Projeto História das Profissões em Extinção
Depoimento de Philadelpho Braz
Entrevistado por Luís André do Prado e Priscila Perazzo
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 16 de outubro de 1996
Realização Museu da Pessoa
Entrevista n.º 29
Transcrita por Rosália Maria Nu...Continuar leitura
Projeto História das Profissões em Extinção
Depoimento de Philadelpho Braz
Entrevistado por Luís André do Prado e Priscila Perazzo
Estúdio da Oficina
Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 16 de outubro de 1996
Realização Museu da Pessoa
Entrevista n.º 29
Transcrita por Rosália Maria Nunes Henriques
P - Gostaria que se identificasse dizendo seu o nome completo, local e data de nascimento.
R - Bom, eu me chamo Philadelpho Braz. Eu nasci em 29 de julho de 1926, num lugarejo chamado, na época, Sales de Oliveira e hoje cidade, município. Eu não nasci propriamente no lugarejo e sim numa localidade chamada Aurora, que era parte de uma fazenda chamada Boa Sorte, da família Pereira Lima, grupo de famosos latifundiários da época. Então, eu nasci praticamente no mato.
P - Estado de São Paulo?
R - No estado de São Paulo, uns 40 quilômetros acima da cidade de Ribeirão Preto. Digo sempre que eu nasci numa casa de taipa, pau-a-pique, que entrava até onça pelos buracos. Aí as minhas origens começaram bem chegadas à natureza e de uma forma muito sofrida. E a evolução, eu tenho o hábito de dizer, já disse para outros entrevistadores, eu sou um daqueles, uma daquelas pessoas selecionadas para viver. Porque a minha origem e as condições de vida, assim, logo após o nascimento, a mortalidade infantil era muito alta em decorrência dos males que existem hoje e existiam na época. Porque naquele tempo não tinha o mínimo de assistência. Então nós fomos selecionados, passamos pela prova e aqui estamos. Hoje com 70 anos felizmente, até bem vividos, porque a gente faz aquilo que a gente gosta, militando em movimentos, em política. É isso aí.
P - Origem da sua família, seu pai, a sua mãe, os seus avós.
R - O meu pai era um nômade, baiano.
P - Nome?
R - Arlindo Braz, a minha mãe era filha de italianos, Maria Moretto. Então eu tenho sangue de italiano também. E meu pai nasceu na Bahia e até hoje para mim ainda é mistério como ele chegou na localidade onde eu nasci. Analfabeto, muito trabalhador, inteligente, muito inteligente, ele se radicou nessa localidade, casou-se e ali constituiu família. E ficamos seguramente uns 15 anos vivendo no mato, mato modo que se diz, para a época o local em que eu nasci era uns grotões muito distantes, que para chegar aqui de Maria Fumaça, em trem, demorava-se uma noite toda. Então era muito longe, o que é 400 quilômetros daqui lá. Primeiramente, a localidade que eu disse que se chamava Aurora era perto da cidade uns 3 quilômetros. Então a gente nasceu ali e tinha, por exemplo, a cidade perto 3 quilômetros, mas tudo era atrasado, tinha falta de assistência, meu pai trabalhando. Que a gente podia resumir que morando num latifúndio se passava fome. Então era uma vida muito sofrida. Até que um dia deu um estalo no meu pai, que era uma pessoa muito ativa, resolvemos sair de lá e vender os "trens" de casa, como se falava, as tralhas, juntar alguma coisinha e embarcar na Mogiana para São Paulo. Porque aqui já era assim, um dos pontos do país cantados em prosa e verso pelo seu desenvolvimento. Já existia o prédio Martinelli, já existiam aqueles luminosos famosos por aí. Então a cidade, todos aqueles que vinham aqui e voltavam para lá falavam maravilhas. Então o meu pai disse: "Nós vamos, mas vamos para ficar, não é para voltar."
P - Como era o cotidiano da sua vida lá no matão? O seu pai produzia, fazia plantação e o senhor ajudava?
R - Meu pai, como eu acabei de dizer, era uma pessoa assim muito inteligente pelo seu grau de cultura, porque ele era analfabeto. Ele tinha, ele gozava assim de uma certa preferência do fazendeiro para certos trabalhos que talvez, se o fazendeiro quisesse fazer 100%, teria que contratar um agrimensor, um engenheiro. Então se o fazendeiro falasse: "Arlindo," que é o nome do meu pai "Me divide esse pasto em tantos alqueires." Ele, com as suas medidas, com suas correntes ou varas que se usava, ele dividia o pasto do jeito que o fazendeiro queria, podia até não ser 100%. Mas era uma pessoa que sabia fazer as coisas. "Me abra um picadão." Picadão quer dizer abrir no meio da mata um corredor, um lugar que se possa passar limpando, tirando o mato "Que chegue em tal lugar sem errar o rumo, porque o mato é fechado." Ele saía também e fazia. Era o fazedor de cercas, cercas para cercar o gado. Era o homem que ia andar dentro da mata para procurar madeiras de lei caídas, para transformá-las em lascas para fazer mangueiras, cercas para dividir pastos. Meu pai fazia tudo isso aí. Então ele tinha um certo privilégio mas não ganhava bem, porque o fazendeiro nunca pagou bem ninguém. Então nós ajudávamos ele nessa tarefa. Eu lembro, era muito criança, dessas atividades de entrar no mato para procurar madeira para se fazer muitas coisas. Como os mourões para as cercas, os instrumentos, as ferramentas, era um traçador, um grande serrote que puxa em duas pessoas, um de cada lado, uma marreta, um malho pesado, e três, quatro cunhas de ferro para poder lascar a madeira e dividi-la em quantas peças precisasse ou ela desse. E nós participávamos dessa tarefa com muito sacrifício, fraquinhos porque éramos paupérrimos, não comia, não comia bem. Leite a gente tinha às vezes acesso a meio litro, um litro, com muito sacrifício, para uma família de seis, sete O que é um litro de leite? Isso morando num latifúndio. O fazendeiro às vezes dava um cantinho para você fazer uma roça, arroz, feijão ou milho, mas quem tinha uma outra atividade para ganhar o dinheiro não tinha talvez condições de tocar a roça. Essas tarefas tocavam os garotos, que era eu e os meus irmãos. E nem sempre nós dávamos conta do recado.
P - Eram quantos homens?
R - Éramos em quatro. Mas esse período que eu relato eu devia ter 10 anos, 8 anos. Então era uma tarefa muito pesada para a gente.
P - O que se comia na família?
R - Bom, o básico do brasileiro sempre foi arroz e feijão. A gente comia arroz e feijão e muito legume, porque a abóbora ela dá em qualquer lugar. Tem uma outra, não sei se é leguminosa que chama, serralha, dá no campo, se come. Tem o caruru, também se come as folhas, tem a taioba que dá nos alagados, também se come. O cará que você planta, ele dá e você come. Frutas, tinha à vontade. E tínhamos também um pouco de sorte porque nesse lugar chamado Aurora nós morávamos perto de um matadouro e nós íamos ajudar os açougueiros que iam matar vaca para vender na cidade.Eles sempre davam para gente a cabeça, o rabo, e a gente tinha essa proteína animal que também que ajudava. Mas mesmo assim as condições de vida eram muito sofridas e podia se dizer que às vezes se passava fome.
P - Eram muitas famílias nessa fazenda?
R - Tinha. Eu lembro que devia ter umas dez famílias, a maioria descendente de italianos, imigrantes, filhos de imigrantes. Mas essas famílias eram mais dedicadas ao café, à conservação dos cafezais e à colheita. Então essa era a menina- dos- olhos do fazendeiro, era o café, porque naquele tempo não existia pecuária como existe hoje. Esses colonos que se chamavam, eles moravam assim numa viela onde as casas eram todas enfileiradas iguaizinhas, caiadas de branco, algumas com paredes divisórias, que chama parede e meia, e algumas isoladas. Eles moravam ali e obedeciam um ritmo de trabalho que, por exemplo, precisavam limpar um cafezal, assim iam todos, quando iam colher iam todos, trabalhavam em grupo. O nosso trabalho, o do meu pai era mais isolado.
P - Vocês moravam em casinha de colono?
R - Não, a nossa era pior. A nossa era como eu disse, era uma casa de barro muito rústica, chovia dentro, tinha ratos, entrava cobra dentro da casa. Então todos esses riscos nós passamos e estamos aqui, felizmente.
P - Estudou?
R - Eu fiz até o terceiro ano primário.
P - Na fazenda?
R - Não, na cidade, porque a cidade ficava a 3 quilômetros, nós pegávamos o nosso bornal com os caderninhos dentro e íamos no grupo escolar da cidade. Eu lembro que a gente era assim de uma condição tão miserável, que existia uma caixa escolar que alguns da cidade que tinham quitanda, o padeiro dava o pão amanhecido, o quitandeiro dava banana, e era o nosso lanche. O lanche dos pobres que estavam na escola era esse aí.
P - Na fazenda existia alguma produção em grande quantidade?
R - Não, exclusivamente o café.
P - Era exportado?
R - Sim, era exportado porque o Brasil até a década, fim de 40, dependia muito da exportação do café. E o ouro verde mesmo era o café, e os fazendeiros tinham aquilo como a menina- dos- olhos.
P - Seus pais eram religiosos?
R - Nem tanto, nós somos católicos, éramos católicos ou somos católicos, mas católicos comuns como todo mundo. A missa de domingo era na localidade que eu nasci, Sales Oliveira, ir na missa era um sistema de lazer, porque você encontrava gente de todas as fazendas vizinhas e a gente conhecia alguns. Então ia-se à missa pela manhã e ficava o dia todo na cidade, zoando como se diz. O pai jogando truco, o outro jogando bocha, tinha futebol na cidade e a molecada em volta do campo. Então era o lazer, voltava para casa de noite, no escuro, para o outro dia pegar nas suas tarefas.
P - Como foi a vinda para São Paulo? Como foi a decisão? O seu pai pensou muito?
R - O caso é o seguinte, tem um detalhe, eu perdi a minha mãe eu tinha 6 anos, fiquei órfão. Se a vida já era dura, então você imagina o que passou a ser daí para frente. Meu pai não tornou a casar porque ele tinha a preocupação que a madrasta pudesse maltratar seus filhos. E como São Paulo desenvolvia-se, muita gente, as pessoas da cidade e até alguns colonos, talvez até por doença, para um exame mais completo, uma doença, ou ia para Ribeirão Preto que era o lugar mais próximo, ou vinha mesmo para São Paulo. Então era uma aventura vir para São Paulo, vinha quem podia, quem tinha dinheiro, era rico ou tinha juntado dinheiro para isso. E quando chegavam falavam maravilhas, isso que eu citei: "Oh, tem um prédio lá, o prédio Martinelli," que era o único edifício de São Paulo, os luminosos, então comentava muito os luminosos. Às vezes levava um produto daqui que era uma coisa do outro mundo, que a gente nunca tinha visto, para a época era uma novidade.
P - O que se lembra de ter visto?
R - Isso aí, eu lembro uma vez o meu avô... O meu avô morava num local assim retirado uns 10, 12 quilômetros, lá tinha uma estação de trem chamada Porongaba e a próxima era Salles Oliveira, mais próximo de onde nós morávamos. Meu avô chegou com uma maçã, coisa que nós nunca tínhamos visto e aquela maçã parece que ele comprou no carro restaurante da ferrovia que vendia, e levou para os netos para partir a maçã em seis ou sete, uma fatiazinha de maçã, quer dizer, uma novidade Outra é que as pessoas às vezes chegavam e chegavam com uma roupa diferente: "Ei, aonde é que você comprou essa?" "São Paulo", enchia a boca para falar São Paulo. E tudo aquilo ia entrando na cabeça do meu pai, então ele ouvia, e o que ajudou é que eu já tinha uma tia aqui em São Paulo, que nos animava a sair de lá porque sabia que a vida era dura, porque ela viveu lá também. Então, até que um dia, nós mudamos dessa cidade próxima que nós morávamos, Salles Oliveira e fomos para um lugar mais longe ainda, e aí a vida ficou mais difícil ainda. A vida ficou difícil porque era três vezes mais longe de que aonde morávamos, a escola foi abandonada, pura e simplesmente abandonada. A vida dura continuou sendo dura, ou mais dura ainda. O patrão muito bom, conversa macia, paternalista assim, mas não pagava salário adequado. Então isso acredito que foi mexendo na cabeça do meu pai até que um dia ele vendeu os trens de casa, as tralhas, juntou um pouco de arroz, feijão, botou num saco e fomos para a estação. Acho que andamos umas duas ou três horas para chegar numa estação chamada Guaiuvira, que tinha duas ou três casas, para poder pegar a Mogiana para vir para cá. Aí foi o começo da nossa vida, assim andando para frente e tendo umas perspectivas de coisas melhores, porque todos aqueles que chegavam lá, diziam: "Lá tem fábrica disso, fábrica daquilo, trabalha menino, trabalha mulher, trabalha homem." "Bom, se a gente for embora para lá e todo mundo trabalhar, a gente vai melhorar a vida." Agora, a vida nunca foi fácil, mesmo chegando aqui. Primeiro porque nós não tínhamos, a maioria dos irmãos não tínhamos idade para poder trabalhar, não tinha 14 anos, não tirava documentos, só tinha meu pai e o irmão mais velho que tinham condições de trabalhar. Nós chegamos aqui no Brás, na casa da minha tia, se não me engano rua Xavantes, 509 e ela nos deu guarida. E nós começamos aí a labuta. Aí já fomos... Santo André já era uma cidade muito comentada, já começava o seu desenvolvimento, embora a indústria base de Santo André era fiação e tecelagem e já se comentava o desenvolvimento de Santo André. Então tomamos o subúrbio, a inglesa na época, e fomos para Santo André. Me lembro que nós fomos morar na rua França, no bairro de Parque das Nações, 397. Ali então depois se juntou toda a família e começamos a procurar alguma atividade que nos desse dinheiro para sobreviver. Agora, o começo aqui também não foi fácil, foi difícil. Eu, como não tinha idade para trabalhar, fui trabalhar de mordomo na casa dos Motta em Santo André. Eu era um faz-tudo, fazia de tudo, ganhando quase nada também, a troco de um prato de comida, algum dinheirinho. E a luta continua. Meu pai arrumou um emprego, trabalhar de três turnos, nunca tinha trabalhado de noite, então houve assim uma mudança radical no sistema de vida. Mas tinha que se adaptar porque era questão de sobrevivência. O irmão mais velho também arrumou emprego.
P - Qual o emprego que eles arrumaram?
R - Meu pai foi trabalhar numa firma chamada Laminação Nacional de Metais, que é do Grupo Eluma hoje. Mas a Laminação manipulava naquela época a fabricação dos seus metais na Laminação, muitos produtos químicos, e era um trabalho penoso, mas ele suportou aquilo por muito tempo para poder começar a vida aqui. O irmão mais velho que tinha tempo para trabalhar, foi trabalhar no Moinho Santista, na Fiação e Tecelagem Ipiranguinha, famosa Ipiranguinha, a mais antiga indústria de fiação e tecelagem do ABC. E aí começou a engrenar a vida. Mas essa vida de, por exemplo, fazer biscates, trabalhar na casa de um ou de outro, eu e os meus irmãos ficamos, os mais novos, quase um ano. E nós tínhamos uma tarefa assim, porque o órfão ele se adapta a uma condição de vida que ele lava roupa, ele faz comida, ele arruma a cama, ele varre a casa, é uma necessidade imperiosa para sobreviver, e nós fazíamos tudo isso. Aliás, eu gosto muito de cozinhar, até peguei o gosto pela cozinha.
P - Tinha um rodízio? Cada dia um cozinhava, o outro lavava roupa?
R - Exato. Cada um tinha a sua tarefa e às vezes dava uma encrenca ou alguém não fazia ou não queria fazer, por qualquer razão não tinha feito: "Hoje é o seu dia, não quero saber. Você que faça". Tinha tudo isso.
P - Seu pai era durão? Controlava muito?
R - Meu pai era durão. Meu pai nos educou assim à moda antiga, às vezes levava umas cintadas.
P - Como foi avançando na vida profissional?
R - Bom, quando eu comecei a aproximar dos 14 anos comecei a tirar fotografia e andar atrás dos documentos, carteira de menor, falava, qualquer coisa precisava de carteira de menor.
P - Podia trabalhar com 14 anos.
R - Só com 14 anos. A carteira de menor você tirava num posto de saúde que tinha na rua das Figueiras, esquina com Rangel Pestana. E nós ia ali para fazer exame de pulmão, passar por médico para a gente sair com o exame de saúde para tirar a carteira de menor que o próprio Centro de Saúde se encarregava de expedir. Então dava autorização para trabalhar. Isso aconteceu comigo em setembro de 1940. Na época a preocupação das famílias pobres, a primeira coisa era que os filhos trabalhassem, completou 14 anos, trabalhar. E nós não éramos diferentes, tiramos a Carteira, eu e meus irmãos e fomos procurar emprego. Eu lembro que por uma indicação do meu irmão mais velho que trabalhava na Ipiranguinha, eu fui lá. Mas eu fiquei quase toda a manhã na porta da fábrica e ninguém veio me dizer nada. Eu ali, até que um hora eu me aborreci e mandei chamá-lo, simplesmente disse: "O cara falou que não tem vaga aqui." Naquele tempo, hoje tem agências de empregos, naquele tempo se andava de porta em porta de fábrica, até pouco tempo ainda se andava. Eu andei de porta em porta: "Não tem emprego," "Não tem emprego," "Não tem emprego." Até que eu cheguei nessa firma Fichet e o próprio porteiro morava dentro da fábrica e era o porteiro. Quem me atendeu, a mulher saiu lá, a mulher do porteiro, o porteiro trabalhava no escritório e a mulher era porteira. Chegou enxugando as mãos no avental e perguntou o que eu queria. "Eu quero emprego, quero trabalho." Mas aqui conversa um pouco, ela já tinha quase me desenganado, ia voltando, aí por sorte passou um belga de 2 metros de altura que era um dos diretores da empresa: "O que é que quer o menino?" "Ele quer trabalhar." Ele falou: "Ele tem documento?" "Tem." Mostrei. "Vai trabalhar." "Hoje eu não posso, preciso ir em casa avisar." "Vem amanhã cedo, então." Então no dia 22 de setembro eu comecei a trabalhar nessa firma Fichet, pioneira na fabricação de tancaria, depósitos, reservatórios de combustível, de água, de transporte e estruturas metálicas também. O forte era estrutura metálica e tancaria, a área de calderaria. A gente entra dentro da fábrica, todo aquele barulhão, a gente fica zonzo, fica fora de si. Depois vai se adaptando e vai gostando porque você procura, você vai fazendo amizade. Alguns são malandros, procuram fazer piada com você, outros te aplicar alguma, como se diz, mandava você fazer alguma coisa errada para depois dar risada. E a gente vai. A maior satisfação é que no fim do mês você recebia um envelope, tinha alguma coisa dentro, coisa que a gente nunca tinha visto. Era uma forma que você notava que você estava tendo um ascenção social. Agora, em contrapartida, o envelope é dominado pelo pai ou pela mãe, como era antigamente. "Deixa ver." E às vezes não dava para te dar 500 réis ou 50 centavos para você ir no cinema de domingo, às vezes não sobrava. Então isso era duro. De qualquer forma era um começo de vida e foi assim que nós começamos.
P - Descreve essa fábrica, as etapas de produção de tanques e em que setor entrou.
R - Eu entrei na área de construções pesadas. A construções pesadas era exatamente essa área de grandes estruturas e área de reservatórios, tanques. Fazia-se de tudo construído em aço, mas a construção pesada. Existia também a área de serralheria que era janelas, que naquele tempo era tudo de ferro, feita artesanal. E existia, a Fichet tinha também área de fábrica de caixa - forte, cofres, ela foi muito famosa nessa área. Então existia essas três áreas e nós caímos na mais pesada, infelizmente. Mas nos desencumbimos muito bem, como criança nós éramos ajudante, sempre trabalhávamos com o profissiona, até que a gente foi pegando, estudando. E como eu já disse num outro depoimento, foi gratificante porque ali o profissional, a pessoa que trabalhava, ele trabalhava numa indústria, numa multinacional, na Fichet, você tinha que saber interpretar desenhos feitos por engenheiros para pode executar o trabalho. Então você tinha que aprender alguma coisa, você tinha que ter alguma noção, você tinha que forçar a mente para poder desenvolver o trabalho que você ia fazer, porque eles jogavam um monte de peças de aço e falavam: "E daí tem que sair isso que está no desenho." E nem sempre as coisas davam certo porque às vezes a teoria é uma coisa e a prática é outra. Na hora de montar, as coisas não davam certo. E aí você chamava, depois que você passava a interpretar perfeitamente os desenhos, a prática ensinava o teórico, que era o engenheiro, que ele via: "Isso não dá para fazer por causa disso e disso." Então modifica-se o desenho, tinha que arrebentar com a teoria do outro. Então era até gratificante por isso aí, que a gente aprendeu muito. E uma coisa que se notava é que na fábrica tinha muitos estrangeiros, tinha europeus, espanhóis, tchecos, italianos, franceses. A chefia era toda francesa e belga, obviamente, e os capatazes da oficina brasileiros, logicamente, para apertar a gente. Aí foi-se desenvolvendo e em contato com essas pessoas tinha, a gente notava, eu vim notar tempo depois, que eu não sabia o que era o anarquismo. Havia resquícios de anarquismo naquelas pessoas mais antigas, porque eu lembro que toda reivindicação dentro da fábrica era levada por comissões. Hoje se fala muito em comissão de fábrica, naquela época já existia, mas ela era formada ali espontânea entre as pessoas da seção para levar o problema à diretoria da fábrica e discutir com a fábrica. Quer dizer que o sindicato, ele tinha assim uma atuação muito pequena na época ainda. Porque às vezes o problema era resolvido entre os diretores e os próprios empregados, os diretores da fábrica, os donos da fábrica e os próprios empregados. Uma homologação, um acordo mais amplo, talvez teria necessidade de ser conduzido pelo sindicato, mas se notava, na minha época, que o sindicato já tinha assim a influência, o domínio comunista, da ideologia comunista, os quadros do Partido. Enquanto que sempre houve, historicamente, uma grande divergência ideológica entre anarquistas e comunistas. Então talvez eu chegue à conclusão que os problemas que eram levados por essa comissão de fábrica a essa diretoria da empresa, e às vezes solucionados, era uma espécie de tentar impor um revés no sindicato, que tinha orientação do Partido Comunista, o qual veio depois a absorver os anarquistas, alguns quadros anarquistas. Porque o anarquismo acabou depois da fundação do Partido Comunista. Até o fim da década de 20 o anarquismo se liqüidou porque os quadros esvaziou, como hoje o Partidão está esvaziado.
P - Gostaria que me dissesse qual era a sua tarefa com 14 anos.
R - Bom, a tarefa do ajudante, dos garotos, dos moleques, é sempre ajudar um outro profissional. E eu lembro que eu trabalhei muito tempo na área de rebitação, eu falei muito já em outro depoimento que era uma função que ocupa quatro pessoas. Para montar uma estrutura metálica, uma tesoura de pavilhão, uma longarina ou peças de uma ponte metálica, peças de uma torre de prospecção de petróleo ou qualquer outra coisa, um tanque reservatório, um tanque cisterna de vagões de trem para transportar combustível. Era feito no sistema de rebitagem, e aí era aonde se usava uma pessoa para esquentar o arrebite, que se chama esquentar na forja, que ele tem que ser incandescente. O rebite tem cerca de quase uma polegada alguns, ele vai desde o mais fino até o mais grosso, a ¾ de polegada. Então tinha uma pessoa para esquentar e a função do menino, do moleque que era eu, esse que esquentava quando o arrebite estava incandescente, ele jogava ele lá perto da peça que estava sendo rebitada. Porque a peça era grande, ela estava lá no meio do pavilhão, ela tinha que sair montada lá da oficina. Então a minha função era pegar o rebite com uma tenaz apropriada e colocar no furo para uma pessoa, com uma alavanca e um dispositivo que segurasse o rebite, segurar ele junto da peça e o rebitador com um martelete à pressão, um martelete pesado, fazia a outra cabeça para junção da peça. Então os meninos, os moleques na outra oficina eram usados muito para isso, na firma em que eu trabalhava, na Fichet. Eu trabalhei nisso muito tempo.
P - E isso gerava acidente?
R - Muitos acidentes, na época não existia proteção alguma e uma boa parte de trabalhadores usava tamancos. Hoje quem usa tamancos são as mulheres, é até chique. Usavam tamancos que eram fabricados mesmo para quem não podia comprar sapato. E você tinha que trabalhar por cima de chapas molhadas que são lisas que nem sabão, onde tesouras cortam chapas e deixam aquelas farpas pontiagudas, e você estava quase descalço no meio. Na rebitação, quando às vezes o rebite pegava numa peça, porque essa pessoa que encontra o rebite, encontrava o rebite, ela ficava sentada num banquinho quase rente ao chão para poder manejar o encontrador, que eles falavam. Quando o rebite às vezes caí nas costas, deixava uma marca. Então não tinha proteção. E mesmo o martelete à pressão, ele tem assim um dispositivo de pistão que faz um barulho terrível e ninguém tinha proteção para os ouvidos. E o pior, quando era livre dentro do pavilhão, quando eram umas tesouras que se arrebitava ou outras peças em cima de cavalete, o barulho se espalhava. O difícil era quando você trabalhava dentro de um tanque fechado, que esses rebites eram jogados por um buraco e o outro martelava do lado de fora, e você sem proteção nos ouvidos. Eu tenho um tímpano, os dois, acredito, estourado, inclusive nesse aqui eu tenho que nem uma turbina de avião que o meu metabolismo já absorveu, assimilou, porque eu durmo, vivo com isso, então ainda não fiquei surdo. E não tínhamos proteção nenhuma, gerava acidentes sim, e acidentes graves. Pontes rolantes com feixes de aço, cantoneira e outros ferros passando por cima do trabalhador, quantas vezes, porque era amarrado com correntes, e às vezes a carga era demais e a corrente fraquejava, caía, pegava, matava. Tinha tudo isso.
P - Morreu gente?
R - Então aquele era um fato que acontecia, "Deus quis assim." Então a produção tinha que sair e saía, agora a que preço?
P - Sobre horário,qual a sua rotina de ida e volta para o trabalho e que tipo de controle a empresa tinha sobre esse dia - a - dia da produção.
R - O controle da produção, primeiro você marcava ponto. Ponto sem marcar não se justificava. Se você estava lá dentro e não marcou ponto perdia dia, perdia horas. E se não vinha trabalhar tinha que justificar:"Por que é que não veio?" Porque eles tinham que deslocar, como hoje tem que se fazer também, um outro empregado para uma função que você devia fazer. Então tinha um controle, e às vezes a produção tinha prazo certo para entregar. Então você podia sofrer sanções, suspensão, um dia, dois dias, três dias, suspensão do trabalho, já que você não quis vir aquele dia, então você fica mais dois dias em casa, completa três e não ganha. E aquilo era desabonador na tua ficha. Essa foi a empresa que eu trabalhei 22 anos. Agora, eu já disse, a manipulação do aço pelo homem isso vem desde tempos imemoriais, quando se fazia... Vulcano, que é o deus mitológico do aço, era ferreiro, fazia ferramenta, fazia arma, é gostoso, te dá prazer. Porque é um trabalho, é lógico que eu estava falando que tem que se interpretar desenho, mas tem o aspecto artesanal de você pegar e falar eu fiz. Agora quando eu vinha para cá eu passei aqui perto do Parque D. Pedro. Olhando para cima vi a bandeira lá em cima do Banestado, Banco do Estado, que ele tem uma cúpula que foi aberta à visitação, isso eu estou dizendo para ilustrar. Eu lembro que aquela cúpula me deu muito trabalho. Eu que montei a estrutura de aço para ela ser fixada em cima do Banco do Estado, ela está lá.
P - Tem esse orgulho?
R - É a manipulação do aço, o dia que você passar no centro da cidade você pára um minuto, desliga-se do burburinho da cidade e pára em frente a um portal desse grandes bancos, dessas catedrais de dinheiro e olha o que a mão do homem produz na manipulação do aço. Isso sem desmerecer, por exemplo, a engenharia de alvenaria, o trabalho de alvenaria, que você vê cada coisa linda, o homem sempre foi inteligente e ele fez coisa que ninguém mais repete, hoje ele não faz mais, entendeu? Então são coisas maravilhosas, eu estava tentando explicar para menina da TV Cultura e do Diário Popular o que é um rebite, e por quê que você usa rebite. Eu falei: "Você passa na Estação da Luz e vai olhando as estruturas, todas aquelas cabecinhas rodando que você vê, são rebites." Naquele tempo era tudo rebitado, não se usava solda, depois é que a solda veio se plantar. Então a manipulação do aço pelo homem é uma coisa assim que dá prazer, porque você monta um negócio e fala: "Não, eu que fiz." Agora hoje o homem faz automóvel, faz computador, o homem faz avião, mas é uma espécie de linha de montagem, ele tem uma participação assim numérica nessa produção, ele é uma figura. Enquanto que no passado talvez você era o responsável, tinha uma equipe também mas não era uma linha de montagem, não era o produto entrar lá e sair pronto lá. Era um negócio que dependia de você pensar, de você ajeitar, de você manipular, entendeu? Então, por isso que trabalhar o aço sempre deu assim uma satisfação muito grande.
P - Sempre nessa função?
R - Não, eu trabalhei sempre nessa função, sempre trabalhei nessa firma e depois comecei a me ligar aos movimentos políticos, aos movimentos sindicais já na década de 40. Por sinal, no fim da Guerra .não vou dizer que fui cooptado assim pelo Partido Comunista, mas teve influência, pessoas que chegaram, palavras de ordem, material. Então nós fomos nos aproximando do sindicato. Eu entrei no sindicato conforme tem na minha carteirinha aqui, a minha matrícula é número 2.909 no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André no dia 22 de maio de 1945. Se não me engano foi no dia que terminou a Guerra, Segunda Guerra Mundial. Por quê? Por que tinha um burburinho na rua, um movimento tremendo na rua, um movimento político, o pessoal do Partido, todo o povo aí porque a guerra acabou, as fábricas dispensaram os empregados. Eu naquele dia me sindicalizei. Hoje já fazem 51 anos que eu nunca mais me desliguei de movimentos políticos e sindicais. Embora aposentado eu estou no meio, hoje eu estou na Associação dos Aposentados. E a nossa entrada nesse movimento sindical foi assim, não vou dizer acidentária, mas de aproximação. Enquanto alguns tinham pavor assim de entrar em movimento, principalmente quando falavam que os comunistas estavam infiltrados, eu sempre me aproximei mais. Me aproximei mais e fui me aproximando e então passei a ser uma pessoa assim de confiança, um quadro de confiança, embora não filiado, não fichado, mas um companheiro assim lutador. Por quê? Porque dentro da fábrica eu era um, eu sempre comprava a briga dos outros empregados, eu sempre tinha na minha gaveta a legislação trabalhista que foi... e orientando o trabalhador porque eu estava sempre no sindicato, então tinha aquilo, você quando está sempre no sindicato, quando trabalha numa fábrica, as pessoas vêm perguntar para você: "Oh, o que aconteceu lá? Como é que isso, como é que é aquilo." Era uma espécie de ponte. Então eu fui assumindo tanta responsabilidade que tinha dia que eu chegava em casa cansado, depois de um dia estafante de trabalho, me lavava, tomava uma janta qualquer lá e ia para o sindicato, às vezes para tentar solucionar, responder a uma pergunta que tinha me sido formulada e eu não tinha dado uma satisfação para o companheiro adequada. Então eu falo: "Eu vou lá e pergunto. Lá tem advogado, tem isso e pergunto." Então eu fui entrando e quando eu vi estava de corpo inteiro lá dentro, e continuo lá.
P - Quais foram as greves mais importantes das quais participou?
R - Teve a greve de 52, que eu estava na fábrica ainda, e foi uma greve geral, São Paulo, ABC. Uma greve feia, a greve era uma espécie assim de rebelião, sempre comandada pelo Partido Comunista, comunista, socialista, alguns anarquistas, alguns que existiam também. Eram greves assim que inclusive tinha quebra-quebra. E sempre naquela época existia uma lógica, uma tendência, chamava Tendência Nacionalista, os partidos e os políticos mais à esquerda sempre apontavam, impunhavam essa bandeira: "Nacionalismo" e outras coisas contra as multinacionais. Uma das grandes vítimas era a General Motors, que foi a primeira indústria automobilística, General Motors e Ford do Brasil. E a gente sempre no meio. Então essa greve de 52 foi uma greve feia. Depois outras greves esporádicas, existiam muitas. Outra greve geral muito grande também foi em 57, essa foi terrível. Parece que Jânio era governador, a polícia tolerou três dias, depois desceu o cacete, bateu mesmo. E a gente, e eu já tinha participado da diretoria do sindicato de 52 a 54. Por quê? Fazendo um recuo na história. Em 47, quando Dutra assumiu, ele interviu nos sindicatos, o sindicato estava na mão dos comunistas. Ele baniu os comunistas porque os comunistas em 47, na cidade de Santo André, elegeram um dos primeiros prefeitos comunistas do Brasil, e a maioria na Câmara. A importância sócio-política e econômica da cidade, um prefeito, a maioria da Câmara e um sindicato comunista, é dose para leão. Então nem tomou posse vereador nem prefeito, foi a cavalaria lá, tropa de choque, e nem tomou posse também, aliás, diz que o problema estava no sindicato porque foi o sindicato o articulador dessas eleições que elegeram essa gente, esses companheiros. Então, de uma batelada só ele liqüidou com tudo. E foram anos terríveis de perseguição. Eu assisti muitas vezes, lembro, não sei se foi em 52, quando veio um político muito importante em Santo André. Eles catavam, eles iam buscar dentro de todas as empresas todas as lideranças do Partido e trancafiavam por um dia ou dois só, porque era algum político importante, tinham medo de manifestação de rua. E como eles baniram em 47, o Dutra baniu os comunistas do sindicato, os políticos do PC não tomaram posse porque o Partido já tinha deputados na Assembléia, a Assembléia no Palácio das Indústrias. Cassou o mandato e depois cassou o outro mandato que eles tinham sido eleitos no município. Aí o pessoal do Partido se afastou, falou: "Não, como o sindicato tem interventores, é dominado pelos policiais, bom é não ir lá." O que foi uma tática burra. Aí parece que depois repensaram, aí começamos a nos aproximar, participar de assembléia muito discretamente. Aí a gente foi se aproximando. E aí veio o governo Dutra e promoveu eleições, e Juscelino já era candidato a presidente da República. Então as forças nacionalistas, deputados considerados de esquerda e o próprio Partido, por fora,já trabalhavam em função da candidatura de Juscelino Kubitschek. Então você notava que às vezes a luz no fim do túnel começava a aparecer. Mas isso ainda era no fim da década de 40, então levou-se aí até 50. E aí o Partido começou a se aproximar do sindicato, mudou a tática. Mas eles não podiam se aproximar, então eles usaram, no bom sentido, outros quadros como eu e outros companheiros, e chegamos junto à diretoria do sindicato, que era da interventoria, nomeada pelo governo. Então nós nos infiltramos, em 52 nós participamos de uma chapa. E os que estavam dentro do sindicato eram interventores que fizeram uma eleição anterior para dizer que o sindicato estava se democratizando e teve uma eleição, só que comunista não podia concorrer. E mesmo se eles suspeitavam de quem fosse comunista ou tivesse alguma tendência, eles exigiam um atestado de afinidade ideológica, uma coisa assim. O cara tinha que jurar que não era isso, não era isso, senão não entrava. Eu sei dizer que em 52 o Partido conseguiu colocar cinco dentro do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André. E nesses cinco tinha um companheiro muito bom, que é falecido, aliás, a maioria faleceu, eu sou um dos raros remanescentes. Tem um companheiro que era presidente do conselho fiscal e criou problema com a direção do sindicato, com o presidente do sindicato. Eu sei dizer que o presidente do sindicato, numa assembléia manipulada lá, pegou e expulsou o cara, tocou ele para fora e geralmente teve problema com a polícia. Então teve aí um baque assim, o Partido parou para pensar e discutir o problema. Aí falou: "Saí todo mundo." Aí não sei o que teve: "Não, sair todo mundo é abrir vaga para eles, precisa ficar lá dentro." Eu continuei no lugar desse companheiro que tinha sido expulso. Então eu assumi uma vaga no conselho fiscal, eu continuei cutucando o cara, o mesmo cara que tinha expulsado o companheiro. Então, como estava em fim de mandato, ele relevou, deixou passar, só que quando veio a época da eleição ele fez a eleição, mas excluiu todo mundo. E isso já era 1954. Então ele excluiu todos aqueles que deram trabalho para ele lá dentro e com a orientação da polícia, ele falou: "Põe para fora." Aí nós cismamos de formar uma chapa de oposição. Como já existia divergência dentro da própria diretoria, nós pegamos um senhor evangélico, pusemos na cabeça da chapa "Isso aqui tem a proteção de Deus, não tem perigo." E esse senhor evangélico encabeçou a chapa porque ele era o secretário daqueles que estavam lá. Ele encabeçou a chapa e nós ganhamos as eleições, todavia quando eles viram que tinham perdido as eleições, pura e simplesmente acabaram com o processo. Há quem diga que puseram dentro de um saco o processo todinho e jogaram dentro de um rio mal cheiroso que passa em Santo André, o Tamanduateí. Aí o que fez ele? Naquele tempo o rei da imprensa, o Chateaubriand, o dono da imprensa no Brasil, era embaixador, tudo. Aí esse pessoal tinha muita cobertura da imprensa da direita, que era o Chateaubriand, então eles aproveitaram para dar uma pancada forte no pessoal do Partido e em nós, todo mundo falou "Quem tinha entrado no sindicato e roubado o processo, consumido o processo, tinha sido os comunistas que tinham invadido a sede." Aí não deu outra, acabou com nós, a polícia. E eles tinham ainda, porque o regime era aquele mesmo, o ministro do Trabalho era um coronel, um coronel daqueles. Eu lembro que ele tinha um defeito na perna, Alencastro Guimarães, usava bengala. E ele estava afinado com quem ele tinha posto dentro do sindicato. Então quando a imprensa do Chateaubriand publicou que os comunistas tinham aprontado, invadido o sindicato e roubado o processo, essa foi uma notícia que eles plantaram no jornal dele. E eles passaram um telegrama para esse ministro dizendo isso também, e mandaram o recorte de jornal, lógico, eles não mandavam a comitiva levar. Pegavam o avião da Vasp aí a pistão mesmo, de hélice, ia para o Rio gastar o dinheiro dos trabalhadores e fazer política contra a gente. Então esse processo, eles mandaram o telegrama, levaram aí o ministro que era Alencastro Guimarães, falou: "Então a eleição, a futura eleição para renovação aí da diretoria, fica adiada sine die." Esse sine die foi dois anos. Mas nesse ínterim tinha tido uma reviravolta política, retornando um pouco na história, aonde o suicídio de Getúlio, a ascenção de Café Filho. Café Filho ficou uns dias, um mês, não sei, e foi internado no hospital, uma internação política. E depois assumiu Carlos Luz, Carlos Lacerda envolvido. Carlos Luz era o presidente da Câmara Federal e ele assumiu mas não deixaram entrar no Catete, ele tomou um cruzador aí e foi ser presidente lá do meio do mar para governar o Brasil, e é até cômico. Nesse ínterim aí, como a campanha do Juscelino estava na rua, inclusive apoiado pela esquerda, Juscelino era direita, conservador, mas era um cara que podia dialogar com ele. Era a única alternativa política nossa era aquela. Depois de tudo isso aí houve um golpe branco, na saída do Dutra, aí que entrou esses outros aí com a morte de Getúlio. Aliás, Getúlio foi eleito depois da eleição que terminou o mandato do Dutra, em 51. Ele assumiu e se suicidou em 54. No suicídio dele aconteceu isso que eu acabei de narrar. E vai daqui e ali, é Café Filho, é Carlos Luz, é Carlos Lacerda, não sei quem, é general não sei o quê, almirante não sei o quê. Sei dizer que o Lott, ele era o ministro da Guerra, parece que ele tirou a espada e tiraram todo mundo de lá e puseram o presidente do Senado Federal, Nereu Ramos, que era juscelinista, senador por Santa Catarina. Parece que ele ficou seis meses lá, garantido pelo Lott, e aí a campanha de Juscelino se desenvolveu naturalmente. E terminado esse governo transitório, Juscelino foi eleito presidente da República parece que em 55. Tomou posse em fevereiro de 56. A vida sindical já estava mais entrosada com essa política de Juscelino, então nós tínhamos muitos deputados de esquerda na Câmara Federal que nos davam uma grande mão, um apoio. Eu lembro até do Almino Affonso, Sérgio Magalhães, Albiguar Bastos e outros. Porque tinha a Frente Nacionalista. Então como Juscelino ganhou as eleições, a vida dos sindicatos melhorou, melhorou porque o Getúlio, apesar de ter sido apelidado "o pai dos pobres," mas aqui em São Paulo, aqui no ninho dos capitalistas, quem mandava muito era a direita, a reação, ele não mandava muito. Era Adhemar de Barros e dentro do sindicato mandava a polícia do DOPS, mas não te protegia de nada e se fosse comunista então pior ainda. Como a política melhorou, aí então nós forçamos a situação no sindicato, voltamos e exigimos de quem estava lá dentro que convocasse novas eleições, porque faziam dois anos que a eleição tinha sido anulada e eles estavam lá indevidamente. Lamentavelmente, aquele que tinha sido o cabeça da nossa chapa, o senhor evangélico, ele continuou lá também, eu pensei que ele ia desistir do cargo mas não desistiu. Uma pessoa muito correta, mas isso aí é um senão que... E as coisas então partiram, já estava melhor e nós conseguimos, com base no estatuto, convocar uma assembléia depois da tumultuada expulsão de alguns companheiros de assembléia, que ele marcasse a época da eleição. Aí até eu fui escolhido numa comissão que nós fomos ao Rio, nessa altura Juscelino já estava empossado, você vê que eu fui lá na Praia Vermelha... O ministro do Trabalho parece que era o senador Parsifal Barroso, alagoano, da cabeça grande, também não fazia nada. Depois eu fui na Praia Vermelha, Juscelino estava lá num banquete lá, com faixa e tudo. Ele, para dar uma de democrata e tudo, ele saiu do banquete com faixa, tudo, e smoking, foi conversar com a gente numa sala bacana. Então nós conseguimos marcar prazo para a eleição, fizemos a eleição em maio de 56, ganhamos as eleições, e o outro nem protestou nem nada, fez uma chapa e pegou, "enfiou a viola no saco" e nós assumimos em julho de 1956. Então aí o pessoal do Partido já atuava em todos os setores com desenvoltura, embora tinha os líderes, porque o mandato dos deputados e senadores do Partido, que senador era o Prestes e os deputados um era o Jorge Amado e outros, o Marighella foi deputado da Constituinte de 46, eles tinham sido cassados e eram , mesmo no governo até de Juscelino, mas eles já saíam na rua, eles faziam vista grossa, contanto que apoiasse o governo, não tinha problema. Agora em outras atividades, se você fosse parar uma fábrica, você entrava no cacete. Eles já pensavam em intervir no sindicato porque aqui mandavam eles, não importa quem fosse o presidente da República, a orientação saía da Fiesp. A Fiesp era aí no Viaduto D. Paulina na época do senhor Antônio Devizati, o sapateiro de Franca presidente da Fiesp. E esse dr. Gabriel Saad era o mentor político, político e policial. Então nós tomamos posse mas a gente era, você percebia que tinha uma marcação cerrada em cima da gente. Então o Partido numa primeira eleição colocou uma espécie de laranja na cabeça da chapa porque se põe um dos caras do Partido mesmo, um dos marcados não entrava. Eles iam criar problema e não iam deixar tomar posse aquele, ia tumultuar. Então devem ter sido aconselhados antes e puseram um cidadão que trabalhava na Companhia Pirelli, de pneus, cabos elétricos. E ele assumiu no dia 1º de julho conosco, agora o resto da diretoria era tudo elementos, era eu e outros elementos do Partido. Eu nunca pertenci, nunca fui fichado no Partido Comunista. E nós começamos a formar, foi uma gestão tumultuada porque esse cidadão que estava na cabeça da chapa se deslumbrou com o cargo de presidente e virou uma vedete terrível. O cara saía com altas autoridades, jantares, oba - oba, estava na dele, não era lá aquele líder que enfrentava os problemas. Uma greve precisava tirar ele da cama porque o cara chegava no sindicato 9, 10 horas. Então foram dois anos muito tumultuados. E o pessoal do Partido avançando, fazendo cobrança e apertando o cara. Até que foi indo, deu para completar o mandato. Mas já no próximo mandato aí o cargo foi completo, entrou para dentro do sindicato todo o pessoal do Partido. Esse cidadão que estava na cabeça, que era o presidente...
P - O nome dele qual é?
R - Ele é falecido, chamava-se Henrique Lopes. Ele formou uma chapa e perdeu de goleada porque o Partido tinha o controle dentro das fábricas, o Partido trabalhava, tinha os seus quadros, o cara trabalhava 24 horas, dia e noite, porque ele tinha medo de ir na porta de uma fábrica. Eles, para falar com os trabalhadores, eles faziam reunião em bairro ou na casa de um companheiro para lançar material, passar palavras de ordem, e tudo em função do sindicato. E assim eles dominavam as bases, pensavam que não, às vezes tinha uma assembléia, aí lotavam salão, tudo gente que você nunca tinha visto mas gente que tinha sido trabalhada antes politicamente, porque o Partido tinha muitos quadros. É só atentar para o que eu acabei de falar. Por exemplo, uma cidade que elege um prefeito, já tinha eleito deputado, depois elege prefeito, elege Câmara de Vereadores tudo do Partido Comunista, embora a legenda do Partido era cassada, mas eles se elegeram por outra legenda. Então você faz uma idéia da força desse pessoal dentro de uma cidade, uma cidade operária que nem Santo André. Isso hoje tudo é história, mas é uma história rica porque é a história de uma ideologia, hoje não existe mais ideologia. Mesmo que queiram dizer que o sindicalismo, o sindicalismo ideológico não existe no Brasil, existem interesseiros. É uma disputa, uma queda de braço entre tendências. E lógico, resvalando para o lado político. Eu sei dizer que nós continuamos no sindicato sempre tumultuado e com a renúncia.... Quando Juscelino terminou o mandato, elegeu Jânio Quadros, em 60. Jânio, fanfarrão do jeito que ele era, demagogo, muita gente dizia que ele era de esquerda, que não sei o quê, mentira, era um fanfarrão e a história veio provar isso. Jânio ficou quantos meses? Não ficou acho que um ano lá.
P - Cerca de seis meses mais ou menos.
R - A renúncia dele foi em 62, certo? Tomou posse em 62, em fevereiro, e renunciou em agosto, por sinal o mês da morte de Getúlio. E com a renúncia de Jânio, assumiu Jango. Aí o pessoal do Partido encostou mais ainda através do PTB. Então aí houve encampação da Refinaria de Petróleo, porque o petróleo era estatal, a Petrobrás e tudo isso aí. E a Petrobrás era nova porque foi fundada em 52. E eu sei dizer que o Partido entrou com mais força ainda no campo sindical. Aí nós já tínhamos dividido, o Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André já tinha dado autonomia para São Caetano, mas deu autonomia porque foi quadros do Partido que passou a tomar conta. E já tinha dado autonomia também para São Bernardo. Eu fui um dos primeiros dirigentes sindicais a entrar dentro da Volkswagen para reclamar pleitos de trabalhadores de lá quando ainda montavam as grandes prensas, estampa, capô para fazer automóvel lá. Não existia o sindicato lá, existia uma associação também com quadros do Partido e quando se transformou em sindicato, em 59 ,os mesmos quadros assumiram o sindicato. Avançando na história, então isso foi com a renúncia de Jânio, assumindo Jango aí o pessoal do Partido avançou o sinal. Apoiando o Jango e combatendo os militares, os militares têm armas e o pessoal do Partido na retórica. Então retórica não vence metralhadora nem canhão. A verdade é que Jango, por imposição do pessoal do Partido, uma luta nacionalista, é lógico, do PTB, do Partido Socialista Brasileiro, do Partido Comunista embora na ilegalidade no sindicato, acabou encampando as refinarias particulares e a que deu mais pano para manga foi essa de Capuava, a Recap, que era do Paes Barreto. Aí a coisa começou a pegar fogo. Se os anos anteriores já tinham sido tumultuados politicamente, para alguma coisa o governo de Jango era tido como um governo nacionalista. Todavia é um nacionalismo assim, digamos, com critérios revolucionários, poderia se dizer de confronto, no sindicalismo de confronto, política de confronto. Sabendo-se que os militares nunca dormiram no ponto, como não dormiram naquela época, não dormem hoje, estavam se articulando, e o pessoal na rua fazendo provocação, o pessoal do Partido chamando os caras de gorila, o Lacerda era o civil porta-voz dos gorilas, o Carlos Lacerda. Então, com a encampação da Refinaria, o negócio azedou. E outra, com o comício de 13 em 64, 13 de março no Rio. E outra, o Brizola é chamado de "Carbonário", incendiário aí, era um deputado da Frente Nacionalista. E o Brizola já se contrapondo ao cunhado, que Jango era cunhado dele, se contrapondo ao cunhado, a mulher do Brizola era irmã de Jango, começou cutucar ele também, que ele não tinha coragem, isso e aquilo. O negócio foi se acirrando, começou a aparecer muita divergência dentro dos quadros que defendiam o nacionalismo, apregoando então as chamadas reformas de base. E os militares açulados pelos americanos, que têm interesse no mundo inteiro, aqui no Brasil era o senhor Wernon Walter e o senhor Lincoln Gordon, e os agentes da Cia obviamente trabalhando dentro dos sindicatos.Eu lembro uma vez , na Federação dos Metalúrgicos, em São Paulo, na rua dos Estudantes 48, eu sei que nós estávamos... Ainda retornando à história, na campanha do Juscelino, aliás, o candidato de sucessão de Juscelino foi Lott, Henrique Teixeira Lott ,e eu estava com a espadinha que era o símbolo da política do Lott, o então adido trabalhista do consulado americano em São Paulo, que freqüentava os sindicatos, as federações, agentes da Cia obviamente, falou: "Estranho, o senhor, homem de esquerda, com espada." Eu falei: "Às vezes a gente tem que virar um pouco." Porque o Lott nos comícios dele ele descascava o pau nos comunistas, o discurso dele era terrível. E os comunistas é que levavam as massas para ele, pelo menos nos grandes centros, proporcionalmente eram os comunistas que levavam as massas para o comício dele. Mas ele tinha uma filha, Edna, que lamentavelmente foi deputada no Rio e depois morreu assassinada, era muito ligada ao Partido, então ela era a ponte com os comunistas. Esteve no sindicato de Santo André. E o Jango também tinha com o Santiago Dantas, que visitou o sindicato em busca de apoio porque sabia que aqui o apoio político era forte. Paulo de Tarso Santos, ministro da Educação, deputados da bancada nacionalista, todos freqüentavam o Sindicato dos Metalúrgicos, compreendeu? Então sabiam que aqui tinha apoio, mas tinham apoio dentro do discurso, enquanto que os militares tinham articulação, açulados pelos americanos. Então aconteceu o que aconteceu, o Golpe de 64. E tem um livro do escritor chamado Ademar Morel: "Diz que o golpe começou em Washington", esse é o título do livro que por sinal os militares me tiraram ele de dentro de casa e levaram embora. E realmente foi, o articulador do golpe no Brasil foi Lincoln Gordon, ele e esse generalzão grande que fala o português fluentemente, Wernon Walter, que articularam o golpe contra o Jango. E aí deu no que deu, colocaram os militares aí que durou 21 anos. E nesse ínterim nós tivemos, aliás, a minha primeira prisão política já aconteceu no governo de Jânio Quadros. Ele renunciou e veio para São Paulo, aqui se tornou um foco de agitação política, ele foi para a base de Cumbica. E desce general, sobe general, "Vamos levar recado, se aquele Jango não tomar posse." Jango estava na China, então o país começou a pegar fogo, aí chegaram no sindicato e prenderam nós todos. E eu tive a primeira prisão política, 15 dias trancafiado, incomunicável, no Quartel de Quitaúna. Aí foi o meu batismo, depois aí teve várias prisões, 64 outra, 70 ainda fui preso outra vez, já estava afastado da fábrica, fui preso. A história se resume nisso, ela é muito mais rica, mas aí precisaria muito tempo para contar. E a gente tem a satisfação de passar isso para que fique gravado, porque as pessoas que nem eu, eu estou com 70 anos, a grande maioria que participou dessas lutas já se foram, tem muitos velhos por aí, mas gente que passou pela história como um cidadão, não teve atividade. Mas aqueles que tiveram atividade na história política, na história sindical e em outra atividade que possa passar, que enriqueça a história, a cultura, eu acredito que deve passar. E é isso que nós fazemos com grande satisfação.
P - Lamento que o tempo não seja suficiente para entrar em todos os detalhes, mas seu depoimento foi riquíssimo, um pedaço de história que está aí. Eu agradeço muito a sua participação.
R - Às vezes a gente salta períodos e a memória da gente falha, às vezes você tem que retornar, a gente procura assim ser mais explícito, e quando o tempo é pouco, ou a fita é curta, a gente tem que ser mais sucinto.
P - Eu espero que tenha uma oportunidade mais uma vez de coletar o seu depoimento.
R - A gente pode vir aqui quantas vezes vocês convidarem, porque uma vez eu fui gravar um vídeo, a prefeitura de Santo André mandou gravar um vídeo comigo, e o cara falou que tinha tanto tempo, e no fim então eu comecei a atropelar, é ruim isso. O cara falou assim: "Olha, só tenho tanto tempo e a fita está acabando." Então comecei a atropelar, pular por cima e aí descontrolou tudo.
P - Agradeço muito a sua participação, foi um depoimento muito rico.
R - Para nós é uma satisfação, tudo que nós pudermos fazer para enriquecer a história, passar para os pósteros aquilo que nós vivenciamos, nós o fazemos com muito prazer, em qualquer lugar.
P - Muito obrigado então.Recolher