Por mais que a terra fosse grande, a lenha bastasse e a água estivesse sempre pingando, ali não cabia a minha vontade de aprender. Ano após ano, a terra precisaria ser arada, os brotos regados para que as ramas gerassem as batatas. As fileiras precisavam ser abertas, cavadas, as sementes deveriam...Continuar leitura
Por mais que a terra fosse grande, a lenha bastasse e a água estivesse sempre pingando, ali não cabia a minha vontade de aprender. Ano após ano, a terra precisaria ser arada, os brotos regados para que as ramas gerassem as batatas. As fileiras precisavam ser abertas, cavadas, as sementes deveriam ali se prostar para depois germinar. A terra dourada suplicava por braços fortes. Era época da colheita. Por mais que a terra nos desse tudo, ela de nós dependia para sua resistência. Não queria entrar nesse ciclo vicioso. Não queria que as raízes das videiras se apossassem de mim e fincassem minhas raízes ali.
A terra se oferecia aos fortes. A batata dava a energia. Os porcos se deitavam para nós. O centeio vendido era farinha branca para nosso pão. A terra era nosso mundo, nossa mãe. Dela dependíamos. Em troca, ela esperava nosso suor. Assim ela foi moldando nossos músculos. Precisava dos filhos fortes para dela cuidar. Éramos vítimas? Queria livrar-me, pois a terra era pouco. Queria alcançar os mares, os céus. Queria aprender.
Então percebi que a terra era nossa dependente. Sua vitalidade dependia da nossa força. Em nossa ausência, ela permanecia. Apenas vivia. Dávamos sentido a terra. Por isso, decidi: vou-me embora.
“Pai, mãe, na próxima carta peço ao João que me mande a carta de chamada. Vou ao Brasil.”
O pai se empenhou como nunca no campo. Precisava de um baú - um bom baú - que coubesse as latas de azeite, os gomos de linguiça, a aguardente. A mãe foi só cuidados com meu enxoval. Coube tudo em cima da burrinha. Assim, fomos todos para Vila Franca das Naves. De lá, o trem me levaria para Lisboa.
Sem o João, éramos em seis: o pai, a mãe, o Manoel, as Maria e eu. Minha família. Fomos juntos mais a burrinha. “Olha filho, até hoje, fui eu quem te governei. De hoje em diante, é com você.”
De lá, as costas me ofereciam a terra de A dos Ferreiros. À frente, a saudade me esperava. E toda a vida.
“A bênção, pai, a bênção mãe!” A caminho de Lisboa, comecei o meu governo.
***
Portugal carrega minha sina no nome: antes Portus Cale, ou Porto Quente, é pra lembrar que não há estação para fugir do fogo. O inverno nos obriga a queimar a lenha. O verão, nos leva ao Sol e também à lenha, para cozinhar. O ditado é: “Quem não economiza a água e a lenha, não economiza o mais que tenha”. O fogo era nosso convidado íntimo.
A lenha era um item obrigatório, raras as vezes escasso, embora sempre nos prevenimos: “Não gaste a lenha!” Sem ela, não tinha fogo. Morreríamos de frio. E foi num dia muito gelado que a mãe foi para a despensa, numa outra casinha que tínhamos no terreno, buscar farinha. Eu devia ter uns quatro anos. A mãe me deixou de ceroulas, bem quentinho, próximo a lareira. A lenha estalou e uma brasa veio me beliscar. Em mim, encontrou combustível.
Meu irmão tentou apagar com a vassoura, mas não deu certo. Foi com meus gritos que lá de longe a mãe ouviu e veio me acudir. Um vizinho também chegou. Ele me colocou em seu colo e parecia que estava descascando batata na minha perna. Parece que estou vendo! A pele queimada saía aos montes. Foram muitos dias com a mãe me carregando no colo do sol pra dentro de casa, pra ver se eu melhorava. Só ficava com a perna esticada. Quando eu consegui dobrar, deu um alívio!
Mal sabia que isso, mais tarde, deixaria uma cicatriz. Por ela, o exército me dispensou. A liberação foi decisiva para minha mudança para o Brasil. Em honra ao meu país, às lenhas queimadas, ao fogo que ardeu em mim, espero ser acolhido pelo calor do Brasil.Recolher