Sou professora do Município de São Paulo. Talvez seja uma boa definição para mim. Aos 43 anos de idade, 25 deles no magistério, é interessante constatar que passei mais da metade da vida nessa profissão.
Tive infância e adolescência tranquilas, típicas dos anos 70 e 80. Pais separados, m...Continuar leitura
Sou professora do Município de São Paulo. Talvez seja uma boa definição para mim. Aos 43 anos de idade, 25 deles no magistério, é interessante constatar que passei mais da metade da vida nessa profissão.
Tive infância e adolescência tranquilas, típicas dos anos 70 e 80. Pais separados, morei com minha mãe, minha avó e meu irmão até me casar. Ainda naquele tempo, muita gente achava que a separação causava um "trauma" nas crianças. Nunca me importei. Sempre fui muito bem na escola, tive meus amigos e me sentia uma privilegiada por ter aquelas três pessoas vivendo comigo. Sempre pude contar com elas para tudo.
Estudei na mesma escola (Colégio Santa Lúcia Filippini) dos cinco anos de idade até terminar o Ensino Médio, que, no meu caso, foi o Magistério. Minha mãe trabalhava nesse Colégio, o que garantia para mim e meu irmão bolsa de estudos. Como era ela que tinha que manter a casa sozinha, seria impossível pagar também as mensalidades escolares para os dois filhos se assim não fosse.
Quando entrei no curso do Magistério, acreditava que a "revolução social" se daria pela educação. Acreditava que eu faria a diferença. (A beleza da juventude está na simplicidade, na inocência, na crença diante do inverossímil.) Comecei a trabalhar nessa mesma escola aos 18 anos como professora da pré-escola (com alunos dessa idade, achei que deveria adiar os planos para a revolução). Nessa época, reencontrei um antigo amigo de infância. Começamos a namorar e anos depois nos casamos.
Depois de alguns anos, trabalhei em outras escolas particulares do bairro, em uma escola estadual e, em 1995, iniciei exercício na Prefeitura de São Paulo. Era recém-formada em Letras. Ingressar na Prefeitura como efetiva através de concurso foi uma realização. Aprovada em dois cargos de uma só vez, ainda fui metida o suficiente para não assumir um deles, pois era de Ensino Fundamental I e eu não queria mais adiar a "revolução" (inocente!!!). É preciso notar que, nessa época, apesar de o prefeito ser Paulo Maluf, a prefeitura havia acabado de sair da gestão de Luiza Erundina, que tivera como Secretário de Educação Paulo Freire. Para mim, participar do fruto do trabalho deles era uma honra.
Gostaria de ter filmado minha cara naqueles primeiros dias. Da expectativa de poder ver "Paulo Freire" aplicado, à desilusão com o "aluno real". Foi a pior realidade que poderia encontrar: professores extenuados por jornadas de trabalho desumanas e cobranças insólitas, alunos que não realizavam atividades propostas, direção que tinha claro seu objetivo de punir (o professor!!!!). Cair das nuvens no chão lamacento cheio de areia movediça seria o suficiente para fazer qualquer um afundar. Mas existem quedas que não quebram todos os ossos e, mesmo com escoriações, hematomas e algumas quebraduras, achei que era possível segui. Apesar de minha mãe também ser professora (trabalhamos na mesma escola municipal até ela se aposentar), aquilo foi uma surpresa.
Convivendo com meus colegas vi o quanto eles continuavam tentando, tentando, mas os percalços eram tantos que abafavam, no pântano do insucesso, suas tentativas. Mas eles não desistiam. Nunca vi espartanos como eles! Estavam ali, todos os dias. Às vezes, vibravam com pequeníssimas coisas que davam certo. A atitude diária deles foi decisiva em minha vida. Percebi que um se apoiava no outro, era o único jeito de não se afundar no pântano do desespero. Contar com a direção para ajudar era uma ilusão.
Os anos foram passando. Tive a sorte de trabalhar com muitos profissionais durante esse tempo. Conheci muitos que exoneraram do cargo de professor, mas a maioria lutou (e luta). Aprendi com eles que se uma perna afundou, você ainda tem a outra e, se as duas afundarem, restam os braços. Isso é a escola pública em São Paulo.Nessa mesma escola, a direção mudou várias vezes, houve melhores e piores. Mas nós, professores e alunos, fomos construindo um dia a dia de luta e aprendizagem mútuas e contínuas, algo que nenhum curso de pedagogia poderia ensinar. Muitas aulas, muitos projetos, alguns ótimos, outros nem tanto. Foi bom acertar, desconfortável errar.
Em 2004, nasceu minha única filha, Sofia. Foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida. Após seu nascimento, senti o quanto realmente se pode amar alguém. Foi mais do que mágico, foi instintivo, visceral. Ela trouxe à minha vida as mais intensas emoções que jamais pensei existirem. Pensava constantemente: como pude esperar tantos anos para tê-lá comigo? Antes dela, achava que sabia o que era felicidade, mas era só ilusão. A verdadeira felicidade era aquele bebê fofo em meus braços. O mundo nunca mais foi o mesmo depois de seu nascimento. Nunca mais olhei para as pessoas e as situações da mesma forma. Mundo meu revolucionado.No mesmo ano de seu nascimento, passei a trabalhar como professora da Sala de Leitura da EMEF Senador Miltom Campos, escola em que estava desde meu ingresso na prefeitura. Descobri que, socialmente, não há nada mais pervertido do que ler. Ato silencioso que muda o modo como vê as pessoas e o mundo. Muda você. Ato verdadeiramente revolucionário. O desafio era fazer os alunos verem isso também (era uma Guerra das Termópilas por aula).
Os anos correram. Em 2012, minha avó, com quem morara quase a vida toda, morreu. Apagou-se, como uma velinha. Deixou um vazio irreparável. Nunca pensei que chorar pudesse causar dor. Chorei até que a dor física tornou-se insuportável e então chorei mais. Choro até hoje. Faz parte do vazio que ficou. A pior sensação que vivi até hoje - a certeza inquestionável de que não tem volta, de que nunca, nunca mais aquela pessoa falará com você. Nunca mais estará ao seu lado. Nunca, é tempo demais que não cabe no peito. Ninguém jamais poderá dizer nada que me faça sentir melhor em relação a isso. É impossível.
Em 2013, minha mãe descobriu um câncer na tiróide. Fez cirurgia, tratamento, e tudo ficou bem. Na mesma época, meu marido sofreu um acidente de moto. Precisou de cirurgia na perna. Houve dias em que eu deixava minha mãe num hospital e levava ele em outro. A sorte é que os hospitais eram próximos (pelo amor de Deus, chamar isso de sorte!). Era uma correria. Mal dava tempo de pensar, talvez tenha sido por isso que sobrevivi - não tinha tempo de pensar. Mas tudo deu certo. Sobrevivera aos dois piores anos de minha vida.
Na escola, as coisas também não paravam de acontecer. Projetos, alunos, troca de direção. Dia a dia, compreendia que a vida era composta por lições (algumas com gosto bom, outras de gosto insuportável) que nos empurravam goela abaixo e, se não quiséssemos engasgar, era bom engolir rapidinho. Tento aprender essas lições, tento ajudar outras pessoas a aprenderem também.
Talvez seja por isso que ainda estou nisso, nisso que fez de mim o que sou. Sou professora.Recolher