Entrevista de Irene da Silva Gomes
Entrevistada por Lucas Torigoe
Barcarena, 21 de setembro de 2020
Projeto “Memória de Barcarena”
Entrevista número HYD_HV007
Transcrito por Selma Paiva
P1 – Dona Irene, qual é seu nome completo, então? Data e local de nascimento, por favor.
R1 – Meu nome é Irene da Silva Gomes, sou nordestina, oriunda de Valença, no Piauí.
Nasci em 02 de junho de 1958.
61 anos de idade.
P1 – Legal.
E o nome da sua mãe?
R1 – Terezinha Soares da Silva.
P1 – Nasceu onde?
R1 – Terezinha também é de Piauí.
Teresina, Piauí.
P1 – E seu pai?
R1 – Meu pai também é Piauí.
Os dois nordestinos.
P1 – Como é o nome do seu pai?
R1 – Leonildo Rodrigues da Silva.
P1 – Legal.
Vamos começar pela família do seu pai, então.
Qual que é o nome dos seus avós?
R1 – Meu avô é Leôncio, mas os avós, por parte de pai e por parte de mãe, eu não tive oportunidade de conhecer.
Eles morreram bem logo cedo que eu nasci.
P1 – E você sabe, seu pai falou o que eles faziam?
R1 – No nordeste eles trabalhavam na agricultura.
Que é uma profissão bem constante no nordeste, né? Então, tanto meu pai, quanto minha mãe, eles eram filhos de agricultores.
P1 – O seu pai falou como é que eram os seus avós?
R1 – Não.
Não tenho essa memória de como seriam os avós.
Eu lembro.
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a avó que eu lembro mais é mais por parte da mãe, porque tinha aí uns cinco, seis anos, fui visitá-la e aí eu lembro da vovó.
Eu te falo que ela é a imagem e semelhança da minha mãe, porque ela é muito parecida.
Então, as memórias formam um pareamento aí, da vovó com minha mãe.
Mas faleceram logo cedo, quando eu nasci.
P1 – Você conheceu pouquinho sua avó e seu avô também?
R1 – É, pouco contato.
A vovó, por parte de pai, eu não cheguei a conhecer.
O vovô Leôncio foi muito rápido também.
E a avó, por parte de mãe, também foi muito rápido.
P1 – E seu avô por parte de mãe?
R1 – Não cheguei a conhecer.
P1 – Então, a única foi a sua avó, mãe da sua mãe?
R1 – Minha avó, mãe da minha mãe.
E meu avô, por parte do pai.
P1 – A família da sua mãe, o que eles faziam?
R1 – Eles trabalhavam na lavoura também.
Moravam nos arredores de Teresina.
Não tenho a memória dos lugares, mas todos eles trabalhavam na lavoura.
Minha mãe é oriunda, por exemplo, de uma família de treze filhos.
E meu pai, de uma família de nove filhos.
E a mão de obra principal naquelas famílias nordestinas, na época, era a própria família em si, para manter o sustento.
Então, eles têm essa história de trabalhar na lavoura, mesmo.
P1 – Você tem bastante tios, então?
R1 – Tenho, mas não conheci meus tios.
Porque a vida do meu pai com a minha mãe foi mesmo uma vida de ciganos.
Saíram muito cedo de Teresina, do nordeste e meu pai, por exemplo, começou a trabalhar na abertura da Perimetral Norte.
Depois ele foi para outros locais de aberturas de estradas e aí era meio cigano.
Então, saiu do nordeste muito cedo e transitamos pelo Amapá, pelo Maranhão, em função do trabalho dele.
Então, eu lembro da minha adolescência na Transamazônica, na Perimetral Norte, foi ali que eu vivi os meus momentos de adolescência.
Entre índios e animais, naquele rebuliço todo da Transamazônica e da Perimetral Norte.
P1 – Nós vamos chegar lá, mas você sabe como que seus pais se conheceram?
R1 – Minha mãe era noiva de um sobrinho, que tinha ido fazer medicina no Rio de Janeiro.
Então, naquela época, os pais já escolhiam para as filhas, os maridos das filhas, ou vice-versa.
Já era pré-determinado, né? Mas aí ela conta uma história que ela conheceu o meu pai mesmo, que era paraplégico, em função de uma doença que ele teve, de paralisia infantil.
Se apaixonou por ele e aí ela conta que ela pulou sete cercas, que no nordeste quase não tem muros, né, véspera do casamento com o noivo, para casar, escondida na igreja, com o padre ali, acolhendo os dois, que se tornou depois meu pai.
Então, tem uma história de amor aí, muito forte.
De uma mãe que tinha aí uma possibilidade de um casamento já todo organizado, mas que acreditava que casar, naquela época, já acreditava que casar por amor, com afeto firmado, era o ideal.
E aí ela contava sempre para a gente essa história: “Casei por amor e pulei sete cercas para chegar à igrejinha, onde o padre esperava para casar”.
Para evitar um casamento arranjado.
P1 – Ela não amava aquele.
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R1 – Não, porque ela dizia assim, que é.
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você estava na janela, o sobrinho passava, olhava, o pai ia lá com a família do outro e dizia “Olha, seu sobrinho olhou para a minha filha, acho que eles vão dar certo”.
E já combinava o casamento.
O dela não foi diferente.
O dela foi um casamento combinado, onde ela nem conhecia o rapaz.
Mas o pai achou que, um dia, ele passando, que aquele seria o marido ideal.
E aí, muito cedo já, com quinze anos, os dois foram comprometidos e ele foi estudar fora.
Mas aí apareceu, no meio, o meu pai, com uma paixão e ela replicava isso para a gente, assim, com muito orgulho, de ter casado e para mostrar pra gente a representação do afeto com o esposo, na formação familiar, né? Isso é muito importante.
P1 – E sei pai fazia o que, nessa época?
R1 – Meu pai era sapateiro.
Ele, nessa época, era sapateiro.
Por um longo período ele foi sapateiro.
Depois eles migraram para a parte da agricultura.
Que o nordestino tem muito disso, né? O que dá condição de sobrevivência é o que eles fazem na hora.
Mas ele tinha como profissão, sapateiro.
P1 – Ele falou para você como que era ser sapateiro ou não?
R1 – Ele não falou.
Eu vivenciava com ele.
Eu vivenciava com ele o trabalho de sapateiro.
Porque, como os materiais que ele fazia eram bem próximos de casa, então, pequenininha, a gente ia para lá com ele, para ver o trabalho.
Então, naquela época, os filhos verem os pais trabalhando, era um orgulho, às vezes até maior do que se imaginar uma formação futura, ter um.
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tipo uma faculdade.
Acho que o nordestino sonhava pouco com isso.
Mas ensinar o que sabia para o outro já era, ali, um diferencial enorme, né? E ele replicou isso na condição de sapateiro.
Nunca aprendi a fazer sapato, mas o admirava fazendo aquilo.
A arte de artesanato que ele tinha, na confecção de sapato.
E depois eles migraram, né, por necessidade, para a parte da agricultura.
P1 – Então eles se juntaram, se casaram e eles foram fazer o que, seus pais? Foram para onde?
R1 – Lá no Piauí, né? Foi lá foi onde eles se casaram.
E aí eles migraram para o Maranhão.
Foram morar no Maranhão.
E, lá no Maranhão, onde ele exerceu a maior parte da condição dele de sapateiro, onde depois eles conseguiram um terreninho e foram trabalhar na área de cultivo.
Mas vivemos um bom.
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P1 – Você nasceu no caminho, é isso?
R1 – Não, eu já vim.
Quando ela veio do Piauí, eu já vim de Valença.
Eu fui a única que vim de Valença, porque eram três irmãos.
Eu fui a única que vim, já, de Valença, que é onde eles moraram.
P1 – Moraram em Valença, tiveram você.
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R1 – É.
Logo tiveram.
E logo depois foi para o Maranhão.
Fui morar no Maranhão.
Aí morei no Maranhão, eu morei em redor, Santa Inês.
E, de lá, a gente veio migrando aí para o Amapá, para Altamira, né?
P1 – Você nasceu em Valença e quantos anos você tinha, quando vocês foram para o Maranhão?
R1 – Olha, eu era pequenininha, eu acho que.
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eu era muito pequena.
Eu não tenho essa memória da idade.
Eu tenho uma memória maior do Maranhão.
De quatro, cinco anos, mas de Valença eu era bem pequena.
Tanto é que Valença eu lembro, Valença me vem na memória pelo documento, né? Porque está lá, registrado.
P1 – E você.
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quais são as primeiras lembranças que você tem do começo da sua vida, que você consegue puxar, assim?
R1 - Eu tenho, as primeiras lembranças que eu tenho é do Maranhão.
Por quê? Porque, no Maranhão, ali naquele período infantil, eu acho que acontecia coisas que eram interessantes para minha memória.
No Maranhão você tinha ali a Funai, onde tinha uma transição de índios muito grande.
Em Zé Doca, no Maranhão.
E lá, na Funai, tinha um sobrinho da minha mãe, que era um dos gestores dos projetos da Funai, dentro das tribos indígenas.
E aí eles tinham livre acesso, aí ia, para as tribos.
E a gente tinha acesso aos índios dali.
Então, essa é uma memória que ficou muito forte.
Ficou muito forte também a luta deles, de trabalho, para cuidar dos filhos.
Que é uma luta que vem lá do nordeste, mas ali tem uma memória muito grande da luta, da necessidade do trabalho e da ausência do trabalho e da busca por novas alternativas para cuidar da gente.
Mas essa memória da cultura indígena, para mim, pelo acesso da minha mãe às tribos indígenas e essa constância que eles tinham de ir, das tribos para a Zé Doca, no Maranhão, é muito forte.
P1 – Ir pra onde? Eu não entendi?
R1 – Você tinha as tribos indígenas, elas saíam, em determinado momento, para ir para Zé Doca, no Maranhão.
E aí eles iam atrás de ferramentas, de uma série de coisas.
E minha mãe.
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eles tinham uma certa atração pela minha mãe, era bem branquinha, dos olhos azuis e eles enxergavam nela aí uma representação simbólica, dentro da tribo indígena.
Então, sempre que eles iam para lá, eles iam lá em casa, para ver a minha mãe.
Então, essa história do encontro das tribos, que iam para minha casa, que era sempre anunciada pelo sobrinho dela: “Estamos indo para Zé Doca e eles querem ir até a sua casa.
” Para a gente era um dia de festa, receber uma tribo de índios, o cacique, um monte deles.
Essa é uma memória boa que eu tenho daquele período de criancinha e esse acesso livre com eles.
P1 – Eles iam para olhar sua mãe? Fazer o quê?
R1 – Eles iam.
Eles diziam que a minha mãe tinha uma relação com alguma divindade indígena, alguma coisa assim que eu não sei te explicar direito como era.
Mas sempre que eles iam, levados por esse sobrinho dela, eles iam até a nossa casa.
Os caciques iam.
Em determinado momento ela recebeu um convite para ir até as tribos.
E ia, passava uma semana, duas semanas.
Então, tem até algumas coisas da cultura indígena, que ela acabava levando para casa, de alimentação mesmo.
Para trabalhar com a gente.
Então, o acesso aos índios era uma coisa - a alguns grupos - bem natural, né? Hoje é mais complicado.
Mas naquela época, lá, em Zé Doca, no Maranhão, tinha essa possibilidade, porque.
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P1 – Onde é que fica esse lugar, no Maranhão?
R1 – Dentro do mapa, fica no início logo, do Maranhão.
Zé Doca.
Entre Santa Inês.
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São Luis e Santa Inês, você encontra ali esse local.
E a Funai tinha uma atividade ativa ali por perto, nas tribos.
E aí, por coincidência, tinha esse sobrinho dela, que trabalhava lá e acabaram criando uma afinidade.
E são memórias que, engraçado, ficam como fotografias, né?
P1 – Pra você, como uma fotografia, na cabeça?
R1 – É, como uma fotografia.
Como uma fotografia.
E, posterior a isso, a minha mãe, mesmo não tendo muitas habilidades de arte, desenhava aqueles grupos indígenas, foi refinando uma habilidade de desenho indígena que, quando eles não estavam, ela representava, por aqueles desenhos.
Ela sempre teve muito contato com a natureza, ela sempre gostou muito de natureza.
E criou os filhos também com essa relação com a natureza.
Então, quando eles não estavam, ela representava a ausência dos índios nos quadros que ela fazia, nos desenhos que ela fazia.
Então, a gente estava numa constante, dentro dessa memória indígena.
Mesmo morando na cidade, né? Em Zé Doca.
P1 – Era uma cidade, mesmo?
R1 – Era uma cidade.
Ainda é hoje.
Algumas vezes que eu fui para João Pessoa passamos por lá, para parar e rever a memória da infância.
Saindo de Zé Doca, a gente foi morar em Santa Inês.
Nesse período, da ida para Santa Inês, aí mudou, muda um pouquinho a forma de trabalho, né? Essa ida para Santa Inês, enquanto estava no nordeste: Teresina, Zé Doca, aí tinha o trabalho como sapateiro, na agricultura.
Quando vai para Santa Inês, já começa a se modificar: ela já foi trabalhar com venda de legumes, de verduras.
E lá, de Zé Doca, meus pais vieram, foram para a Transamazônica, né? Em Altamira.
Estava na abertura da Transamazônica e aí o pessoal lá, atrás de trabalhadores para a Transamazônica, para vir.
E aí fomos para a Transamazônica.
Então, a primeira pedra fundamental da Transamazônica, nós estávamos lá.
E aí lá, de lá, eu tenho muitas memórias, assim, não muito boas, mas que ficaram em mim.
E lá, na Transamazônica, a gente acaba encontrando uma fortaleza muito grande, indígena também, né?
P1 – Mas segura essa aí, porque eu queria perguntar algumas coisas de antes ainda.
O nome da cidade, se eu entendi, é Zé Doca?
R1 – Zé Doca.
P1 – Zé Doca.
R1 – Zé Doca.
No Maranhão.
P1 – E em Zé Doca, você se lembra como era a casa da senhora?
R1 – Em Zé Doca a nossa casa era de taipa, como a maioria das casas nordestinas.
Ela era de taipa.
Tinham poucos moradores em Zé Doca, no Maranhão.
Mas a casa era feita ou de taipa ou de palha.
A nossa, no caso, era de taipa.
Então, ter uma casa de taipa significava, na condição social, uma mediana, né? Porque a grande maioria tinha uma casa de palha.
Tanto as paredes de palha, como a cobertura de palha.
P1 – Como é que era o dia a dia? Seu pai saía para trabalhar? Como é que era?
R1 – Em Zé Doca foi onde o meu pai, no início, exerceu a maior parte da profissão de sapateiro, antes da questão da agricultura.
E aí meu pai saía para trabalhar, de manhã cedo, para um terceiro, porque ele era.
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ele ganhava por cada peça que ele fazia.
E a minha mãe nos deixava em casa e saía as cinco horas da manhã, para ir para a feira, para vender cuscuz com leite.
Cuscuz de arroz e cuscuz de milho.
Então, a soma, a renda da família, para sustentar a família, era oriunda do trabalho ali, por um bom período, de sapateiro e o trabalho dela na feira.
E eu, como a filha mais velha, ficava em casa cuidando dos dois irmãos.
Então, a minha infância, a maior parte, foi cuidando dos dois irmãos.
Porque os dois saíam para trabalhar, assim, para garantir o sustento do dia a dia.
Mas ali em Zé Doca.
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P1 – Como eram seus irmãos? Era você.
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qual era o nome dos seus dois irmãos?
R1 – Jeová, que era o do meio e Genival, que era o mais novo.
Éramos três irmãos.
P1 – Quantos anos de diferença?
R1 – Três anos de diferença de um para o outro, mais ou menos.
E, ali em Zé Doca, foi onde a gente iniciou a questão educacional, nas escolas públicas.
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numa escola pública e era algo que eles faziam questão.
Por exemplo: meu pai ia trabalhar, minha mãe ia trabalhar de manhã, mas à tarde era ela que nos levava para a escola.
Os três lá na.
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inicialmente os dois, né? Porque o outro era muito novinho.
Hoje tem um sistema de creches que, na época, não tinha.
Mas lá iniciei o meu aprendizado na escola pública.
Lá em Zé Doca.
P1 – Como é que era a escola lá?
R1 – Olha, eu lembro da escola pública daquela época, uma escola que tem uma relação muito grande com os padres.
Porque, naquela época, as escolas, os padres mandavam galões enormes de óleo, de leite, de __________ (17:18), de massa de milho.
Então, a escola era um espaço onde você tinha certeza que você ia, ficava uma manhã toda, praticamente ali você tinha a garantia da merenda, do almoço.
É lá na escola onde eu tenho uma memória que, hoje ela não me incomoda mais, mas que, na época, me incomodava.
Naquela época tinha aquela música que chamava: “Irene ri, Irene ri, quero ver Irene dar sua risada”.
Se eu não me engano, a música falava de uma metralhadora, mas por coincidência eu era uma Irene tímida, então acho que era o bullying da minha vida (risos) ouvir, era essa música em todos os locais que eu ia.
Mas era uma fase boa.
Uma escola que, mesmo pública, eu tenho boas memórias dela.
P1 – Vocês ficaram quantos anos em Zé Doca?
R1 – Em Zé Doca, nós saímos de Zé Doca eu acho que eu tinha sete, oito anos de idade.
P1 – Então, você ficou quantos anos na escola? Uns três anos?
R1 – Uns três anos.
P1 – Você lembra de algum professor, nessa época?
R1 – Não.
Não lembro de professor, não.
A minha memória de professor é mais adiante.
P1 – Você lembra mais do bullying que fizeram com você?
R1 – Lembro mais disso daí.
Na época você ia no.
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nessa idade você não tinha, ainda, aquela obrigação de alfabetizar, mas a minha mãe já tinha ali um conceito sobre ler e escrever, muito forte.
Ela que nos alfabetizou.
Ela que alfabetizou os três filhos.
E, naquele período onde eu estava na escola pública ela, em casa também, já fazia questão de se preocupar com a questão da leitura e da escrita de cada filho que ia chegando nessa fase, de sete, oito anos de idade, né? Mas é memória.
Eu lembro do local, que a gente tinha de andar muito, né? Eu lembro que onde a gente morava, a gente tinha de passar por algumas baixadas, onde tinha matadouro de gado e era meio terror passar por ali.
Isso aí também fica na memória da gente, essas relações desagradáveis e acaba levando depois, para a alimentação.
Hoje eu tenho uma certa aversão a comer carne.
P1 – Ah é?
R1 – Talvez dessas lembranças, né? De ter de passar pelo meio, para ir para a escola, andando e ver todo aquele processo do matadouro lá.
Isso aí a gente vai levando para o resto da vida.
P1 – E vocês foram, então, para outra cidade e.
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R1 – E de lá fomos para Santa Inês.
P1 – E por que vocês foram?
R1 – Também é no Maranhão.
A saída, geralmente, era em busca de uma condição melhor de vida.
Geralmente era em busca.
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embora o nordestino não.
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naquela época, não lembro, mas se falava, não tinha muita preocupação de um emprego com carteira assinada.
Mas uma condição melhor para ganhar o sustento do dia a dia.
Então, migrar para Santa Inês, também no Maranhão, foi em busca de uma condição melhor de vida.
Foi em busca de uma condição melhor de trabalho para ela e para ele, em função da família.
Mas a prioridade era essa, uma condição melhor de vida.
P1 – Vocês ficaram muito tempo em Santa Inês?
R1 – Em Santa Inês nós ficamos bastante tempo.
Em Santa Inês, acho que nós saímos de lá, eu já tinha quase dez anos de idade.
Foi quando ele foi para Altamira.
P1 – E, no começo, como é que era a vida lá?
R1 – Lá em Santa Inês ele já não trabalhou mais na agricultura e aí passou a trabalhar com venda de frutas, legumes, mercearia, né? Aí ele já tinha uma quitandinha, para vender as coisas.
Foi se organizando melhor a parte financeira, ali, da família.
E aí, na época lá, apareceram várias pessoas recrutando trabalhadores para a Transamazônica.
Foi a primeira vez que meu pai saiu de um trabalho mais independente, para pensar em um trabalho de carteira assinada e fomos para Altamira.
P1 – Você pode dar só um “pausezinho”.
Precisava trocar minha máscara, só.
Mas você estava falando sobre a mudança, né? Você falou que seus pais tinham uma melhor condição, por isso eles mudaram.
R1 – Isso.
P1 – Eu vou perguntar para você então, Dona Irene, como é que eram esses homens vindo vender a Transamazônica para as pessoas? Você se lembra como que era?
R1 – Lembro, lembro.
A ideia da Transamazônica em Santa Inês, no Maranhão, quando eles estavam recrutando as pessoas para a abertura da Transamazônica, é: vendia-se uma ideia de estabilidade de moradia.
Naquela época o Incra gerenciava aí uma questão de terras, né? Então, uma das grandes vantagens de ir para a Transamazônica, era você ter a possibilidade de você ter a sua gleba de terras.
Então, além de ir como funcionário que, na época, ele trabalhou para a Queiróz Galvão, Mendes Junior, existia a possibilidade de você ter lá, garantido, uma gleba de terra.
Como eles eram agricultores lá atrás, então essa foi uma das possibilidades.
E ter um emprego garantido de carteira assinada, pela primeira vez, até terminar o contrato da Transamazônica.
Então, eles foram nessa certeza de que, ali, eles teriam um salário agora, né, que nunca tinha acontecido na família, um salário de carteira assinada e teriam, no final, ali, a possibilidade de ter as suas terras, o seu sítio, para permanecer na Transamazônica.
Porque a venda é que seria uma estrada maravilhosa, né, asfaltada de ponta a ponta, onde as ligações não teriam nenhuma dificuldade, porque seria, digamos assim, um túnel de passagem que permitiria escoar várias produções.
Então, quem ia para lá, ia com esse grande sonho: de se tornar um agricultor capaz de vender os seus produtos lá fora, porque a estrada daria todas essas possibilidades.
Esse era o grande atrativo.
Era o Incra dividindo as terras e doando as terras para as pessoas que quisessem ficar lá.
E como trabalhador era a garantia de um bom período de contrato, porque a Transamazônica teve um período longo para ser concluída, que nunca foi até hoje, né, mas tinha já, naquela época, uma perspectiva de um período longo de trabalho.
E aí, assim fomos para a Transamazônica.
P1 – Antes de chegar nessa parte ainda, você.
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como é que era? Você falou que cuidada muito dos seus irmãos, mas vocês brincavam? Como é que era?
R1 – Ah, brincadeira com os irmãos, essa aí fica na memória.
Porque, no nordeste, em cada casa você tem sempre um quintal, com uma mangueira.
Você tem sempre aquelas brincadeiras de andar nos pés de lata, cavalo de pau, bambolê, carrinho.
Então, aquelas brincadeiras que hoje parecem tão distante, na época.
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é ali que a gente desenvolvia toda a parte motora, de psicomotricidade, de comunicação, eram as brincadeiras.
E lembro as nossas fazendinhas feitas de mangas, né? Às vezes conta muitas histórias da ausência dos brinquedos, mas nós aprendemos a transformar a ausência de brinquedos comprados em brinquedos construídos.
E aí vai me dando um prazer muito grande pela questão da arte, do artesanato, porque as fazendinhas de manga, as bonecas de milho verde.
Eu tinha uma coleção de bonecas, loira, cabelo preto, cabelo ruivo, todas de milho.
E elas eram construídas em ateliê.
O teatro, as roupas de papel crepom, eram construídos por nós, os atores.
Então, eu tinha ali uma mania de colocar os irmãos para ser atores.
E eu era a atriz principal, né? Então, ali, nesse movimento de construir as roupinhas de papel crepom para apresentar.
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apresentava para o papai e para a mamãe, inicialmente, as peças de teatro.
Depois, com a escola, a gente conseguia juntar os grupos da comunidade e aí inserir vários nessa brincadeira de faz de conta, onde se levava do papel de história para o teatro.
Era a brincadeira que a gente mais gostava.
De representar, de construir, de mudar.
P1 – Vocês encenavam o que nas histórias? Já existiam? Vocês criavam?
R1 – Olha, a gente encenava até a história das brigas das casas que aconteciam.
Porque aí os colegas chegavam contando que aconteceu isso e isso em casa e a gente transformava aquilo em um roteiro de teatro.
O problema, às vezes, era apresentar depois quando aquele, aquela família que aconteceu aquele incidente lá, estava lá para assistir.
P1 – Você pode dar um exemplo para mim?
R1 – Eu posso.
Posso dar um exemplo.
Uma vez, era Sete de Setembro e aí o meu pai ficou responsável de fazer o meu sapato, para desfilar no Sete de Setembro.
E ele foi - ele era dependente de álcool, bebia - fez o sapato, mas parou numa quitanda e bebeu e esqueceu de levar o sapato.
Dois dias depois ele chegou com o par de sapatos.
O desfile já.
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chegou dois dias depois do dia sete de setembro.
E aí eu chorei muito por isso, né? E eu lembro que uma das meninas que participavam: “Não, mas a gente vai resolver isso não com choro, a gente vai resolver mostrando para as pessoas, para ver se não acontece de novo”.
Porque todo mundo era muito carente, então aquela não era uma história só minha.
E nós transformamos numa peça, mas o meu pai resolveu ir assistir à peça.
O nome da peça era Pinóquio, mas nós estávamos falando do sapato.
Eu não sei por que o nome era Pinóquio.
E o meu pai resolveu ir assistir à peça de teatro, onde a gente pegou o personagem do Pinóquio e falou que ele queria, que ele pedia para o pai dele que construía, que ele queria um sapato para desfilar.
Na verdade, eu era o Pinóquio.
No final deu choro, deu briga também, porque aí o papai: “Como que você me coloca numa situação?”, mas não era o senhor, era o Pinóquio que queria, que pedia para o pai dele um par de sapato.
Mas ele sabia que era ele.
Essa foi uma situação constrangedora, porque foi eu que incentivava, que motivava o grupo a fazer teatro e estava ali falando sobre uma situação que foi muito desgastante para a gente.
E isso acontecia com os outros também, com as outras famílias.
Então, aquele encontro de crianças ali, era um encontro também de desabafo de uma série de coisas.
E a forma que a gente tinha de falar com as famílias, na época, era essa.
Porque dificilmente a gente ia ter coragem de dizer para um pai: “Olha, eu precisava, eu queria e você não veio”.
De jeito nenhum.
A gente ficava caladinho.
Não discordava e não falava nada.
Mas o teatro é uma forma de falar.
E eu acho até que era uma forma de conter também a repetição dessas questões, porque nunca mais ele fez isso lá em casa.
O sapato chegava antes.
(risos) Sempre chegava antes, a partir daí.
Mas a gente tinha, às vezes, pela ausência da criatividade de montar roteiros imaginários, a gente tirava das famílias, da vivência das famílias, para escrever.
E não era escrever, era discutir.
A gente discutia o roteiro, que um monte nem escrevia direito ali, a gente discutia o roteiro: “Tu vai ser isso, tu vai ser isso, tu vai falar isso” e aí preparava as roupinhas de crepom, preparava o local da apresentação da peça e ia lá para a representação.
Essa era uma constante na minha vida de pré-adolescente aí, as brincadeiras de teatro.
P1 – E vocês, nessa época, gostavam de ouvir rádio? De ver TV?
R1 – Não.
Naquela época.
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a TV surgiu lá em Altamira.
Eu lembro, a minha memória de TV foi em Altamira.
E rádio, o rádio era uma coisa assim que era tão especial dentro de uma casa, que só quem ligava o rádio era o pai ou a mãe.
E eles ligavam no canal onde eles queriam, né, ouvir as notícias, as coisas.
A gente não.
A gente ficava na janela, de longe, vendo o pai mexer no rádio, ou a mãe mexer no rádio, mas filho não chegava perto do rádio, não.
Rádio era algo precioso, ali.
P1 – Como é que era o rádio dos seus pais lá, nessa época?
R1 – Ah, eu lembro o rádio dos meus pais, porque meu marido hoje é apaixonado por coisas antigas.
E sempre que a gente sai, pra onde a gente vai, ele vai atrás das coisas antigas.
Então, aquele rádio que tinha uma telinha, parece tela de bambu, na frente, com uns douradinhos.
Ali, foi.
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era.
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acho que era quase todos os modelos daquela época.
Porque sempre que ele trocava de rádio, ele chegava com aquele que tinha uma telinha, parecia uma esteirinha na frente, uns frisosinhos dourados e aí era um orgulho dele, ter um rádio, trocar um rádio era uma coisa, era o melhor presente, né, que ele podia.
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P1 – E o que vocês ouviam, nessa época?
R1 – Eles ouviam mais notícias e nós íamos atrás, porque era o que eles gostavam.
Era mais notícia.
Eu não me lembro da parte musical no rádio.
Ia mais atrás de notícias.
A parte musical ficava mais por conta da igreja, né? Dos grupos da igreja.
P1 – Vocês eram.
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vocês são católicos?
R1 – Olha, a minha família, nós já fomos católicos, protestantes, espíritas.
Hoje eu sou espírita.
Então, transitamos por várias religiões, não tinha uma fixa.
P1 – E na época vocês iam na igreja? Que igreja vocês iam?
R1 – Na época a gente ia na igreja da Assembleia de Deus, porque minha mãe era protestante.
Então, a família, levava todo mundo.
P1 – Desde criança?
R1 – Desde criança.
É algo muito positivo, porque ele não era, mas ele acompanhava.
Ela era protestante.
Então, a família ir à igreja fazia parte de um ritual.
E não era aquele ritual: “Tô levando os filhos para ser protestantes”.
Era um ritual para acompanhar a família.
Então, ser protestante, em casa, acabou levando todo mundo, porque ela era muito assídua na igreja, ela era uma das colaboradoras.
E a gente acabava indo.
Dia de domingo a Terezinha vai à igreja, então todo mundo ia junto com ela.
P1 – Entendi.
Aí vocês foram, depois, para Altamira?
R1 – Fomos para Altamira.
P1 – Você lembra da viagem, como foi?
R1 – Eu lembro da viagem.
Saímos no “pau de arara” (risos), de Santa Inês, né, para ir para Altamira.
Uma viagem longa, né? Eu não lembro muito bem como a gente chegou em Altamira, porque aí eu já me situo em Altamira, dentro de Altamira.
Mas não me lembro do trânsito, até chegar em Altamira.
Me lembro muito lá.
A memória maior é a de já estar em Altamira.
Mas ir para Altamira era assim: “Ganhamos uma oportunidade de melhorar, de ter uma condição melhor, financeira.
Provavelmente uma moradia, de escola”.
E fomos em busca disso daí.
P1 – Isso era anos 1970?
R1 – Não tenho a memória do tempo, quando era, não.
Não tenho essa memória.
P1 – Mas você tinha uns dez anos? Doze?
R1 – Não.
Eu devia ter uns dez, onze anos.
Porque a partir dos doze anos eu tenho uma memória bem ativa com relação a isso.
P1 – Você se lembra como era Altamira, quando vocês chegaram lá?
R1 – Lembro.
Altamira era um local que se falava muito na Transamazônica, por exemplo, que ia facilitar a saída de carros de Altamira para os outros locais.
Mas tinha uma escassez muito grande.
Mas quando nós chegamos em Altamira, nós não fomos morar exatamente em Altamira, porque a Queiróz Galvão tinha construído uma vila, né, próximo, há alguns quilômetros de Altamira.
E era lá, onde tem a pedra fundamental, era lá que ficavam os primeiros moradores.
A gente não morava mesmo em Altamira.
Morava na vila da empresa e estudava em Altamira.
Então, quando.
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e Altamira, você ia a passeio em Altamira.
Morava todo mundo na empresa.
A empresa fazia as casas e entregava as casas para.
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foi a primeira vez na vida que a minha família teve uma casa de alvenaria pra morar.
Aquilo, pra gente, era algo novo.
Ter uma escola.
Quando chegamos em Altamira, você tinha uma escola de freiras, que fazia concurso de bolsas e aí a primeira coisa que a mamãe fez, foi me levar lá nessa escola, para fazer o concurso de bolsa e você fazia num ano, para entrar no ano seguinte.
Então, no primeiro ano eu fui estudar em uma escola do governo e, no ano seguinte, eu já fui estudar nessa escola, como bolsista, né? Você tinha de atender aqueles protocolos de tirar, no mínimo, oito pontos, né? Tem toda uma regra dentro da instituição.
E aí eu fui uma candidata, no primeiro ano que a gente chegou lá, de, no ano seguinte, já ir para essa escola de freiras.
Meu primeiro ano fui estudar em uma escola pública, né? No tempo do Vulcabrás (risos).
Eu ainda lembro o que é Vulcabrás.
Você ganhava do governo dois uniformes, um sapato Vulcabrás durava quatro, cinco anos, que era o sapato do uniforme.
E era naquele período, onde ali dentro das escolas ainda tinha muito forte um local que acolhia, que alimentava.
Então, eu ia do acampamento para Altamira, para estudar em Altamira.
E a gente ia de bicicleta, porque ainda não tinha transporte, estava abrindo a Transamazônica.
A gente ia de bicicleta e aí, ou o pai, ou a mãe, ou um vizinho próximo lá que fosse levar o filho também, era o responsável.
Cada dia um era responsável de levar, para estudar em Altamira.
E aí, quem ia levar, ficava esperando para retornar no outro turno para casa.
Então, aí é que eu dei continuidade ao meu ensino fundamental.
Lá em Altamira.
Nesse contexto aí de andar de bicicleta.
Era mais de doze quilômetros, para poder estudar.
P1 – E você, então, era estudiosa? E cuidava dos seus irmãos ao mesmo tempo?
R1 – É.
Os meus pais sempre diziam assim, que o patrimônio mais precioso.
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isso é uma fala constante dele, embora ele fosse analfabeto, ele aprendeu a escrever, porque uma das condições de contratação da Queiróz Galvão era assinar o contrato.
Então, ele aprendeu no Mobral a escrever, a assinar o nome.
Minha mãe sabia ler e escrever, tanto é que ela nos alfabetizou.
Mas eles pregavam muito para a gente a necessidade do estudo, então eles sempre diziam: “A herança que eu posso deixar para vocês é o estudo”.
Então, em qualquer lugar que chegasse, a primeira coisa que ele ia procurar, era condição de estudo para os filhos.
Se não tivesse, ele não ficava.
Então, tinha de ser estudioso, mesmo.
Porque eles faziam de tudo para a gente estar dentro de uma.
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estar na escola.
Ela, além de trabalhar, tinha aquela preocupação de acompanhar os filhos, de estar ali garantindo que o que era proposto pela escola a gente estava se alinhando para fazer.
Isso ficou muito forte na cabeça dos três, com relação a preocupação do estudo ser uma prioridade.
P1 – Vocês eram, digamos assim, muito comportados? Ou não?
R1 – Eles falavam que a gente era bem comportado (risos).
Embora fosse uma família assim: se brigasse com um, brigava com os três, né? Meu pai dizia assim: “Olha, na escola, vocês vão para estudar, vocês não vão para brigar.
Mas, se tiver uma briga, resolvam por lá, porque senão vai apanhar lá e vai apanhar aqui.
”
P1 – E rolava?
R1 – Rolava.
Rolava.
Mexeu com a.
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principalmente com a irmã.
Mexeu com a irmã, os dois irmãos iam lá na defesa.
Eram os defensores da vida.
Rolava que, por exemplo, lá na Queiróz Galvão, existia uma rixa de quem morava em Altamira, dos moradores de Altamira, com as pessoas que moravam no acampamento da Queiróz Galvão.
Existia uma rixa.
Era como se, quem estava ali, era um invasor.
Embora tivesse toda a propaganda que seria o melhor, na mídia, que seria bom para a região, mas existia entre as famílias uma rivalidade: alguém que veio de fora, é um intruso que veio de fora e está tirando o nosso emprego.
Tá mexendo na nossa estrutura de vida, né? Porque, eram muitas pessoas trabalhando, então mexe também na condição deles.
E nas escolas isso se refletia na rixa entre os alunos.
Então: “Ela é a menina lá do interior, da Queiróz Galvão”.
Então, rolava demais.
Rolava uma discriminação imensa, né? E aí, os três irmãos estavam ali, sempre unidos, sempre juntos.
Mas fortalece o laço entre um e outro, né? Eu acho que, nesse processo, quando você vai nesse processo de migração, nesse da Transamazônica eu senti muito isso, depois na Perimetral nós sentimos a mesma coisa.
Às vezes, mesmo você chegando como trabalhador, você é recebido como um intruso, não é uma pessoa tão esperada.
Principalmente em um local onde tem uma carência de trabalho, de alimentação.
E Altamira estava dentro desse contexto, né?
P1- Por que Altamira era uma cidade tão importante para a Transamazônica? Tinha muita gente lá.
R1 – Não.
Porque a maioria dos trabalhadores era de fora.
Inicialmente.
Depois que eles começaram a pegar a mão de obra de Altamira.
P1 – Não.
Mas eu digo assim, aquela região.
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R1 – Eles diziam que era uma região de ligação, propícia para fazer a ligação entre vários estados, né? Pela parte da estrutura física da região, era aquela que era mais favorável a isso daí.
Embora, vivenciando ali, a gente acabou vendo muitas coisas que, na nossa concepção, não era tão favorável.
Era um local onde você atravessava vários tribos indígenas.
Isso não era falado, né? Então, a gente ia para a escola e aí, meus pais, sempre.
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geralmente, o pessoal do acampamento matriculava a gente no turno da manhã, para dar tempo de levar, saía muito cedo, cinco horas da manhã, e à tarde já estar em casa.
Às vezes a gente ia e não podia voltar.
Tinha de dormir na casa de alguém, ou, às vezes, a família já alugava uma casa para, na hora da necessidade, porque os índios tinham bloqueado a passagem para os acampamentos.
Então, era uma região de constantes conflitos com as tribos indígenas, em função da abertura da Transamazônica.
Então, você tinha os moradores de Altamira que não via - eu digo aquela massa mais popular, né? - que via como rival, porque estava ali tirando emprego, mexendo na estrutura.
E tinha todo esse conflito indígena.
Que muitas vezes o meu pai passava pelo rádio: “Não pode vir, as tribos bloquearam a estrada.
Não pode passar”.
Nem de carro, nem de bicicleta.
A gente dormia dois, três dias em Altamira, porque não podia retornar para o acampamento.
Esses conflitos aí foram muito fortes.
Muito fortes.
Porque, como o meu pai transitava em toda a abertura da Transamazônica, ele chegava em casa sempre contando as histórias: da passagem que estava bloqueada pelos índios, da forma como eles pretendiam desbloquear.
P1 – Na força, né?
R1 – Na força, na força.
O meu pai, na época, ficou como responsável de coletar animais e guardar esses animais no acampamento, para ser catalogado e levar para algum lugar, que eu não sei te dizer onde.
Nessa coleta de animais, na Transamazônica, principalmente cobras mais peçonhentas, ele tinha que coletar, catalogar e eles eram enviados de avião para outro lugar.
E aí, no meio dessa, desses animais que ele pegava, alguns iam para o Brasil e outros, ele sempre dizia: “Esses vão para o Brasil.
Esses são fora do Brasil”.
Depois, crescendo, a gente começa a entender que dali, daquele momento, saía muita coisa do Brasil para fora, que ninguém tinha noção.
Mas como ele trabalhava direto com aquilo, a gente via as falas, a gente via a seleção, ele era o empregado para fazer isso.
Coletar, principalmente as cobras.
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P1 – Durante esse tempo em Altamira?
R1 – Durante esse tempo em Altamira.
Na Transamazônica.
P1 – E o que você diria que.
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claro, você disse de muitas coisas que mudaram, mas como é que você vê essa fase da sua vida em Altamira?
R1 – Olha, a fase de Altamira, para mim, as boas lembranças, em Altamira, eu tenho da escola, porque na escola era onde eu ficava ali um período inteiro da manhã.
Era na escola onde eu tinha, a escola tinha uma parceria ali com o Sesi que, na época, o Sesi acolhia, principalmente os adolescentes e ali, na estrutura do Sesi, onde você tinha toda parte semiprofissional, vamos dizer assim.
Então, ali você podia escolher tocar piano, violão, fazer artesanato, música.
Então, num determinado período, eu ficava de manhã na escola e parte da tarde eu ficava no Sesi e ali foi criando uma estrutura semiprofissional.
Descobrindo habilidades ali, né? Essa é uma boa memória que eu tenho de lá.
E uma memória que não é muito agradável, é aquela incerteza de estar em uma região onde estava sendo aberta e nunca tinha segurança, né? Um dia você dormia e no dia seguinte você acordava com o acampamento cheio de porcos, bravo, do mato, todo mundo sobe no fogão, sobe na mesa, sobe.
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porque está cheio de.
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então, não são memórias boas, nesse sentido.
Mas a escolar é uma boa memória.
Foi lá que eu quase concluí o meu segundo grau, né, nessa condição da escola das irmãs e a fase boa é a que tinha ali também uma garantia familiar.
Tinha um pai com emprego, né? Tinha uma mãe que saía daquela condição desfavorável de trabalhar e agora ajudava a cuidar dos filhos.
P1 – Ficava em casa?
R1 – Ficava em casa.
Mas mesmo em casa ela trabalhava.
A minha mãe lá é.
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o acampamento era distante de Altamira, então meu pai trabalhava na Queiróz Galvão e ela arranjou um trabalho para ela.
Então, eu lembro que naquela época, era época do vestido moda godê, uns vestidos bem largos.
Em São Paulo, no Rio de Janeiro, era a última moda.
E uma vez foi um engenheiro e tinha uma inauguração e o vestido da mulher, que ela levou, tinha manchado na viagem.
Aconteceu algum imprevisto, molhou e manchou.
E ela precisava de uma roupa para ir para essa inauguração.
E a mamãe fez o vestido godê dela.
A partir desse movimento, a mamãe começou a costurar para uma.
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para boutiques do Rio e São Paulo.
A mulher comprava dela e levava para lá.
Então, ela arranjou, agora, um trabalho que, mesmo em casa, ela tinha agora uma renda, para acrescentar.
E ali, com ela, eu aprendi a trabalhar, ali com ela também eu aprendi a ser independente no meu trabalho, desde cedo.
P1 – Você aprendeu a costurar com ela?
R1 – Aprendi a costurar, aprendi a bordar, aprendi a fazer crochê, porque era o que ela fazia e eles levavam para São Paulo.
Por isso que doze anos, que era a fase que eu tinha ali, é uma memória muito ativa, porque é a memória onde eu comecei a ajudá-la nos trabalhos de fato: “Olha, temos o compromisso de entregar tantas peças, né? Tantas roupas de bebê”, que iam se batizar tal dia e eu estava junto com ela.
Então, ali o trabalho na minha vida já era muito ativo, aos doze anos de idade.
P1 – E, na escola, você tem algum professor ou alguma professora que te marcou, nessa escola?
R1 – Na escola eu tenho a diretora da escola.
P1 – Por quê?
R1 – Porque o nome dela era Irmã Gema.
E a Irmã Gema era muito exigente.
E, por ser bolsista, a exigência era dobrada.
Então, a Irmã Gema era assim: se você fazia algo que estava fora dos padrões do colégio, como castigo você tinha uma coisa, o contrário, que você não gostava.
Por exemplo: nunca aprendi a tocar piano.
Cada vez que eu estava em desacordo com a regra da escola eu ia.
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eu teria que tocar piano, não sei quantas aulas tocando piano.
Acho que nunca aprendi a tocar piano, por isso.
Mas era a Irmã Gema também, com toda a exigência dela, que fortalecia o que meus pais diziam: “Você está tendo a oportunidade de estudar” “Você tem capacidade de fazer isso”.
Naquela época, a Irmã Gema já falava para mim de competências e habilidades, quando ninguém da Pedagogia se falava nisso.
Então, quando ela dizia assim: “Você tem capacidade.
Você tem competência.
Basta você querer”.
Então, aquela pessoa braba, que na hora que você fazia algo que não estava de acordo, em vez dela gritar, brigar, ela pegava na tua ferida e dizia: “Você tem capacidade.
Por que não faz? Você podia entregar esse trabalho em dia.
Por que não entregou?”.
E fiquei com a memória da Irmã Gema.
O nome já dá uma memória boa pra gente, né? Mas ela foi uma pessoa que me dizia o tempo todo: “Você está aqui porque você tem competência”.
E, nesse colégio era assim: se você tirasse abaixo de seis, no ano seguinte você já não entrava.
Então, ela ficava o tempo todo também me lembrando disso: “Você quer continuar sendo bolsista da escola?” ”Quero” “Então se empenhe, que você tem capacidade”.
Então, eu digo que foi um anjo da guarda brabo na minha vida, mas que construiu, valeu muito para mim.
P1 – Nessa época, você e seus irmãos começaram a namorar, esse tipo de coisa, ou não?
R1 – Não.
Pro nordestino, a moça sai de casa pra casar, né? E a moça namora quando tem dezoito, dezenove anos, se o pai autorizar, né? Naquela época era assim: se autorizasse.
Então, não se falava em namoro, não.
Eu lembro que com quinze, dezesseis anos, eu era apaixonada pelo filho do pastor, mas eu o paquerava de longe, quilômetros, quilômetros.
Nem se falava nisso.
Naquela época o negócio era tão Caxias, que eu lembro que a moda de calça para mulheres, quando chegou, nós estávamos em Altamira.
E aí, como minha mãe sabia costurar, um dia ela resolveu fazer uma calça para mim e uma calça para ela.
Aquelas calças “boca de sino”, a boca enorme.
E papai tinha ido trabalhar, tinha ido para o acampamento da Transamazônica, que ficava mais no meio da Transamazônica.
A mamãe costurou e a gente ia buscá-lo lá, em um local onde os carros paravam, né? E nesse dia nós resolvemos ir buscar.
Aí fui eu e a mamãe, de calça comprida.
A mamãe tinha feito a calça comprida.
O carro parava e os deixava lá no acampamento e seguia para Altamira, para deixar um grupo que ficava em Altamira, de trabalhadores.
Quando ele me viu com a mamãe de calça comprida, ele subiu no carro e foi para Altamira.
Ficou quinze dias em Altamira dizendo que não voltava pra casa para morar com homem.
Que mulher ele identificava de uma outra forma.
(risos) Que a moda quem ditava era ele, não era a sociedade.
E a gente teve de aceitar isso daí, por uma calça comprida que era moda, todo mundo queria ali vestir uma calça comprida “boca de sino”, né? E ela teve esse atrevimento, como ele dizia: “Esse atrevimento de vestir uma calça.
Calça é para homem”.
Então, tem essas coisas, que faz parte de uma cultura, né? Que a gente tem que respeitar.
Depois, com o tempo, vai remodelando.
P1 – E vocês.
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você falou que tinha uns perigos ali, na região, no acampamento.
Como é que era isso? Você falou dos porcos, né?
R1 – É.
O grande perigo dos acampamentos é que, como era uma estrada que estava sendo aberta, era uma estrada de piçarra que, a cada curva, você não sabia se.
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tinha muitos acidentes de carro, tinha muitos momentos que os índios bloqueavam as estradas, para não passarem.
Então, o perigo estava nessa estrutura física e nesse desafio de ser um espaço onde os índios entendiam que estavam sendo agredidos, por aquela condição da Transamazônica e aqui e acolá eles estavam bloqueando.
Por ser criança, nem sempre a gente entendia como, por exemplo, uma flecha ao contrário como bloqueio.
Para nós, às vezes, alguém esqueceu.
Mas um adulto entendia, porque eles eram até treinados para reconhecer isso daí, os sinais dos índios, caso fosse visto nas estradas.
Para a gente ter um comportamento adequado e não insuflar uma coisa inadequada.
Então, o perigo estava aí, por desconhecimento nosso e por ter esses conflitos, geralmente esses conflitos.
P1 – E como é que era o acampamento, nessa época?
R1 – O acampamento era casas feitas de alvenaria, era uma boa estrutura.
Quando eu vim para cá eu lembrei muito do acampamento de lá.
P1 – Ah é?
R1 – É.
Era uma vila de casas, né? Que foi feita para receber os primeiros empregados que foram trabalhar na Transamazônica.
(intervalozinho)
P1 – Às vezes vai acontecer isso, de meia em meia hora, porque precisa dar uma pausinha, tá? Você fala de novo como é que era a vila?
R1 – Pois é, a vila, a estrutura da vila, da Queiróz Galvão, que ela fez na época, tinha uma estrutura de casas de alvenaria.
Então, você tinha as casas dos gestores, tinha as casas daquelas pessoas que ficavam mais permanentes, mas todas feitas em alvenaria, isso que te falei.
Quando eu cheguei aqui, que vi a estrutura daqui, me lembrou as vilas, né? Que geralmente tem um formato onde você tem um grupo de gestores, um grupo de trabalhadores, outros permanentes, mas era uma vila bem estruturada.
Todas com casas de alvenaria.
Não tinha escola, como eu falei.
Isso aí a gente ia buscar em Altamira.
Era uma vila feita só para moradia.
Não tinha lazer, não tinha igreja, não tinha hospital.
Essa parte aí a gente ia buscar em Altamira.
P1 – E vocês ficaram quanto tempo lá? Quantos anos?
R1 – Nós ficamos em Altamira, de lá nós fomos depois para a Perimetral Norte, na Perimetral eu já estava aí com uns.
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meus pais ficaram seis anos, mais ou menos uns seis anos lá.
Depois a Queiróz levou parte dos trabalhadores para a Perimetral.
P1 – Que era outra estrada?
R1 – Que era a abertura de outra estrada, que ia servir de interligação.
P1 – E onde que era a Perimetral?
R1 – No Amapá.
P1 – No Amapá?
R1 – A Perimetral já era no Amapá.
Aí, a gente foi vivenciar uma outra relação que a gente não tinha experiência, que é de andar nos barquinhos, né? Nordestino andando de barquinho é um terror.
P1 – Por quê?
R1 – Porque, no nordeste, barquinho não é algo comum.
Não é algo comum.
Daí, de lá, foi de Altamira para Belém, de Belém você ia para lá, para o Amapá, para o porto de Santana, naqueles barquinhos pequenos.
Meu pai foi na frente, depois nós fomos atrás, para morar com ele.
P1 – Você gostou da viagem ou não?
R1 – Horrível.
Um pavor, um pânico.
Cada onda você ficava apavorado, porque andar de barquinho, para um nordestino, é um grande desafio.
Andar num “pau de arara”, subir e descer as serras é fácil, mas andar de barquinho era um grande desafio.
Com o tempo eu acabei acostumando.
Mas lá também ele foi com essa mesma finalidade, de trabalhar na abertura da Perimetral Norte.
E lá a estrutura já foi.
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a Perimetral já era mais bem aceita, as reivindicações não eram tão grandes, ali já tinha.
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nós ficamos morando em Porto Grande, ficamos morando em uma vila que já existia, uma vila que foi construída em função de um garimpo, que era Porto Grande.
Já tinha ali a Icomi, que trabalhava com minério de manganês.
Então ali eu já completei os meus vinte anos lá por Porto Grande, no Amapá.
P1 – E era uma cidade com uma vila perto, era ____ (54:48)?
R1 – Era.
Você tinha Amapá e alguns quilômetros depois tinha Porto Grande.
Porto Grande tinha um acesso, que você saía de Santana, que também é próximo de Macapá.
Saía de Macapá para Santana, onde lá tinha o desembarque de manganês, que a Icomi extraía, na Serra do Navio.
Então, tinha uma estrutura, na Perimetral Norte, de vilas, mas muitos ficavam nas vilas da empresa e nós ficamos nessa de Porto Grande.
Já tinha uma estrutura formada, tinha um prefeito já.
Já tinha uma forma de locomoção, que era o trem, você ia de Porto Grande para Macapá de trem, já era bem mais estruturado.
P1 – E seu pai foi trabalhar do que lá?
R1 – Na abertura de estrada.
Ele foi com a mesma função: coletar material botânico, animais, para fazer essa seleção.
Ele tinha a mesma função.
Daí eles pegaram várias pessoas lá da Transamazônica, que já tinham uma expertise na área que eles precisavam lá e levaram.
E ele foi um deles.
E aí, lá, ele se aposentou.
Lá meu pai se aposentou, na Mendes Junior.
Trabalhando pra Mendes Junior.
P1 – E você, nessa época ou um pouco antes, não sei, já tinha algum sonho de vida, um projeto? Como é que era isso?
R1 – Já.
Eu na.
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embora meu pai sempre tivesse ali aquela leitura de que família é o marido que é o tutor da família.
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essa é uma leitura nordestina muito forte.
Hoje, nos interiores do nordeste, isso é ainda muito forte.
Então, o marido é o esteio, ele é que vai sustentar o filho, ele que vai sustentar a esposa, a filha vai sair quando casar, o filho vai sair quando tiver um trabalho.
Mas aí eu já alimentava ter uma independência.
Minha mãe sempre foi de falar assim: “Olha, para viver honestamente, se for preciso vender bala, banana, qualquer coisa honestamente, trabalho, vale qualquer tipo de trabalho honesto”.
Então, eu fiquei o tempo todo sonhando em ter essa independência do trabalho.
E foi lá em Macapá que eu fiz um concurso - com o apoio da mãe e sem o pai saber - público e passei no concurso e quando foi falar para ele: “Olha, a nossa filha passou no concurso, tem de ir trabalhar em Santarém, na área de Saúde”, aí, nessa hora, para um pai nordestino, que diz assim: “Não.
Eu que dito as regras”, uma filha chegar e falar assim: “Olha, eu arranjei um trabalho, passei no concurso, tô indo”.
Foi difícil, mas foi o que eu fiz.
P1 – Você só avisou para ele?
R1 – Eu só avisei para o pai: “Eu fiz um concurso, passei.
Você sempre falou que estudo era o maior patrimônio da gente, então o concurso é fruto do estudo”.
Mas só que a filha mulher, para ele, sair de casa, era uma vergonha.
Meu pai era muito tradicional ainda.
A filha sair de casa era uma vergonha.
Tinha de sair casada, de véu, grinalda e tudo.
Mas fiz, saí, fui, ele esqueceu de mim, ele disse que esqueceu de mim um pouquinho, fui trabalhar em Santarém.
Foi quando eu saí de casa.
E, lá em Santarém, conheci meu esposo.
P1 – Você tinha quantos anos quando você foi para lá?
R1 – Eu tinha vinte, ia fazer vinte e um.
P1 – Você foi sozinha?
R1 – Fui sozinha.
O concurso era para dezesseis moças e dezesseis rapazes.
Então era o Sespa, na época.
O Sespa fazia o concurso e levava para Santarém, você assinava um contrato para estudar, se habilitar na área do concurso por dois anos.
Se você conseguisse, eles te contratavam por definitivo.
Então, eu fui nessa intenção e fiquei os dois anos, aí fui contratada, para continuar na área da Saúde.
Trabalhava num hospital em Altamira, um hospital grande.
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P1 – Altamira ou Santarém?
R1 – Santarém! E lá eu conheci o meu esposo, que tinha terminado medicina em João Pessoa, na Paraíba.
E tinha ido para lá também, para fazer dois anos de experiência de contrato.
Lá eu conheci.
Faz quarenta e seis anos.
P1 – Que hospital que foi, em Santarém?
R1 – Eu não lembro o nome do hospital.
Não decorei o nome do hospital.
É um hospital público, que ainda existe até hoje.
P1 – Tudo bem, não tem problema (risos).
R1 – (risos).
Não lembro.
Não decorei o nome do hospital.
P1.
Mas agora conta para a gente como era Santarém na época.
R1 – Olha, quando nós saímos de Macapá para Santarém, as dezesseis meninas, moças, lá e dezesseis rapazes, a gente chegava lá em Santarém entregue para uma enfermeira.
Essa enfermeira já tinha lá disponível uma casa, onde uma senhora cuidava das dezesseis.
Então lá, naquele período, antes de conhecer o Abenadal, era casa, trabalho, casa, trabalho.
Isso fazia parte do contrato, porque nos dois anos você não podia engravidar, se engravidasse perdia o direito a bolsa.
Só não estava no edital isso, na época, mas a gente sabia disso.
Então, era só de casa para o trabalho.
Mas falavam de um Santarém com um movimento intenso, cultural, mas para nós não existia.
E aí, logo depois, quando eu casei, eu já saí de lá.
Saí de Santarém e aí, esse movimento da cidade de Santarém, a gente tem mais da orla, porque a própria enfermeira que acolheu a gente ia passear na orla, ia visitar, ia levar, aos finais de semana.
Ela era uma tutora, né, das meninas, tudo novinha lá.
P1 – E o seu trabalho ia ser do que, lá? Ia fazer o quê?
R1 – Eu era atendente de enfermagem, eu trabalhava como atendente de enfermagem.
Atuei na área de obstetrícia, porque naquela época você tinha uma atendente de enfermagem que, além de cuidar das crianças, você acompanhava o médico, entrava na sala de cirurgia.
Era um trabalho em um formato diferente, um pouco, do que tem hoje.
Mas eu trabalhei basicamente na área de obstetrícia, no acompanhamento lá e aí trabalhava também na área das doenças infectocontagiosas: tuberculose, hanseníase.
Tive uma experiência, às vezes, triste, no recebimento desses pacientes.
Mas fiquei um bom período nessa área, antes de migrar para a Educação.
P1 – Você ficou quantos anos em Santarém?
R1 – Eu fiquei.
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cheguei com vinte mais ou menos lá, ia fazer vinte e um.
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por uns três anos só, eu fiquei lá.
E aí conheci meu esposo, casamos e, na época, tinha uma condição de chefia do Sespa: ele, por exemplo, não poderia me chefiar.
E aí apareceu uma chefia, numa unidade de trabalho, aí foi quando eu pedi demissão e fui cuidar da família e voltar a estudar.
Foi depois de casada que eu fui fazer a minha formação de faculdade, já cuidando dos filhos.
P1 – Sespa significa o quê?
R1 – Sespa, acho que era Secretaria.
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P1 – De Saúde Pública?
R1 – É de Saúde Pública.
Acho que é mais ou menos isso.
Que era da área de Saúde.
Hoje é Fundação Nacional de Saúde, né? Mudou o nome.
P1 – E o seu esposo, qual que é o nome dele?
R1 – O nome dele é Abenadal.
P1 – Abenadal?
R1 – Abenadal.
O Abenadal é paraibano, se formou numa universidade federal na Paraíba.
Aí, no final da formação dele, ele disse que aí apareceram lá para pegar os melhores, as melhores notas.
No dia da formatura, eles tinham uma premiação.
Os alunos mais reconhecidos, dedicados, ganhariam uma premiação.
E a premiação era um trabalho.
Então, ele estava no meio desse grupo premiado, com a oferta do primeiro trabalho dele como médico, em Santarém, nessa condição de ficar dois anos, para depois ser efetivado como funcionário da Sespa.
E foi assim que ele veio da Paraíba, no nordeste também, (risos) para Santarém.
P1 – E foi no hospital que vocês se conheceram?
R1 – Foi no hospital que eu o conheci.
Como eu trabalhava na obstetrícia e ele na obstetrícia, aí é engraçado como eu conheci o Abenadal.
Trabalhando na mesma área, eram dezesseis meninas numa casa e então rolava ali uma paquera entre as meninas, né? E o Abenadal era noivo, ele era noivo lá em João Pessoa.
E ele tinha de arrumar o apartamentozinho dele, porque ele ia casar por procuração.
Então ele.
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a gente acabou tendo uma amizade e ele me pediu se eu poderia ajudá-lo a organizar, a montar o apartamento, que ele não entendia nada disso.
Aí ele alugou o apartamento, o ajudei a montar o apartamento e, na hora, como ele tinha dois anos de contrato com a Sespa, ele não podia sair de Santarém, não poderia se deslocar para casar, então eles resolveram que o casamento seria por procuração.
A irmã iria representa-lo lá em João Pessoa e ia casar por procuração.
O apartamento lá já todo montado por mim, esperando a futura esposa, né? Mas, na hora de marcar o casório, os pais falaram: “Não, casamento por procuração não existe.
Se ele quer casar com ela, ele tem que vir para cá”.
Daí eu fui consolar o Abenadal, (risos) porque ele tinha duas opções: ou ele perdia o emprego, que ele tinha o contrato lá e não podia sair, ou ele ia para a Paraíba casar.
Ele resolveu ficar com o emprego e eu fui consolar o Abenadal.
Oito meses depois a gente estava casado.
(risos) Oito meses depois a gente estava casado.
No apartamento que eu montei para o casamento anterior dele.
P1 – Aí você mudou para lá?
R1 – Casei mesmo.
Não, só mudei quando casei.
Casei, de papel passado, tudinho e aí me mudei para o apartamento.
Lá que tinha, que seria do.
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e aí hoje a gente têm quarenta e seis anos de casados.
P1 – E como foi o dia do casamento?
R1 – Foi muito bom.
Foi bonito.
Não foi melhor, porque o meu pai ainda tinha um resquício de eu ter saído de Macapá.
Então ele falou que ele não ia, porque ele não acreditava que eu estava me casando.
Pra ele, mulher que saía de casa não tinha mais valor.
Então, ele disse: “Eu não vou.
Não acredito nesse casamento.
Ela está inventando que vai casar”.
E minha mãe foi.
E aí minha mãe foi pro casamento, fotografou tudinho e levou para ele.
Quando ele viu as fotografias, aí que ele acreditou: “Ah, realmente minha filha casou”.
Aí, tempos depois, ele foi lá nos visitar.
Mas ele não tinha muitas pessoas, eu também não tinha, mas o apartamento.
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onde ele alugou o apartamento era tipo um condomínio, as pessoas todas se transformaram, ali, em amigas.
Então, foi uma cerimônia simples, mas que está na memória até hoje.
P1 – Seus irmãos não foram, também?
R1 – Não.
Meus irmãos não foram.
Porque meu irmão, um deles foi trabalhar em Caiena muito cedo, trabalha até hoje em Caiena.
Hoje ele, praticamente, vive em Caiena.
P1 – Caiena é Guiana?
R1 – É.
Macapá também tinha muito isso.
Migrar de Macapá para Caiena.
Antes eles iam de forma ilegal e depois passaram a ir de forma, mesmo, convidados.
E ele mora lá já há mais de vinte e cinco anos.
Há muito tempo, já, que ele mora lá.
Então, foi só parte da família.
Foi uma coisa simples e aí o que representava eram as fotografias que levavam: “Tá aqui.
Casou, está lá.
Formou família”.
P1 – E aí, o que aconteceu? Vocês tiveram que sair de Santarém, depois?
R1 – Aí apareceu em Breves uma.
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ele tinha que chefiar uma unidade.
E aí eu não poderia trabalhar na unidade, porque ele iria me chefiar.
Eu tive de pedir demissão, entramos num acordo: “Eu vou estar próxima dos filhos que vierem aí e você vai trabalhar”.
E fomos para Breves.
Então, a história da minha constituição familiar, a maioria está em Breves.
P1 – Breves é.
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R1 – Breves é próximo aqui de Belém.
Cidade de Breves.
E foi por morar em Breves que eu vim parar aqui, Vila dos Cabanos.
P1 – Então só, antes de chegar aqui, vocês foram para Breves? É Tocantins ou é Pará?
R1 – É Pará.
É próximo de Belém.
Lá em Breves ele chefiou a unidade por vários tempos.
P1 – Você teve filhos lá?
R1 – Tive filhos lá.
Inclusive o último filho, que nasceu de oito meses, aí ele precisava ter um acompanhamento médico que só tinha em Belém, pela especialidade.
Então, eu saía de Breves, eu tinha duas alternativas: ou eu saía de barco e aí, para atravessar essa Baía do Arrozal, era um terror.
Você entrava nela e não sabia se ia sair do outro lado, que é muito brabo, mesmo.
Ou você vinha de teco-teco.
E aí, esses teco-tecos que vão para o interior, são muito defasados.
A última vez que eu vim com a criança de lá, ele tinha o combustível para rodar duas horas e já estava com uma hora e cinquenta minutos e eles tinham perdido a rota.
Isso porque ele tinha de vir para Belém, para tomar uma medicação que só tinha em Belém.
Só fazia em Belém esse acompanhamento.
Daí nós decidimos: “A gente tem que achar uma alternativa de sair daqui e ir mais para próximo de Belém”.
Foi quando surgiu a possibilidade dele vir para cá, trabalhar no hospital do município, na época.
Então, a gente veio muito, inicialmente, em busca dessa proximidade de Belém, para dar uma condição melhor de saúde para o filho, que tinha nascido de oito meses.
P1 – Você já tinha.
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você tinha um filho só?
R1 – Não.
Aí eu já tinha os três.
Eu cheguei aqui e já tinha os três.
P1 – Ah, então vocês ficaram bastante tempo lá?
R1 – Ficamos.
Ficamos bastante tempo lá.
Eu já tinha os três.
Ele estava com meses, o caçula.
P1 – Quais são .
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quais são os nomes dos seus filhos?
R1 – Eu tenho a Gleidiciane, que é a mais velha.
Tem quarenta e cinco anos.
Tem a Glenda.
E tem o Abenadal Junior (risos), que é esse que está agora em São Paulo.
P1 – E como é que foi o nascimento dos seus filhos, o parto deles?
R1 – Olha, o nascimento foi tranquilo, porque ele que fez o parto de todos eles.
Como a gente morava em um local onde ele era a pessoa principal, acaba que ele que fez o parto de todos eles.
Então, eu ia tranquila lá.
P1 – Curioso, né?
R1 – É, curioso.
Eles dizem, dentro da medicina que, a nível de ética, não é muito bom, né? Mas, sem alternativa, não tinha o que fazer.
Ele é que pegou todos os filhos.
P1 – Enquanto isso você estava estudando, é isso?
R1 – Aí sim.
Quando a gente combinou que ele iria trabalhar, para assumir a chefia, eu iria cuidar dos meninos e estudar, voltar a estudar.
Foi quando eu comecei a.
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voltei a refazer o segundo grau, porque aí teve uma longa parada, né? Terminei o segundo grau, novamente e cuidava da casa, enquanto ele trabalhava.
Então, a perspectiva de fazer uma faculdade surgiu quando a gente chegou aqui.
Aí.
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P1 – Como é que foi ser mãe?
R1 – Ser mãe, para mim, sempre foi um sonho de consumo.
Eu sempre quis ser mãe e tenho três filhos e minha mãe teve três também.
Embora ela veio de uma família de treze, ela teve três.
Então, eu me espelhava nela ali, ter três filhos.
E eu me sinto realizada, nossa, eu tenho o maior orgulho dos filhos que eu tenho.
São filhos que hoje dizem que eu sou o filho e eles são os pais.
São filhos que acolhem o pai, a família, de uma forma muito carinhosa.
Eu só tenho que agradecer a Deus essa oportunidade, né? Hoje eu tenho uma que é psicóloga, a Glenda, trabalha em Belém.
A Gleidiciane também trabalha na área da Educação, mora aqui ainda.
E o Abenadal é programador.
Ele está morando em São Paulo.
Mas é aquele filho assim, que adoeceu o pai eles correm tudinho, adoeceu a mãe, eles correm tudinho, vem pra ver se pode ajudar alguma coisa, vem acolher todo mundo.
Então, ser mãe é uma realização da gente, né, como mulher.
E era o sonho.
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para mim era família, né? Família, pra mim, o filho tem que estar ali no meio.
Foi, isso foi constituído na minha cabeça, né? Desde .
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essa família onde você tem o pai como esteio, a mãe que vai coordenando o processo educacional.
Era muito forte em mim.
Então, construir uma família era algo que fazia parte.
P1 – Dos seus planos?
R1 – Desde cedo.
Embora ele perguntou: “Namorou com quantos anos, né?” Namoro acho que veio lá na frente, dezoito, dezenove anos.
Mas a ideia de que uma família seria relevante na minha vida, tinha desde cedo.
Fazia parte da minha criação isso aí.
Não era aquela família onde você vai trabalhar, cuidar do filho.
A minha mãe sempre colocou que era aquela família onde você tinha uma estrutura educacional capaz de você ter uma formação, ter um bom trabalho, poder dar o melhor para os filhos, dentro dessa estrutura.
Então, embora ela não tivesse uma faculdade, nem ele, mas ela alimentava isso aí na minha cabeça.
Essa formação para ter uma família com uma boa estrutura.
P1 – Também pensando nisso que vocês vieram para Barcarena, né?
R1 – Foi.
Barcarena, a prioridade maior foi essa questão da saúde do filho que eu te falei.
E aí nós chegamos aqui em Barcarena em 1985.
Ele veio em janeiro de 1985, para assumir um trabalho no hospital.
Chegou a chefiar o hospital alguns anos e eu fiquei em Breves, esperando por ele.
Porque não tinha casas para morar aqui.
Não tinha estrutura física, não tinha estrutura alimentar.
Então, ele me dizia: “Eu vou na frente, você fica.
Quando tiver uma estrutura lá, você vai e leva os meninos”.
Então, você tinha duas possibilidades: alugar uma casa em Barcarena, do outro lado, ou você morar em Belém.
Como a família sempre estava junto, em todos os momentos, essa não era uma alternativa nossa, da família ficar em Belém.
E em Barcarena não tinha para alugar.
A estrutura era muito deficitária nesse sentido, no começo, em 1985.
E 1985 era um ano, assim, de um rebuliço muito grande, né? Eu acho que foi o ano em que a Albras fez funcionar as coisas, chegou o alumínio, chegou o material que faria a fábrica produzir.
Foi o ano da inauguração, né, da Albras, em 1985.
E eu esperei por ele dois meses.
Com dois meses a casa não saía.
Eu botei tudo dentro de um barquinho (estalo de mãos) e fui.
Cheguei no São Francisco e digo: “Avisa lá pra ele que eu cheguei”.
Quando ele me viu: “Irene, vocês vão morar embaixo de uma mangueira? Aqui não tem casa pra morar, não estão abrindo ainda”.
E, realmente, quando eu.
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eu imaginava uma outra coisa.
Eu imaginava que já tinha, como lá na Transamazônica, uma vila onde se pudesse morar.
Era esse imaginário que estava na minha cabeça.
Quando eu cheguei, que vi que, na verdade, não tinha.
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tinha o hospital, tinha, eu acho, umas duas pensões coletivas.
Tinha um local onde todo mundo que chegava ia fazer refeição, era tipo um restaurante.
Eu acho que era uma pensão coletiva também.
E a fábrica sendo construída.
Não tinha.
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na época, o que eu ouvia falar, é que no final de 1984, acho que a Codebar tinha entregue algumas casas para a empresa e essas casas iam ser distribuídas para os funcionários.
Então, ele não era funcionário da Albras, ele era funcionário federal.
Então, não tinha casa para ele.
E eu falei: “Não, nós vamos morar embaixo de qualquer mangueira, de qualquer tapera.
Eu já vivi a minha vida toda morando, mas nós vamos ficar junto”.
E aí, na época, a Albras ofereceu uma casa protótipo que eles tinham.
Acho que foi a primeira casa que foi feita.
Eu sei que era uma casa protótipo, se a gente queria ficar, porque seria uma temporada, posteriormente nós teríamos de construir a nossa.
E aí, pronto, fiquei.
Ficamos nessa casa.
Moramos nessa casa durante sete anos.
P1 – Onde que era essa casa?
R1 – Aqui já em Vila dos Cabanos.
P1 – Vila dos Cabanos.
R1 – Aqui em Vila dos Cabanos.
Mas era uma das poucas.
Porque, em 1985 foi que, de fato, começaram a entregar as casas, para os funcionários morarem.
Porque até então tinha as pensões coletivas com os trabalhadores.
As famílias começaram a chegar no final de 1984, 1985.
Por que eu digo que foi exatamente nesse período? Porque quando eu cheguei, aí cederam essa casa pra gente morar e eu passei a fazer parte de um grupo de recepção das novas famílias.
Então, existia uma filosofia, que ela era muito falada, de que as pessoas eram um patrimônio precioso para a empresa, eles criaram um projeto onde cada família que chegasse aqui, já tinha o compromisso de receber a próxima.
E eu passei a fazer parte desse grupo, de receber as famílias.
Então, tinham pouquíssimas casas.
Pouquíssimas casas com pessoas.
A maioria foi, foram surgindo a partir de 1985, pra receber.
P1 – Foram feitas todas aqui, na Vila dos Cabanos?
R1 – As casas?
P1 – É.
R1 – Na época, sim.
Na época, sim.
Se não me engano, na época foram entregues umas quatrocentas casas.
Foram as primeiras famílias que chegaram.
E aí tinha família de vários estados.
Uma coisa que é marcante para mim dessa época, é que a gente ia receber as famílias e, quase que de maneira geral, elas chegavam aqui e diziam assim: “Por que tu veio para cá?”.
Porque era uma.
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a Vila dos Cabanos estava se estruturando.
Não tinha rua, tinha as casas pontuais em alguns locais, mas não tinha rua.
Não tinha uma Vila dos Cabanos.
Por que que essas pessoas, por exemplo, vinham de outros estados para morar aqui? Eu tinha a minha história, com relação a saúde do filho, mas tinha uma história comum que a gente ouvia nessas famílias: “Não.
Eu vim para cá para fazer o meu pé de meia.
Eu só vim para cá para fazer o meu pé de meia”.
Cada família que a gente ia receber, a gente ouvia essa mesma história.
Acho que eu sou a única que vim para cá por uma questão de saúde.
(risos) Algumas vinham de bom grado, porque tinha a possibilidade de um salário melhor.
Albras dava toda condição, desde um carro na frente, para levar para onde queria, dava passagem de volta para o estado deles duas vezes no ano.
Então, tinha todo um acolhimento ali e algumas garantias.
Mas o que é interessante dessa história é que, logo depois que eu cheguei e começamos a receber as famílias, o Colégio Anglo Americano, que foi o primeiro colégio que trabalhou para a empresa, para a Albras, se mudou do Eduardo Angelim, que era um espaço federal, né, um colégio pequeno, para esse colégio grande que tem hoje aqui, do lado.
E, na época, tinha três mil alunos.
De trabalhadores, se dizia que tinha mais ou menos sete mil trabalhadores, dentro da Vila dos Cabanos, na época da construção.
Sei que o colégio tinha uma faixa de três mil alunos.
E eu fui convidada para trabalhar como coordenadora na área de alfabetização, dentro do colégio.
E fui trabalhar, na época, assumindo o compromisso de passar na Federal.
Porque existia um contrato com a Albras que todos professores, funcionários, tinham de ter a formação.
E eu tinha em uma outra área.
Não tinha na área da Educação.
Mas eu lembro que a Leda Bela, na época, falou assim: “Você tem jeito pra criança.
Assuma o compromisso comigo, que você vai passar na Federal e vai fazer faculdade”.
E aí eu ganhei duas coisas: a obrigação de estudar e passar na faculdade federal e o trabalho.
E fiquei no Anglo Americano durante quatorze anos.
Trabalhei durante quatorze anos.
P1 – Era um colégio criado pela empresa?
R1 – Foi um colégio criado pela Albras, foi um colégio.
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a estrutura física é da Albras até hoje e era cedido para o Anglo Americano, que eu acho que foi o que ganhou a concorrência, na época.
O Anglo Americano ficou aqui durante quinze anos.
Então, ele ficou desde o início da formação da Vila dos Cabanos.
Então, o que acontecia? As famílias que a gente recebia lá, algumas com queixas, por estar onde não gostariam de estar, principalmente os filhos adolescentes, esses meninos iam todos pro colégio.
Então, o colégio era o “point” do encontro, das famílias, dos colegas.
Era ali que a gente ouvia a conversa sobre cada família.
Era ali que a gente acolhia cada um, era ali que chorava no ombro de cada um.
E aí é interessante você ver, porque junto com tudo isso, você vê a primeira praça ser montada, as primeiras ruas a serem organizadas.
Tem uma coisa que é interessante: hoje tem uma rua principal, que chama rua.
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ela tem um nome, eu nem decorei o nome da rua.
E agora? Devia ter decorado.
Mas ela é conhecida como Rua da Lama.
E aí o pessoal: “Mas por que Rua da Lama?”.
Porque é a rua mais.
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o melhor trânsito que tem, você tem a praça, tem a igreja, próximo dos Bancos, próximo da Jerônimo Pimentel, tem o comércio ali.
Então por que Rua da Lama? E eu digo: “Rua da Lama é porque.
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eu morava no final da Rua da Lama.
Quando nós chegamos, quem tinha filho precisava de leite, de massa, de outro tipo de alimentação e não tinha aqui.
E eles estavam abrindo as ruas.
E abriu essa rua no período de março, muita chuva, de março a junho, mais ou menos, muita chuva.
Então, era um lamaçal só.
E aí conseguimos um senhor, do outro lado, de um comércio de Barcarena, que falou assim: “Se vocês me derem a lista do que vocês precisam, eu trago para vocês”.
Mas ele não conseguia chegar até as casas, porque era lama, era lama o tempo todo.
Estava ainda aqueles tratores abrindo, derrubando árvores, jogando piçarra.
Era lama pura.
Então, o que a gente fazia? A gente combinava com ele, as moradoras daquela rua combinavam com ele, era o nosso ponto de referência e realmente era só lama.
Mas o entregador do supermercado tinha de ter uma referência, pra entregar as coisas para a gente.
Então, qual era o nosso combinado? A Kombi, cheia de alimentos, nos esperava no final da rua da lama, porque a rua não tinha nome.
“Nós vamos esperar no final da rua da lama”.
Então, nós colocamos tábuas durante o percurso todinho da Rua da Lama, que a gente ia por cima das tábuas, para pegar as compras lá e trazer.
Então, essa referência da Rua da Lama, primeira, foi diante dessa nossa necessidade, de ter um local que se pudesse transitar, para ir receber as mercadorias que eram compradas por esse senhor de Barcarena, dono de um supermercado em São Francisco.
E como Rua da Lama ela foi ficando.
“Tu vai em tal lugar: vai pra escola? Vai por onde?” “Pela Rua da Lama” “Pela Rua da Lama”.
Então, depois da Rua da Lama era o acesso à escola, era o melhor acesso à escola.
Essa Dom Romualdo Coelho, que fica aqui na frente do Cabana Clube, seria a rua principal.
Mas a rua principal passa a ser a Rua da Lama.
Até hoje a referência, você pergunta: “Aonde, fica onde? Onde fica o seu comércio?” “Na Rua da Lama” “Onde fica o Banco?” “Próximo à Rua da Lama, a praça da Rua da Lama”.
Então, a Rua da Lama criou um nome aí, a partir da necessidade primeira da comunidade, em ter um espaço onde ela pudesse transitar e resolver as necessidades de alimentação.
P1 – É aqui perto?
R1 – É aqui perto.
Fica na praça principal.
Onde tem a.
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próximo a.
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tem a rua do Banco do Brasil, Caixa Econômica, ela é uma transversal.
Que hoje não é lama, mais.
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