
P/1 – Deixa só voltar um pouquinho antes de lançar no seu casamento, seus filhos que eu vou querer conversar com mais calma. Como é que foi a experiência da faculdade pra você? Foi diferente da escola? Não? Como é que foi sua relação com a faculdade de Letras?
R – Nunca foi muito legal, não. O primeiro curso que eu fiz foi em São João da Boa Vista, que é uma cidade próxima, e viajava todo dia. Ah, nessa época eu comecei a trabalhar, meu pai achou que eu tava dando muito trabalho, que eu vim muito independente da Austrália também, de sair, de chegar tarde e aí ele falou: “Olha, melhor você começar a trabalhar, filha. Você anda dando muito trabalho”. Namorados e tudo. Aí eu comecei a trabalhar na empresa, no Grupo Santa Cruz, no RH que era na seleção de pessoas pra trabalhar. Trabalhei quatro anos e dei aula de inglês também, as duas coisas, fiz nesse período.
P/1 – Como é que foram essas primeiras duas experiências profissionais assim pra você?
R – Trabalhar na empresa foi muito bom. O trabalho é muito importante, eu acho que te dá noção do que você é capaz, do quanto você consegue realizar e o trabalho foi muito bom, eu gostei muito da experiência de trabalhar. Na empresa eu lidava com pessoas, que eu acho que é o que eu gosto de fazer, do contato, do entender o que ela está sentindo, onde ela quer trabalhar, o que é melhor. Eu era ainda nova, porque eu cheguei com 18, mas foi muito importante entender um pouquinho mais o mundo do trabalho, que aí você fala poxa vida, não é só esse inferno que é a escola. Dá pra melhorar, sabe? Dá pra fazer outras coisas. Então foi bom.
P/1 – E a experiência como professora de inglês?
R – Foi gostoso também. Acho que eu sempre tive a autoestima baixa com relação a... Por conta da escola mesmo, né? Então dominar alguma coisa que era o inglês, o conhecimento do inglês, deixou-me mais orgulhosa de mim, mais segura e aí era bom, era muito bom. Numa cidade pequena, mais uma vez, no interior naquela época quem falava inglês fluentemente tinha aí um algo a mais e eu era nova e isso foi bom. Fui dar aula de inglês aqui na escola como eu te falei no Fisk pra amigos da mesma idade que eu. Uma experiência bacana. Foi bom.
P/1 – Esses dois trabalhos eram remunerados, Tarcísia?
R – Sim.
P/1 – E aí você lembra o que você fez com os seus primeiro salários? Você comprou alguma coisa que você queria? Investiu em alguma coisa que você queria?
R – O primeiro salário a minha irmã, a Estela, foi ser missionária, ela e o marido, em Rondônia. Ele dentista, ela professora, ele foi trabalhar lá como dentista então pras crianças carentes, pras pessoas em geral e ela assumiu uma escola, uma pré-escola lá que ela fez Letras, também professora. E aí ela falou: “Olha, Cisa, poxa vida, vou pra lá e tudo, você não quer me dar alguma coisa do que você está ganhando pra...”. Aí eu falei está bom, aí eu dei o meu salário todinho, o primeiro: “Pra Deus me abençoar, pras coisas irem bem. Toma. Vou te dar o meu primeiro salário”. Aí eu dei o meu primeiro salário pra ela levar lá pra Rondônia. Ela foi pra Guajará-Mirim, depois trabalhou em Costa Marques que são cidadezinhas pequenas, uma coisa muito bonita também, foi muito bonito o trabalho dela e do marido lá. Fui visita-los também, foi bacana.
P/1 – Você mencionou que você se casou assim, não sei se logo depois que você terminou a faculdade ou no final, eu queria saber como é que você e o seu marido se conheceram.
R – Ah, meu Deus.
P/1 – Antes de casar como é que vocês se conheceram?
R – Então, eu tenho uma amiga daqui que tinha mudado há pouco tempo pra Mogi Mirim e ela veio de Itirapina. Itirapina que é próximo a São Carlos. Ela falou: “Tarcísia, vamos passar as férias lá que você vai gostar, vai ser bacana. E acho que tem um rapaz lá, ele chama Estélio, acho que tem tudo a ver com você, vocês vão namorar, vai dar certo.” “Ah, vá, nada a ver.” “Não, acho que vai ser muito bacana.” “Então vamos. Vamos pra Itirapina”. E realmente, cheguei em Itirapina, fomos num baile aí Itirapina é menorzinha, menor ainda que Mogi Mirim. Muito, muito pequena, muito pequena. E aí cheguei lá e estava no clube e o Estélio estava lá. Ele me viu e deixou a menina que ele estava e tal e veio falar comigo: “Oi, Silvia...” que ele conhecia a Silvia que é essa minha amiga que me levou “...e tal, apresenta a sua amiga”. E aí a gente começou a namorar, naquela época a gente não ficava, mas eu fiquei porque foi uma paixão mesmo, uma paixão. E a gente começou a namorar e o Estélio conta que na primeira noite que a gente saiu no dia seguinte de manhã ele acordou e ele falou: “Meu Deus, essa aí não vai ter jeito, é com essa mesmo”. Ele fala até uma palavra feia que eu não vou falar. Ele na época tinha 17 e eu tinha 19, quer dizer, éramos muito novos, mas namoramos cinco anos entre muitas idas e vindas e muitas brigas. Ele sem carta vinha pra Mogi Mirim dirigindo, ele tinha um Buggy amarelo na época e vinha de Itirapina pra cá. Nós namoramos cinco anos.
P/1 – E aí quando é que vocês decidiram que iam se casar assim? Como é que foi essa decisão? Teve um pedido?
R – Não. Teve uma pressão mesmo.
P/1 – E como é que foi essa decisão?
R – Depois de cinco anos namorando, numa época que a gente namorava diferente de hoje, né? Eu católica superpreocupada também, puxa vida, vamos segurar um pouco esse namoro, vamos devagar. Então acho que a gente vivia uma condição diferente de namoro do que é hoje. Hoje mora junto, meio que se casa praticamente antes de se casar mesmo. Já vive uma vida de casado. Naquela época isso não era possível e eu também não me aceitaria também vivendo assim, a minha família supertradicional e tudo. Então a própria condição meio que te pressiona a tomar uma decisão de casamento. Ele filho único, que também queria ter uma... Enfim, casar-se. Mas ele um pouco mais resistente que eu, eu mais querendo realmente casar. E aí a gente se casou e em cinco anos eu tive quatro filhas.
P/1 – Como é que foi o casamento de vocês? Conta antes de chegar nas suas filhas assim. Vocês decidiram se casar, como é que foi essa decisão e aí como é que foi o casamento mesmo assim, o dia do casamento, a cerimônia? Eu vou retomar pro seu casamento, mas já que você mencionou que lembrou essa coisa das brincadeiras de infância você não quer contar essas pra gente não perder?
R – Na minha infância eu nasci dentro de uma garagem de ônibus que tinha os mecânicos, o funileiro, o pintor e a gente brincava no meio das peças, das rodas, dos motores, virava e mexia a gente estava sujo de graxa porque a gente estava sempre no meio disso. A gente brincava muito com rodar pneu, era uma coisa que a gente fazia. O tambor de óleo grande a gente subia em cima e era uma rampa, era um quintal grande com uma mangueira gigante, linda, todo ano a gente chupava manga daquela mangueira que era muito gostoso. E a gente subia nesse tambor e vinha se equilibrando. A gente até trouxe os tambores uma época pro ICA pra fazer os desfiles de rua, a gente colocou os tambores pra meninada vir equilibrando em cima. Então era uma brincadeira muito, muito, muito gostosa. E era o que a gente tinha de brinquedos também, não é como hoje. A TV eu lembro a primeira vez que chegou a TV em casa, a primeira televisão que meus pais compraram foi uma emoção, foi uma delícia aquilo, meu Deus, o que é isso? Como é bom. Hoje pensando era horrorosa porque colocava aquele papel na frente meio plástico que tinha uma faixa rosa, uma faixa azul e era aquilo que dava a cor pra televisão. Que loucura! A mãe deixava a gente ver TV à tarde que eram as novelas, então era muito gostoso todo mundo quietinho lá na sala na frente da TV.
P/1 – Você lembra quem trouxe assim a TV pra casa? Quando chegou...
R – Meu pai comprou. Meu pai comprou e trouxe pra casa e aí arrumou um lugar bem bacana pra colocar a TV, mas isso os meus sete anos mais ou menos. Poucas casas em Mogi também tinham TV, era uma novidade em 67. Foi muito bom. Outra coisa também que eu lembrei, tinha um cara que vendia peixe e toda semana ele vinha com a perua Kombi pra vender peixe em casa. Um dia ele me trouxe uma cobra d’água pequena e aquilo cabia numa caixinha. Eu cuidei daquela cobrinha por muito tempo. Eu não lembro nem como é que... Acho que alguém tirou de mim, falou, meu Deus do céu, esse negócio não vai acabar bem. Mas foi um bicho que eu cuidei com muito carinho que o cara que vendia peixe deixou. Foi muito bacana.
P/1 – Essa coisa que você falou da garagem e das brincadeiras com pneu e com os tambores é engraçado porque tem um pouco a ver com essa coisa da atividade circense, né?
R – Tem. Tem a ver. Eu resgatei isso também da minha infância pro ICA. Foi bacana. Meus irmãos contam, eu não vivi, mas assim de colocar um dentro do pneu, porque o pneu do ônibus é grande, e aí colocava um pequenininho ali dentro do pneu e soltava na descida. Você imagina como é que saía lá no final. Mas eram os brinquedos que a gente tinha na época. Eu não me lembro de terem me colocado, pode até ser já que eu era a menorzinha, mas eles faziam muito isso, brincavam assim. Teve uma fase da família também que foi muito gostosa, meus irmãos adoravam ir pra baile, pra carnaval. Carnaval era muito forte em casa. Eles faziam, enfim, preparavam-se, tinha os blocos, a gente fazia fantasia pra família toda. Minha mãe ia pro carnaval, meu pai ia pro carnaval e pulavam, e dançavam, e gostavam também muito. Porque era também uma brincadeira muito saudável. Carnaval era uma coisa muito saudável na época.
P/1 – Como é que era o carnaval?
R – E aí o carnaval era o ponto alto lá em casa, a gente curtia muito em família. Tem muitas fotos disso também, tem muito material pra ver.
P/1 – Descreve um pouco como é que eram os carnavais nessa época.
R – Então, como eu te disse, era uma coisa muito saudável, não tinha tanta bebedeira como hoje, não tinha droga. O lança era o pra espirrar no ar mesmo. Na minha infância, depois na minha adolescência já era outra coisa, né? E a gente fazia o bloco e vinham muitos amigos de fora em casa que dormiam em casa, a casa, sei lá, de 11 filhos a gente tinha umas 20, 30 pessoas dormindo em casa, que vinham os amigos de fora. E aí confeccionávamos as fantasias, eu tenho uma irmã que sempre costurou e gostou de costura. E tingir, fazer batik nas fantasias, enfim, maquiagem. A gente vivia pra isso, aqueles dias de carnaval, pra preparar as fantasias e era uma alegria.
P/1 – Era um carnaval de rua?
R – Não. De clube. A gente ia pro clube à noite e baile, dançávamos e essa coisa de rodar no clube, já tínhamos as mesas reservadas. O bacana era que o meu pai e a minha mãe se divertiam com a gente e iam conosco. Então isso dava muita leveza também e como eles eram animados, né? Porque eu vejo por mim na minha idade, não sei se eu enfrento uma noite de carnaval, prefiro ficar em casa quietinha. Mas eu acho que eles entendiam também que eles tinham que... Eles gostavam, eram animadíssimos, mas entendiam também que tinham que estar presentes porque com uma prole dessas tinha que estar junto. Era muito gostoso.
P/1 – Vou voltar agora pro seu casamento. Você tava contando pra gente que decidiram se casar porque já namoravam há cinco anos, achava que era o momento. Queria saber como é que foi essa decisão assim e como é que foi o casamento mesmo, a cerimônia, como é que foi o dia do seu casamento, como é que você se sentiu.
R – Nós começamos a falar do casamento um ano mais ou menos antes e como eu te falei foi um pouco de pressão: “Bem, como é que faz? Faz cinco anos que a gente está namorando, a gente precisa resolver”. Meu marido queria cinco... “Olha, bem, vamos combinar, eu quero primeiro quatro meninos, depois você pode ter as meninas que você quiser”. Isso no tempo que a gente ainda tava conversando do casamento. “Ah, está bom então”. Foi muito bom. Foi uma fase gostosa, a gente cuidou, fizemos todo o preparativo, o vestido, fui buscar uma costureira em São Paulo pra fazer pra ficar bacana. Foi às oito da noite numa quinta-feira porque eu achava que isso era romântico, era bacana. Fizemos uma festa pequena, isso também deu um pouquinho de trabalho porque a família superconhecida e aí meu pai, meus irmãos queriam convidar muita gente e eu e o meu marido queríamos uma coisa menor, mais tranquila. Então tivemos aí uma dificuldade extra aí pra organizar, mas no fim ficou tudo bem.
P/1 – A cerimônia mesmo na igreja, teu vestido, a música, você tem alguma lembrança disso, a sensação ao entrar na igreja?
R – Meu pai foi muito importante assim na minha vida toda. Meu pai muito carinhoso, muito preocupado comigo. Ele achava que eu era magrinha e que eu precisava de mais cuidados, então ele sempre foi muito, muito carinhoso. E no dia do meu casamento ele entrou comigo na igreja. Meu pai é um homem muito simples, mas muito elegante, muito querido. Meu marido um meninão porque dois anos mais novo que eu, suando em bica, você vê as fotos do casamento... E também supertímido na época. Foi muito romântico, foi muito lindo o casamento, a igreja cheia, foi na matriz aqui de São José. O vestido estava lindo, deu um probleminha porque o vestido ficou pendurado e era um vestido de bordado, tive que correr na costureira pra consertar porque o vestido ficou torto, mas era um vestido lindo. Era um vestido, eu tenho até hoje, é um vestido muito bonito, senti-me muito linda com o vestido e feliz. Foi uma noite... Saiu do jeito que eu imaginei, foi muito bom.
P/1 – Vocês tiveram festa depois e lua de mel?
R – Tivemos uma festa pequena como nós dois queríamos. Fomos viajar, ficamos dois meses na Europa, meu marido tem parentes também na Itália. Lá nós arrumamos, esse primo do meu marido emprestou um carro pra gente que era um carro mais velho, não tão bonito e tão novo e aí a gente fez o sul da França, fizemos uma viagem de carro que foi uma aventura. Os dois novinhos e eu falei pra ele: “Bem, mas a gente precisa viajar porque eu também não quero ficar aqui só nessa cidade”. E aí ele falou: “Mas bem, a gente não...”. Ele falava italiano que ele já tinha viajado, já tinha ido outras vezes e eu falava inglês aí eu falei: “Mas a gente dá um jeito. Como é que todo mundo viaja?”. Até hoje ele fala: “Bem, você me pressionou a ir viajar e eu tava realmente preocupado com isso, pegar um carro...”. Naquela época não tinha celular, não é como hoje, não tinha GPS. Mas a gente se divertiu muito na viagem, foi muito gostoso.
P/1 – Mas vocês passaram algum aperto assim com essa coisa de pegar o carro?
R – Ah, na França, né? Porque sul da França e francês não gosta muito de falar inglês, ele quer que você entenda... E aí a gente meio que pra achar os caminhos pegava o mapa, eu descia do carro, ia lá: “Aqui, aqui”. Mostrava no mapa, aí a pessoa falava inglês, você não entendia nada e tinha gente que saía, deixava a gente falando sozinho porque, pô, não adianta eu falar, a pessoa não vai entender. Mas como sempre, Deus é tão bom, essa proteção é constante na minha vida, sabe? E lá não foi diferente, a gente sofreu um pouco. A sorte é que demora pra escurecer também, a gente tava num período de verão então nove horas da noite ainda era dia, então isso facilitava pra conseguir chegar aos lugares e ter um pouco mais de tempo pra chegar. Num posto de guarda que a gente parou, esse carro meio velho, meio pintado no spray porque era meio dourado o carro, horroroso e aí na divisa com a França, da Itália pra França a polícia mandou a gente encostar. Aí olhou atrás casaco, Coca-Cola, um monte de coisa, falou: “Meu Deus, quem que são esses?”. Pareciam dois ciganos, né? Aí o meu marido explicou que a gente estava em lua de mel, que éramos brasileiros e aí ele foi bem bacana aí deixou a gente passar, porque o carro tava no nome de outra pessoa que não era o primo do Estélio. Então até a documentação do carro também não era tão confiável. Mas enfim, foi uma aventura, foi muito bom, fomos pra San Marino. Foi muito bom.
P/1 – Aí quando vocês voltaram vocês foram morar onde? Vocês já tinham casa de vocês?
R – Então, meu sogro arrumou uma casa pra gente que era uma casa de quatro cômodos, bem pequenininha no meio do mato, que é Ubá. Ubá fica a seis quilômetros de Itirapina, não é Ubá de Minas, é uma estanciazinha que chama Ubá também. Uma casinha de quatro cômodos, bonitinha, no meio do mato assim, no meio de um descampado. Arrumamos aquilo eu e ele com o maior amor do mundo, no começo a gente falou: “Ah, não vamos...”. A gente não montou casa antes de casar, a gente meio que... Ele emprestou uns móveis que ele tinha usado e a gente falou com o tempo a gente vai arrumando, vai montando. Aí chegamos e fomos morar nessa casa e tudo muito precário, mas era muito gostoso. Era começar outra fase da vida de muito sonho, de muito amor. Ele ia trabalhar, eu ficava o dia todo sozinha nessa fase em casa e a gente tinha um Dobermann, cachorro, e eu ia fazer caminhada com o cachorro, na época o cachorro brigava com os outros, eu é que separava essas brigas. Ia buscar leite no sítio também, porque tinha um sítio próximo aí eu ia com um latãozinho e com o cachorro que era o meu protetor. Em Ubá tem um lago e tem uma queda d’água, então toda tarde eu ia nesse lugar e tomava um banho naquela cachoeira que era muito gostoso. Era muito gostoso, muito bom. E esperava o marido chegar em casa, com a casa um brinco, superarrumada, limpa, organizada. Sempre gostei de cozinhar, então eu fazia as comidas gostosas pra esperá-lo. Uma fase muito romântica, muito gostosa, muito prazerosa. Acho que foi das melhores. Foi muito boa.
P/1 – Com o que ele trabalhava, o seu marido?
R – Meu marido trabalhava com o pai, com o meu sogro, filho único e meu sogro tinha uma empresa de tratamento de madeira. Fazia postes pra eletrificação rural e postes de madeira na época. Então ele começou trabalhando com o meu sogro, depois ele foi fazer corte e remoção de madeira pra... Madeira reflorestada, né? Pra indústria de papel e de certa forma ele trabalha com isso até hoje.
P/1 – E a notícia da primeira gravidez, quando você descobriu que estava grávida? Quando que veio a primeira gravidez e como foi esse momento pra vocês?
R – Então, eu vim grávida da lua de mel, porque a gente ficou dois meses viajando. Nesses dois meses eu engravidei da Bruna. Uma alegria. Uma grande alegria. Eu vejo que a gente naquela época tinha uma simplicidade muito grande pra entender que, poxa vida, eu me casei, vou engravidar. Parece que está dentro de um processo muito natural, sabe? Sem muitos altos e baixos e sem muito planejamento também. Então foi como uma coisa que ia acontecer, iria acontecer de qualquer jeito. Sendo filha da minha mãe, que teve 14 filhos, era muito natural que eu engravidasse. Nunca pensei na possibilidade de não ser mãe, nunca. Já tava dentro do script. Foi uma gravidez supertranquila, feliz. Também outra alegria grande da minha vida. Gravidez é um momento de muita plenitude, sabe? De muita paz, de se sentir muito potencializada pra viver, pra enfrentar a vida. A gente parece que toma um ânimo, tem uma força de ser mulher, de ser mãe. Eu tinha muita disposição grávida, eu queria fazer muita coisa, então um prazer, foi sempre um prazer a gravidez pra mim, uma alegria. E pro meu marido então que era filho único, que queria quatro homens primeiro, você imagina, a alegria foi imensa também, imensa. Ficou superfeliz. Meu sogro que não ficou tanto porque ele queria homem também e veio a Bruna.
P/1 – Como é que foi o parto da Bruna?
R – Foi natural. Eu vinha ter os bebês em Mogi, que minha mãe estava aqui, então quando estava próximo de nascer eu já vinha de mala e cuia e ficava aqui. Pra mamãe também foi muito bacana porque minhas irmãs mais velhas todas têm quatro, cinco filhos, seis filhos. Todo mundo tem um pouco da minha mãe aí no sangue de ter família grande. Mas eu era caçula. Aí minhas irmãs: “Só pra ela que você faz essas coisas”. Que me agradava. Muito amorosa a mamãe. Então eu vinha ficar aqui e tinha os bebês aqui, até porque Itirapina é tão pequeno que tem um posto de saúde, não tem um hospital, então não teria nem como ter os filhos lá. E lógico, a gente quer ter filho perto da mãe. Aí eu vim, vinha e ficava aqui, o nascimento da Bruna foi tranquilo, fiz parto normal, o médico que me atendeu é o sogro da minha irmã que já era um médico mais velho, hoje ele já faleceu. Um pai assim na hora do parto, deu muita calma, muita tranquilidade pra viver esse momento e falou pra mim, quando a Bruna nasceu olhou pra Bruna e falou: “É uma menina e ao longo da vida você vai ganhar um filho”. Porque a filha quando se casa traz o marido sempre pra perto da família da mãe, da esposa. Então foi muito amoroso na hora do parto. E a Bruna nasceu linda. A Bruna nasceu ruivinha, eu não sou clara nem de pele... Na infância até tinha o cabelo mais claro, meu marido também não é tão claro e ela nasceu muito loira, muito loira, olhos verdes, eram azulados, depois ficou verde, ruivinha e de sarda. Com o tempo ela teve sarda. Linda. Linda, linda. Uma filha que eu amo muito como as outras.
P/1 – Qual que é o nome dessas outras filhas?
R – A mais velha é a Bruna, a segunda é Nina, que é um anjo, Sabrina que é a terceira e Mirela que é a caçula. A Bruna fez cinema e gastronomia. Hoje é casada, já tem uma filha que é a Esperança, que é a minha primeira neta, é uma benção na vida. A Nina é a segunda, é bióloga, é a mais estudiosa de casa, superperseverante, é uma menina brilhante, um amor. Está fazendo doutorado na Nova Zelândia. É fera. A terceira é a Sabrina, fez moda, vai ser mãe agora no final do ano, vou ganhar mais um presente que é mais uma neta, vem mais uma menina. A Sabrina é um anjo também. Eu ganhei quatro presentes. A Mirela é a caçula, Mirela fez Artes Cênicas, é uma sonhadora como toda artista. Eu tenho três artistas e a Nina que é mais pé no chão das quatro. Só alegria. Minhas filhas são os anjos da minha vida, são maravilhosas.
P/1 – E ser avó, Tarcísia, como é que foi ser avó? É diferente de ser mãe?
R – Ah, é diferente, né? A gente está numa fase que a gente está mais madura, que a gente está mais tranquila, menos ansiedade com relação à vida, do que vai dar certo, do que não vai dar. Então a gente está numa fase, eu estou com 54, numa fase que você quer estar mais em paz, que a vida precisa ser mais leve, que a gente não é tão... Nada é tão forte, as coisas têm uma tendência a ficarem mais calmas. Uma neta na vida de uma avó é um pedaço de Deus, sabe? É Deus na vida da gente. É de uma pureza, de uma leveza, é de uma alegria pura que a gente sente assim, parece que a gente volta a ser criança. É muito bom. As filhas ficam até com ciúmes, mas é muito gostoso. Cinco anos atrás eu tive um câncer de mama e foi um momento superdelicado de pensar na morte, de falar: “Poxa vida, será que eu não vou estar aqui pra vê-las crescerem e tudo?”. E eu pedi pra Deus que eu queria ver meus netos e Ele me atendeu. Então eu sou muito feliz, tenho muita coisa boa na vida.
P/1 – Então eu queria que a gente falasse um pouquinho do ICA assim, que você explicasse pra gente de uma maneira geral como é que o ICA acontece na sua vida.
R – Como começou.
P/1 – É. Como é que ele começa? Desse um histórico mesmo.
R – Então, essa época que eu vivi nesse lugar, logo que eu casei fui pra esse lugarejo que eu te falei que chama Ubá, tinha uma família vizinha e ela fechava as crianças em casa pra ir trabalhar. Eram crianças de três anos, um tinha três, o outro tinha quatro. Eram três crianças, acho que é três, quatro e cinco aninhos, era por aí. E um dia caminhando ali, como eu te falei que eu saía pra passear em Ubá ali, andar no meio do mato, eu escutei as crianças chorando e aí eu fui lá abrir a porta. Um cômodo só que era tudo cozinha e não tinha banheiro a casa e as três crianças sozinhas. Tinha um caixote de madeira no chão, o menorzinho estava dentro desse caixote e os outros dois brincando ali. E aí eu entrei porque a porta estava só encostada e eu assustei com aquilo, falei: “Meu Deus, como é que pode?”. Aí eu fiquei um pouco lá com as crianças e uns amores, sozinhos, não sabiam nem falar direito. Aí depois disso eu fui lá visitar, fui falar com a mãe, eu fiquei olhando porque era no caminho de casa, a hora que ela voltava do trabalho e fui falar com ela. Ela falou: “Tarcísia, eu preciso trabalhar.” “Mas seu marido trabalha?” “Ele também trabalha, mas a gente não consegue sustentar as crianças se eu também não trabalhar”. E isso mexeu muito comigo e eu comecei a conversar com o Estélio: “Nossa, bem, se tem uma coisa que eu gostaria de trabalhar era com isso, de poder de alguma forma ajudar essas famílias que não têm onde deixar os filhos”. Nesse tempo que eu morei, ela começou a vir em casa, depois ela veio trabalhar comigo, trazia as crianças. Uma graça, eles eram uma belezinha. Tinha outra menininha também que morava perto, isso no meu primeiro ano de casada, chamava Silvia. Ela também veio em casa pedir trabalho, ela tinha oito anos. Aí eu acolhi, ela entrou, eu dei comida, vi que ela estava toda suja, tinha bicho de pé em todos os dedos, era uma coisa assim... E mais de um bicho de pé no dedinho, os dedinhos pequenos. Eu lembro que o primeiro dia que eu limpei o pé dela ficaram buracos nos dedos porque era uma coisa horrível. Aí fui entender porque ela morava numa casa também que não tinha banheiro, eles usavam ali o quintal e aí a criança pisa ali, não tinha sapato, não tinha roupa. Muita pobreza. Então acho que essas duas situações me foram assim um alerta mesmo, sabe? Puxa vida, a gente com tão pouco pode fazer tanta diferença na vida das pessoas. E eu não tinha as minhas filhas ainda, foi o primeiro ano de casada, eu estava grávida já, então já tava com essa coisa maternal. A Silvia ficou comigo um tempo, mesmo a mãe da menina vindo me ajudar com as crianças tinha mais a Silvia, então de certa forma eram quatro crianças ali que... Teve um dia que eu falei: “Quem não sentar pra comer não vai comer”. Os três pequenininhos foi uma coisa assim, a gente achou a maior graça que no lugar que eles estavam eles sentaram no chão na hora porque eles iam comer. Então eram muito pobres. Eu morei quatro anos em Itirapina, não. Não foram quatro. A Nina tinha... Eu morei dois anos em Itirapina. Eu tive minhas duas primeiras filhas lá, depois eu mudei pra cá pra Mogi Mirim porque a cidade pequena, começava a época escolar, as escolas lá a gente não achava que seria tão bom pras meninas. Então nós mudamos pra Mogi Mirim e minha mãe era presidente do Educandário, aquele que o meu pai uma vez por ano pegava as crianças e levava pra conhecer a praia. Ela foi presidente lá por algum tempo e toda tarde a gente vinha pra conversar com a mamãe à tarde, pegava as crianças da escola e passava pra tomar café e ver a mamãe e o papai. E aí ela me falou: “Olha, Tarcísia, eu hoje conversei com algumas mães que estão muito preocupadas porque as crianças vão completar dez anos e o Educandário não fica com eles a partir dos dez anos. Eu já falei lá com a diretoria, tudo, mas mesmo eu sendo presidente, tudo, eu não consigo mudar isso”. Aí eu falei: “Mãe, vamos fazer a partir daí? Vamos atender essas crianças que saem do Educandário a partir daí? Eu sei que a senhora sempre quis fazer um trabalho assim”. E ela sempre falava: “Quem que vai ser minha filha que vai me ajudar, que vai...”. E ela falou: “E você pega pra fazer, Tarcísia? Porque você tem quatro crianças”. Eu tinha as meninas muito novas ainda, minha caçula estava com seis, a Mirela. Eu falei: “Lógico, mãe. Vamos. Deus ajuda. Vamos fazer que a coisa vai caminhar”. Começamos a pensar nisso, eu sonhei com o local porque eu falei onde a gente vai fazer? Vamos comprar uma casa? Nós vamos construir? Eu sonhei que a gente ia fazer na garagem embaixo da mangueira onde eu tinha sido criada, onde eu cresci. Aí fomos falar com os meus irmãos, que eles são da empresa e usavam ali ainda como garagem, não totalmente o espaço, mas parte do espaço. Eles concordaram: “Vamos fazer”. E aí o primeiro dinheiro pra começar o ICA os 11 irmãos deram, na época cada um deu mil reais. A minha mãe completou o restante e nós fomos numa loja de móveis usados, compramos tudo usado que eram coisas que vieram dos bancos, porque os bancos trocam a decoração toda, então sobram sofás e cadeiras e mesas em bom estado também. Reformamos o espaço, que era um barracão grande, que é a sede que a gente ocupou até dois anos atrás. Reformamos, colocamos esses móveis usados, chamamos muitos voluntários, que na época nosso... Até hoje somos superconhecidos aqui na cidade por ter nascido aqui, por ter empresa aqui. Então médicos, dentistas que foram amigos, todo mundo se dispôs a ajudar, a atender, a ser voluntário. Começamos então com duas funcionárias, uma na cozinha e uma na limpeza, uma assistente social que é a Ana Luiza que é um doce, que nos ajudou desde o começo a cuidar dessa parte da documentação e tudo isso. Eu falo que é como um filme do Indiana Jones que aquela bola que vem atrás de você, que vem atrás dele, do ator, do Harrison Ford, que é uma coisa que sai do teu controle, sabe? Você se dispõe a fazer, e isso foi muito forte na época, nós nos dispusemos a trabalhar numa causa social e tudo conspirou pra isso. O universo conspirou pra isso. As coisas iam acontecendo, as doações iam chegando, as pessoas se disponibilizando a trabalhar, a ajudar. Era impressionante. A gente parece que andava... Não éramos nós que empurrávamos, tinha uma força maior que fazia as coisas acontecerem. Em um ano o ICA tava pronto, acontecendo, já com 50, 40 crianças. No segundo ano fomos apoiados pela Abrinq, fomos premiados pela Abrinq que era um ótimo reconhecimento na época. Atendíamos então no começo as crianças que vieram do Educandário, todas as de dez anos vieram pra nós e mais um tanto, depois isso foi aumentando. Foi avassalador, foi muito forte. Foi um movimento muito forte que estava além dos meus braços e dos braços da minha mãe. Ela ficou com a gente um ano, o primeiro ano só do ICA, ela já tava doente quando a gente conversou a primeira vez. Mamãe teve um câncer, mas ela viveu intensamente nesse último ano, com muita alegria, com entusiasmo enorme de ver que aquilo tava se concretizando, que era um desejo do coração dela há muito tempo. Foi um movimento muito, muito, muito intenso. Muito intenso.
P/1 – Em que ano que vocês começaram?
R – O ICA tem 17 anos, 1998. Em 2000 a gente já recebeu o prêmio também da Abrinq. E eu não tinha conhecimento da área, da área social, da área assistencial, mas eu tinha muito claro o que eu queria, sabe? Apesar de não... Lógico, era professora e tudo, mas tinha muito claro o que eu queria como modelo, sabe? Eu queria que as crianças se sentissem amadas, vistas, enxergadas, respeitadas, que viessem pra aprender com alegria. Tudo que eu vivi, quer dizer, tudo que eu gostaria de ter vivido numa escola. Valorizadas, com autoestima, com autorrespeito, com vaidade e tinha muito claro isso. Então no primeiro desfile, no primeiro ano do ICA, a gente tinha uma banda que veio um voluntário: “Vou dar aula de música. Vamos formar uma banda”. Tá bom. Vamos comprar um instrumento então e vamos formar uma banda. Só que em um ano a gente sabe que você não faz uma banda, você precisa de muito tempo pra ensaiar e tudo. Então eu falo que eles não tocavam nada, mas o uniforme que nós compramos pra eles pra desfilar era de uma empresa que fazia os uniformes pra Brasília, pra guarda de Brasília. Os uniformes estão aí até hoje porque foram caríssimos. Penacho amarelo no... Como é que chama? Nesse chapeuzinho. A farda maravilhosa azul marinho e dourada. Eles estavam maravilhosos, a baliza estava linda porque aí veio a professora de balé pra ensaiá-la também pro desfile. Eu falo que tocar eles não tocavam, mas eles deram um show, meus pais ficaram superorgulhosos de vê-los também no desfile da cidade que era 22 de outubro. Eu tenho isso como uma meta no ICA, sabe? Menos é mais. Se a gente puder levar essa criança pra uma apresentação que ela vá fazer bonito e que as pessoas não vão olhar pra ela achando: “Poxa vida, eu vou achar bonito porque ela é carente, porque ela é pobrezinha”. É melhor a gente não ir. As pessoas precisam olhar pra elas pelo valor que elas têm e elas vão fazer bonito, elas têm condição de fazer bonito, elas são inteligentes o suficiente pra conseguir fazer uma coisa bem feita. Então o ICA nunca usou da imagem da carência, da pobreza, da sujeira. Nunca. Pra conseguir apoio, recurso, muito pelo contrário, a gente sempre, nós, eu principalmente, fiz questão de mostrar o lado bonito que eles têm, que elas têm, as crianças têm independente da classe social que elas venham. Então isso é um valor do ICA que não se perdeu e enquanto eu tiver viva ele vai existir.
P/1 – Quem que deu esse nome, Tarcísia? Como vocês chegaram em ICA?
R – Então, a gente pensou em várias coisas, minha mãe é devota de Nossa Senhora das Graças e ela até sugeriu, mas eu falei, eu sou católica, eu tenho um Deus superforte no coração, eu sou temente a Deus e tudo, eu falei: “Não, mãe, não podemos associar. Eu acho que não é bom, não é legal. A gente pode fazer isso nas ações e tudo e não precisa ser no nome”. E aí a gente... Ela falou: “Tá bom, filha”. Superaceitava também, muito tranquila. E aí ficamos pensando em alguma coisa, mas não aparecia. Aí uma irmã minha, a Kátia, ligou, falou: “Cisa, eu já sei, vamos colocar o apelido da mamãe, porque a mamãe é Ica”. A minha mãe é Sofia e aí as irmãs Sofiinha, Sofiica. Então o apelido dela era Ica. E aí fizemos essa adaptação pra Incentivo a Criança e ao Adolescente. ICA ficou, falei: “É esse. Tinha que ser esse”. Então o nome veio daí.
P/1 – E quando vocês começaram vocês começaram com que tipo de atividades assim? Como é que vocês foram estruturando que atividade podia oferecer pra essas crianças e adolescentes?
R – Era o que estava disponível. Então veio uma pessoa que ensinava caratê: “Vocês querem aula de caratê?” “Queremos”. Vem. “Olha, eu ensino dança, balé, você quer?” “Ah, sim. Eu quero”. Quer dizer, a gente não tinha dinheiro ainda pra contratar pessoas, né? E nós fomos usando o que estava disponível. Artesanato, tivemos um grupo de artesanato no ICA, eram quatro pessoas, hoje tem duas, uma que faz parte da nossa diretoria, mas elas deram aula de artesanato por muito tempo no ICA e foi maravilhoso. Era uma colcha de retalhos, sabe? A gente ia pegando o que estava disponível e o que tinha. Mas a gente entendeu também que a criança precisava aprender a ler, escrever e não adiantava também ficar só... E aí você começa a entrar nessa seara da escola e aí você fala: “Poxa vida, mas também não posso transformar o ICA numa escola”. Quer dizer, a criança já fica quatro horas lá, quatro horas e meia, aí ela vem aqui e vai viver a vida escolar. Tinha até as atividades, mas a gente entendia que ela também estava analfabeta, ela precisava mesmo aos dez anos tava muito defasada. Várias voluntárias pra reforço escolar, isso a gente tinha, pra acompanhamento escolar. O tempo foi nos mostrando o caminho, foi nos mostrando que o ICA precisava de uma proposta pedagógica forte, mas precisamos também viver tudo isso. Tivemos uma consultoria de uma pessoa, uma consultoria externa que tinha trabalhado com várias organizações pra entender o nosso talento também, o que a gente tinha de forte e tudo. E aí entendemos que tínhamos que trabalhar com a arte e aí escolher algumas vertentes pra trabalhar e aí contratar pessoas, não voluntários mais nessas áreas. E que pra nós seria importante que a criança soubesse ler, escrever, interpretar, porque a leitura vai te abrir portas pra tudo que você quiser, e as quatro operações matemáticas. Pra ajudar na matemática a gente tem xadrez, tem enfim, os jogos de tabuleiro que ajudam muito, a música, a partitura também é um apoio pra... Todas as áreas se conversam, né? Essa transversalidade dos conteúdos, eles são importantíssimos. Então a gente trabalha com educação integral, não por tempo integral, mas entendendo a criança nessa integralidade, que a criança é um ser que precisa viver as várias experiências. Alimentação também sempre uma preocupação de ter um cardápio. Na época eu falava disso, precisamos escolher o que eles vão comer: “Mas como, Tarcísia, está louca?” “A gente cria quatro cardápios e eles votam”. Porque também essa coisa do goela abaixo, sabe? Que a criança vai fazer aquilo que você programou pra ela. Ela precisa ter autonomia, ela precisa escolher, ela precisa entender que ela conduz a vida dela, que ela também conduz a vida dela. E aí então tinha os quatro cardápios, eles acabavam votando. De alguma forma era uma maneira de escolher. Outra coisa que a gente fazia e isso quando é possível a gente faz novamente, coloca um tanto de chocolate, porque tem uma fábrica aqui de chocolate que nos doava uma quantidade imensa de chocolate, então colocava lá uma cesta de chocolate na sala de aula e falava: “Você pode pegar quantos você quiser, mas olha, lembra que tem mais gente pra comer.” “Posso levar pro meu irmão?” “Pode. Pode levar”. Deixar a criança viver a possibilidade de eu vou pegar menos pra sobrar pro outro. Essa coisa que o mundo hoje não favorece, mas que aqui é um lugar especial, um lugar único que você pode viver um possível mundo com respeito, com igualdade, sem querer levar vantagem, sem querer passar perna no outro. Esse mundo especial, esse mundo muito bom que é possível. Não dá pra fazer isso no mundo todo, mas dá pra gente fazer aqui e as crianças precisavam experimentar isso. Eu falava pra elas: “Nos outros países, em alguns países da Europa você pega o ônibus e você não dá a passagem.” eu conto pra elas “Porque todo mundo entende que todo mundo pagou, porque compra pro mês a passagem. Em Londres você vai e tira o seu jornal e você coloca a moeda e tira o seu jornal, mas se você quiser levar 30 jornais você pode fazer, mas ninguém faz porque todo mundo entende que você pode ser correto por opção, você não vai ser correto por que tem uma pressão, porque estão te olhando, porque estão te cobrando. Por consciência”. E a gente tenta a todo tempo no ICA que eles tenham essa consciência, sabe, de fazer o certo porque eu escolho fazer o certo, não porque eu sou obrigado a fazer o certo. É um valor muito grande que a gente tenta a todo tempo que isso fique vivo aqui. O ICA eu sempre tive uma preocupação de ter tranquilidade financeira porque eu acho que sonho sem dinheiro não acontece, você fica só no desejo de realizar e Mogi Mirim tem hoje na área da criança mais de 22 organizações. É uma prática e até cultural de se fazer bingos e chás e almoços, quando eu comecei eu falei: “Meu Deus, eu vou entrar, mais uma organização pra disputar esse quinhão, acho que vai ficar difícil”. Eu optei de início por editais. Vamos buscar os editais, vamos buscar outra maneira de ganhar. Trabalhamos com arte e cultura, vamos buscar a Lei Rouanet. Superdifícil porque é bem burocrático, precisa de gente boa pra escrever. Mandamos muitos que não voltaram, a gente nem soube, mas enfim, que não foram aprovados, muitos projetos assim de escrever 15 por ano, 20 por ano e nada. Tínhamos um valor mensal que era da Santa Cruz, da empresa da minha família, que eram seis mil reais por mês, depois passaram pra 12, que é o que existe até hoje. Acho que hoje está em 13 mil e pouco. Que foi o nosso respiro, era o que a gente conseguia respirar. E algumas doações pontuais de uma empresa, de outra, mas nada constante. E aí os editais vieram nessa... Desde o primeiro dia do ICA a busca por editais sempre foi muito grande aqui. Passava horas, virava noites escrevendo projeto, aí você lê de novo, você acha que não está bom, você muda. Fizemos isso por muito tempo, eu acho que hoje a gente colhe esses frutos porque quando você escreve sobre aquilo que você faz você aprimora aquilo que você está fazendo, você está realizando. Você pensa, repensa e a gente graças a Deus ficou boa nisso, sabe? Então hoje grande parte do nosso recurso vem de editais. Tentei uma parceria com a prefeitura local por muito tempo, ela aconteceu há uns três anos, porque a ideia é que o ICA atenda em todos os bairros da cidade no período inverso a escola todas as crianças da rede, essa é nossa meta. Não é pequena, né? Então nós começamos com 40 crianças, hoje são 550. Estamos em seis pontos externos que são 13 escolas fazendo esse trabalho de período inverso e três CRAS que são da assistência, são órgãos da assistência nos bairros de maior vulnerabilidade. A coisa começou a sair dos muros. Nossa criança nunca se sentiu, eu imagino, pelo menos a gente sempre lutou pra isso, institucionalizada e diminuída por isso. Ah, sua mãe não tem como cuidar de você então ela te coloca lá naquela organização ou naquela entidade. A gente sempre quis que a criança viesse pra cá com desejo, com orgulho de estar aqui. Os nossos uniformes sempre foram uma preocupação que a criança tivesse... Poxa, você deixa vir de roupa normal. Não. Eu até entendo que é uma institucionalização o uniforme, mas a gente queria que a criança tivesse orgulho de usar esse uniforme, então que ele fosse o mais bonito, mais bonito que o da escola particular, mais bonito que... Porque eu entendo que a criança quando ela começa a ter outro olhar dela e dessa parte externa que parece que é a menor, isso tem uma abertura pro interior dela também. Quando ela se olha no espelho e fala: “Puxa vida, eu estou bonita, eu sou bonita”. Ela começa a se amar, ela começa a se abrir também pra aprender, pra amar também. Porque eu falo que a criança quando ela não gosta dela, ela não gosta do mundo, sabe? Então isso pra nós é um valor muito grande, que a criança se sinta amada, seja vista, enxergada, ouvida. Eu acho que o ICA faz isso.
P/1 – Tarcísia, nesse tempo todo de ICA queria saber se você lembra agora assim de uma criança ou um adolescente em especial que tenha te marcado, uma história, um episódio mesmo que seja representativo de tudo isso que você está falando pra gente.
R – Eu tive uma menina logo no primeiro ano do ICA, ela veio da Casa Abrigo. Porque quando a gente começou eu fui aqui à Casa Abrigo na Alma Mater e eu falei: “Manda todas. Todas que você tiver nessa idade que a gente atende”. Porque a criança ia pra escola meio período, morava na Casa Abrigo o outro, então a gente atendeu todas elas. Acho que eram umas dez na época que estavam pra adoção e eram crianças já grandes, com dez anos é mais difícil que essas crianças sejam adotadas. No primeiro ano então vieram essas crianças, a gente fez o batizado, arrumamos madrinhas pra todo mundo, o batizado foi no ICA, minha mãe era viva. Foi muito lindo. Foi muito bonito. E elas têm até hoje essas madrinhas, então foi muito bacana. Uma dessas meninas morava, a família dela morava num cortiço assim que eram várias casas no mesmo terreno. Depois de um tempo os pais tinham problema com alcoolismo, os outros irmãos também estavam abrigados, mas eram mais novos então eles não vinham ainda pro ICA. Ela ficou um ano com a gente, no segundo ano ela já tava meio mocinha com 13 anos, arrumou um namorado que já tinha sido... Um homem muito mais velho que já tinha dois ou três filhos e que já tinha deixado duas ou três pessoas e a gente fez de tudo pra segurar essa menina, até denúncia no conselho tutelar a gente fez. Ao invés de ela voltar pra casa... Porque ela ficou um tempo na Casa Abrigo depois ela voltou pra casa dos pais e foi nesse período que ela acabou conhecendo esse rapaz e tudo. Então foi muito difícil. Eu falei: “Você vai ficar o dia todo no ICA.” pra ver se a gente conseguia segurar um pouco. Mas não teve jeito. Ela acabou vivendo com ele e teve acho que três filhos, dois filhos com ele e depois de alguns anos ela veio visitar o ICA já moça e com o bebê no colo. Aí ela me falou: “Olha, Tarcísia, poxa vida, o ICA me deu tanta oportunidade e eu não consegui aproveitar. Vocês falaram tanto, porque hoje eu não estou mais com ele, eu estou com outra pessoa e tudo. Que pena, eu acho que eu podia ter tido outra experiência de vida”. Mas eu olhei pra bebê e falei: “Nossa, e como é que tá?”. Era uma menina linda negra com as trancinhas, com o cabelinho arrumadinho, cheirosa, limpa. Eu falei: “Nossa, sua filha está linda. Você cuida muito bem”. E ela falou pra mim: “Olha, eu levo na creche da prefeitura e a pessoa lá da creche fala que é menina mais arrumada, mais limpa que chega lá é a minha”. Aí eu pensei, poxa vida, ela aprendeu alguma coisa, sabe? Não deu pra usar na própria vida, mas ela vai fazer diferença na vida da filha. Então eu acho que isso foi muito bom. Na época ela não conseguiu talvez entender ou fazer uma mudança na vida dela, mas com certeza a semente estava lá e ela vai fazer diferença na vida da filha. Ela trata a filha diferentemente do que a mãe fez na vida dela, os pais, enfim. Então a semente ficou, germinou e essa filha se sente amada, é cuidada com carinho, com amor. Talvez a gente queira um resultado imediato das coisas, mas ele vai se dar no tempo que tiver que ser, no momento que tiver que ser. Não está no nosso controle. Então é isso.
P/1 – Queria falar um pouquinho agora da questão do Criança Esperança. Assim, desde quando você Tarcísia conhece o projeto Criança Esperança, como é que você conheceu e aí como é que foi a aproximação do ICA com o Criança Esperança e essa relação, como é que esse recurso veio pra cá. Um pouquinho a história mesmo.
R – Criança Esperança a gente conhece da TV e a gente fica sempre com essa impressão pra quem que vai esse recurso? Que acho que está no inconsciente e está no consciente de todo mundo que assiste, né? Nessa coisa de mandar projetos pra todo lado, poxa vida, vamos mandar pro Criança Esperança também. E no primeiro ano que a gente mandou nós fomos aprovados. Eram 1040 projetos, foram 40, 42 aprovados e normalmente que eu sei eram poucos no Estado de São Paulo porque é onde tem mais dinheiro, normalmente os projetos do Criança Esperança são aprovados norte, nordeste e outros estados que não o Estado de São Paulo. Então foi uma surpresa maravilhosa. Na época foram 120 mil reais que era significativo pra nós, tinha um impacto forte nas nossas ações e mais uma coisa pro nosso currículo, sabe? Mais uma premiação. Você ser aceito num projeto que tem a Unesco e a Rede Globo, que te dá uma visibilidade, uma credibilidade, isso abre portas, abre portas pra outras empresas, pra outros editais te aprovarem. Passaram nesse crivo, então deve ser bom, vamos olhar com mais atenção. Então foi bem impactante. Todo mundo em Mogi Mirim: “Poxa vida, que bacana vocês receberem o Criança Esperança”. Aqui na cidade teve uma repercussão bem forte também.
P/1 – Que ano que foi isso?
R – 2008. Foi em 2008.
P/1 – E qual que foi pra vocês, Tarcísia, a importância desse recurso assim? Desse apoio e desse recurso. Como é que ele foi utilizado? Qual que foi a importância pra estrutura e pras atividades de vocês?
R – Eu lembro que na época a gente usou parte do recurso pra biblioteca, que a gente tem uma biblioteca aí de seis mil volumes. Porque a gente faz um incentivo superforte à leitura, temos projetos de leitura que as crianças levam pra fora, inclusive pras outras escolas, elas vão e leem pra outras crianças. Mais uma ação de protagonismo do ICA que a criança nem lê muito bem, mas ela propõe o livro pra outras crianças, que a criança pode ler pra ela, pra essa criança que vai na escola ou vice-versa. Então eu acho que parte do recurso foi pra isso e pras nossas atividades artísticas mesmo, porque hoje o ICA tem circo, teatro, dança, música. Na época a gente tinha artesanato, hoje a gente ainda tem, não é tão forte, mas temos também artesanato. Acho que eu falei todas, né? Dança, circo, teatro, música e essa proposta da leitura que é muito forte no ICA. Então foi pro Carpe Diem, que é o nome do projeto, pra essas ações, pra compra de materiais, enfim, foi pra esse dia a dia do ICA, vamos dizer.
P/1 – E de uma maneira geral assim qual que você acha que é a importância desse recurso do Criança Esperança, dessa mobilização que o Criança Esperança faz, desses recursos e dessas doações pras instituições de caráter social, pras entidades que trabalham com essa questão social?
R – Eu acho que está pra além do recurso. Lógico que ele é importantíssimo e ele ajuda muito, enfim, tem um impacto significativo nas suas contas e tudo. Mas eu acho que o maior impacto do apoio do Criança Esperança é essa visibilidade. É esse selo de que fui aprovado pela Unesco e pela Rede Globo. Acho que esse é o maior bem. Lógico que dinheiro é importante e faz bem, mas acho que mais do que isso é a possibilidade de abrir outras portas pra conseguir recurso e apoio.
P/1 – E vocês sentiram isso, esse impacto no ICA?
R – Ah, não tenha dúvida. Esse currículo do ICA está muito engrandecido, está muito forte com o apoio do Criança Esperança. Eu não conheço nenhuma organização aqui na região que tenha o Criança Esperança a não ser o ICA. É um diferencial na vida do ICA. É um grande diferencial.
P/1 – Tá certo. Eu vou encaminhar então agora pras questões finais, são duas questões, mas antes eu queria saber se tem alguma coisa que eu não tenha perguntado e que você gostaria de deixar registrado. Qualquer coisa.
R – Ah, eu acho que não. Não me vem nada.
P/1 – Não te ocorre nada agora?
R – Você viu que do ICA a coisa vai, né?
P/1 – Tudo foi. Você vai ver depois, você vai ter a oportunidade de assistir que do ICA eu acho que é uma coisa que você está mais habituada a falar, né? E o restante nem tanto assim. Mas foi muito bacana. Então vou te fazer a penúltima pergunta que é quais são os seus sonhos.
R – Ser avó que eu já sou, mas ser avó várias vezes porque é vida, é muito bom. Minhas filhas estarem bem, poder continuar com esse trabalho que uma grande parte da minha vida está aqui, são 17 anos e acho que é importantíssimo pra mim, ver o ICA continuar, ver essas crianças crescendo. Vocês puderam ouvir alguns depoimentos de adultos que hoje são educadores aqui, que essa corrente do bem continue existindo e crescendo. Que a gente tenha essa cidade outra cara com possibilidades pras crianças, pros jovens, que o ICA seja essa semente forte que só cresça, que só perpetue esse mundo do bem, que eu acho que é um anseio de todo ser humano. Nós nascemos pra ser felizes, pra ser amados. Acho que essa é a busca do ser humano, ele vem pro mundo pra amar e ser amado e isso perpassa a nossa vida toda. Tudo que a gente faz na vida é pra ser amado, é pra ser aceito, pra ser querido, pra ser amado. Acho que o ICA ajuda as pessoas a se sentirem assim, amadas, e quando elas são amadas elas fazem o mundo ser melhor. Eu acho que é isso.
P/1 – Por fim, como é que foi contar a sua história?
R – Ah, foi difícil. Eu achei que... Falei: “Meu Deus, será que eu tenho uma infância tão triste que nada aconteceu? Não tem nenhum caso bacana, engraçado”. E vi que realmente foi um pouco plana a minha explicação, enfim, as coisas que eu contei. Mas eu tive uma infância não tão feliz, mas eu tenho uma vida adulta muito feliz, muito realizada. Acho que eu lutei pra isso e as pessoas que estavam comigo também me ajudaram nisso. Eu hoje sou muito feliz, muito realizada, muito tranquila com relação a vida, muito pronta pra viver ou pra morrer. Estou muito bem. Estou numa fase plena. Muito boa.
P/1 – Tá certo, Tarcísia. Muito obrigada.
R – De nada, amor.
P/1 – A gente encerra.
FINAL DA ENTREVISTA
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