IDENTIFICAÇÃO Sou Paulo Estellita Herkenhoff Filho. Nasci em Cachoeira de Itapemirim, no Espírito Santo, dia oito de janeiro de 1949. FAMÍLIA Do lado paterno, Alfredo Herkenhoff, nascido em Joinville, filho de pais alemães. Minha avó paterna, Aurora Estellita Lins Herkenhof...Continuar leitura
IDENTIFICAÇÃO Sou Paulo Estellita Herkenhoff Filho. Nasci em Cachoeira de Itapemirim, no Espírito Santo, dia oito de janeiro de 1949.
FAMÍLIA Do lado paterno, Alfredo Herkenhoff, nascido em Joinville, filho de pais alemães.
Minha avó paterna, Aurora Estellita Lins Herkenhoff. O meu bisavô, pai dela, era muito importante, era pernambucano e juiz federal. Isso significava que, nessa época, na passagem do século XIX para o século XX, os juízes federais viajavam pelo Brasil, serviam em várias partes do país. Eu não tenho certeza se ela nasceu no Recife ou no Pará, mas o fato é que a minha família, o meu trisavô tinha uma escola no Recife. Então, pelo lado paterno, é uma família de classe média, ligada ao direito e à educação. Meus avós paternos fundaram uma escola no Espírito Santo, em 1932.
Eu nasci dentro de uma escola, onde passei a minha infância. Comecei a trabalhar aos 10 anos de idade na escola. Comecei a dar aula com 14, 15 anos. Então, a infância e a escola foram algo mais complexo. Do lado materno, o meu avô Domingos de Geaquinto era filho de imigrantes italianos. A minha avó materna, Maria Alves Geaquinto, é de uma família tipicamente brasileira, de portugueses com traços indígenas. A bisavó dela era índia, enquanto Estellita Lins é uma família já com 400 anos no Brasil. Minha avó ensinou o meu avô Domingos a ler. O sentido da educação, para mim, é dado muito mais por essa avó que ensina o marido a ler do que pela família que há gerações tinha escola. Porque, digamos, são duas situações: uma, em que o conhecimento é um processo de acúmulo, de agregação, de desenvolvimento, que eu acho que é dado pela família Estellita. A outra situação é o ensino como processo permanente do ser humano, o aprendizado, né, essa idéia de que a educação é um processo permanente.
E esse meu avô que aprendeu a ler já adulto é muito cuidadoso na formação das filhas. Todas as filhas estudaram, iam para colégio interno. Enfim, é isso. Minha mãe é Mary de Geaquinto Estellita Herkenhoff e meu pai é Paulo Estellita Herkenhoff. Ele era professor, sempre, como todos na família, mas também era advogado. Minha mãe era dona-de-casa. Minha mãe saiu da escola para se casar. Eu sou o filho mais velho. Eu nasci 11 meses depois que eles casaram. A minha mãe voltou a estudar quando já tinha quatro filhos, para concluir o segundo grau. Enfim, a questão da educação e da escola sempre foi um processo muito intenso na família, porque todos os meus tios e tias eram professores. Eu sou o filho mais velho. Era muito importante também a questão dos primos. Eu tinha muita pena da minha avó materna porque ela só tinha 40 netos e a minha avó paterna só tinha 60. Era basicamente isso, uma infância vivida muito dentro da família e essa família significando também uma escola.
INFÂNCIA / BRINCADEIRAS Passei a infância em Cachoeiro de Itapemirim até 18 anos. Depois eu fui para os Estados Unidos, num programa de intercâmbio. Em 1969, eu vim para o Rio. Eu sempre brinco que nasci num bairro muito afastado do Rio de Janeiro que é Cachoeiro de Itapemirim. A gente vinha mais ao Rio do que a Vitória, por exemplo. Cachoeiro é uma cidade do interior, mas muito orgulhosa das pessoas que lá nasceram: Rubem Braga, Roberto Carlos, Nara Leão, Carlos Imperial, Jece Valadão. Uma cidade que se orgulhava de seus filhos muito ligados à cultura. Até coisa de museu, por exemplo, na escola da minha família tinha um museu de ciências naturais com aquele cheiro de formol, que também é um cheiro da minha infância, porque eu adorava mexer naquelas coisas. A gente sempre teve muito acesso, na família, às coisas, aos objetos. Eu me lembro, por exemplo, numa eleição do grêmio estudantil, um dos meus primos pegou um mapa que ele encontrou para fazer um cartaz para sua chapa no grêmio. Só que o mapa era do século XVIII. O meu bisavô alemão tinha umas gravuras e mapas. Então, era um pouco isso. Depois, o pai do meu pai era violinista. E na família havia vários violinos, vários pianistas também, e se dizia que ele tinha um Stradivarius. Os meus primos – tinha um grupo de uns sete ou oito que nasceram no mesmo ano que eram da pá virada – abriram o violino para saber se era realmente um Stradivarius e encontraram a etiqueta do Stradivarius. Só que, anos depois, se entende que no século XIX houve uma fábrica de violinos, acho que em Cremona, que voltou a fazer Stradivarius. Então, esse Stradivarius destruído, consumido pela curiosidade, não era um Stradivarius clássico, valioso. Era um Stradivarius bom, mas... Então, essa era a relação muito direta que a gente tinha com os objetos de arte, históricos.
Eu acho também que foi muito importante a biblioteca do meu pai para a minha formação. Era uma biblioteca grande, na minha casa. Hoje, penso que essa biblioteca devia ter uns 10 mil volumes, era bem grande para ser uma biblioteca particular. Era uma biblioteca que tinha livros de direito, mas também tinha muita coisa sobre o Espírito Santo – ele era o maior bibliófilo sobre o Espírito Santo –, tinha uma seção de artes e também tínhamos livre acesso. Nós consumimos, por exemplo, livros ilustrados pelo Gustavo Doré. E lá existia um livro em alemão chamado Konkrete Kunst. Eu me lembro claramente que esse livro sumiu, mas gostaria muito de reencontrá-lo porque, antes de aprender a ler, eu olhava de tudo, de Michelangelo à arte concreta. Eu sempre brinco que descobri a Max Bill junto com Lygia Clark e o Oiticica, porque estava vendo essas obras em torno de 1953, 1954. Eu aprendi a ler em 1955, e isso foi antes.
Eu também digo uma outra coisa de brincadeira, que foi a minha mãe que me ensinou a ver o Matisse, quando ela voltou a estudar – eu não me lembro bem que idade eu tinha, cinco ou seis anos. Um dia, na minha memória, era muito tarde da noite, ela estava na sala, com um abajur, fazendo alguma coisa. Eu cheguei perto e ela estava fazendo um trabalho para o colégio. Era um ramo de morango e tinha um vermelho incrível, eu não esqueço, porque a luz do abajur estava com o foco muito em cima. E ela me matriculou também nesse período, eu não fui para jardim de infância, mas fui para uma escolinha de arte fundada pela Isabel Braga, cunhada do Rubem Braga, e que tinha estudado com o Augusto Rodrigues. Então, já na infância, eu tive esse contato muito direto com a arte, com a idéia de museu e a idéia de objetos antigos.
BRINCADEIRAS Existia uma cidade chamada Escomércio, por causa da Escola de Comércio. Então, os nossos domínios chamavam Escomércio, cada casa era um bairro, cada quarto era uma rua, cada cama era uma casa. Então, Escomércio tinha um serviço de correios, tinha atividades, tinha exposições. Eu me lembro uma vez que teve uma exposição dos Estados. Eu tive que fazer, por sorte, o Estado da Paraíba. Então, para representar o Estado da Paraíba – eu devia ter cinco, seis anos –, cada um fazia o que podia. Eu descobri que tinha muito jumento na Paraíba e fui para a casa da minha avó procurar o presépio, para pegar o jumento e botar na exposição da Paraíba. Quer dizer, com essa idéia, eu sou curador desde os cinco, seis anos de idade. Foi a minha primeira experiência curatorial.
FAMÍLIA O meu pai era muito firme, muito estrito. Mas havia um sentido muito grande de família, então, as pessoas tinham um papel diferente. A minha avó era a figura matriarcal, nós a víamos todos os dias e a minha mãe sempre mais doce. Mas os dois, por exemplo, sempre me estimularam muito a estudar, a olhar para o mundo. Meu pai, sempre que viajava, trazia livros. Eu me lembro um livro que tenho até hoje – eu devia ter seis, sete anos –, um livro francês que ele trouxe do Rio sobre egiptologia. Mas não era uma coisa imposta, era estimulada essa relação com o estudo, com o saber, com a cultura. Nós tínhamos professor de inglês e alemão em casa. Na minha adolescência, apareceu um americano em Cachoeiro, velhinho. Então, meu pai, com pena e, ao mesmo tempo, querendo praticar inglês e que a gente praticasse, convidou esse velhinho para almoçar na nossa casa todos os dias, para que a gente pudesse falar inglês na hora do almoço. Funcionou para uns e para outros não, porque ele era muito chato, às vezes agressivo. Mas, para mim, foi muito bom, porque, até ir para os Estados Unidos, falava inglês nas refeições. Era o John Bittler. Depois ele ficou muito velho, eu já estava aqui no Rio e meu pai cuidou dele até o final. Em termos de Brasil, como meu pai vinha do Sul, nós recebemos de herança uma amiga da minha avó, quando ela morreu, que era catarinense e falava muito sobre Santa Catarina, sobre Curitiba. Então, desde cedo, eu tinha essa fantasia de um Sul diferente, pelo frio, pelo tipo de cultura. Nós tínhamos parentes em Joinville. Enfim, são esses personagens da vida... Numa cidade do interior, as relações – às vezes, eu digo – podem ser até mais generosas, como isso da minha mãe herdar uma amiga da sogra para cuidar, depois o professor de inglês, aos 75, 80 anos, que meu pai cuidou até a morte. São relações sempre de agregar.
EDUCAÇÃO / ENSINO FUNDAMENTAL / ENSINO MÉDIO Eu aprendi a ler no Rio. Meu pai tinha vindo fazer um curso na Fundação Getúlio Vargas, em 1955. A gente morava no Leblon, acho que era em cima do Bracarense, tenho essa impressão. E foi fantástico ter vindo porque tem coisas da minha infância que eu me lembro nitidamente: da Rio Branco, do enterro da Carmen Miranda, da quantidade de gente. Viemos para cá [Rio de Janeiro]. Eu aprendi a ler, não consigo me lembrar graficamente em qual jornal, mas aprendi a ler num jornal, que o meu pai comprava todos os dias. Eu não lembro se foi no Correio da Manhã ou se foi no Jornal do Brasil. Eu acho que foi no Correio da Manhã, porque no Espírito Santo ele assinava inicialmente o Correio da Manhã. O Jornal do Brasil foi depois, nos anos 60. Ele assinava também a Visão. Então, tinha essa coisa da informação ser um fato muito importante. A experiência de ter morado no Rio é resumida em uma palavra. A gente morava num andar alto, o Leblon ainda era muito baixo, era o crepúsculo, e eu descrevia o céu como um azul marinhado. Até hoje eu me lembro dessa expressão – o azul marinhado – que, para mim, era essa fusão entre mar e céu, num certo momento do dia. O céu sendo azul marinhado. Ficamos seis meses que me parecem um tempo extensíssimo, porque foi tão rico de experiências, de ver coisas. Tinha havido o Congresso Eucarístico, que foi muito forte. Então, eu lembro muito bem do Aterro, daquela região, e a experiência da Avenida Rio Branco, da Colombo, essas coisas mágicas todas. Depois voltamos para Cachoeiro do Itapemirim. Era uma vida muito viciada, porque todos os meus professores eram parentes. Então, eu nunca saí da família. Era um negócio absurdo. Depois, começou a ter professores que não eram parentes. Mas, até uma certa idade, o meu contato com o mundo era muito difícil porque ele era todo intermediado pela família. Na escola, meus colegas eram os meus primos. No final das aulas, nós ficávamos na escola brincando. Não havia espaço, a família era muito fechada nesse sentido. Essa escola tinha primário, ginásio, escola normal e curso de contabilidade. Fiz todo o curso nessa escola. E, a partir de uma certa idade, você começava a dar aula, todos nós, eu e meus primos.
INFÂNCIA / JUVENTUDE / EDUCAÇÃO
Eu tenho a impressão que ainda estava no ginásio quando comecei a dar aulas. Eu queria muito, porque meus primos já faziam isso. Era um processo de afirmação. Mas me lembro como uma coisa muito angustiada, porque hoje, quando eu vejo já com uma distância, sinto que a minha angústia era perceber que não tinha maturidade para aquilo. Dar aulas com 14 ou 15 anos para primo que tinha 10, virava bagunça mesmo, uma dificuldade de regência, digamos assim, porque tudo era muito continuado. Eu não me lembro exatamente, mas foram três ou quatro anos de aula. Eu regia uma turma de primário. Eu me assusto com isso porque, depois, indo para os Estados Unidos, fazendo universidade nos Estados Unidos, sempre me vejo muito mais despreparado, evidentemente, para ter dado uma aula no curso. Eu fui fazer o meu segundo grau nos Estados Unidos. E aí eu vi o meu despreparo quando passei um trimestre lendo Macbeth na aula de inglês. Se eu transponho isso para português, vejo a diferença claramente. Depois, na NYU – New York University – pude comparar com a PUC-Rio os processos. Se bem que, na PUC, eu estudei num momento muito especial, que foi a primeira turma de regime de créditos, talvez no Brasil, em 1969. Era uma turma muito grande e aí foi uma descoberta de um outro mundo. Quando eu comecei a estudar Direito, já no campo de especialização, no terceiro semestre, eu conheci uma figura excepcional, o Joaquim Falcão, entre outros professores. Eu tive muitos bons professores, foi um momento em que a PUC adotava o regime de créditos. Então, havia uma efervescência de repensar a educação, mas, por outro lado, era um momento terrível e, ao mesmo tempo, extraordinário. Eu nunca fui de movimentos, mas havia simpatia e, por conta disso, eu me dividia. Vivia uma esquizofrenia, porque queria fazer Direito pensando na Diplomacia e, ao mesmo tempo, estava numa universidade que, naquele momento, oferecia outras possibilidades. Então, todas as minhas eletivas jamais foram em Direito, eram sempre do Departamento de Ciências Sociais ou Estética. Já procurava atender minimamente os meus interesses que não estavam no Direito. Quando eu terminei e fui para a Universidade de Nova York, vi claramente que eu não queria morar fora do Brasil. Eu odeio morar fora, não gosto de morar numa outra cidade que não seja o Rio de Janeiro. Eu sou um apaixonado pelo Rio de Janeiro.
MESTRADO EM DIREITO
Foi um mestrado curto, porque a monografia final era feita no Brasil. Então, foi um ano e a monografia foi sobre o Direito Comparado. E como eu já tinha a perspectiva de não fazer diplomacia e dar aula, eu fiz a tese sobre Direito comparativo, analisando a estrutura do poder nos Estados Unidos e no Brasil, vinculada à questão constitucional, o que, para mim, era uma forma de operar sobre a condição de estado de exceção da ditadura.
PRIMEIRO TRABALHO Quando eu voltei, comecei a dar aula na PUC e fui trabalhar num órgão da Secretaria da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ligada à questão nesse momento no Brasil; a nova Constituição discutia muito a questão das regiões metropolitanas, buscar sistemas de articulação jurídica na estrutura de poder entre o Município e o Estado. Entendo que havia, em algumas regiões do Brasil, um conjunto de Municípios que estavam muito integrados e que haveria aí uma instância intermediária. E era um organismo muito interessante porque havia discussões de toda a espécie, que vinculavam Direito Constitucional e Urbanístico. Um dia eu cheguei ao escritório e me disseram que aquele era o meu último dia. Eu perguntei por que e disseram, com muito cuidado, que era por causa das minhas aulas de Direito Constitucional. Nós estávamos vivendo a fusão, era a ditadura. Eu nunca fui preso, mas nas minhas aulas tinha claramente ouvintes não matriculados. Eu vivi isso. O Curso de Direito tinha um lado, eu não diria socialista, mas um lado claramente liberal. Eu não dou muita relevância a esse fato, porque acho que há pessoas que sofreram muito mais. Mas, digamos, o preço que eu paguei é o relativo ao meu engajamento que não foi tão grande assim, a não ser dar aula de Direito Constitucional, usando as aulas para fazer a minha forma de oposição. Direito é uma profissão, em geral, com um interesse muito pragmático.
JUVENTUDE A minha juventude passei em Cachoeiro. Em 1967, fui para os Estados Unidos. Eu já tinha terminado o curso técnico, mas queria muito estudar nos Estados Unidos porque, como queria fazer diplomacia, queria estudar inglês e ter outro tipo de formação. Então, eu consegui uma bolsa. Isso me atrasou um ano, quase dois anos, em termos de entrada na universidade, mas tinha essa função muito específica. Tinha uma prima que era casada com um diplomata, o pai dela tinha sido adido cultural do Brasil lá no Paraguai, era um tio, irmão da minha avó. Então, era uma abertura para o mundo. Ao mesmo tempo, essa abertura para o mundo era o horizonte que eu via mais próximo dos meus interesses. Era como se confirmasse os meus interesses em Geografia, em História, em Línguas, em Artes. Era como se a Diplomacia pudesse dar conta disso. O meu grupo de amigos era basicamente meus primos. Depois, na adolescência, tive outros amigos. Os meus três principais amigos morreram na faixa dos 22 anos de idade. Um morreu de acidente, outro morreu de câncer e o outro foi sacrificado no Araguaia, o Arildo Valadão, que é irmão do atual Prefeito de Cachoeiro. É muito estranho porque eu perdi os meus três amigos. Eu estava no Rio e eles foram desaparecendo. Não, um morreu quando eu ainda estava lá, mas os três principais morreram.
JUVENTUDE / EDUCAÇÃO / ENSINO SUPERIOR / ARTES PLÁSTICAS Vir para o Rio foi uma abertura para o mundo. Quando vim para cá, fui morar inicialmente na casa de uma afilhada da minha mãe. Ela era casada, não tinha filhos, mas tinha três irmãos morando com ela. Então, éramos seis pessoas morando num sala e quarto. Eu me inscrevi para fazer vestibular em 1968 e vim para o Rio em 1969. A PUC oferecia um leque de opções de amizades extraordinário. Então, as amizades foram se formando a partir de certos interesses. Alguns queriam fazer diplomacia, um era filho do diplomata Heitor Bastos Tigre e o Roberto Bandeira de Melo. O meu pai era advogado do Banco do Brasil, então isso me ligava muito ao Roberto, cujo pai também era do Banco do Brasil. Depois, tinha um lado vinculado à arte, a Verônica Rabelo, a Lucinha Reis. E fora da universidade, fora da área de Direito, também fiz outras amizades. Eu estudei estética com a Vera Terra, lendo a “Obra Aberta”, do Humberto Eco.
O Rio de Janeiro era a cidade que eu tinha escolhido, a cidade com os museus, com as exposições. Eu ia a tudo. Nesse momento, o Rio devia ter umas 50, 60 galerias. Eu não tinha o menor discernimento, ia literalmente a tudo quanto era vernissage e exposição. E isso foi muito bom, porque eu assisti tanto ao Oiticica falando num dos cursos do Frederico, quanto vi performance do Antonio Manuel, do Artur Barrio. Enfim, isso tudo me permitiu a experiência do melhor.
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL
Como sempre gostei de arte, em 1970, eu estudei com Ivan Serpa. Foi excepcional, porque eu fui para o Ivan sem saber e o Ivan achou que eu devia virar artista, o que me causou uma crise enorme. Ele percebeu o meu interesse em arte e me estimulou muito. Um dia, eu fui ao Projeto Oiticica ver os Metaesquemas e compreendi o que era a metodologia do Serpa vendo o Hélio. O Hélio Oiticica, nos metaesquemas, tem questões plásticas quase que semanais. Há grupos de metaesquemas que tratam de questões plásticas cada semana. O Hélio estudou com o Serpa em meados dos anos 50, por aí. Eu estudei em 1970. Eu vejo que, 16 anos depois, o Serpa, que foi o maior professor de arte, pelo menos no Rio de Janeiro, estava aperfeiçoando essa metodologia de exigir trabalho semanal. Eu vivi essa experiência e, num certo momento, até me engajei mesmo, achei que ia ser artista. Expus, ganhei prêmio no Salão de Verão, participei da Bienal de Veneza. Mas isso é um processo que eu não gosto muito de falar, porque não quero reivindicar isso para mim. Isso é uma experiência que não deve ser intrometida na minha experiência como ator no processo institucional. Mas devo dizer algumas coisas, apesar de tudo isso. Depois, num certo momento, por causa do Salão de Verão, que era patrocinado pelo Jornal do Brasil, eu conheci o Fernando Cocchiarale, que também tinha participado e que estudava com a Anna Bella Geiger, que tinha o seu curso. O Fernando me disse que eles estavam lendo um texto do Josefh Kosut – nós estamos falando de 1973, eu já tinha deixado o Serpa, não estava fazendo muita coisa – que eu já tinha lido sobre a arte conceitual. Ele me chamou, fui à aula e essa discussão durou – sei lá – um mês. Eu ainda fui mais uma ou duas vezes à aula da Anna Bella, que me convidou a me matricular. Então, pelo mesmo motivo que eu vivia num sala e quarto com sete pessoas, ou morava numa pensão, não pude me matricular. Faltava grana, então saí. Durante muito tempo, eu dizia que tinha sido aluno da Anna Bella, mas muito por necessidade de uma vinculação. Eu acho que não é justo nem com aqueles que realmente foram alunos dela, que estiveram lá um, dois, três anos e receberam uma formação dada por ela, nem com relação ao que eu sinto hoje; quer dizer, o meu professor de arte foi o Serpa. Isso nem desmerece a Anna Bella. Acho que a Anna Bella tem muitas qualidades, é uma pessoa muito generosa, abria muitas discussões, a sua casa estava sempre aberta para as pessoas. Mas hoje eu prefiro reconfigurar o modo de falar sobre essa relação. Para mim, foi uma relação de amizade. E esse conjunto de pessoas que estavam ou não no curso da Anna Bella, como a Ana Maria Maiolino, foi também muito importante. Eu diria que, num período de cinco anos ou um pouco mais, num certo momento, eu tive a veleidade de ser artista. E, paralelamente, como pensava mais arte conceitual, não tinha mercado. Uma vez, me convidaram para expor no IBEU. O meu trabalho tinha um lado político. Veio um diretor americano do IBEU e mostrou a sua insatisfação de eu estar expondo aquelas coisas – era um trabalho sobre a ditadura militar na Argentina. Ele foi muito claro, não retirou a obra, mas me disse que aquela obra era impertinente naquele espaço. Mas, tirando isso, sofri uma ou outra pressão. Cheguei a ir a Bienal de Paris, na representação brasileira. Quando eu voltei, entrei em crise porque vi que não me satisfazia.
Eu estava na Bienal de Paris, mas não estava satisfeito. Nesse momento, eu estava trabalhando também num escritório de advocacia. Era um escritório pequeno, especializado em pareceres, mais do que no contencioso cotidiano – Bastian Pinto & Taunay. O Doutor Jayme tinha sido eleito Secretário Geral da Fundação Castro Maia. Não sei se vocês sabem que o Castro Maia é o fundador do MAM e que, depois, se retirou e criou a Fundação Castro Maia, nos anos 60. Ele não só constituiu a Fundação, como doou a sua casa, o acervo, os fundos e os bens para a manutenção da Castro Maia. Nos anos 70, com o boom da Bolsa de Valores e o processo de especulação, os gestores da Fundação Castro Maia aplicaram na Bolsa e, quando houve o débâcle, a Fundação Castro Maia ficou totalmente sem recursos. Então, o Doutor Bastian Pinto foi chamado como Secretário para gerir a Fundação e buscar caminhos. No escritório, todo trabalho relativo à Castro Maia, ele me dava para fazer. Ele era um homem muito formal nos gestos, nos processos; ao mesmo tempo que tinha clientes extraordinários, que nós não podíamos chamar nem de senhor, nós tínhamos que perguntar na terceira pessoa o que as pessoas queriam – era um ambiente muito formal –, mas ele gostava de arte e a gente se encontrava. Os dois filhos dele passaram de algum modo pela PUC. Eu fui monitor de um deles, o Jayme Bastian Pinto, o Jimmy, que gostava muito de arte, e o Pedro foi meu aluno em Direito Constitucional. Foi o Jimmy quem me levou para o escritório do pai, que, percebendo o meu interesse em arte, me colocou para falar sempre com os curadores de fundações e com as museólogas. Embora não fosse um trabalho intenso, aquilo me deu clareza de que havia uma alternativa para quem gostava de arte e queria trabalhar sem ser artista. Quer dizer, a relação não era exclusivamente como artista.
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL / FUNARTE Estava muito insatisfeito com a advocacia, com o Direito, quando fui convidado pela Edméa Falcão para trabalhar na Funarte – nós estamos falando de 1983, uma coisa assim. Foi um trabalho que me excitou muito. Na verdade, eu tinha pedido ao Joaquim Falcão para me ajudar a sair do Direito e ele disse: “Eu vou pedir para você conversar com uma pessoa.” Essa pessoa era o Aloísio Magalhães, que era o Secretário de Cultura do Ministério da Educação, na época seria o Ministro da Cultura. Então, passei uma tarde de sábado extraordinária com o Aloísio e 10 dias depois recebi a oferta para trabalhar na Funarte. Uma opção que ele tinha pensado era o MAM, porque o Aloísio tinha um projeto, que não chegou a realizar, de apoiar o museu depois do incêndio. Ele disse assim: “O MAM me traz dois problemas.” Eu me lembro como se fosse hoje. “Um problema é o MAM em si, porque é um museu incendiado e o outro problema é que o Golbery me faz muita pressão para arranjar um lugar para a pessoa que estava no MAM na época do incêndio.” Era a filha de um político, que queria voltar e usava o Golbery para pressionar e para entrar no Ministério. Ela só foi entrar na época do José Aparecido. Mas o Aloísio morreu logo – eu já estava na Funarte nesse período – e foi substituído pelo Marcos Vilaça, que foi também muito bom como gestor, dando continuidade ao trabalho do Aloísio.
Foi excepcional trabalhar com a Edméa Falcão. Eu fui, inicialmente, Chefe de Gabinete e me coube, como primeira tarefa, fazer a avaliação da trajetória da Funarte, que já existia há quatro, cinco anos, com uma outra pessoa – estou tentando me lembrar quem era. Durante dois meses, eu conversei com todos os departamentos da Funarte para ver como estava sendo feito o trabalho. Era uma avaliação qualitativa nos rumos político, cultural e geopolítico. Então, um caso que ilustra bem isso era o núcleo de fotografia que fazia umas exposições temporárias muito interessantes. Os fotógrafos sempre vinham de cinco ou seis Estados, não mudava. Deu-se uma chance, não mudou. Fizemos o diagnóstico: “Continua o problema.” Veio a segunda exposição, não mudou, trocou-se a direção. Então, as coisas tinham conseqüência, né? A Funarte tinha uma massa pensante extraordinária. O processo de constituição da Funarte sob o Alberto Parreira foi excepcional. Eu custei a perceber a enorme contribuição que o Parreira fez. Porque, quando você entra para avaliar, entra com uma mentalidade mais crítica, né?
E só depois que eu saí da Funarte é que percebi que tinha sido crítico em cima de uma massa de pensamento de gente extraordinária, tanto em termos de criatividade, de conhecimento, como de trajetória política. A Funarte abrigou gente que tinha ficado no exílio durante cinco, seis anos. Eu acho que a Funarte antecipa uma abertura política. Eu me lembro claramente do dia que entrei para trabalhar na Funarte. Era o dia do lançamento do livro do Cildo Meireles, pela Coleção ABC, com textos do Ronaldo Brito, Eudoro Augusto. Esse livro reproduzia o trabalho das cédulas com carimbo: “Quem matou Herzog?” Então, eu vejo que, num momento em que se discute anistia, a Funarte estava antecipado esse processo, aproveitado as brechas oferecidas pelo sistema e publicando um livro que é extremamente crítico da ditadura. Para mim, foi uma coincidência extraordinária ter ido para esse ambiente onde estavam o Paulo Sérgio Duarte, o Alcir, a Isaura Botelho e outros, o que já era uma abertura. Eu fiquei ainda um ano na PUC, mas um dia falei: “Vai chegar um cara e vai dizer: você é um impostor.” Eu estava sentindo que não estava mais me dedicando ao ensino. Eu não pesquisava mais, não escrevia mais textos de Direito, não alterava as minhas fichas de aula, não atualizava a jurisprudência. Eu virei um ventríloquo do professor que havia sido. Eu não estava mais vivendo a preparação das aulas, do curso, o planejamento e tal. Eu percebi que tudo que fazia era automático. Eu fui aceito pelo Ministério da Educação para ser professor no mestrado, fiz a titulação, mas percebi que tudo o que fazia era apenas formal e mecânico, eu não estava lá como ser, como “alma”, e muito menos na ação. E não era justo. Então, eu pedi demissão. Eu não me lembro, mas acho que entrei para a Funarte em 1983. Eu tenho a impressão que ainda dei um semestre de aula ou no máximo dois. E foi uma maravilha. Tinha sido uma maravilha sair do escritório de Direito, deixar de dar aula também foi.
Quando eu fui chamado para a Funarte, uma empresa de engenharia de Minas, que trabalhava no Iraque, me ofereceu um emprego no Iraque. Era um dinheirão. Eu pensei assim: “Eu passo lá dois anos e compro um apartamento, resolvo o meu problema de casa.” E havia urgência na resposta. Quando eu me propus, eles pararam de fazer seleção. Mas aí, de novo, comecei a ter sonhos horríveis e falei: “Como é que eu vou sair dessa?” Porque iria ficar muito mal sair, eu já tinha me engajado, tinha ido a Belo Horizonte, tinha feito tudo. Aí surgiu uma oportunidade, no final, que era o teste psicotécnico. Eu fazia análise há muito tempo e me cai, para fazer o teste psicotécnico, uma jovem psicóloga, doida para ver confirmada todas as suas teorias. Ela perguntou: “Como é que você está?” “Eu tenho tido pesadelos incríveis.” “É? Me conta...” Aí, eu comecei a inventar pesadelos, todos que indicavam que eu não deveria ir para o Iraque. Um dos pesadelos era o seguinte: “Eu sonho que atravesso o Atlântico e piso numa área que só tem areia movediça, num grande abismo.” Ela arregalava os olhos, coitada Depois ela disse: “E como é que vai ser lá?” Eu disse: “Me disseram que lá você tem dois acampamentos, um acampamento de solteiros e outros dos casados. Eu vou ficar no acampamento dos casados, porque seguramente o acampamento dos solteiros é dos operários e o dos casados é dos engenheiros. Eu devo ser um dos poucos profissionais liberais que não vai levar a família. E deve ser muito chato ficar convivendo com operários – comecei a criar uma situação – e esses casados também devem ser uma gente horrorosa, de modo que eu quero levar livros para ler. Pode saber que eu não vou freqüentar também o dos casados...” Então, eu me coloquei como uma pessoa extremamente irritadiça, que não queria conversa com ninguém, nem com operários nem com profissionais liberais. Eu queria viver sozinho. Eu falei: “Eu quero ler todos os livros que nunca li, o Paraíso Perdido do John Milton...” E ela perguntou: “Mas por que o Paraíso Perdido do Milton?” Eu falei: “Você não vai me dizer que sair do Brasil para ir para o Iraque é uma coisa fácil, né?” No dia seguinte, o meu amigo me ligou: “Paulo, eu tenho uma notícia chata para lhe dar. Acharam que você não vai se adaptar ao Iraque.” Foi como eu fiz, foi isso. Aí, fiquei na Funarte até 1985.
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL / FUNARTE Não sei se eu posso falar de uma marca, porque a Funarte, nesse momento, era dividida em institutos, mas sob a Edméa Falcão havia uma coerência muito forte no conjunto das ações. Havia uma coerência de qualidade estética, de atuação em âmbito nacional. Então, o que eu fiz foi um esforço no Instituto Nacional de Artes Plásticas paralelo a esforços semelhantes nos outros Institutos. Eu quero destacar a direção da Edméa Falcão, como um modelo de gestão administrativa. O segundo aspecto foi a continuidade. Eu não interrompi nenhum projeto que recebi do Paulo Sérgio Duarte, o meu antecessor, e não eliminei nenhum crédito. Essa questão do crédito era interessante, porque a Edméa era muito avançada. Então, chegou um momento que nós eliminamos a referência aos créditos institucionais nas coisas que nós fazíamos. Ou seja, o meu nome e o dela não apareciam em certas coisas. Nós fizemos a exposição do Cildo Meireles, no MAM, e o nosso nome não apareceu no catálogo, porque a idéia era que nós estávamos cumprindo o nosso dever e não tinha por que se colocar. Mas eu acho que a formação da equipe foi muito importante, porque é incompatível a idéia da estabilidade de funcionário com a ação cultural. Nesse momento, eu pude tirar do Instituto de Artes Plásticas todas as pessoas ociosas, inadequadas, que estavam ali em cabide de emprego e colocar pessoas como Ligia Canongia, Fernando Cocchiarale. Ou seja, a Funarte tinha uma flexibilidade e, ao mesmo tempo, oferecia salários de mercado para atuar dessa maneira. Não é à toa que era um momento esplêndido. Eu acho que fiz muita coisa no sentido de avançar em termos da reflexão e da pesquisa. Por exemplo: foi minha iniciativa publicar o livro sobre o neoconcretismo, de Ronaldo Brito, que estava parado esperando editora há 10 anos. Não foi uma proposta de ninguém, foi uma iniciativa minha, pessoal. Foi também possível organizar um simpósio na Amazônia sobre a visualidade na Amazônia. Trabalhei em todos os Estados brasileiros. E aí começo com a Petrobras.
Tive notícia de que a Petrobras vinha financiando algumas áreas da cultura e fui a Petrobras pedir dinheiro para um projeto. Eu, efetivamente, trabalhei em todas as unidades da Federação, exceto Fernando de Noronha. Curso, exposição, o que fosse, mas todas as unidades da Federação tiveram algum tipo de ação nesse período. E fui a Petrobras pedir apoio dessa sociedade de economia mista, a maior do Brasil, para que ajudasse o Instituto Nacional de Artes Plásticas, órgão do Ministério da Educação e Cultura na época, que tinha recurso, mas não o suficiente. A gente tinha já, naquele momento, uma rede de relações. Pedi, então, para ajudar nesse processo. Aí eu sempre brinco: encontrei na ante-sala uma atriz de saia curta, de pernas cruzadas e, sobre a mesa, eu vi aquilo que me parecia um típico presente em artes plásticas. E não saiu. Eu não estou falando nem que aquele objeto que estava ali, nem que a atriz de saia curta fossem mecanismos políticos de obtenção de verbas. O que eu estou dizendo é que nem fui de saia curta, de pernas cruzadas, nem levei nada, só levei livros. Mas o fato é que não recebi o apoio, o que me frustrou muito. Ali eu percebi que, primeiro, o Estado brasileiro não está aparelhado para se articular; segundo, o Estado acolhe o idealismo das pessoas dentro de um limite. Quer dizer, as pessoas – nas suas fantasias, nos sonhos, nos seus projetos – são muito maiores do que o Estado. É raro o momento em que há uma justeza. Eu estou dizendo isso num nível muito pequeno de um Instituto Nacional de Artes Plásticas, o que é pouco perto do que a gente vive historicamente em termos de país.
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Bom, eu vou falar da minha passagem da Funarte para o MAM. Com a saída da Edméa – ela queria sair na mudança do governo, quando se cria o Ministério da Cultura –, ela não foi substituída logo, demorou demais. Eu me lembro na hora em que ela recebeu a notícia – a Edméa é muito engraçada –, ela começou a rodar, a pular pela sala, subia em cima do sofá, pulava para a mesa de alegria, porque estava se livrando daquele peso. Aquela dobradinha, Ziraldo e Lulu Librandi, não deu certo. Foi uma mudança radical e paranóica. Enfim, eu vi que o meu caminho não era mais lá. Eu nunca me candidatei a um posto. Eu não sei o que é essa competição, para mim é complicado. Eu nunca me candidatei, sempre fui chamado. Eu digo isso para falar que estou sempre chegando aos lugares inesperadamente, sem um projeto prévio.
MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO Então, eu estava na Funarte, era o momento em que se rearticulava a segunda reconstrução do MAM depois do incêndio, porque a primeira tinha sido um desastre, em todos os níveis. O Gilberto Chateaubriand trouxe o Nascimento Brito do Jornal do Brasil. E, pela minha atuação na Funarte, o Gilberto, que era muito amigo do Roberto Pontual, e outras pessoas acharam que eu poderia trabalhar no Museu. Eu coloquei duas situações para eles: primeiro, que eu tinha que concluir o ano. Eu não podia sair da Funarte da noite para o dia, tinha Salão Nacional, tinha projetos editoriais e tal. Eu só poderia fazer a passagem no final do ano. Por acaso, o Salão Nacional era no próprio Museu e teria a visita do Sarney, que ia anunciar uma construção, que a gente fez, e a diminuição das alíquotas para importação das tintas. Para obter isso, nós tínhamos feito um projeto com a Fundação Oswaldo Cruz, onde nós provávamos que a tinta brasileira não substituía a estrangeira, por teste de colorimetria e outras coisas, ou seja, ia acabar, despencar, rachar, descolorir e tal. Então, ou a gente pensava que a arte brasileira tinha que ser feita com a melhor tinta e viabilizava os melhores papéis ou aceitava um desastre em médio prazo. Ao mesmo tempo, eu tinha sido convidado pelo Consulado dos Estados Unidos, ainda como diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas, para fazer uma viagem aos Estados Unidos. Mas a minha viagem era individual – em geral eles fazem em grupos. Então, eu organizei toda a minha viagem já para servir ao Museu. Ou seja, uma viagem ligada a museus. Fui à Universidade do Texas, porque é um centro de estudos de arte latino-americana, fui a Chicago para ver um instituto que tem uma escola de arte – o MAM tinha uma escola de arte – e Nova York e Washington eram lugares obrigatórios. Então fui ao setor educativo, eu pedi para ver uma visita especial para cego, estive com a biblioteca, setor de conservação. Enfim, a viagem me serviu para ter uma visão geral do que era a vida de um museu.
Quando eu cheguei no MAM, eram milhares de goteiras. Eu me lembro do primeiro dia, a pessoa que cuidava da reserva técnica era uma senhora de certa idade. A gente foi no lugar onde estava guardada parte das obras. Em frente à porta, ela mete a mão no soutien e tira a chave. Eu achei uma maravilha esse gesto, que indicava o modo como esse Museu é tão pessoal na sua existência. E ali eu vi coisas que nunca esquecerei: sobre uma mesa, havia um quadro coberto por um plástico e, embaixo desse plástico, um lençol. Só que o plástico estava furado e, como tinham goteiras a cada 20 centímetros na reserva técnica, se ouvia o barulho dos pingos d’água caindo nos baldes: ploc, ploc, ploc. Um prédio de cimento armado, depois de um incêndio, tem uma porosidade maior – isso tudo foi muito importante pra me ajudar na Bienal de São Paulo –, as goteiras tem um atraso de algumas horas, até absorver tudo. Tudo isso eu aprendi no MAM. Quando eu levanto para ver qual era o quadro, era um Mabe, que tinha sobrevivido ao incêndio, mas não tinha sobrevivido ao pós-incêndio: a água caiu, o plástico estava furado, o lençol absorveu e tinha uma colônia de fungos enorme sobre esse Mabe.
Levanto um murundum coberto por cobertores. Nesse murundum tinha de tudo, tinha muita escultura quebrada, de segunda linha, inclusive essas esculturas feitas com garfo de feira hippie, tinha um Giacometti, a “Floresta”, que tinha sobrevivido ao incêndio – obra que hoje valeria três milhões de dólares –, tinha uma cabeça feita pelo Henry Moore com a sua base totalmente queimada – que não tinha sido restaurada, sete anos depois do incêndio – e tinha um Brancusi, que sobreviveu razoavelmente. Então, nós tínhamos naquele chão algo, hoje, em torno de 35 milhões de dólares, no meio dessa bagunça. Quem foi a curadora antes é importante saber, porque o Rio de Janeiro tem uma história indigna da museologia. Embora seja o centro do pensamento museológico no Brasil, de formação, mas, ao mesmo tempo, tem uma história indigna. E tudo aquilo estava lá. Mais do que o valor monetário, o Brancusi foi o grande escultor do século XX, o Henry Moore é fundamental, o Giacometti é o grande escultor da França, embora suíço, nesse processo da passagem do surrealismo para o existencialismo e para a contemporaneidade. Ou seja, ali estavam três gigantes da escultura moderna, da primeira metade do século XX, tratados como objetos da feira hippie.
Havia também uma lebre do artista inglês Barry Flanaghan que tinha sido doada – eu sempre a vi mal posta no Museu, ela ficava torta em cima da base. Sempre vi aquilo torto e isso tinha uma base. Aí, comecei a procurar a base, que encontrei numa sala de entulhos, porque separou a lebre da base, a base virou ferro, né? Encontrei a situação ainda mais extraordinária, nesse primeiro dia, no sub-solo, que não tinha sido atingido pelo fogo: lixo, lixo, lixo, lixo Uma situação inacreditável. Depois do incêndio, instalaram uma bomba, uma aparelhagem para emergência, que tinha um tanque de óleo, de combustível. Esse tanque estava furado, tinha um vazamento de óleo num corredor forrado de pó de serra – o Museu tinha uma carpintaria muito forte – e, na sala da frente, estavam as ampolas de ar comprimido para a serralheria. Era a reprodução da cadeia causal do incêndio do Museu num potencial muito maior. Porque eu acho que o incêndio não foi provocado. Os documentos do Corpo de Bombeiros indicam que não foi provocado, mas não foi um acaso. O incêndio foi um incidente numa cadeia causal de irresponsabilidades. Como cada etapa não tinha responsabilidade, o fogo foi se assumindo. Então, liguei para o Nascimento Brito e disse: “Olha, tem uma situação aqui gravíssima. Vou ligar para a Sul América.” A Sul América disse: “Você tem que separar isso agora, porque um incêndio aí derruba o Museu.” Eu digo isso porque a experiência na Funarte, a experiência com a Castro Maia, me colocaram numa situação entre intelectual e administrador, que é uma coisa que eu gosto, tenho prazer em fazer. Então, a primeira coisa foi lavar, separar, ou seja, romper a cadeia causal.
No MAM, logo no começo, eu tive duas experiências importantes na minha trajetória de diretor de museu sem formação, por causa da minha visita aos Estados Unidos.
Eu fui convidado para a reunião da Associação de Diretores de Museus dos Estados Unidos, onde se discutiram os temas mais variados e ali dava para entender que dirigir um museu implica numa série de responsabilidades – claro que lá numa realidade extraordinária e cá, pura precariedade. E a outra foi num Congresso, no ICOM da Unesco, o grande conselho dos museus, quando a Araci Amaral fez uma palestra muito simples. Como boa paulista, ela disse que o único museu que existe no Brasil é o Museu da Universidade de São Paulo, porque, no resto do país, não existe museu. Ela evoca o conceito de museu da Unesco, que, grosso modo, é: museu é uma instituição encarregada de coletar bens culturais; o museu tem o dever de registrar, documentar, catalogar e preservar esses bens; é tarefa do museu estudar esses bens e devolver à sociedade através de exposições, publicações, educação e outras atividades de comunicação. Isso foi a grande lição de museologia, ou seja, é um conjunto de responsabilidades, não de privilégios. Privilégios você constrói pessoalmente, mas primeiro está a responsabilidade.
No caso do Museu de Arte Moderna, eu achava que havia duas possibilidades de sobrevivência: a primeira era de se tornar um museu com juízo, que tivesse juízo museológico. Chamei a Irma Arestizabal, que trouxe a Margareth de Moraes, que reputo como a museológa com maior experiência de organização de estrutura física e de pessoal e de dinâmica museológica do Brasil. Nós trouxemos um conjunto de especialistas de várias partes do mundo na área de segurança, na área de estrutura museológica, na área de iluminação para esse restauro técnico do prédio. E, por outro lado, em termos estratégicos do perfil do Museu, era tentar fazer a coleção estrangeira possível, mas pensar o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro como a grande enciclopédia visual da arte brasileira do século XX. Foi isso que eu pensei, em 1985, quando fui chamado para o Museu. E explico por que: o Museu ia receber a coleção Chateaubriand – essa coleção em si já é uma enciclopédia das artes –, pela natureza da construção do prédio, projetado pelo Afonso Reidy, outro monumento da cultura brasileira. O incêndio nunca entrou nas áreas onde um fogo poderia começar, tal a qualidade desse edifício. Ou seja, não entrou no auditório, não entrou na cozinha e nem entrou no depósito de filme. Naquela época, os filmes tinham nitrato de prata, podendo causar combustão espontânea. Então, sempre havia incêndios em muitos depósitos de cinematecas. O Museu só perdeu cinco rolos de filmes que estavam no auditório, porque o auditório foi cozido de fora para dentro. O fogo não penetrou, mas a temperatura, pela falta de combate, cresceu tanto que chegou a ponto de começar a se desfazer. Então, o acervo da cinemateca – e aí o papel de algumas pessoas, como o Cosme, foi monumental – ficou intacto. Então, nós tínhamos: coleção de arte, o acervo de cinema, o edifício do Reidy, esse refinadíssimo arquiteto modernista brasileiro, e os jardins de Burle Marx, que, embora mal tratados, deveriam ser recuperados. Infelizmente, o Burle Marx não tinha os planos, que foram perdidos dentro do Museu. Então, dentro dessa idéia de o MAM ser a enciclopédia das artes visuais do Brasil, eu trabalhei em várias direções. A primeira foi chamar o Pedro Vasquez, que também estava insatisfeito na Funarte, para fazer uma coleção de fotografia. Eu já tinha começado com a Irma, conseguimos algumas doações. Eu tinha relações com o Geraldo de Barros e tal. O Pedro chegou para fazer isso. Conseguimos recursos da White Martins, foram 350 mil dólares conseguidos pelo Antonio Bulhões. Eu fiz o seguinte: 300 mil para a coleção tradicional de artes – eu faria a América Latina, para dar ao Museu um perfil nacional, mas fui derrotado nisso. Chamei o Pedro e disse: “Quanto é que você precisa para deslanchar a coleção de fotografias?” Ele disse: “40 mil dólares. Tem uma coleção extraordinária do século XIX, início do século XX.” Eu disse: “Então, você está com um problema. Eu vou te dar 50 mil dólares.” Foi maravilhoso, compramos essa coleção. O Pedro é um homem de uma sensibilidade impressionante, uma seriedade. Comprou essa coleção, conseguiu uma outra coleção de daguerreótipos, e não conseguia gastar o dinheiro. Fomos comprar na Kosmos gravuras do Victor Frond feitas a partir de fotografias, ou seja, era bom ver o Pedro buscando essas coisas, construindo um acervo. Depois disso, comecei a trabalhar as artes decorativas do Brasil moderno. Para isso, tivemos ajuda de algumas pessoas, Almeida Pinto, uma outra empresa que agora está me fugindo o nome, o Adolfo Leirner, a viúva do John Graz, a Annie Graz. Conseguimos doações de cadeira do Le Corbusier e conseguimos parte do arquivo do Tenreiro. Então, já se caminhava nessa direção das artes decorativas. A biblioteca tinha uma pauta de prioridades que era quase tudo. Como estratégia, eu enuncio certas prioridades, mas tudo é prioridade numa biblioteca de arte. Então, por que a biblioteca hoje serve tanto às pesquisas das universidades? Porque eu fiz uma lista de 450 autores da história da arte, desde os pré-socráticos até os contemporâneos, e a gente comprava metodicamente. A Bosch nos deu 10 mil dólares, o CNPq também colaborou. Hoje, ninguém faz uma tese no Rio de Janeiro sem passar pela biblioteca do MAM. O Consulado da Argentina também fez doações. Enfim, a gente ia trabalhando. Eu escrevia por ano 600, 700 cartas para museus do mundo inteiro pedindo livros. O Baby Monteiro de Carvalho doou coisas incríveis. Muita gente começou a doar. Na biblioteca, eu constituí um setor, que era o livro ilustrado brasileiro, as cartas, os álbuns. Então, nós tínhamos as artes plásticas tradicionais, o cinema, a fotografia, as artes decorativas e a ilustração. Quando saí do Museu, eu estava começando a falar com o Maurício Roberto para passar para a área de arquitetura também. Era esse o desenho, tudo isso com rebatimento na biblioteca. E a biblioteca tinha essa função de entender que, na cidade do Rio de Janeiro, não temos uma biblioteca especializada. Nós temos conjuntos dispersos de informação, não articulados, onde não é possível observar carências e lacunas por essa dispersão. Tem a Maison de France, então pode ser que lá tenha alguma coisa. Como tem a Uni-Rio, onde pode ser que o livro de museologia necessário esteja. Como tem a Biblioteca Nacional, pode ser que os livros do século XIX, do Renascimento, estejam lá. Tudo pode ser e nada está trabalhado articuladamente. Eu acho que o que a gente fez foi um esforço interrompido e abortado, num período de quatro anos, de construir uma biblioteca. Nós tínhamos uma carteira de 60 títulos de periódicos, porque eu fui aos consulados pedir doação e a gente assinou alguns. Ou seja, a biblioteca tinha uma função. Na exposição do Museu Stedelijk, eles puseram cerca de 80 obras do MAM, juntando as duas coleções. Eram 45 obras da Coleção Chateaubriand, formada desde 1950, eram 30 e poucas do MAM, trazidas entre 1985 e 1990; e as obras restantes eram anteriores ao incêndio ou compradas depois. No livro do Banco Safra, que é uma indignidade com a história do Museu, porque a instituição tem que ter história – a indignidade não foi praticada pelo Banco Safra, mas pelas pessoas que fizeram o livro –, não aparece cinema, não aparece fotografia, não aparece design, não aparece artes gráficas, só artes plásticas: um terço, Coleção Chateaubriand, um terço, sobras do incêndio e doações pós-incêndio, e um terço doados entre 1985 e 1990. E agora, na exposição do Jésus Soto, curada pela Paulo Venâncio, “Arte Brasileira”, de novo o MAM comparece com dois terços e, dentro desses dois terços, eu só não coloquei duas obras, uma que restou do incêndio e uma aquisição recente. Acho que cumpri a função na tarefa de colecionar. Ou seja, por que a história é importante? Se a história do cinema brasileiro dentro do MAM tivesse aparecido no livro do Banco Safra, talvez a irresponsabilidade do MAM com a sua cinemateca estivesse dificultada. Não é verdade? Porque se está impresso, se está no mais importante livro sobre o Museu, então vamos salvar isso, isso é a identidade do Museu. Mas a história foi borrada, foi apagada. Então, também não se colecionou nos anos 90. Se colecionou muito pouco e o que se colecionou de mais importante foi graças a Petrobras. Não aparecendo a coleção de livros ilustrados com as capas por Tarsila, Di Cavalcanti e tal, a pessoa que entrou na biblioteca estava mais interessada em fecha-la e diminuir seu tamanho para não dar trabalho. Claro que ela ia vender o livro do Murilo Mendes, porque não era uma biblioteca de literatura brasileira, afinal é uma biblioteca de arte. Só que o livro do Murilo Mendes é uma das mais belas capas do Modernismo brasileiro feita por Di Cavalcanti. Ou seja, nós pusemos lá quase 400 livros de coleção, que nem a Biblioteca Nacional tinha, doados pela Fininvest. As principais doações de arte latino-americana e brasileira foram pela White Martins. Museu, para mim, é um processo vivo, coletivo, que tem uma continuidade histórica. Você tem que ir agregando parcerias, tem que ter continuidade, ter uma pauta em que as coisas se integrem. Então, quando uma coisa falha, a outra também começa a falhar. Não está colecionando, porque está muito ansioso em expor. Não colecionando, o próximo passo é descuidar da segurança, da museologia. São falhas com relação à missão. A missão tem que ser cumprida integralmente.
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Quando saí do Museu, eu me decidi escrever sobre arte. Eu tive que sair em 24 horas, porque eu falei demais. Era o Plano Collor e quiseram fechar o Museu. Eu disse que o Museu não ia se fechar. Fui para os jornais. E aí, tive que sair, evidentemente. O Museu não fechou. Fiquei trabalhando independentemente, recebi meus direitos trabalhistas, ganhei uma bolsa do Guggenheim para pesquisar a estética da Amazônia, depois ganhei outra bolsa da Vitae para pesquisar arte política no Brasil. Trabalhei na Biblioteca Nacional, com Affonso Romano de Sant’anna. Nesse momento, eu acho que tinha alguma coisa com a Petrobras lá também, mas não era a minha área, eu estava trabalhando no acervo de fotografia, no acervo de Stefan Zweig. Mas não era a minha praia. Eu já percebia que o Estado brasileiro tinha piorado muito, mas ainda não imaginava que chegaria ao que é hoje o Museu Nacional.
De lá, eu fui para a Fundação Eva Klabin, para trabalhar a sua estruturação para abrir ao público. Comecei a criar biblioteca e criar um plano de ação. Mas quando fui chamado para a Bienal de São Paulo, percebi que a Bienal é uma entrega absoluta: ou você faz direito, dedicado, concentrado, ou você dispersa e faz mal. Não tem alternativa. Também é meu hábito não ficar amarrado nos lugares. Se eu saio na Funarte para ir para o MAM, eu peço demissão; se eu saio da Biblioteca Nacional, não fico pedindo licença, eu peço demissão. Então, não me parecia justo pedir uma licença na Eva Klabin por causa da Bienal, porque eu não sabia qual seria o meu futuro. Pedi demissão e indiquei o Márcio Doctors. Eles aceitaram, deixei o Márcio Doctors e já acertado com a Klabin os recursos que permitiam deslanchar a programação. Enfim, acho que deixei também numa boa condição. Acho que lá foi a Instituição onde meu trabalho foi interrompido mais abruptamente. Estava há um ano e meio ou dois, trabalhando num processo de estruturar a Instituição e o pessoal. Eu não trabalho com a necessidade de fazer sucesso imediato, não me chamem para isso. Eu gosto de trabalhar com processos estruturais. Por isso que digo que, nessa história da Petrobras, me interessa muito mais a Petrobras que há 50 anos está procurando petróleo e desenvolvendo as tecnologias do que o sucesso de marketing. Não me chamem para sucesso de marketing. Agora, se quiser discutir profundidade do petróleo, isso me interessa saber. Eu não tenho opinião a dar, mas isso me interessa, como funciona uma plataforma, porque isso é que sustenta uma sociedade, não é a linha de frente. Acho que é importante, mas não é o que sustenta. Uma prova viva é o Museu de Belas Artes.
XXIV BIENAL DE SÃO PAULO Quando eu fui para a Bienal, foi uma coisa totalmente inesperada. Eu digo totalmente inesperada porque nunca achei que seria convidado. Em meados dos anos 90, mencionaram o meu nome numa discussão, porque tinha saído num jornal francês – pelo crítico Nuridsany – que um bom curador para a Bienal seria Paulo Herkenhoff. Então, em 1995, na XXIII Bienal – não sei se interessa essa história –, ia ter uma sala da Louise Bourgeois. Eu tinha feito a primeira exposição da Louise Bourgeois em 1992 e a segunda em 1995, em Curitiba. Foi um processo extraordinário, com a mostra da gravura em Curitiba, foi meu grande laboratório de ação internacional. Eu conhecia a Louise Bourgeois desde 1985, sou muito amigo dela. O Nelson Aguilar, que era curador da Bienal, veio para mim, marcou uma reunião e disse: “Eu queria que você fosse curador da Louise Bourgeois.” Eu disse: “Olha, Nelson, eu não posso ser curador da Louise Bourgeois, porque conheço a Louise, conheço as pessoas do estúdio. Fica parecendo que estou tramando daqui uma coisa. Não dá certo. Então, você procure outro curador.” Nessa noite, ele já estava fazendo a sua segunda Bienal, tinha visitado Curitiba e me convidou para ser o próximo curador: “Olha, Paulo, a diretoria está me perguntando sobre esse processo de substituição e eu queria saber se você tem interesse.” Foi assim que começou a conversa, em novembro de 1995. No mês seguinte, eu fui a Nova York e o estúdio me convidou para ser curador da Louise na Bienal. Eu disse: “Olha, agora não posso ser, porque eu já disse que não, e talvez eles tenham escolhido outro curador. Vocês se entendam e me digam.” No final, eu fiquei como curador. E o Nelson me chamou para vir para a Bienal, que abria em agosto. Para fazer a Louise Bourgeois, bastava chegar 10 dias antes. Mas ele queria que eu visse como funcionava uma Bienal. Ele achava que a Bienal ganharia muito se o próximo curador tivesse um conhecimento. Nesse processo, eu conheci o Júlio Landmann, era um sábado de manhã, já perto da Bienal, eu estava em cima de um caminhão, conferindo as caixas da exposição do Klee. Ele veio, se apresentou e disse: “Meu pai foi presidente da Bienal, eu sou conselheiro, essa é a minha filha Paula, que estou preparando para um dia ajudar a Bienal.” Foi maravilhoso. Isto é que eu chamo de história institucional. Bom, então, quando se deu a sucessão na Bienal, eu já conhecia o Julio Landmann. Conhecia o pai dele desde a época do MAM, porque o doutor Oscar Landmann tinha muitos negócios na Colômbia e, depois do incêndio, os artistas da Colômbia fizeram uma belíssima doação para o Museu – Negrete, Villamizar e outro. Só que, em 1985, o Museu ainda não tinha mandado apanhar, então fui ao doutor Oscar e pedi para me ajudar. E ele me ajudou. Então, é uma história já conhecida de infra-estrutura. Eu acho que não estava lá por acaso, não fui chamado por acaso.
Com o Júlio foi extraordinário, porque foi diferente da história de autoritarismo na Bienal, onde um conselheiro viajava à Europa, ia para um museu e escolhia uma exposição e tal. Com o Júlio Landmann, eu disse: “Júlio, eu preparei um documento que é a minha base de trabalho e, a partir daqui, é que a gente conversa. Define se vai trabalhar junto ou não.” Ele disse: “Maravilhoso, era isso que eu ia te pedir.” Então, havia um entendimento de processo de trabalho extraordinário. Nesse documento, eu listava o que considerava as funções da Bienal de São Paulo. Inicialmente, deveria ser um processo de atualização do olhar brasileiro, de integração com o mundo e até a representação simbólica da cidade de São Paulo. Nesse processo, se percebiam certas missões da Bienal e se definiu que a Bienal seria um tripé: exposição, edição – não seria um catálogo de mero registro, mas sim um catálogo de reflexão efetiva sobre a arte – e educação, porque, na minha cabeça, não fazia sentido gastar 14 milhões de reais, o que correspondia a 14 milhões de dólares, num evento, por mais que pudesse ser a representação simbólica do Brasil – embora eu ache que os interesses de São Paulo se sobrepõem aos do Brasil nesse caso. Eu me lembro que, quando estava na Funarte, nós demos 10% do nosso orçamento para ajudar instituições no Brasil, na área de artes plásticas para a Bienal. Isso representava 1% do orçamento da Bienal e era 10% da Fundação Nacional de Arte. Então, eu percebi que não é uma Bienal do Brasil, é a Bienal de São Paulo, por todos os motivos. Há um descompasso, ela é, antes de tudo, a representação simbólica de São Paulo e não do Brasil.
Então, esse foi um pressuposto: entender as funções, entender esse tripé. Dentro desse tripé, haveria uma divisão de responsabilidades. O presidente falava da totalidade, o curador cuidava da edição da exposição e nomearíamos uma pessoa para a educação, que seria a Evelyn Ioschpe. Ela é historicamente a minha grande professora de museologia no cotidiano: como é que se faz e tal. Conheço a Evelyn há mais de 20 anos e sempre admirei a seriedade das “águas profundas”. A Evelyn dirige a Fundação Ioschpe, instituto de arte e educação, que é a mais extraordinária experiência no Brasil, na área de educação, e talvez, no mundo. Acho que não existe nada parecido com o que ela faz. Só penso em algo semelhante com a Fundação Cisneros, em Caracas; é a única aproximação que eu penso possível, mas, pelas dimensões do Brasil... Então, eu trabalharia muito perto da área educativa. Na Bienal, pensei que um tema seria uma coisa inadequada, porque não trabalhamos com tema, nós trabalhamos com conceito, o que é diferente. O conceito seria antropofagia, que não é um tema, é um conceito de ação cultural, um conceito de negociação cultural, um conceito de troca, um conceito de reconhecimento da diferença, de valorização da diferença, de absorção. Era um conceito desenvolvido no Brasil, que aparece em 1928 com o “Manifesto Antropofágico”, do Oswald de Andrade, mas que pode ser reconhecido desde a Bahia do século XVII, com o “Boca do Inferno” [Gregório de Matos] e tudo mais, reconhecido por Haroldo de Campos, pelo Mário Chiarelli, que vêem a antropofagia na literatura brasileira, nos Sertões, ou, depois do Manifesto, na Clarice Lispector. A gente reconhece que a antropofagia está não só na Tarsila, mas também está num Goeldi, num Oiticica, na Lygia Clark, e ainda está na música, está no cinema de Glauber Rocha. Mas, a gente não tem uma imagem, porque a antropofagia não é a respeito da história das imagens, é uma atitude, por isso que ela não se reduz a um conceito. Então, lidamos com o conceito de canibalismo e antropofagia, tentando entender, a partir da matriz, evidentemente antropológica. Isso é muito importante, mas também a gente encontra um Sermão do Vieira sobre o processo missionário como um processo de devoração de almas. Ou seja, chegou-se à antropofagia, porque a minha pergunta era: nós vamos discutir o Brasil. A Bienal é para o Brasil se pensar. É para o Brasil refletir sobre uma questão definida por nós e para servir à educação, por isso que trabalhamos com a educação pública. E a minha pergunta era: “O que é uma questão cultural decisiva, na área de artes plásticas, que devemos privilegiar?” Eu tinha muita clareza que se fizesse essa pergunta na Bahia, seria o Barroco, em Minas seria o Barroco, no Rio Grande do Sul, talvez fosse mais concentrado nas Missões, no Rio de Janeiro poderia ser o Rococó, poderia ser o Neoclássico, o Impressionismo, o Moderno, antes do Modernismo poderia ser o Neoconcretismo ou os anos 70. O Rio de Janeiro oferecia muitas respostas. Poderia ser até o Maneirismo e o Renascimento no Brasil, ainda no século XVI, né? Mas era em São Paulo e a resposta tinha que vir de São Paulo e me caiu a antropofagia. Ali, eu entendi também que a montagem da exposição, em vez de esconder o prédio, tinha que mostrar São Paulo. Por isso é que não tinha salinha, como numa feira, era uma montagem aberta em que se via o parque, a cidade. Aí, comecei a trabalhar. A idéia era servir o nosso biscoito fino, como dizia o nosso Oswald de Andrade. Todos os curadores foram convocados a pensar o assunto e todas as respostas seriam absorvidas. Eles poderiam conceituar, ajudar na conceituação. Então, apareceram as coisas mais estapafúrdias, o sorriso tailandês, a simpatia da Tailândia como processo de sedução, que está ligado à antropofagia, como o canibalismo como processo político, mas também o trânsito da Tailândia, que mata tanta gente quanto o canibalismo. E a gente pôs curadores de 55 países para ler sobre antropofagia. Tinha as representações nacionais, curadores dos sete roteiros de regiões no mundo e curadores de todas as exposições especiais, que eu chamei de núcleo histórico, não de exposições especiais, porque teria um roteiro histórico. Enfim, tinha gente da Tate, do Pompidour, estrategicamente chamei curadores dos museus principais para colocar estudiosos da antropofagia. Fui agora a um Congresso no México e vi, de repente, um historiador da arte falar sobre Andrea Fraser e suas performances – uma em que ela se apropria do Kippenberg, o alemão. Ele disse: “Essa relação antropofágica da Andréa...” Ele não estava falando da Bienal de Paulo Herkenhoff – eu estava presente –, ele estava falando do conceito de antropofagia que hoje virou um conceito internacional, como o Impressionismo. Não há mais dúvida de que o mundo absorveu esse conceito. Agora, eu digo o seguinte: absorveu porque não houve intenção, digamos, autoritária, ou seja, foi feito um trabalho de base. Nós não tínhamos dinheiro para fazer uma divulgação internacional, não chamamos ninguém do exterior. A Bienal se legitimou porque havia uma consistência do trabalho de todos esses curadores, não era o meu trabalho, um trabalho educacional. Na Bienal, eu tive um choque cultural. Pela primeira vez, me confrontei, de fato, num lugar onde cultura é produto. Não tinha experimentado isso na Castro Maia, no MAM, na Funarte, na Biblioteca Nacional, nem na Eva Klabin. Na Bienal de São Paulo, havia um grupo de pessoas que trabalhavam a Bienal como produto e como produto ela era oferecida, passando por uma empresa de Marketing e uma outra que fazia o layout. Então, foi uma conversão da experiência estética, da experiência de criação e da experiência antropofágica num produto.
PATROCÍNIO PETROBRAS Nesse momento, sou chamado a negociar um produto com a Petrobras, que era a exposição do Bacon. Eu não digo isso de uma maneira moralista, é apenas um choque de capitalismo avançado, o que implica, por exemplo, entender que você não oferece o Bacon a Petrobras – eu acho que foi o Bacon, não foi o Bacon? – pela soma do valor da curadoria, do transporte, da embalagem. Você agrega os custos, um percentual da educação, um percentual de não sei o quê e tal. Então, quando me disseram que iam pedir a Petrobras uma proporção, que também pediram às outras empresas: “Mas que horror, está custando o dobro do que vai custar a fazer.” Nesse processo, eu entendi que, na verdade, esse dobro correspondia a tudo que significava fazer uma bienal, inclusive o meu salário – um percentual, naturalmente –, porque a Bienal começa com 55 pessoas e acaba com 550. Então, a Bienal foi uma experiência de modernização da minha cabeça, no sentido de que, se eu quero trabalhar no campo das instituições, eu tenho que aprender a fazer essa passagem: lidar numa instância com o fato cultural, com aquilo que ele é em si, como um objeto, e numa outra instância entender que as leis de mercado e a legislação brasileira, hoje, estão aí para isso mesmo, não se pensa numa outra coisa.
A minha primeira experiência com a Petrobras acho que foi a Bienal. E foi muito bom porque a Bienal foi muito clara, num momento estratégico, e a Petrobras apoiou. Era uma exposição-chave, que vinha garantida e que ajudava a trazer outras exposições.
PATROCÍNIO / ARTE BR - INSTITUTO ARTE NA ESCOLA O Arte BR foi uma iniciativa da Fundação Vitae e do Instituto Arte na Escola, que é, talvez, a mais audaciosa experiência de arte-educação no mundo, eu diria. Não conheço nenhuma iniciativa desse porte – que inclui trabalhar com as universidades, com arte-educadores, com a Secretaria de Educação – visando à produção de pensamento sobre arte-educação, produção de material para classe e trabalhar em perspectiva de capacitação de professores. Para vocês terem uma idéia, na Bienal de São Paulo, em 98, com a mesma Fundação Vitae, nós fizemos 15 mil exemplares de material escolar, que foram distribuídos para as classes onde ele era usado e atingiu, naquele momento, 200 mil crianças. Depois, o material foi reutilizado e atingiu um milhão de crianças e, em seguida, três milhões de crianças, até agora. E o Arte BR, patrocinado pela Petrobras, é maior do que esse projeto, e atua no Brasil inteiro. Em suma, é um projeto que consiste em materiais para sala de aula: são pranchas sobre arte brasileira, acompanhadas de um material para os professores, instigando os professores à utilização daquelas imagens de arte. E é um material permanente, de modo que durante anos vai beneficiar estudantes de todo o Brasil. O meu papel foi, na verdade, de uma espécie de curador do projeto, escolhendo, primeiro, obras brasileiras do século XX. Depois, a idéia era que as obras estivessem numa coleção pública em cada Estado. E, por fim, dividir esse material em questões que poderiam ser questões plásticas sobre, por exemplo, a cor, a luz, as formas. Ou ainda avançar para uma agenda em que arte, cultura e vida estivessem inter-relacionadas, por exemplo: afetividades, as festas, a sexualidade – uma vez que é um momento de educação, de orientação das crianças –, enfim.
Então, é um projeto que fiz com enorme gosto e, possivelmente, a Petrobras vai continuar apoiando, porque percebeu que o Instituto Arte na Escola tem essa possibilidade de atingir, rapidamente, o professorado. O Instituto Arte na Escola já trabalha em 17 Estados e, com isso, a Petrobras encontrou um caminho direto de atuar junto à criança. O que eu defini com o Instituto Arte na Escola é que não quero ser o curador da próxima. Gostaria de ser um articulador de curadorias, para que o olhar pudesse vir do Brasil todo, porque eu acho que isso espelha mais a Petrobras como uma empresa de âmbito nacional.
PATROCÍNIO PETROBRAS - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES
Eu assumi a diretoria do Museu Nacional de Belas Artes em 2003. Eu fui convidado por uma qualidade que não está me servindo – eu brinco sempre assim –, porque eu sou curador, sou crítico de arte, e meu trabalho é a relação direta com o objeto artístico. Só que o Museu se encontrava, surpreendentemente, com uma grande presença pública, mas numa situação de infra-estrutura dramática, dramática. O Museu estava numa situação de pré-incêndio, com elementos despencando sobre a rua. Isso foi uma constatação da Universidade de São Paulo e da Coppe da UFRJ, que trabalha para a própria Petrobras. Ou seja, o Museu tinha que parar: ou salvava o edifício, ou chegaria a uma ruína muito rapidamente. Então, eu digo que fui chamado para uma coisa e acabei em outra: virei um mestre-de-obras. Pensava em poder trazer uma programação de uma certa natureza, com tudo, de exposições, eventos, área educativa, e tive que adiar muito a concentração do esforço, porque ou salvava esse edifício tombado, garantindo a permanência do maior acervo de arte brasileira, ou ficaríamos fazendo eventos até o momento do desastre. E a Petrobras foi fundamental nesse processo. A Petrobras deu, inicialmente, uma ajuda que indica o seu empenho em estar junto na salvação desse museu. Ao mesmo tempo, estamos conversando a respeito de outras formas de apoio, porque também existe uma outra questão dramática: com o esvaziamento econômico do Rio de Janeiro, a Petrobras acaba se tornando quase que a única fonte de financiamento dessa ordem.
Hoje, dirigir um museu no Rio de Janeiro é extremamente árduo, porque dependemos totalmente das decisões – para o caso de Lei Rouanet – do departamento de marketing de bancos ou de outras empresas que estão situadas em São Paulo, onde a perspectiva nem sempre é nacional, como é no Rio. Eu até, a respeito disso, acho que a Lei Rouanet, para as artes plásticas e para as artes em geral, só tem um destino se puder resolver esse problema de dominação das decisões; quer dizer, as decisões não podem permanecer em departamento de marketing de bancos, de empresas etc, porque afinal isso é um dinheiro público. Eu participei do processo de formulação do programa cultural da Petrobras no começo – acho que foi em 2000, 2001 – e, já naquela época, eu colocava algumas questões que acho muito graves. Uma delas, evidentemente, é que o Rio de Janeiro é o maior produtor de petróleo do Brasil – não sei se é 80%, 85%, mas é um percentual enorme – e, ao mesmo tempo, o ICMS não beneficia o Estado do Rio de Janeiro; é o único produto, na Constituição, que não beneficia. E isso resulta numa espoliação autorizada pela Constituição, porque o Rio perde bilhões de dólares com isso e acaba financiando a cultura nos Estados que recolhem esse ICMS. Ou seja, talvez o Estado do Rio seja o que mais beneficia outros Estados nesse sentido. Mas, enfim, isso não é um assunto de responsabilidade da Petrobras, evidentemente, porque é uma questão constitucional, mas afeta profundamente o Rio de Janeiro. Afinal de contas, o Rio é a única região do mundo, talvez, que empobreceu porque produz petróleo, porque não é capaz de manipular os preços da produção do petróleo. Por exemplo, a conseqüência do petróleo no Texas foi produzir museus extraordinários: o museu de Houston [Fine Arts], que é um museu novo – não sei se tem 50 anos –, é um dos 10 maiores dos Estados Unidos, e tem os outros todos, o de Corpus Christi, o de Dallas, de Austin. Ou, por exemplo, na Califórnia, uma quantidade extraordinária de museus, inclusive o mais rico do mundo em termos financeiros, que é o museu Getty, foi construída com o dinheiro do petróleo também, assim como os Rockefellers com o Moma. Em Portugal, o petróleo produziu o Gulbenkian, um extraordinário museu. Então, eu acho que esse é um assunto para os cariocas discutirem, mas num plano político, porque evidentemente isso não é uma questão que afeta a Petrobras, que tem uma presença muito digna no Rio de Janeiro. Estou apenas colocando o ponto de vista de um carioca. Eu acho que o Rio de Janeiro tem uma qualidade que foi abusada. O Rio de Janeiro é uma cidade nacional, centrífuga, e hoje vive num processo de dominação, evidentemente, por São Paulo, que é uma cidade auto-centrada, egocêntrica, centrípeta, e que tende apenas a se ver. Isso afeta o país e, mais dramaticamente, o Rio. Mas enfim... Até, por coincidência, hoje é dia primeiro de março, aniversário da cidade.
PROGRAMA PETROBRAS CULTURAL Com relação, ainda, a Petrobras, eu estava falando dessa questão da Petrobras Cultural, o programa do qual participei. É interessante porque o projeto foi organizado por uma firma de São Paulo, gente séria, mas eu tinha algumas discordâncias. Eu até vejo essas discordâncias – das quais acho que fui porta-voz –, hoje, prevalecendo dentro da Petrobras. Eu dizia, na época, que faltava ao Brasil justiça distributiva, que é um retorno a noções de justiça social, a noções de partilhar os benefícios produzidos, os bens produzidos pela sociedade. Dizia, ainda, que devemos pensar um pouco menos em termos de capitalismo selvagem, concentração de renda em classes sociais, em regiões, em cidades etc. Eu colocava que o projeto da Petrobras devia ser pensado, então, não pela escolha pura e simples dos melhores, mas por meio do desenvolvimento de alguns critérios em que a qualidade não fosse uma qualidade cêntrica, não é? Ou seja, o Brasil, durante muito tempo, foi excluído da história da arte, das exposições, porque aplicavam conceitos europeus de qualidade, quando nós estávamos desenvolvendo os nossos próprios conceitos de arte. A gente pensa no Goeldi, num Guignard, numa Tarsila, no Modernismo, depois, na segunda metade do século XX, numa Lígia Clark, Oiticica, Cildo Meireles. Nós estávamos produzindo uma arte que estava fora do cânon eurocêntrico e isso, durante muito tempo, nos excluiu de muita coisa. Então, eu dizia que o Brasil não podia reproduzir aquele tipo de critério cêntrico, contra a sua própria diversidade. Porque o país já tinha sido vítima disso. Eu reivindicava, primeiro, que os critérios de seleção não fossem critérios de qualidade cega, mas que buscassem compreender as diferenças do país. E o segundo aspecto dessa idéia de uma justiça distributiva, que desse conta do país, era que fosse também pensada como responsabilidade do programa – um argumento de um representante, eu diria, meio uspiano, foi que não havia qualidade nas regiões, a demanda não se apresentava corretamente. Então, eu dizia que me parece ser responsabilidade da Petrobras se adequar ao modo como as regiões apresentam seus projetos ou formar produtores culturais, passar uma informação mais adequada para que a demanda pudesse surgir no formato que a Petrobras queria. Ou seja, que esse meio-de-campo não atrapalhasse essa finalidade de uma Petrobras Cultural pelo Brasil inteiro, né? Eu vejo, nos últimos anos, que a Petrobras está atenta a isso e o seu projeto vai se expandindo, enquanto representação e presença no país inteiro. Eu vejo isso com muito bons olhos, porque, realmente, acho que o ideal é que as pessoas possam fazer a cultura nos lugares onde vivem, onde escolhem viver. E acho que um caráter de excelência do Programa Petrobras Cultural seria criar essas possibilidades. O retorno, inicialmente, esteve concentrado, mas hoje se amplia cada vez mais. A própria Petrobras tem mecanismos de compensação, tem feito circular a informação. Então, apóia um festival de cinema em Belém, começa a expandir sua presença; cada apoio que é concedido a um evento ou a um processo sempre multiplica o número de candidatos, porque as pessoas começam a entender que existe a própria Petrobras. E ela tem feito uma divulgação muito boa. De modo que eu sinto que o caminho foi traçado e avança nesse sentido de ser mais distributivo no país.
PATROCÍNIO PETROBRAS - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES.
Nós estamos, nesse momento, justamente, recebendo recursos da Petrobras. Até fui surpreendido na semana passada, porque eu tinha feito um cronograma de obras, de desembolso, e a própria Petrobras se propôs a um desembolso mais acelerado. Nós tínhamos proposto dentro do que é a prática normal da Petrobras, mas ela disse: “Não, vocês estão numa situação tão precária que é preciso acelerar os processos.” Eles entenderam isso e o próprio setor cultural da Petrobras fez essa proposta. Na verdade, a Petrobras vai, nesse momento, nos apoiar naquilo que é um instante-chave de um processo de reestruturação de um museu, de salvação de um prédio. Por quê? Porque esses recursos vão propiciar a elaboração de um plano-diretor para o Museu. Nós já temos um plano muito adiantado para o prédio. Esse plano define o que é esse edifício, o que é a missão do museu, procura discutir essa missão em cada campo da ação museológica – desde formação do acervo, tratamento, restauro, pesquisa, publicações, exposições, educação etc – e, ao mesmo tempo, cria um processo em que o Museu, como um museu nacional, discutirá a sua missão em algumas regiões do país, como forma de assumir esse âmbito de ação. Então, a idéia é elaborarmos o plano-diretor, na condição de pré-projeto, e a partir dele fazermos discussões em São Paulo, Brasília, Belém, Recife, Porto Alegre, e talvez outras cidades. O que é um museu nacional? A Petrobras vai nos ajudar a responder isso: é um museu que tem a missão de ser o grande arco da arte brasileira? É um museu – em termos da história da arte – que deve espelhar a produção de todo o país, além dos movimentos de ponta, mas também momentos históricos em cada região? É um museu que deve estar à disposição do país? O Belas Artes já é o museu brasileiro que mais empresta obras de arte para exposições circulantes. É um museu que deve desenvolver experiências que possam beneficiar, como paradigma, outras regiões? Em suma, esse patrocínio, nesse sentido, é crucial. Também são cruciais outros destinos desses recursos, como, por exemplo, a contratação da Coppe – o laboratório de engenharia da UFRJ – para finalizar essa grande ação que nós estamos fazendo, porque, seguramente, hoje, o prédio histórico com maior e mais complexo levantamento de engenharia é o do Museu Nacional de Belas Artes, que agencia uma estrutura muito grande. O Museu é do tamanho de um quarteirão, 17 mil metros quadrados. É um prédio com um século, de um momento em que o Brasil ainda não conhecia totalmente o cimento armado, mas já não usava o óleo de baleia na construção. Então, ele pertence a um momento de muitas experiências da engenharia. Eu sempre digo e brinco que a Petrobras nos ajuda a trabalhar, até aqui, nas águas profundas, ou seja, naquilo que é infra-estrutura, naquilo que não se vê, como, por exemplo, tratar do esgoto, das instalações sanitárias, tratar da rede elétrica, o fio que está dentro do cano, as reservas técnicas para guarda do acervo. E acho que uma companhia que sabe a importância de ir fundo nas coisas, simbolicamente, pôde ser essa parceira num projeto que, mais do que o brilho das exposições, busca justamente criar aquelas condições essenciais sem as quais o Museu não pode caminhar. Eu sonho também com o dia em que esse petróleo jorre na superfície, seja distribuído: seria quando o Museu estivesse pronto e, na sua programação, pudesse ter as exposições, palestras etc. Evidentemente, a gente está num ritmo de eventos mais lento, porque estamos em obras. Nós negociamos o patrocínio no ano passado, chega agora a um milhão de reais. Devo assinalar também o entendimento da Petrobras de que lidar com um prédio tombado, muitas vezes, é um processo permanente de descoberta de problemas. Ninguém imagina que um dos problemas sérios do Museu seja trepidação, mas, pelo tipo de estrutura, que não é cimento armado, o prédio trepida em algumas áreas. Então, estamos estudando o efeito disso sobre as obras, principalmente as de grande superfície, descolamento etc. São muitas sutilezas e aí essa relação com a Coppe, que é o grande laboratório de engenharia do Brasil – são 400 mestres e doutores –, tem sido extraordinária. Se cai um pedaço de um, sei lá, elemento decorativo, tem alguém da Petrobras especialista em corrosão; se estamos discutindo infiltração, tem pessoas especialistas nisso, infiltração ascendente, que vem do solo. Enfim, cupim, prevenção de incêndio, segurança, telemática, tudo, tudo, tudo. Aconteceu um evento extraordinário no Museu, que foi a visita de um técnico, o maior especialista, talvez, no mundo, em reservas técnicas de museus, controle atmosférico etc. Ele veio ao Belas Artes, trazido pela Fundação Vitae, e pusemos junto ao engenheiro da Coppe. Era uma discussão de gigantes, porque um colocava uma coisa, o outro rebatia ou concordava, contra-argumentava, apresentava as diferenças do clima do Rio. É esse grau de sofisticação de que a arte precisa. Muitas vezes, instala-se um aparelho de ar-condicionado pensando que se está beneficiando a obra e está, justamente, fazendo o contrário. Então, esse grau de sofisticação, de conhecimento, de detalhe, é parte daquilo que a Petrobras está nos oferecendo – isto é, a todos os brasileiros, porque o Museu é nacional.
PATROCÍNIO PETROBRAS - MUSEU DE HOUSTON A Petrobras sabe que a contrapartida não é, assim, um por um. É uma contrapartida, digamos, de imagem, de marketing, mas, também, no caso da Petrobras, de imagem de empresa com compromisso social no país. Eu cito alguns exemplos de que participei indiretamente: hoje, o Museu de Houston é, talvez, do exterior, o que mais se dedica à arte brasileira, com pesquisas, restauros, exposições etc. Num certo momento, orientei esse museu a procurar a Petrobras – o Texas é um centro da indústria petrolífera, onde a Petrobras tem representação – e chegou-se a um acordo, quer dizer, a Petrobras está apoiando ações do Museu de Houston em torno da obra de Oiticica. Ou seja, isso é importantíssimo para a imagem do país. A Petrobras recebe lá, como contrapartida, os créditos concedidos pelos americanos. Ela sempre faz, digamos, aquelas exigências de praxe: conceder os créditos naquilo que se venha a fazer durante um certo período e, sempre que se falar das obras, deve-se mencionar o apoio da Petrobras. Mas não é nada exorbitante, e jamais entra no conteúdo dos projetos, né? Eu fico imaginando uma conversa da Petrobras sobre conteúdo, se a Petrobras encontrar um erro de engenharia e nos alertar. Ou por exemplo, como fez agora, uma intervenção altamente positiva, que foi no sentido: “Olha, eu sei que vocês estão precisando de dinheiro: vamos acelerar isso.” Mas, fora disso, eu nunca vi um projeto da Petrobras, na minha experiência, em que a Petrobras pensasse em intervir em conteúdos. Muitas vezes, na cobrança das contrapartidas – é o que eu vejo nessa questão da contrapartida –, a Petrobras amplia, quando não existe, o alcance social dos projetos; ela pergunta sobre isso, quer saber quais são os beneficiários desse projeto na sociedade, como esse projeto pode expandir a sua incidência na área de educação etc. Nunca são intervenções mas, justamente, a potencialização
dos recursos aplicados.
RECURSOS PARA A ÁREA CULTURAL Eu sempre digo que a aplicação de recursos, nesse caso do patrocínio, é a conversão do capital financeiro em capital simbólico. A Lei Rouanet é extremamente fácil. Talvez seja o dinheiro mais fácil para a cultura no mundo,
não conheço um país que dê tantas facilidades. E acho até que é preciso uma reflexão sobre isso. O Ministério tem definido certos padrões, porque há exposições que são extremamente opulentas, mais opulentas dos que as que ocorrem em países mais ricos, com gastos em coquetéis, não sei o quê, enfim. Então, havia uma tendência a um exagero, né? E eu acho que o Ministério da Cultura tem, com a sua comissão, cortado isso, já não permite financiamento de coquetel. Aos poucos, vai ajustando. Mas eu acho que ainda precisa estabelecer prioridades para áreas fundamentais. E acho que a Fundação Vitae, que está se extinguindo, foi extraordinária nisso, pois salvou o patrimônio brasileiro, atuando com muita precisão na aplicação dos recursos – eles sabem quanto custa um armário para guardar líquidos num laboratório de restauro, por exemplo. Então, trabalham com muita precisão. Eu não sei se esse é o caminho da Petrobras, mas eu acho que ter uma linha de apoio de infra-estrutura dos museus é garantir a própria presença da arte. Os museus são os guardiões daquilo que representa simbolicamente o pensamento visual brasileiro, a nossa história, e é a eles que se recorre habitualmente. Então, eu vejo que há um crescimento, um amadurecimento, nesse processo, da parte do Ministério, sobretudo nas discussões havidas recentemente. O Ministro Gilberto Gil tem liderado esse processo, que é quase uma re-qualificação moral da Lei Rouanet; quer dizer, foi um período importante de experiência, de abertura da experiência, mas agora é preciso pensar que isso deve beneficiar o país inteiro, e devemos ser mais parcimoniosos. Então, é um momento de maturidade. Não quero acusar o momento anterior, mas ressaltar que é um momento de amadurecimento dessa experiência. Muito bem, fizemos muito; mas é preciso restaurar, financiar livros de capa dura? Ou seja, são perguntas mínimas, que às vezes podem até parecer um pouco mesquinhas, mas uma capa dura pode ser mais um catálogo de um museu pobre, não é verdade? São questões que o país vai se educando, e, nesse sentido, a Petrobras é um exemplo de empresa que sabe se descentralizar, que desenvolve mecanismos de discernimento e de escolha.
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL O que eu destacaria é o seguinte: eu encontrei o Nacional de Belas Artes numa situação prévia daquilo que encontrei no Museu de Arte Moderna, quando eu fui trabalhar depois do incêndio, à beira do caos, à beira do desastre absoluto. Sobre o meu trabalho no Museu Nacional de Belas Artes, eu sempre dizia: “eu me sinto um atropelado tendo que dirigir uma ambulância, só que não tenho carteira de motorista, não sei dirigir automóvel”. Eu ainda brincava: “bom, agora a Petrobras, o BNDES, a Caixa Econômica, estão me dando a ambulância com o motorista”. Mas, basicamente, há que se desenvolver um processo crítico dentro da instituição sobre o seu destino, a sua missão, colocar claramente para o Ministério da Cultura que esse museu precisa de uma infra-estrutura, de pessoal, de equipamentos, porque isso não só garante a viabilidade física da Instituição, mas, sobretudo, potencializa o cumprimento da sua missão, de ser o Museu Nacional de Belas Artes.
PROJETO MEMÓRIA PETROBRAS Eu fiquei muito honrado com esse depoimento, pude dizer algumas coisas que sinto como carioca, como diretor de museus, como essa questão que coloquei da situação do Rio de Janeiro, que nem é politicamente adequada, mas eu sou um cidadão do Rio de Janeiro. Então, a possibilidade de expor a opinião de cidadão, para mim, é fundamental. Depois, é a oportunidade de refletir sobre uma prática, em que eu fui honrado, como ator no processo cultural, de ver essa empresa, que também é uma instituição, se desdobrar, avançar, se aprofundar, expandir. No pouco que possa ter agregado e no muito que recebi, eu me sinto partícipe de um processo que é do país, que cresceu no sentido de maturidade, de grandeza moral e cultural. Eu acho que tem esse aspecto, até colocaria essa palavra moral, no sentido de valores; é uma empresa que também trabalha com valores de outra ordem, que não sejam apenas valores da energia, da economia etc. E depois, nós sabemos que a história se faz de grandes feitos, mais do que fatos, são processos. Esses processos têm muitas variantes e condicionantes de ordem social, política, econômica, mas evidentemente sempre lá está o indivíduo, com a sua energia, com o seu desejo, com as suas fantasias, com os seus sonhos, com seus problemas. A Petrobras, ao fazer esse projeto, reconhece, também, a individualidade no processo de construção da sociedade, na textura da sociedade. E eu tenho certeza de que estou aqui, sobretudo, representando algumas instituições nas quais tive a honra de trabalhar e que foram beneficiadas pela Petrobras. Então, eu nomeio a Fundação Nacional de Arte, a FUNARTE, a Biblioteca Nacional, a Fundação Bienal de São Paulo, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Museu Nacional de Belas Artes. E, ao indicar essas instituições, também estou indicando que, numa instituição, o indivíduo tem que se dissolver em prol de um processo coletivo.Recolher