Conte sua história - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Walter Mastelaro Neto
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 18 de setembro de 2023
Entrevista nº PCSH_ HV1416
Realização: Museu da Pessoa
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:24) P/1 - Walter, para começar eu queria que você dissesse o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Tá. Meu nome completo é Walter Mastelaro Neto, eu nasci no dia dezoito de maio de 1987, em uma segunda-feira, supostamente às oito horas da manhã - quem nasce às oito horas da manhã, né? Isso aí eu acho que é uma mentira que devem ter contado -, em Cornélio Procópio, no Paraná.
(00:53) P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Contaram como foi, até porque eu perguntei. Eu não sei se normalmente as pessoas contam, ou a gente pergunta, mas eu lembro de ter perguntado por curiosidade. Eu tenho irmãos mais novos, então eu perguntei.
Eu nasci de cesárea, apesar dos desejos da minha mãe, minha genitora. Ela queria muito que fosse um parto natural, mas eu não estava encaixado, fui o primeiro filho dela, então fizeram cesárea. E justamente por isso eu acho que essa história de que eu nasci às oito horas em ponto é muito estranha. Ela supostamente teria ido para o hospital no dia anterior e só no dia dezoito eu nasci.
(01:42) P/1 - E qual é o nome dos seus pais? Se você quiser contar.
R - O nome do meu pai é Edilson, o nome da minha mãe é Edilsa. Eu acho que são nomes bem antigos, né? Considerando hoje em dia, acho que é bem difícil conhecer Edilsons e Edilsas por aí. Na verdade, Edilsons eu conheci vários, já; acho que Edilsa, a primeira e única foi a minha mãe.
(02:08) P/1 - E como você descreveria a sua mãe?
R - Como eu descreveria a minha mãe? Olha, eu descreveria, acho… Vou começar por traço físico, que eu acho que é mais fácil. Ela é uma mulher, uma pessoa com trejeitos femininos; o cabelo dela é cacheado, mas ela...
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Entrevista de Walter Mastelaro Neto
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 18 de setembro de 2023
Entrevista nº PCSH_ HV1416
Realização: Museu da Pessoa
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:24) P/1 - Walter, para começar eu queria que você dissesse o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Tá. Meu nome completo é Walter Mastelaro Neto, eu nasci no dia dezoito de maio de 1987, em uma segunda-feira, supostamente às oito horas da manhã - quem nasce às oito horas da manhã, né? Isso aí eu acho que é uma mentira que devem ter contado -, em Cornélio Procópio, no Paraná.
(00:53) P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Contaram como foi, até porque eu perguntei. Eu não sei se normalmente as pessoas contam, ou a gente pergunta, mas eu lembro de ter perguntado por curiosidade. Eu tenho irmãos mais novos, então eu perguntei.
Eu nasci de cesárea, apesar dos desejos da minha mãe, minha genitora. Ela queria muito que fosse um parto natural, mas eu não estava encaixado, fui o primeiro filho dela, então fizeram cesárea. E justamente por isso eu acho que essa história de que eu nasci às oito horas em ponto é muito estranha. Ela supostamente teria ido para o hospital no dia anterior e só no dia dezoito eu nasci.
(01:42) P/1 - E qual é o nome dos seus pais? Se você quiser contar.
R - O nome do meu pai é Edilson, o nome da minha mãe é Edilsa. Eu acho que são nomes bem antigos, né? Considerando hoje em dia, acho que é bem difícil conhecer Edilsons e Edilsas por aí. Na verdade, Edilsons eu conheci vários, já; acho que Edilsa, a primeira e única foi a minha mãe.
(02:08) P/1 - E como você descreveria a sua mãe?
R - Como eu descreveria a minha mãe? Olha, eu descreveria, acho… Vou começar por traço físico, que eu acho que é mais fácil. Ela é uma mulher, uma pessoa com trejeitos femininos; o cabelo dela é cacheado, mas ela passou mais da metade da minha vida usando cabelo alisado, com luzes. É uma mulher baixinha, um pouco gordinha, apesar do desgosto dela, que gosta muito de usar muita joia ou bijuteria, ficar sempre brilhando. É uma mulher muito simpática, embora às vezes tenha um gênio um pouquinho difícil, porque ela tem um pouquinho de dificuldade de ouvir possibilidades diferentes, além do que ela imagina.
(03:19) P/1 - E o seu pai? Como você descreveria?
R - Meu pai, eu descreveria ele como um senhor, porque ele é um pouquinho mais velho que a minha mãe, sempre foi. Eles têm uma pequena diferença de idade, então hoje eu descreveria mais como um senhor, senhorzinho. Ele é um pouco calvo, o que sobre de cabelo já está muito branco. Ele é baixinho, pelo menos para mim. Eu não me considero alto, mas ele está definitivamente na lista de pessoas baixinhas. Barrigudo, moreno, especialmente do sol. Ele é uma pessoa bem simpática, embora seja extremamente reservado, um pouco tímido - um pouco de contraste com a minha mãe.
(04:12) P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Sei como eles se conheceram, acho que é hora de expô-los. Na verdade, quando eles se conheceram, a minha mãe… Como eu disse, ela é um pouco mais nova que o meu pai, eles têm uma diferença de dez anos de idade. Meu pai namorava uma prima distante da minha mãe quando eles se conheceram, porque ela ainda estava terminando o colegial e ele já estava indo para a faculdade - na verdade, já estava na faculdade, pela diferença de idade.
Foi assim que eles se conheceram. Ela era tipo a prima menor, chata, da namorada, mas as coisas aconteceram e eles acabaram namorando um pouco rápido, se casaram, e pouco… Pouquíssimo tempo depois do casamento eu acabei nascendo, nasci em pouco menos de um ano da data de casamento deles
(05:16) P/1 - Você contou que você tem irmãos, né?
R - Tenho irmãos.
(05:19) P/1 - Como era a relação com eles na infância?
R - Eu tenho dois irmãos. O meu irmão do meio, ele é só dois anos mais novo do que eu, e eu tenho um irmão caçula que nós temos doze anos de diferença, então as nossas vivências até hoje são bem diferentes. Eu digo isso porque meu irmão do meio… A gente cresceu muito como irmãos, mesmo. A gente estava sempre muito próximo para tudo, para arte, bagunça, e acho que a gente foi muito próximo, especialmente quando pequenos. Meu irmão, por exemplo, ele não falava; eu era a única pessoa que o entendia, porque ele demorou muito tempo para falar.
Curiosamente, com meu irmão mais novo, por exemplo, pela diferença de idade, a gente acabou tendo pouquíssimo tempo de convívio, porque quando meu irmão nasceu eu tinha doze anos, então ele era um bebezinho. Eu logo saí de casa, saí de casa muito cedo para estudar, [quando] tinha quatorze anos. Fui fazer o ensino médio longe dos meus pais. Quando eu voltei para casa ele já era maior, mas a gente teve pouquíssimo tempo de convivência. Nesse sentido, eu acho que a nossa relação de irmãos, ela é… Ela tem pouco sentido com uma relação de irmãos, acaba muito sendo quase uma relação de… Próximo a uma espécie de parentalidade, curiosamente, né? Acho que é muito costume no Brasil os filhos mais velhos ficarem responsáveis por darem um tranco nos irmãos mais novos, e pela diferença de idade, com meu irmão do meio isso não aconteceu muito, porque a gente era muito próximo de idade, de comportamento, mas com meu irmão mais novo virou isso.
(07:09) P/1 - Você chegou a conhecer os seus avós?
R - Eu cheguei a conhecer todos os meus avós, cheguei a conhecer minhas bisavós, convivi com elas por algum tempo. Eu só não consigo me lembrar se eu conheci os meus bisavôs, eu tenho impressão que não. Pelo menos, se foi eu era muito bebezinho e eu não tenho memória deles, mas eu tenho memória delas.
Diria que eu sempre gostei muito das minhas avós - quem não gosta de avó, né? Gostava também do meu avô, diziam em casa que eu fui durante muito tempo o neto preferido dele, porque foi o primeiro neto que ele teve, então às vezes rola isso. Dizem que alguns avós costumam proteger o primeiro neto, não sei se isso era mentira ou não; não sei, a gente comparava, mas acho que isso é reclamação dos outros netos, porque no final do dia estava quase tudo a mesma coisa.
Na verdade, eu diria que convivi muito tempo com as minhas bisavós, elas… A minha primeira bisavó, quando morreu eu estava quase fazendo dez anos, então acabei convivendo um tempinho com elas, peguei algumas coisas.
Acho que das minhas bisavós eu pelo menos me lembro de três com uma memória maior. Curiosamente, eu tinha um leve pavor da mãe da minha avó, que é mãe da minha mãe, porque quando eu nasci, pouco tempo depois ela acabou ficando de cama, e ela viveu muito tempo de cama, então eu tinha muito medo dela. Eu era pequenininho, e eu lembro que ela ficava deitada no quarto dela, na cama dela; era o primeiro quarto do corredor, então para você seguir para os outros quartos você sempre passava pelo quarto dela, e eu passava engatinhando no chão, porque eu tinha muito medo dela.
É curioso, é uma coisa… Eu não sei entender o motivo, pequenininho, mas eu sempre sonhava muito com gente velha, e eu tinha medo da morte dela, então eu tinha muito medo dela. E eu lembro que por exemplo, meu irmão do meio sempre passava no quarto e ia visitá-la, e eu aproveitava enquanto ele estava conversando com ela para engatinhar pelo corredor para ele não me ver passando, para evitá-la. Gostava dela, apesar disso, mas eu guardo muitas memórias de sentir muito medo, de entrar no quarto dela quando ela me chamava. Eu pensava: “Ai…”. É curioso.
(10:03) P/1 - E a sua família é do Paraná também?
R - A minha família, na verdade… Eu diria que ¾ da minha família mais próxima é toda italiana. Eu tenho só o pai da minha mãe que é de Minas Gerais, a família dele é toda de Minas Gerais, mas meus outros familiares são imigrantes, e dizem que se conheceram aqui no Brasil, mas as histórias às vezes são meio complicadas. Eu, pessoalmente, nunca fui atrás para entender, e eu estou falando isso porque eu tenho um amigo - desviando - que passou a vida inteira ouvindo que os avós se conheceram ao chegar no Brasil, e quando ele foi fazer o rastreio descobriu que eles eram casados antes de vir para o Brasil, então deveriam estar escondendo alguma coisa lá. Em casa, todo mundo dizia que se conheceu aqui.
(10:59) P/1 - E quando você pensa na sua infância tem algum cheiro, alguma comida que lembre essa época? Ou alguma data comemorativa também?
R - Infância, cheiro e comida? Olha, eu sou péssimo de cheiros, então eu vou dizer que até hoje, cheiro eu não tenho nenhum. Eu tenho curiosamente uma coisa que me lembra muito minha infância, principalmente quando eu era pequeno: repolho, porque as minhas avós costumavam fazer muita salada de repolho. Apesar de serem italianas, faziam muita salada de repolho. E eu, quando era pequenininho, sempre odiei comer verdura na mesa; eu gostava de comer antes do almoço, então quando as pessoas estavam preparando a comida eu adorava comer verdura. Na hora que me sentavam para comer o almoço eu não queria ver uma folha, um vegetal, um legume no meu prato. Eu me lembro muito de repolho porque eu não sabia pronunciar repolho, e era algo que eu adorava comer. Quando tentavam me dar para almoçar ou jantar eu não comia, de jeito nenhum.
(12:18) P/1 - Você sabe porque seu nome é Walter?
R - Sei. O meu nome é Walter porque o nome do meu avô paterno é Walter, e como eu fui o primeiro neto a minha mãe sugeriu que o meu nome fosse Walter.
Eu digo isso para todo mundo até hoje: eu sou um ativista contra dar nome de avós para os filhos, eu acho horrível, porque eu cresci sendo neto e as pessoas sempre esperavam que eu fosse alguém comparativamente ao meu avô. Embora hoje em dia eu tenha completas pazes com isso, nunca curti muito ser o neto, só o neto. Eu queria ser alguém.
Eu lembro que quando era pequenininho eu fui uma criança também muito geniosa, ou cheia de saberes. Descobri por algum motivo que quando eu fizesse dezoito anos eu poderia mudar o meu nome, e eu não gostava tanto do meu nome que eu tinha uma lista de nomes. O nome de todo mundo que ouvia eu anotava em um papelzinho, porque deixava lá e listava a ordem dos nomes que eu mais gostava, para quando eu fizesse dezoito anos poder assumir um nome novo.
Eu cresci e acabei fazendo as pazes com meu nome, Walter, me acostumei com ele. Descobri que na verdade dava um pouco mais de trabalho do que eu achei que dava [pra mudá-lo], então fiquei por isso mesmo, mas o meu nome é Walter pela minha mãe, que decidiu homenagear o meu avô paterno.
Eu lembro que eu até reclamava para ela. Ela falava assim: “Olha, você não tem muita escolha. Seu nome ia ser Walter, ou ia ser Edilson. O que você acha mais bonito?” E eu falava: “Olha, definitivamente eu agradeço então a escolha. Lamento pelo meu irmão, mas eu prefiro ficar com Walter mesmo.”
(14:13) P/1 - E quais são os nomes dos seus irmãos?
R - O nome do meu irmão do meio é Edilson, o nome do meu pai, e o nome do meu irmão mais novo é Igor - fugiu, ele teve sorte.
(14:30) P/1 - E qual é a sua primeira lembrança da infância?
R - Acho que uma das primeiras lembranças que eu tenho da minha infância é uma lembrança falsa. Eu diria que é uma lembrança falsa, porque sempre que eu paro para pensar nas primeiras memórias que eu tenho, [elas] são do nascimento do meu irmão do meio, e a gente tem pouco menos de dois anos de diferença. [É] fácil falar que a gente tem dois, mas a gente tem um pouquinho menos que dois anos de diferença, e eu acho muito difícil uma criança com essa idade ter uma memória real desse momento, então eu acho que essa é uma memória que provavelmente foi muito mais construída pelas coisas que as pessoas me contam do que minha de verdade. Mas é algo que me chama atenção.
Eu gostava muito do meu irmão e dizem meus pais, que eu pedia muito para ter um irmão, apesar de ser novinho, então quando ele nasceu eu fiquei muito contente, e me lembro de supostamente acompanhar meus familiares até a maternidade e ficar querendo ver a janela até que me levantassem, e olhar tentando achar: “Tá, então qual é ele? Tem um monte de bebê, qual é?” Eu acho que essa memória é uma memória falsa, provavelmente construída por muito que me contaram, mas é a memória que eu atribuo como mais antiga, seja verdadeira ou seja falsa.
(15:59) P/1 - Como era a sua casa durante a infância?
R - A gente mudou muito enquanto a gente era pequenininho, então eu vou dizer que eu tenho memórias de casas bem variadas. Eu e meu irmão costumávamos sempre dormir juntos; durante muito tempo, a casa em que meus pais moraram, talvez a que gente tenha morado por mais tempo, ela tinha um quarto para os meus avós, porque meus pais não moravam… A gente foi embora do Paraná alguns anos depois, quando a gente ainda era pequeno, mas alguns anos depois do nascimento do meu irmão mais novo, do meu irmão do meio.
Era um quarto que eu tinha muito medo, acho que é daí que talvez venha essa relação com a minha bisa. Eu e meu irmão, a gente dormia junto em um quarto só. Era um quarto que ficava ao lado do quarto dos meus pais, e esse quarto, que era o quarto dos meus avós, quando eles vinham nos visitar, ele passava praticamente o ano inteiro fechado, porque eles só vinham no período de férias. Eu tinha muito medo de entrar naquele quarto.
Eu me lembro vagamente da casa. Eu e meu irmão tínhamos medo daquele quarto, eu em especial; odiava quando a minha mãe falava tipo “vai fechar a janela”, à noite, quando estava anoitecendo.
Mas minhas memórias de casa são bem variadas. O que eu me lembro mais é que era muito comum que houvesse esse quarto assim, para essa visita.
(17:45) P/1 - E vocês se mudavam por algum motivo?
R - Não, acho que foi mais um ajuste. Meus pais moravam no interior do Paraná, depois eles foram para o interior do Mato Grosso. Acho que até se acertarem a gente passou por algumas cidades, até o nosso período escolar. A gente parou de se mudar mesmo, especialmente nessa primeira infância, quando eu entrei na escola, na escolinha, né?
Perdão, quase espirrei.
A gente parou muito de se mudar quando eu cheguei à primeira série e os professores falaram assim: “A gente precisa agora que ele tenha mais frequência aqui, que ele esteja mais constante, especialmente finalizado esse período da alfabetização.” Acho que foi aí que a gente mudou, porque a gente costumava, até então, morar em cidades bem pequenininhas.
(18:55) P/1 - E quando você chegou a entrar na escola ainda era em Cornélio Procópio?
R - Não, aí já era no Mato Grosso. Eu morei a minha infância no Mato Grosso, meus pais se mudaram para lá.
(19:09) P/1 - E como era a cidade no Mato Grosso em que você viveu a sua primeira infância?
R - Olha, era definitivamente uma cidade bem diferente de São Paulo. Nesse período, eu acho que eu tenho menos memórias. Eu digo isso, porque o que eu me lembro… Eu lembro que o meu colégio ficava perto do rio - do lado do rio, na verdade - e a cidade era cortada por dois rios. O meu colégio ficava do lado de um desses rios, e embora eu não tenha memórias disso, eu acho que talvez seja porque eu faltava… Meus pais me faziam faltar muito às aulas, mas eu me lembro de todo mundo dizer que o rio enchia muito no período de cheia no Mato Grosso, porque alguns anos atrás… A gente tem duas estações, a estação da seca e a estação da chuva lá, e durante a chuva chove muito, então antigamente o rio enchia muito; ele cobria a ponte, às vezes não conseguiam atravessar de um lado para outro da cidade, e a escola ficava alagada também, então ela acabou até se reformando e mudando para outro lugar, alguns anos depois.
Eu me lembro muito mais de estudar ali, constantemente, me lembro de curtir muito. Lembro que odiava caligrafia, odiava tentar escrever meu nome, que eu achava o nome mais difícil. Eu sempre olhava para os meus colegas e pensava: “Por que meu nome é tão complicado, e desse colega parecia tão fácil?”
A gente trocava muito exercício enquanto os professores não estavam olhando, que eram exercícios de caligrafia, com nome pontilhado, vai passando o lápis em cima. Eu sempre tinha que fazer a minha por último, porque eu ficava fazendo dos outros e eu tinha dificuldade com o meu nome.
(20:59) P/1 - E o que você gostava de fazer na sua infância, de brincadeira?
R - Eu gostava muito de ler também, mas honestamente eu brincava de tudo. A gente sempre teve muito espaço livre, então eu e meu irmão, a gente brincava de tudo. A gente adorava subir em árvore, correr, pular, mas eu acho que desde então eu tinha um traço um pouco talvez mais nerd. Digo isso porque ler sempre foi algo que eu gostei muito.
Tinha [livros] em casa até pelos meus pais, minhas tias… A gente acabou, por algum motivo… Junto com a gente foram muitos livros, quando a gente se mudou, então tinha muito livro para ler. Nessa época eu lembro, inclusive, [que] eu lia muitos livros da escola, que eram livros bem mais simples, mas tinha livros que eram de literatura, que meu pai e minhas tias tinham lido, e um desses livros que eu lembro de gostar muito - eu não tenho ideia de quem seja o escritor hoje em dia, mas eu lembro de lê-lo muito - se chamava Galinha Naduca, que era sobre a história de uma galinha que foi ser morta um dia para virar uma canja, ou algo do gênero, e ela deu uma bicada na mão da pessoa, e a pessoa descobriu que a galinha tinha dentes. O livro todo conta a história da galinha fugindo das pessoas da cidade, passam o dia inteiro perseguindo, tentando capturar a galinha que tem dentes, e ela acaba não sendo capturada.
Eu li esse livro inúmeras vezes, lembro que li esse livro até ele soltar toda a encadernação. Foi um dos meus livros, curiosamente, preferidos da infância.
É até engraçado, porque eu tinha muita dificuldade de ler os livros da escola, que eram aqueles livros infantis, coloridos, com poucas frases, mas esse livro eu lia bastante, e sozinho.
(23:12) P/1 - E quando você era pequeno você tinha o sonho de ter alguma profissão específica, ou não passava isso pela sua cabeça?
R - Quando eu era pequeno eu tive, acho que todos os sonhos que as crianças comuns têm. “Quero ser cientista, quero ser astronauta, quero ser ator.” Mas acho que isso era muito da boca para fora, porque eu fui uma pessoa, por muito tempo, que não tinha certeza do que queria ser na vida. Sei disso porque a gente passou a fazer na minha escola… A gente teve um projeto que durou uns dois, três anos, que eram memórias de vida, algo assim, e eu me lembro que a gente tinha que fazer alguns trabalhos sobre o que você queria ser quando crescesse, e essa era a parte em que eu sempre travava. Lembro que eu passava, perguntando para todos os meus amigos: “O que você quer ser?” Eu pensava: “Gente, como é que vocês sabem já o que querem ser?”
Acabei usando uma resposta bem genérica sobre o que eu queria ser, porque eu não conseguia pensar e ainda tipo “nossa…” Eu pensava: “Mas tem tanto tempo ainda, né? Não sei o que eu quero ser de verdade.” E acabei seguindo assim, durante a infância era algo bem genérico. Vou dizer que eu não pensava nesse futuro desse jeito, não.
(24:39) P/1 - E quando você começou a ir para a escola mais assiduamente, tinha alguma professora, algum professor que foi marcante para você nesse período?
R - Olha, eu tenho vários professores marcantes nesse período, mas vários mesmo, em vários períodos. Mesmo nesse período que eu faltava muito tinha a professora Glade. Ela era filha da diretora do colégio, eu lembro muito, ela dava aula para a gente. Mas eu diria que definitivamente, um professor que talvez marque a minha infância é a tia Maristela. Ela inclusive era mãe de uma amiga minha. Acho que… Acho não, ela é a minha amiga mais antiga, porque a gente se conheceu na escola. A mãe dela era professora, ela me deu aulas muitos anos, e mesmo quando ela parou de me dar aula, eu eu a encontrava muito na biblioteca da escola, então eu diria que eu tive muitas professoras e professores marcantes. Eu me lembro de vários deles, passava muito tempo na escola com eles todos os dias, e normalmente os professores repetiam pelos anos, né? Mas se eu tivesse que falar uma professora, ou um professor, definitivamente seria a tia Maristela.
(26:02)P/1 - E na época da escola, tem alguma história marcante dessa época, que você lembre com carinho ou outro tipo de sentimento também, mas que foi marcante para você?
R - Olha, eu não sei se eu tenho uma história assim que eu posso dizer… Eu também estou começando a pensar de baixo para cima, né? Eu não sei se eu consigo pensar em algo que seja tão marcante.
Vou dizer que eu acho que deixei muito o meu período de escola para trás, até porque eu era uma criança meio confusa, eu tenho… Talvez seja uma história. Eu estava no primeiro ano, e eu estudava, gostando um pouco mais, um pouco menos da escola, como é comum para as crianças dessa idade. A gente teve as férias no meio do ano…
Acho que eu era uma criança meio confusa quando eu era pequeno. Confuso no sentido de… Eu tinha algumas dificuldades, de tomar algumas coisas muito à literalidade do que falavam, e eu lembro que me falaram: “Vocês vão para as férias, vocês voltam a ter aula depois das férias.” Para mim, quando a gente tinha férias, era férias, você passava de ano, então eu saía no meio do ano muito contente, porque tinha encerrado aquele ano. Eu saía contando para todo mundo. A gente viajou de férias, eu lembro de sair contando para os meus avós, sair contando para os meus tios: “Eu passei de ano, estou ansioso para voltar para o novo ano.”
Voltei para escola depois das férias do meio do ano, e qual foi a minha surpresa? Descobri que eu não tinha passado de ano, eu ainda tinha mais seis meses na primeira série. Aquilo me deixou muito frustrado, eu fiquei me sentindo completamente enganado. Acho que está aí uma história curiosa que eu tenho, e eu lembro disso até hoje. Confesso que eu fico pensando o que fez… Crianças às vezes tiram umas verdades, uns fatos de algo desconhecido. Não tenho ideia de onde eu tirei essa crença, mas eu lembro que isso me deixou muito frustrado.
(28:04) P/1 - Você estava contando que quando chegou aos quatorze anos você se mudou. Queria saber como foi essa situação.
R - Para mim foi muito legal, porque foi uma experiência, uma primeira experiência de talvez ampliar o mundo, né? Então eu olho para essa experiência de uma forma muito positiva, porque eu saí daquilo.
Passei a vida toda morando numa cidade pequena e acho que de certa forma nunca entrei muito no ritmo de cidade pequena. Acho que tem uma coisa em cidade pequena - embora a cidade possa ser grande no nosso conceito de lá, ela é pequena ainda e do interior - que as pessoas do interior cuidam muito da sua vida, e eu nunca gostei disso, de gente chegando e falando assim: “Ai, porque seu pai, seu avô, sua mãe, seu irmão...”
Na escola, por exemplo, eu estudava com meu irmão do meio. Dizem que eu era um bom aluno, e os meus professores reclamavam muito do meu irmão do meio. Eu lembro que eles tentavam muito compará-lo comigo, diziam: “Olha, seu irmão mais velho passou por aqui. Ele era muito mais comportado, muito mais estudioso, você tem que estudar mais.” Isso me deixava incomodado, porque eu falava: “Olha, cada um é um, ele tem que ser como ele é, inclusive não ajuda ficar falando isso para o menino.” Então, estar em uma cidade diferente, onde…
Aqui eu faço um parênteses: acabei estudando em Londrina. Eu morei com os meus tios nesse período, porque os meus pais ficaram com receio de um garoto de quatorze anos morar completamente sozinho.
Lembro que na época eu quase vim para São Paulo, eu estava com tudo certo em um colégio aqui em São Paulo para fazer a minha transferência, e eu falei para todo mundo: “Eu estou me mudando, vou estudar fora, no ensino médio.” Era muito comum, pelo menos onde eu morava, a gente sair para estudar fora no ensino médio, mas os meus amigos falavam: “Ai, que absurdo.” Minha família achava um absurdo, e estar em São Paulo sozinho para mim era assustador. Meus pais sempre odiaram São Paulo, então eu tinha uma memória… Eu lembro de ter memórias de infância de São Paulo não tão boas, coisas que hoje são normais, do engarrafamento, por exemplo, mas eu achava aquilo [quando] pequeno um terror, acabei desistindo e indo para Londrina.
Acabei morando com os meus tios nesse período, e mesmo assim para mim foi incrível. Eu estava em um lugar diferente, onde eu podia experimentar e viver sem ter uma ideia, apesar dos meus tios estarem bem ali, de que eu tinha que ser alguém que meus pais, ou meus avós esperavam. As pessoas diziam: “Conheço seus avós, conheço seus pais, conheço seu pai, conheço sua mãe. Você não pode fazer isso.” Achava um mundo incrível para mim.
(31:29) P/1 - E foi uma decisão sua?
R - Foi uma decisão minha, até muito porque eu não sabia muito o que fazer da vida assim, então ir morar fora, morar longe era tentar descobrir, ter uma certeza do que eu queria fazer na minha vida. Eu achava nesse período que queria estudar Economia, e dizia isso porque eu não sabia muito o que eu queria fazer, não tinha certeza. Eu ficava pulando de um lado para o outro. Eu conversava com meus amigos, ficava aterrorizado com a certeza que as pessoas tinham, do tipo “vou fazer tal curso.” Eu pensava: “Caralho, a gente está só na oitava série, como é que você sabe disso?”
Nesse período, curiosamente, por uma ironia da vida, eu era muito bom em matematica; fui monitor alguns anos de matemática, no colégio. Eu digo ironia, porque hoje se me der para fazer uma soma simples eu vou sentar no chão e vou chorar. Acabei pensando: “Ah, acho que eu vou fazer, vou estudar Economia, né? Eu gosto muito de Geografia, acho que são assuntos legais, mando bem em matemática.” Passei a acreditar que eu ia estudar Economia.
Decidi mudar para Direito e estudar Direito muito por acaso, um pouco pelo colégio que eu acabei estudando. Eu estudei em um colégio que tinha um ritmo muito diferente do meu colégio anterior, e eu digo isso até porque eu tinha uma pressão para passar em faculdade que nunca tinha tido até então na minha vida. Lembro que era muito constante a gente ter reunião matutina, eles colocavam todo mundo em uma sala para dar reunião, e os professores desciam bronca na gente assim: “Vocês não estudam nada.” Eu lembro de chorar nesse período do colégio, eu me senti, nossa, um bosta. Eles falavam: “Os seus pais estão pagando e vocês não estudam.”
Olho para trás e penso: “Gente, como é que as pessoas fazem isso?” Eu não tenho mais ninguém que estuda nessa idade, então não sei como está no colégio hoje em dia, mas eu vou dizer que acho isso chocante, porque acho que era demais, a forma como tinha uma pressão em cima da gente.
A gente tinha um esquema de ranking interno; a gente tinha prova toda semana, e a gente era ranqueado dentro do seu curso de escolha e da sua posição como aluno da escola. Eu me lembro que a minha posição no ranking era uma posição relativamente boa, só que eu me sentia muito mal. Eu lembro que a minha prima ficava muito mal por isso; a gente tem a mesma idade, então a gente estudava junto. Eu ficava mal, me lembro de chorar na escola. Eu nunca deveria ter motivo para chorar por causa disso, mas eu lembro dos professores entrando e falando: “ É um absurdo! Olha a nota de vocês, vocês não vão ser ninguém.” Eu pensava: “Meu Deus céu, o que eu estou fazendo da minha vida?”
Nesse período eu queria estudar Economia, e o que aconteceu? A gente tinha à tarde aula preparatória para a faculdade nesse colégio, e com toda essa pressão eu tinha aula extra de matemática. Comecei a endoidar, falei: “Gente, eu não dou conta, não dou conta.” Eu fui até a secretaria da escola e pedi a listagem de cursos, e o curso mais tranquilo era Direito, em que eu ia ter aula de redação, Sociologia e Filosofia de tarde, e eu falei: “Gente, é isso. Eu preciso disso.” Foi por isso que eu mudei para Direito.
No começo, inclusive eu lembro, tinha umas pessoas que consideravam a gente bem vagabundo, porque todo mundo ia para as aulas, ia fazer cálculo, não sei o que, e a gente ficava na escadaria, porque a gente tinha aula de Filosofia e Sociologia.
O tempo passou, eu estudei isso, e quando cheguei para fazer a escolha do ENEM e do vestibular -, eu lembro que na época, inclusive, fiz o ENEM -, apesar do trauma e do medo, eu falei: “Caralho, o que eu vou fazer? Vou colocar Direito, já estou estudando Filosofia e Sociologia. Não tem o que mais colocar.” Mantive Direito e fiquei. Acabou sendo uma boa escolha.
(35:50) P/1 - Queria saber como que foi chegar em Londrina, voltando um pouquinho, e o que você fazia para se divertir durante o ensino médio.
R - Antes de me mudar, a gente tinha um… A cidade onde eu morava era pequena, então a gente tinha uma rotina bem básica. Eu me lembro que toda sexta-feira, depois da aula, eu tinha dois… Às vezes, a gente ia até a turma inteira, mas sempre, pelo menos, eu tinha dois amigos que iam comigo almoçar no shopping. O shopping ficava a umas três quadras do meu colégio, então a gente ia almoçar no shopping e assistir cinema.
Eu passava muito tempo no colégio também. Meu colégio não era integral, mas eu tinha aula três vezes à tarde, então a rotina do colégio na cidade sempre foi algo constante. O que eu fazia fora era ler muito, e por ter aula quase a semana inteira, pensando que em três dias da semana a gente passava a tarde inteira no colégio, mesmo quando não tinha aula a gente ficava às vezes no pátio. Eu tinha uma amiga do time de vôlei que tocava violão, então a gente ficava todo mundo sentado, ela ficava no violão cantarolando, e naquele tempo era diversão bem de adolescente mesmo. “Olha, vamos sair.” Ocasionalmente todo mundo ia para casa à noite assistir um filme, eram umas coisas bem bobinhas, básicas.
Eu lembro que eu jogava muito RPG também, pra gente era divertido, mas a gente levava um pouco a sério, então a gente brigava bastante pra [fazer] ficha, montar a história, era isso. E obviamente jogar videogame, quando eu nasci meu pai tinha um videogame, então acho que eu fui imbuído do amor por videogame desde pequenininho. O que aconteceu foi que quando eu nasci o videogame era do meu pai, conforme eu fui envelhecendo o videogame foi passando e virando algo das crianças. O meu pai parou de jogar, inclusive; quando a gente era bem pequeninho ele jogava e depois ele parou de jogar.
Jogar videogame era algo que a gente fazia muito e eu jogava muito com o meu irmão do meio. Antigamente tinha muito jogo que você conseguia jogar com duas pessoas. A gente jogava videogame a tarde inteira, se fosse uma tarde livre.
(38:33) P/1 - Você acabou não falando muito de como foi chegar em Londrina.
R - Como foi chegar em Londrina? Quando eu cheguei em Londrina foi para mim um mundo novo, né? Primeiro porque eu acho que meu estilo de vida mudou, por um lado. Eu morava em uma cidade pequena, mas lembro que os meus pais carregavam a gente para cima e para baixo naquela época. A gente tinha inglês, tinha não sei o quê… Eu lembro que eles só ligavam: “Olha, você tem inglês daqui a pouco, eu já estou passando para te pegar, vou te pegar pra te levar para a escola.” A gente não conseguia muito andar da escola até em casa a pé, até então era um outro ritmo.
Londrina, apesar de ser interior do Paraná, era uma cidade muito maior comparada à cidade onde eu morava, então isso mudou muito meu ritmo de vida. A primeira vez em que eu andei de ônibus de verdade, inclusive, foi lá, porque a gente tinha ônibus, obviamente, no interior do Mato Grosso, onde eu morava, mas era um terror. Naquela época era mais ou menos assim: você espera que o ônibus passe aqui em algum horário da tarde, e você vai ter sorte se ele passar aqui enquanto você estiver esperando, então a gente não usava ônibus, até porque meu pai e minha mãe podiam, mesmo a contragosto, carregar a gente para cima e para baixo. A primeira vez que eu andei de ônibus mesmo, no sentido de “você precisa agora aprender a andar de ônibus” foi em Londrina.
Para mim, foi conhecer um mundo novo. Acho que foi muito importante, até para sair um pouco, quebrar esse ritmo debaixo das asas dos meus pais, e começar a entender o que eu gostava mesmo, o que eu queria fazer. Foi algo, para mim, bem legal.
(40:32) P/1 - E como foi ingressar na faculdade? Onde foi o curso?
R - Acabei estudando no interior do Mato Grosso. Quando eu estava no ensino eu comecei a ficar muito noiado com a coisa do vestibular, e eu digo isso porque uma das primeiras coisas… Eu tinha amigos que moravam no Mato Grosso na época, a gente se comunicava muito por cartas, e a gente tinha combinado de fazer faculdade juntos. Quando chegou a época de inscrição, a gente foi fazer a inscrição, e na época eu tinha me inscrito para o ENEM, inclusive. O ENEM era um pouco diferente do que é hoje. Mas fiz minha inscrição para o ENEM e eu lembro que quando chegou a inscrição das outras faculdades eu estava tão nervoso que não me lembro de ter o campo para inserir o meu número de inscrição no ENEM, então eu acabei fazendo todos os vestibulares sem usar o ENEM.
Por que eu estou dizendo isso? Porque quando chegou a época de fazer os vestibulares, eu estava tão nervoso que comecei a matar os vestibulares, eu não ia fazer. Eu lembro, por exemplo, de mais de uma prova que eu não fui fazer. Eu até ia, ficava com o povo e depois fugia para não entrar na prova, porque eu estava apavorado. “Caralho, eu não vou passar.”
Lembro inclusive de sentir a burrada que eu fiz de não conseguir me inscrever para o ENEM. Eu fui fazer a minha prova do ENEM, até porque os meus tios falaram: “Olha, já que…” Porque até esse tempo, a maioria das pessoas não sabiam que eu estava matando a prova, as minhas provas do vestibular. Fiz várias, mas a maioria delas eu matei, muito com medo de saber: “Putz, qual a nota que eu vou tirar aqui agora?” E quando eu fui fazer o ENEM, eu fui muito tipo: “Ah, então foda-se, eu vou lá fazer essa prova.” Eu lembro que eu tirei uma nota muito boa, tirei acho que 97 na redação e 95 na prova escrita. Falei: “Caralho, puta merda, eu tirei isso, porque eu não vou usar para lugar nenhum.”
E eu lembro, por exemplo, quando fui fazer a prova da federal do Mato Grosso do Sul. Nem sei como ela é hoje, mas além de tudo era uma prova em que você tinha que fazer e que tinha que colocar uma somatória, cada alternativa tinha um número, então você tinha que assinalar as alternativas que eram certas, somar aquela numeração, e seu gabarito era então a soma daqueles números. A pergunta era a um, você tinha que colocar A, resposta 100, 34… Eu lembro que pensei: “Caralho, puta merda. Não basta saber, eu ainda tenho que acertar a bosta dessa soma.”
Lembro que nessa prova fiquei tão mal que eu dormi dois dias. Fiz a prova muito rápido, mas dormi na sala de aula. A fiscal ela vinha me chamar, para saber inclusive se eu estava bem, mas eu falei: “Eu tô bem, fiz a prova rápido, somei, e agora estou aqui, triste para ver o que vai acontecer. E é isso.”
O que aconteceu? Meus pais acabaram pedindo para eu fazer inscrição para o vestibular lá no interior onde eles moravam, e eu não queria fazer, mas fizeram a minha inscrição a contragosto. Lembro que fui fazer a prova muito contrariado, e eu passei.
Essa faculdade começava antes das outras, acho que começava em janeiro. Tinha a faculdade que eu estava esperando resultado, por exemplo; ia sair em abril. Então eles falaram: “Já que você não está fazendo nada, começa a faculdade. Depois você vê o que acontece.”
Eu comecei, me enturmei. Tive até colegas que desistiram, mas eu falei: “Gente, eu já estou aqui, né? Tô aqui, sentado, tô de boa, vou continuar aqui.” Continuei, então acabei fazendo a minha faculdade no interior do Mato Grosso.
Acho que foi muito bom também, porque eu encontrei uma grande amiga na faculdade. A gente já se conhecia, mas a gente acabou estudando juntos e fez uma amizade muito grande nesse período, então acho que valeu a pena por tudo.
(44:55) P/1 - Você quer contar o nome dela?
R - O nome dela é Pietra.
(44:58) P/1 - Você quer contar alguma história ou de como vocês se conheceram?
R - Olha, a gente já se conhecia, na verdade. A Pietra era amiga da Tetê, que estudou comigo. Só que o que acontecia? Eu vou falar isso até porque a Pietra não pode questionar, ela não pode dar uma resposta, mas a Tetê estudava comigo no meu colégio, então a gente sempre fala: a Pietra era amiga do colégio de fora. Ela não gosta muito disso, mas essa é a verdade.
Nesse período a Pietra não gostava de mim, porque ela dizia que eu era o amigo de fora da Tetê. A gente até esteve junto e presentes em várias ocasiões, por exemplo, em todos os aniversários da Tete a gente estava junto, mas a Pietra não gostava de mim, porque ela dizia: “Vocês são os outros amigos da Sthefany.” Eu falava “Gata, a Sthefany estuda comigo, então quem é ‘o outro amigo’ é você. A escola é o principal lugar de amizade, o resto é secundário, se toca.” Só que a gente acabou fazendo uma amizade muito grande durante o meu período da faculdade.
Passei a morar sozinho já na faculdade. Voltei para o interior, fui morar com meus pais, obviamente, porque estavam lá, e um ano depois eles se mudaram. Eles falaram: “Você vai embora?” Eu falei: “Gente, vim para cá porque vocês quiseram que eu me inscrevesse na faculdade, fiquei aqui porque já estava aqui, agora vocês vão embora e querem que eu vá junto? Ah, eu vou ficar aqui. Vocês estão doidos?”
Fiquei e acabei morando sozinho. Fiquei muito próximo da família da Pietra, até digo que a família dela é uma segunda família para mim também. Amo muito a mãe dela, o pai dela, a tia dela. São pessoas incríveis que fazem parte da minha vida ainda, então eu sou muito grato por esse período da faculdade.
Acho que o próprio período da faculdade foi importante, porque acho que até lá eu era uma pessoa meio ingênua. Acho que eu cresci, meus pais tentaram fazer, talvez, o melhor para me preservar do mundo, então eu acho que eu cresci com uma certa inocência. Digo isso porque eu obviamente sabia como o mundo é, mas eu via isso com um olhar um pouco ‘rosado’. Entrei na faculdade com esse olhar um pouco ‘rosado’ e pouco depois eu passei a estagiar no fórum, aí eu descobri que o mundo não era nada ‘rosado’, especialmente dentro do direito. Acho que foi um período importante, onde eu consegui plantar algumas sementes sobre a pessoa que eu queria ser dali em diante.
(48:00) P/1 - E sobre essa primeira experiência de trabalho no estágio, você recebia algum salário?
R - (risos) Olha, eu sou velho, né? Entrei para fazer estágio antes da lei do estágio, ou seja, o que eu recebia? Um “muito obrigado pelo trabalho”.
Na verdade, a gente tinha uma bolsa. Eles chamavam de bolsa, mas para você ter uma noção do quão baixo era a gente não conseguia pagar [com] a diária da bolsa um lanche na cantina do fórum. Se a gente fosse comer todo dia… A gente não conseguia nem usar a bolsa para comer todo dia, então era assim, era um valor bem baixo.
Eu vim antes da Lei do Estágio. Lembro inclusive quando a Lei do Estágio passou. Eu falei: “Agora não serve mais para nada, eu já não sou estagiário, não quero saber disso.”
Acho que foi um período bom, porque isso quebrou todas as minhas ilusões sobre o sistema de justiça, embora muita coisa eu já visse. A gente tinha um laboratório na faculdade, por exemplo, de criminal, em que a gente ia até o presídio fazer revisão das penas. Ainda assim, acho que meu estágio foi muito importante para quebrar de vez todas as expectativas que eu tinha sobre, na verdade, tudo. Eu lembro que sempre me diziam assim: “Quando você entrar aqui, você vai começar a ter pesadelo com o seu trabalho.” Eu falava: “Nossa, gente, que absurdo.” Eu tinha um chefe que era o juiz da vara, mas quem mandava e desmandava na gente de verdade era a tabeliã da vara, a coordenadora da… Ela que era nossa chefe direta. A gente fazia o que ele mandava, mas até então [era] ela que mandava você para cima e para baixo.
A vara onde eu estagiei era uma vara de _____ Especial. O que isso significa? Só bulhufas do tribunal, mas a gente tinha muito processo, a gente tinha mais de sete processos acumulados na vara. Para os padrões do tribunal da região, era muito processo. Eu passei a ter pesadelo realmente com gente me perseguindo, querendo processo, com número de processo esperando, porque eu lembro que a gente chegava e eram pilhas de processo para você despachar, juntar e peticionar. Eu peguei um período em que estava tendo uma transição entre o processo físico e o processo digital; a gente estava tentando engatinhar [em] como arrumar um processo digital naquele período, então era aterrorizante.
(51:03) P/1 - E como foi a formatura, você já tinha começado a trabalhar sem ser estágio?
R - Talvez possa não parecer assim, mas eu não gosto muito de festa. Não gosto de nada em que as pessoas tenham que me dar muito holofote. Colei grau em gabinete, não fui para a formatura.
Fui durante muito tempo presidente da comissão de formatura da minha turma, muito porque não tinha mais ninguém para ser e sobrou para mim, porque eu tenho uma cara meio brava, meio fechada, até hoje me dizem isso, então eu acho que as pessoas acabam apagando um pouco o fogo. Mesmo tendo saído da comissão a gente combinou ainda que, até para facilitar as coisas para a conta… Eu era uma das pessoas signatárias da conta, então eu ia lá, assinava para as pessoas, para a festa, mas eu decidi não ir para a formatura, e eu colei grau em gabinete, porque eu sou dessas pessoas, né?
Eu também não participei, por exemplo, da minha formatura do meu ensino médio, porque eu falei: “Ai, não quero, não faz sentido. Prefiro viajar e encontrar meus amigos.” Também não fui para a minha formatura do terceiro grau e sou muito resolvido com isso. Tive uma pequena briga inclusive com alguns amigos, porque eles queriam que eu fosse na nossa formatura e eu falei: “Gente, olha, eu não estou a fim de ir. Sei que a formatura é de vocês, mas eu estudei com vocês e não quero estar aqui nesse ambiente, então me desculpem. Vejo tudo antes, vejo depois, mas não estou a fim de ir.” Não fui, a gente ficou um pouquinho brigado na época, mas passou.
(52:54) P/1 - E como foi o primeiro emprego? A primeira experiência de trabalho assim mais depois do estágio?
R - Acho que um pouco da minha experiência com o vestibular acabou se repetindo quando eu fui colar grau. Eu estagiei até o meu último ano - penúltimo, na verdade, inclusive saí do estágio com a desculpa de que eu precisava fazer minha monografia. Eu ainda tinha um ano, já tinha confirmado que ficaria, mas o que aconteceu foi que conviver com tudo aquilo começou a me deixar muito mal no período da faculdade, então eu não aguentei mais ficar, pedi para sair. Na época o meu juiz ficou um pouquinho chateado, a Solange, que era a coordenadora da vara ficou um pouquinho chateada, mas eu falei: “Olha, eu não dou conta.” Usei a desculpa da monografia.
Quando a gente estava terminando a faculdade, eu lembro que no primeiro ano em que passou a ser permitido que os estudantes fizessem a prova da OAB… Porque na minha época a gente tinha que primeiro colar grau para poder fazer a prova da OAB, para a inscrição você tinha que ter o comprovante da colação de grau. Peguei a primeira turma em que foi liberado isso sem interposição de recurso; o que acontecia antes é que as pessoas começavam a entrar com muita ação, perdendo para poder fazer a prova, para caso tivesse aprovação já começar a trabalhar, e pela pressão da turma me inscrevi na prova da OAB. Obviamente, eu estava descaralhado, desgraçado da cabeça.
Passei na primeira fase. Falei: “Puta merda. Olha, o mundo te persegue quando você não está pronto.” Então, o que eu fiz? Eu não fui fazer a segunda fase da OAB. Fiz isso algumas vezes, até porque quando me formei, fiquei muito mal com o Direito. Eu falei: “Caralho, tudo aquilo que eu aprendi na faculdade é uma mentira. Não sei o que eu faço da minha vida agora. Puta merda, é tudo um desastre. Ninguém no judiciário liga para nada, a gente como advogado não dá conta e não liga para nada. O que eu faço?”
Eu tinha uma visão um pouquinho cor de rosa. Tinha alguns professores que falavam: “Olha, isso daí é mal de estudante de direito. Vocês acham que vão consertar o mundo e não vão, vocês precisam aprender isso.” Então eu tirei um ano oficialmente sabático, e depois, quando eu voltei… Acabei tirando um ano e meio, porque eu me inscrevi para seis provas da OAB. Eu passava na primeira fase e não ia fazer a segunda fase, porque eu pensava: “E se eu passar agora…” Eu falei: “Não vou ter o que fazer, eu não vou ter desculpa, vou ter que trabalhar. Eu não sei o que eu quero fazer, não estou pronto para advogar.”
Meus amigos começaram a brigar, a falar assim: “Já passou da hora, está na hora de tomar vergonha.”
Fiz seis inscrições na OAB. A sétima eu fui fazer… Fiz duas vezes, se não me engano, a segunda fase, porque não passei. Na seguinte eu fiz e passei. Obviamente, quando isso finalmente aconteceu, eu vou dizer que eu já tinha entrado um pouquinho em paz com toda essa questão, e precisava desse tempo lá atrás para entender, inclusive entender que eu não ia mesmo mudar o mundo.
Embora eu diga assim - espero que a OAB não me escute, espero que ninguém que estuda Direito me escute - eu não acho que ser advogado é tão significativo, mas é uma ferramenta ainda, até hoje, muito importante, quando você tem ainda muita coisa irregular por aí, muita coisa estranha, né? Isso me dá a possibilidade de entrar em muitos lugares sem ser questionado, estar em muitos lugares sem ser questionado. Acho que isso se soma a todos os privilégios que eu aparentemente carrego. As pessoas vão olhar para mim, vão me ver como uma pessoa que é um homem, uma pessoa que é branca, então provavelmente a tendência é não questionar o que eu estou fazendo aqui naquele lugar, e quando eu passei a entender isso eu falei: “Então é isso, né? Eu quero ser, sim, advogado. Vamos lá.”
Comecei a trabalhar normal, naquele “vamos começar”. É assustador, é ok, um começo, eu diria, normal. É um pouco assustador para todo mundo, mas você passa por isso depois.
(57:47) P/1 - Pode avançar? Eu queria que você falasse um pouco de como foi essa trajetória até você chegar em São Paulo. Quantos anos você tinha?
R - Quando eu cheguei aqui em São Paulo eu tinha 25 anos, então foi bem depois desse período de “tá, eu me entendi, sei o que eu quero fazer.”
Por que eu vim para São Paulo? Eu morava no interior, em uma vida que eu parei para olhar e pensei: “Eu consigo ter essa vida que estou tendo aqui para o resto da minha vida. Tenho aqui ao meu redor amigos incríveis, tenho um trabalho que está ok, mas não é isso que eu quero para mim.”
Entram muitas coisas - eu era, talvez, o mais esquerdinha dos meus amigos. As pessoas sempre me tratavam em uma coisa tipo “tá tudo bem, tá tudo bem.” Eu era, e sou uma pessoa LGBTQIAPN+, apesar de estar um pouco em um período de uma descoberta plena sobre isso, e ninguém mais ao meu redor era, então eu falava: “Eu sinto falta do meu povo, das minhas pessoas. Não aguento mais estar aqui, ao redor de gente hetero.”
O que aconteceu? Eu, na verdade, não tinha ideia de vir para São Paulo, porque sempre que eu vim para São Paulo foi sempre a passeio. Até mencionei, eu tive uma experiência de quase vir estudar aqui em São Paulo quando eu era mais novo, não deu certo, então eu não tinha a menor ideia de São Paulo. Eu queria ir, na verdade, para Porto Alegre, porque eu tive um professor de criminal… Quando comecei, comecei no criminal, embora hoje felizmente eu tenha me afastado dessa área, porque eu acho que você tem que ser muito resistente. Eu estava adoecendo. Lidar com juiz e promotor criminal… Eu estava enlouquecendo, eu falava: “Olha, eu entendo. Acho que a gente tem que ser responsável pelo que a gente faz, mas porra, vocês estão tratando as pessoas como o pior do mundo e não é, né?” Era uma área que começou a me dar muita dificuldade no trabalho. Eu não conseguia, eu chegava no escritório e falava: “Meu Deus, eu quero matar esse juiz e esse promotor. Olha o absurdo que ele está escrevendo nessa peça.” E aquilo me deixava muito desgastado.
Eu queria ir para Porto Alegre, por quê? Porque eu tive um professor de criminal na faculdade - bom, mais de um, mas tive um professor que eu me liguei muito, que ele era do Rio Grande do Sul, era de Porto Alegre. Ele tinha um orientador que falava muito sobre… A gente chamava na época de direito penal alternativo. Tinha uma visão um pouquinho diferente. Principalmente aqui em São Paulo as pessoas odeiam essa pegada. Lembro que eu cheguei aqui em São Paulo e fui estudar na PUC; meus professores queriam morrer quando eu falava sobre isso. Fui estudar Criminal na PUC, e eles tinham a visão completamente oposta.
Eu tentei por um ano entrar dentro do programa de criminal lá em Porto Alegre, só que eu não consegui. Eu não conseguia pelas coisas mais estúpidas do mundo. Eu mandava por e-mail os meus documentos e não chegava, fechava inscrição e diziam que não tinha chegado a tempo, e eu passei dois períodos de inscrição, começo e final do ano. Falei: “Gente, eu estou há um ano tentando entrar nesse curso.” Eu já conhecia o orientador, já tinha conversado com ele, até por causa do meu antigo professor, só que eu não conseguia entrar no programa. Eu entrava em contato dentro do prazo, eles diziam que os documentos não chegaram, então eu não conseguia fazer a matrícula, não conseguia… Eu falei: “Caralho, porra, o que está acontecendo aqui?”
Um dia eu falei assim: “Olha, por que estou indo para Porto Alegre? Vou para lá ouvir de quem eu concordo? Acho que isso não vai dar certo.” E como eu falei, eu vim para São Paulo, eu fui estudar criminal na PUC, que era um programa bem oposto da premissa do que estava vendo. Por exemplo, os meus professores eram procuradores, eram promotores do Ministério Público, então era completamente o oposto. O meu orientador era desembargador, mas ele tinha uma visão diferente sobre, uma proposta diferente, então eu falei: “Cara, eu vou para São Paulo.”
Curiosamente, o entrevero que eu tive em Porto Alegre não foi o que aconteceu em São Paulo. Em três semanas eu tinha a minha matrícula confirmada, tinha um apartamento aqui em São Paulo e estava pronto para mudar, aí eu falei: “Era para ser.”
Meus amigos sabiam que eu pretendia, que eu estava querendo ir embora de lá, mas eu acho que por passar um ano tentando e não fazer nada acho que talvez ninguém botava muita fé, né? Lembro que eu falei: “Estou tentando há um ano e não estou conseguindo. Vou fazer tudo isso, e depois eu falo se deu certo ou não, especialmente se der certo. Se não der certo, deixa quieto.” Foi assim, eu virei e falei assim: “Gente, eu queria falar para vocês que eu estou indo para São Paulo daqui a duas semanas. Está tudo certo lá, e eu estou largando a minha vida aqui.”
Eu lembro que eu tinha um dinheiro separado, pensei: “Tá, quanto eu preciso para ficar em São Paulo?” Eu tinha um dinheiro separado, mas eu vim sem emprego, sem nada. Falei: “Paciência, tento me virar lá.”
Liguei pro meu pai e perguntei: “Se eu for para São Paulo e não conseguir nada, você me dá um backup por uns meses?” Ele falou: “Acho que consigo.” Eu falei: “Então está certo. Tenho reserva aqui, tenho x tempo de aluguel pago, acho que está tudo bem. Se tudo der muita merda mesmo, volto para casa e é isso que a gente faz da vida, volta para trás e recomeça, segue de novo.” E vim, então foi muito rápido.
Acho que quando eu pisei aqui em São Paulo… Na verdade, eu sabia que eu devia estar aqui. Eu nunca tinha vindo ou voltado para São Paulo sozinho, foi a primeira vez. Eu me apaixonei, me apaixonei pelo ritmo da cidade, esse ritmo frenético, isso curiosamente me faz muito bem. O apartamento em que eu moro até hoje foi o primeiro apartamento em que eu vi; gostei muito dele, tudo rolou, tudo deu certo.
Não vou mentir, algumas coisas foram um pouco difíceis. Por exemplo, quando eu cheguei aqui em São Paulo, achar um emprego foi muito difícil, até porque as pessoas olham muito pro seu diploma, no sentido de… Aqui em São Paulo as pessoas esperam muito um diploma que seja ou da PUC, ou da USP, ou da Mackenzie. Eu vim de fora de São Paulo, então o meu currículo já ficava em um outro canto. Isso, no começo, foi mais difícil. Fazia entrevista, as pessoas olhavam [e diziam]: “Você não se formou aqui em São Paulo, né?” “Não.” Você via que ali você já estava cortado. Mas foi legal, vou dizer que achei o ritmo de vida que eu queria. Sou bem contente com as coisas, felizmente deram certo.
(01:05:49) P/1 - Você estava falando que um dos motivos que fez você vir para São Paulo foi as suas referências e outras pessoas LGBTQIAPN+, também o fato de você não ter essas referências lá na cidade do interior do Mato Grosso. Eu queria saber como foi isso quando você chegou aqui em São Paulo.
R - Quando eu vim para São Paulo eu já me entendia de uma forma completa. Digo isso porque para mim isso sempre foi um problema. Eu fui muito confuso, acho que justamente por ser uma pessoa que também é assexual. Por que eu digo isso? Porque desde muito novo eu sempre soube que eu era bi, eu sempre… Já falei isso em vários lugares diferentes, quando me perguntam. Eu sempre soube que eu era bi, porque isso nunca foi um problema, e sempre foi muito natural para mim gostar de garotos e garotas.
Lembro [que] meus pais achavam… Eles não botavam muita fé nisso, achavam que era mais uma forma de chamar atenção deles. Eles sempre diziam: “Você não precisa chamar atenção.” Porque eu tinha um perfil do bom filho, né? Eu era estudioso, eu era aplicado, meus pais não tinham problema comigo em casa, então eles achavam que eu dizia que era bi para chamar atenção deles. Eu falava: “Gente, não, né? Eu sou, mas…”
Qual era o problema? Quando eu entrei na adolescência, acho que me perdi e não sabia mais o que eu era, justamente por ser uma pessoa assexual. Foi um período que vários amigos estavam passando por esse processo de descoberta sexual e o meu processo de descoberta sexual era justamente o contrário dos meus amigos. Eu não tinha interesse em sexo, e isso fazia com que eu fosse visto de uma forma muiro infantilizada. Isso me deixava muito mal, fez com que eu tivesse as minhas primeiras experiências, e não tivesse referência nenhuma sobre tudo isso, porque apesar de estar no interior, existia…. Eu sempre soube que era bi, e para mim isso era ok. Eu sempre tive acesso a alguns espaços de diversidade, ou à existência de diversidade, então eu pensava: “Sei lá, um em cem pessoas é LGBTQIAPN+, e está tudo bem.”
Meus pais talvez não botassem muita fé de que eu era bi, então eu acho que nunca… A gente não teve grandes problemas dentro de casa. Nesse período, lembro que o que eles mais me falavam era uma coisa que algumas pessoas repetem até hoje, que eles falavam quando ficavam um pouco irritados. Eu nunca cheguei a namorar um garoto nessa época, tive uns namoricos com umas meninas e até isso hoje eu vejo com uma luz diferente, tentando entender mesmo. Algumas vezes [aconteceu] até por pressão de outras pessoas, no sentido de: “Olha, se você gosta dessa pessoa você tem que namorar.” E eu tive um espaço de descoberta onde isso não aconteceu com rapazes. Tive namoros com algumas meninas, mas eu não tive oficialmente um namorico com um garoto; era uma outra experiência, se encontrar depois do colégio e transar. Então, o que eles me falavam era assim: “Para de falar isso. Você pode até ser gay se você quiser, quando você ficar mais velho, mas tem que estudar. Só que [essa] história de ser bissexual… Filho meu não é bissexual, porque isso é coisa de vagabundo.” Eu falava: “Que absurdo! Vocês vão ver. Eu vou chegar em casa, vou chegar com uma namorada e um namorado.” E não chegava com ninguém, na verdade.
O que acontecia [é que] eu não tinha referência nenhuma. Mesmo dentro do meu colégio, onde a gente passou a ter um espaço para falar um pouquinho sobre a sexualidade, tinha, com todos os problemas e defeitos lá de trás, havia uma possibilidade de dizer assim: “Vocês talvez sejam heteros, talvez vocês sejam homo, talvez sejam bi, mas é isso.” E quando eu conversava com alguns dos meus professores, eles falavam: “Você é muito novo, espera amadurecer mais. É por isso que você não quer transar com ninguém, você não tem interesse.”
Se tem uma coisa que adolescênte odeia é que alguém diga para você que você é muito novo, porque a gente tem certeza que a gente não é novo o suficiente, a gente já está pronto para tudo, então aquilo me deixava muito bolado. Eu falei: “Caralho, né?” Mas era isso que eu tinha. E ao mesmo tempo era um período que, por exemplo, mesmo na internet, nos espaços on-line, porque embora, talvez justamente por morar no interior era o que eu tinha de comunidade LGBTQIAPN+ eu nunca me senti bem vindo dentro dos grupos de pessoas bissexuais, porque as pessoas diziam: “Se você não quer transar com ninguém você não é bi.” Então eu falei: “Cara, eu não sei o que eu sou. Eu obviamente não sou hetero, porque se eu fosse hetero eu não gostaria de garotos também, mas eu não sei o que eu sou, eu não sei. Será que eu sou um cara gay e não consigo assumir isso? Por isso que eu gosto de garotas também, mas…”
As minhas experiências, elas acabaram todas sendo um desastre, porque era muito comum nesse espaço de descoberta da vivência sexual durante a adolescência… Acho que para algumas pessoas é muito comum, e eu estive em grupos onde isso era muito comum: a gente está junto, está saindo, está curtindo, mas quando você vai ficando mais sozinho, você começa a dar uns amassos mais quentes, e para mim aquilo se tornava desconfortável, fosse com garotas, fosse com garotos. Então eu entendi, falei: “Não sei o que eu sou. Não sei de nada, nada faz sentido. Pra mim relacionamento não dá certo, então eu vou seguir sozinho.” E eu segui sem pensar muito sobre isso. Quando as pessoas me perguntavam, inclusive eu dizia: “Olha, eu não sei o que eu sou, porque pode ser o cara mais incrível, posso achar ele fantástico, mas não quero transar com ele. Mas [também] não quero uma amizade só com ele, né?” E a mesma coisa para uma garota. “Ela é super incrível. Não quero ter uma amizade com ela, eu quero algo mais, só que eu não quero transar, então o que que é isso?”
Os anos passaram, eu fiquei nessa.
Quando eu estava me formando, falei: “Não sei o que fazer, não sei o que eu sou. Deixa isso quieto, está tudo bem.” Sempre que alguém vinha dar em cima de mim eu falava: “Olha, eu não estou interessado. Siga o jogo aí, tem gente bem mais disposta para você.”
Quando eu me formei, eu tinha 23 anos. Embora não soubesse o que fazer da minha vida, lá atrás, quando eu tinha 23 anos… Nossa, em que ano foi isso? Eu acho que foi em 2009, porque acho que eu entrei na faculdade em 2004. Acho que foi em 2009. Quando a gente pensa sobre a questão de direitos LGBTQIAPN+, era um mundo completamente diferente. A gente não tinha nem casamento ainda, a decisão do STF veio depois, então eu falei assim: “Cara, eu não sei de nada, mas gosto de estudar, preciso estudar, no mínimo entender essa comunidade que talvez eu faça parte de algum jeito.” Passei a ler, comecei a ler trabalhos em inglês sobre o sobre o movimento LGBTQIAPN+, a história, e nisso eu encontrei o termo assexualidade. Pra mim foi uma luz e foi uma coisa: “Mas será? Será mesmo?” Aí eu passei a ler, fui pesquisar.
O trabalho falava pouquíssimo sobre isso, de uma forma bem superficial, mas dava algumas referências que eu fui atrás. Quanto mais eu lia, mais eu pensava: “Caralho, acho que me encontrei. Porra, nunca ouvi falar sobre isso, ninguém fala sobre isso. O que é isso?” Para não mentir, porque eu fui uma pessoa, um garoto de internet… Eu usei mIRC, eu fui daquela… Acho que hoje a geração também, talvez a adolescência esteja descontroladamente na internet, mas eu fui a geração que talvez encontrou a internet sem nada, né? Sem cerca, sem limite, nossos responsáveis sabiam mexer muito menos, às vezes mal [sabiam] ligar um computador. Embora isso talvez se repita, acho que era um tempo assim, tudo estava muito disponível e de uma forma muito aberta. Eu já tinha ouvido falar sobre o termo assexual nesses espaços da internet, inclusive conhecia a AVEN [Asexual Visibility and Education Network], que foi um dos lugares onde alguns anos depois eu fui encontrar referências sobre a assexualidade, mas o que me traziam de ideia sobre a assexualidade era uma ideia completamente diferente da pessoa que eu era, ou do que a assexualidade é; me passavam a ideia da assexualidade ser algo muito insípido. Diziam assim: “Uma pessoa assexual é uma pessoa…” Hoje, seria algo como uma pessoa não-binária, agênero, que nunca praticou sexo, não tem interesse em sexo, e ela inclusive tem um certo descolamento com identidades ou perspectivas de papeis de gênero, e eu pensava: “Cara, isso não tem nada a ver comigo, porque eu me sinto muito confortável sendo visto como um homem. Eu já transei, então provavelmente eu não sou assexual.” Para mim não fazia sentido.
Foi alguns anos depois que eu inclusive descobri que aquela definição era completamente errada, não fazia sentido algum. E foi nisso assim, realizado de que eu era uma pessoa realmente LGBTQIAPN+, recém me descobrindo como uma pessoa assexual, eu falei: “Olha, eu preciso ir para paragens diferentes.”
Porto Alegre tem um movimento LGBT, e uma comunidade LGBT meio diferente daqui de São Paulo, mas tinha, então eu pensava: “Talvez eu encontre gente por lá.” E acabei chegando aqui em São Paulo, encontrando e achando um espaço para viver. Eu já tinha pessoas que conhecia que moravam aqui em São Paulo, isso facilitou muito esse primeiro encontro, esse primeiro momento também, mas acho que foi por aí.
(01:17:16) P/1 - E o que você gostava de fazer para se divertir quando você chegou aqui?
R - O que eu gostava de fazer? Eu sempre gostei muito de ficar na casa dos meus amigos, sem fazer nada, mas eu diria que quando era mais novo eu tinha muito mais disponibilidade e disposição para sair, para sentar em bar, para ir em festa. Eu tinha 24 anos, 25, então era muito mais ok sair de uma festa e ir para outra na mesma noite. Hoje em dia, se me forem falar para fazer isso eu vou cair para trás, morto, mas eu gostava muito de ir em festa e ir em bar assim, e ficar com os amigos que eu tinha aqui já. Isso era o que eu mais fazia para me divertir.
Antes do isolamento, eu saía do escritório, especialmente na sexta-feira à tarde, saía bem mais cedo, e ia muito para o cinema sozinho, adorava pegar um cinema à tarde, sozinho. Estou dizendo “adorava” porque a minha vida mudou muito do isolamento para cá, isso foi algo que eu não voltei a fazer. Passei a trabalhar em home office desde então e isso mudou muito o meu ritmo. Antes eu tinha um ritmo de, apesar de ir para o escritório, ficar correndo de um lado para o outro pela cidade; hoje em dia eu corro ainda pela cidade, mas a maior parte do tempo eu passo em casa, fazendo home office, então eu acho que isso mudou um pouco esse ritmo, esses gostares, talvez até a minha disposição. Eu sempre falo: “Gente, acho que para mim o tempo chegou mais cedo. Tenho menos disposição hoje para estar bebendo em um bar tequila dupla até as cinco horas da manhã, ir para casa tomar uma ducha e ir direto para o escritório.” Hoje em dia não dá mais para isso, não.
(01:19:08) P/1 - Você estava contando que entrou na PUC para fazer… Era uma especialização?
R - Era especialização em [Direito] Criminal.
(01:19:16) P/1 - Como foi a sua trajetória profissional? Você continuou… Você já falou que não, mas eu queria saber como foi.
R - Quando eu cheguei aqui em São Paulo eu trabalhava com criminal e estudava. Vou dizer que sair do criminal foi uma coisa que aconteceu de uma forma muito natural para mim. Eu até tinha uns processos criminais, mas eles acabaram se encerrando, né? [Quando] vim para São Paulo, a gente estava vivendo um período grande da Lava-jato, onde tinha bastante investigação de processos criminais - ainda existem para caralho. Era algo que eu tinha próximo.
Lembro que uma das primeiras atividades que tive no trabalho foi levar para casa um processo criminal que tinha 132 volumes e eu precisava, no final de semana, ler o que desse para ler, porque era material para caralho, e resumir para ter isso pronto. Falaram assim: “Não precisa conhecer todo o processo para segunda-feira, mas segunda-feira a gente quer conversar com você sobre esse processo, então vai lá.” Foi assim, mas o que aconteceu foi que esses processos começaram a se encerrar, daí eu comecei a ficar muito mais atuante nos processos cíveis, então eu parei de atuar dentro do escritório nesses processos sem nem perceber. Quando eu percebi, não tinha, não estava mais atuando dentro dos processos criminais.
Eu estou falando isso porque, por exemplo, quando me diziam “muda pro cível”, eu dizia: “Não. Nossa, que absurdo. Eu gosto de criminal.” E eu gosto, acho um campo interessante para você pensar, estudar, mas lidar com aquilo pode ser muito exaustivo, e para mim foi. Durante o isolamento, eu até fiz voluntário em um programa de habeas corpus que a gente participou, acabei até sendo monitor de uns estagiários, e eu lembrei, falei: “Caralho, é por isso que eu não dou conta mais de criminal, eu não dou conta de lidar com essas questões que a gente tem aqui.” Peticionar para falar “essas pessoas ganharam direito de sair, porque a gente está no meio da pandemia, está no meio do isolamento, essa cela tem capacidade para trinta pessoas e a gente tem 130 pessoas aqui. O histórico da pessoa não faz necessidade de que ela permaneça realmente aqui, presa.” E o desembargador falou assim: “Mas ela está mais segura na prisão do que na rua.” Você fala: “Ela está mais segura na prisão com 136 pessoas numa cela que cabem 32 do que na rua?” Tá, o que eu faço? Vou recorrer, porque é isso que eu tenho que fazer, mas o que que eu faço com uma pessoa dessas? Não tem o que fazer, eu não dou conta, é por isso que eu saí do criminal, e acabei permanecendo muito mais em uma área próxima, no cível, mais próxima dos direitos humanos.
Eu já atuava… Conheci na PUC uma colega, a Larissa, ela era voluntária da TETO. A TETO é uma ONG que tem aqui na América Latina, ela atua especialmente em comunidades de extrema vulnerabilidade, com construção. Ela é mais conhecida por isso, mas tem outros projetos. Eu sempre fui uma pessoa preguiçosa, a Larissa me falava muito da construção, mas eu falava: “Gente, isso não é para mim. Ir para lá, vou ficar nesse trabalho pesado, não pode tomar banho, não é para mim essa bagaça.” Eu lembro da primeira vez que eu fui, foi para uma pintura com ela, depois de uma construção, mas eu acabei entrando como voluntário no jurídico social, que era uma área voltada a uma atuação permanente que existia nas comunidades, na época.
Fui voluntário da TETO por muito tempo, na verdade, fui voluntário por uns anos. Acabei assumindo… A gente tinha uma chefe, uma coordenadora, mas ela acabou saindo, infelizmente, e eu assumi junto com uma outra estagiária - uma outra advogada, uma colega, é que na época ela era estagiária, ainda - a coordenação do jurídico social, tanto aqui de São Paulo, quanto do nacional. E aquilo me dava muito prazer, porque sempre foi perto de uma área que eu gostava de atuar. Eu não podia atuar juridicamente pelos processos, a gente não atuava, a gente encaminhava todas as comunidades para os processos da Defensoria Pública, mas a gente trabalhava dentro de um programa de advocacia, educando as pessoas, acompanhando os projetos permanentes nas comunidades, e aquilo sempre foi algo que eu curti muito.
Eu saí desse trabalho um pouco antes do isolamento, até porque para mim tinha chegado em um limite, do tipo “não dou mais conta, é muita coisa para fazer.”
Acho que eu sempre tive muita sorte, porque mesmo no trabalho eu tinha liberdade de sair do escritório para ir para fazer uma reunião na Secretaria de Habitação, ou com a Defensoria Pública, porque eu conseguia fazer as entregas que eu precisava fazer, então acho que tive muita sorte nesse movimento todo, de espaço.
(01:25:13) P/1 - E tem alguma história marcante dessa época do TETO? Com alguma assessoria que vocês fizeram?
R - História marcante tem bastante, na verdade. Eu cansei de acompanhar desapropriação, o que é muito triste. Eu sempre falo, acho que quem já acompanhou uma desocupação passa a ver o direito à habitação de uma outra forma. Existem histórias tristes, histórias mais felizes, muitas histórias de brigas, porque a gente tinha muita briga, aquele monte de gente querendo construir… A gente acabava tendo, às vezes, que se envolver para separar as brigas que tinha nas comunidades. Mas acho que uma história que talvez seja interessante, de certo modo, quase com um final feliz, quando eu entrei no TETO. A primeira comunidade em que eu virei assistente jurídico ficava lá em Guarulhos, foi a primeira comunidade que me designaram. Falaram: “Olha, aqui, você vai ficar aqui, nessa comunidade.” Foi a primeira comunidade em que eu tive contato, a comunidade Malvinas, em Guarulhos, perto do aeroporto, e tem um morrinho lá. A comunidade tinha toda sua própria dinâmica, inclusive pelo aeroporto, e ela tem um morro; as pessoas moravam ao redor do morro, mas as pessoas passaram a construir sobre o morro. E eu lembro que a primeira vez que eu fui lá, eu já olhei e falei: “Olha, essa pedra aqui está meio estranha. Acho que está dando ruim.” E as pessoas falavam: “Não, essa pedra aqui está assim desde sempre, nunca teve problema.” Daí eu falei: “Olha gente, não teve problema até hoje, mas um dia vai ter”.
Isso acabou gerando um processo. A gente teve um período em que o Ministério Público federal fez vários inquéritos em comunidades extremamente vulneráveis para falar sobre processos de reapropriação, readequação, e obviamente Malvinas foi uma das comunidades que acabou entrando nesse inquérito. Foi feito o inquérito e tinha uma determinação de remoção das pessoas de lá, e eu lembro que quando isso chegou foi um terror, as pessoas não queriam deixar o fiscal da defesa civil entrar na comunidade, que diziam que se ele entrasse ia fazer o laudo e ia tirar todo mundo. Eu falei: “Gente, vai tirar de qualquer forma. A gente precisa inclusive de um laudo para talvez fazer um contraestudo, entender o risco, porque existem níveis de risco. Existem às vezes ações que podem ser feitas para tentar minimizar aquele risco.
Foi um processo que, pelo próprio período do poder público, durou um tempo, mais de dois anos. A gente tinha um processo de discussão da remoção da Malvinas ao redor da pedra, e eu sempre falava do medo dos moradores, porque se você começa a remover um grupo de pessoas, o medo delas era que isso se ampliasse para o restante da comunidade, e ela tinha um certo acordo de permanência na área - uma área que é de gestão da concessionária do aeroporto, porque ela está no pé do aeroporto, então sempre teve uma certa tensão com a existência dela ali.
O que aconteceu foi que a gente acompanhou todo o processo, inclusive levando e convencendo os moradores a irem à Defensoria Pública para tentar um benefício, um programa habitacional. A gente passou pela remoção de setenta famílias, e às vezes é muito difícil, porque esses processos às vezes são muito longos.
Eu atuo ainda em alguns processos pro bono habitacionais. Especialmente agora que eu não sou, não faço mais parte da TETO, posso atuar nos processos tentando dar assistência às famílias. Embora nenhum deles hoje tenha alguma ligação com a TETO, acabei sendo conhecido pelo período em que eu atuei lá. E eu lembro que quando a gente finalmente ia ter a reintegração a gente precisou convencer as pessoas. A gente conversou. “Olha, não tem mais o que fazer.”
Teve uma chuva muito forte em fevereiro… Eu não vou conseguir me lembrar do ano agora, acho que foi em [20]19. Uma pedra que tinha, a pedra que a gente sempre dizia que ia cair, ela caiu. A sorte foi que tinha uma goiabeira na frente de uma casa, e a goiabeira conseguiu segurar a pedra, mas a pedra chegou tão próxima que quando a gente passava ao redor da pedra você passava entre a pedra e a casa, a parede da casa. Aquilo assustou todo mundo que morava ali, porque a pedra caiu de noite, no meio da chuva. Eles falavam: “Foi um estrondo, parecia que o mundo estava desabando. As pessoas ficaram apavoradas.” A gente já tinha os processos, já tinha uma ordem de reintegração que estava suspensa, e as pessoas estavam recebendo uma readequação em um programa habitacional, que por si só já era um desafio. Minha memória é muito ruim, não lembro valores específicos, mas eu lembro que na época a gente tinha um programa habitacional que a faixa especial… Estou até desviando já o assunto, está virando uma aula sobre políticas. Na época, o programa habitacional tinha uma faixa especial de assistência, que a renda familiar tinha que ser, se eu não me engano, de até 1500 reais, porque essa era a faixa onde as pessoas recebiam assistência e subsídio do governo para receber essa moradia. [Se fosse] mais que isso elas entravam em um programa de financiamento próprio. Nos dois elas tinham que pagar, mas a primeira opção era bem mais subsidiada pelo próprio governo. E qual era a questão? Essa famílias, para participar, elas tinham que receber até 1500 reais, só que o valor que a gente tinha da parcela ficava quase oitocentos, novecentos reais, e a gente falava: “Gente, é um absurdo você falar que a família tem que ter 1500 reais de renda familiar e está cobrando na parcela oitocento reais.” Eu falei: “Você acha que ela vai sobreviver como, com o que resta? E a gente brigava muito por isso, porque eu lembro que quando a Caixa, que era a gestora, mandou a listagem das setenta famílias aprovadas e os valores da parcela - eu lembro que a gente estava em uma reunião quando eles entregaram isso -, eu falei: “O que é isso? O que é esse valor aqui?” Eles [falaram:] “O valor da parcela.” Eu falei: “Vocês estão zoando? Vocês queriam que a família tivesse até 1500 reais, algumas pessoas não entraram por causa disso, e você está falando que ela vai ter que pagar novecentos reais dessa parcela para se manter na casa? É por isso que as casas são abandonadas.” A gente tem outros problemas, mas é isso, as famílias não davam conta de manter esse subsídio.
A gente teve a queda dessa pedra, as pessoas estavam muito hesitantes em ir para essa moradia, mas com a queda da pedra elas decidiram ir, e a gente desmontou toda aquela região da remoção no final de semana. A gente falou: “O que dá para fazer agora? Foi dado um prazo, eles vão vir aqui fazer a remoção e fazer a demolição, então o que é a minha sugestão para vocês? Vocês fazem o que vocês quiserem, mas resistir não adianta. A gente já viu vários casos aqui em São Paulo, inclusive a reação do Estado sobre isso. Vocês não vão dar conta, a polícia é bem mais forte e mais armada. A gente pode tentar desmontar e tirar o máximo possível de coisas que sejam reaproveitaveis das casas - telha, madeira, porta, janelas -, vender e levar para outro lugar, ou então vai ficar tudo aqui, porque quando vir a ordem de remoção destrói tudo, o que estiver dentro da casa é demolido. E essas coisas são muito caras.”
Quando eles chegaram para cumprir a ordem de reintegração, na segunda-feira, toda a região já estava desmontada. As casas estavam só no esqueleto, as famílias tinham tirado o máximo possível de coisas. Apesar disso ainda foi muito triste voltar - eu fiquei anos lá, algum tempo depois, além disso - era muito triste voltar, a região toda estava aplainada de lasca e pedaço de concreto, porque as máquinas passaram por cima das casas e deixaram tudo lá.
Acho que essa é uma história do meu período da TETO.
(01:34:29) P/1 - Eu queria que você contasse como se deu a sua atuação na Abrace [Coletivo de assexuais].
R - Na Abrace?
P/1 - Como começou também.
R - Como começou? Quando eu vim para São Paulo, já me entendia como uma pessoa assexual há um tempinho, só que eu nunca tinha encontrado nenhuma outra pessoa assexual. Eu só conversava com pessoas assexuais na internet, inclusive do exterior, porque eu não tive contato com a comunidade assexual brasileira quando eu estava me descobrindo. Eu conhecia só gente na gringa, conhecia a AVEN, que é um fórum internacional, então eu só conhecia gente da gringa, mas eu falava: “Gente, esse povo pode estar mentindo para mim. Eu preciso conhecer outra pessoa cara a cara, pegar e saber que é real, saber que está tudo certo.” E aqui em São Paulo a gente sempre teve… Bom, a gente tem há muito tempo uma comunidade assexual que existe, e atuante. Ela sempre fez encontros, existiu, e quando eu soube que estava vindo para São Paulo eu fui atrás do povo, porque eu falei: “Cara, eu preciso encontrar alguém.”
Foi um período em que eles tinham parado de fazer encontros, porque nesses encontros rolavam muitos assédios. Eles divulgavam na internet o que ia acontecer e muitas pessoas iam até esses encontros fantasiando sobre uma pessoa assexual, fantasiando que ia encontrar uma mina virgem. Tinha um pouco de fetiche, rolou muito assédio de pessoas que não eram assexuais sobre pessoas assexuais, então eles fecharam os encontros por um tempo. Quando eu estava vindo para São Paulo, descobri o contato de uma das organizadoras, porque internet é terra de ninguém; você vai chegando: “Ah, quem…?” Me falaram: “Uma moça chamada Lígia, ela é uma das pessoas que organiza esses encontros .” Eu consegui o contato dela e falei: “Lígia, tudo bem?” Se eu não me engano foi pelo Facebook que eu mandei uma mensagem para ela, falando “estou indo para São Paulo. Eu nunca conheci outra pessoa assexual, preciso que vocês voltem a organizar esses encontros.” E pouco tempo depois, rolou.
Eu devia estar aqui em São Paulo acho que há uns seis meses quando teve o primeiro encontro. Eram encontros bem mais discretos, eles não eram divulgados na internet, eram só divulgados dentro da comunidade assexual, e eram encontros onde a gente ia para sentar, comer, e conversar. Só que era engraçado, muitas vezes as pessoas não queriam conversar sobre assexualidade ali, o que eu acho que faz sentido, porque [quando] você chega ali, você sabe que todo mundo é igual a você. Você quer só ser uma pessoa normal, ninguém queria conversar sobre o fato de ser assexual, só que eu também queria conversar sobre o fato de ser assexual. E o que aconteceu? Alguns meses depois - esses encontros aconteciam mensalmente - teve uma pessoa, a Cris, que se descobriu como assexual, e ela falou assim: “Nossa, [que] mundo incrível. Eu preciso encontrar outras pessoas.” Ela sempre foi uma pessoa muito extrovertida de atitude, então ela marcou um encontro. Ela trabalhava no Centro Cultural na época, e ela marcou um encontro aberto. Isso obviamente chegou a todo mundo da comunidade assexual, e as pessoas ficaram muito assim: “Caralho, quem é essa pessoa que ninguém conhece, que está marcando um encontro público, depois desse histórico todo?” A gente mandou uma mensagem para ela, e ela falou assim: “Meu nome é Cris, eu recém me descobri assexual, e tomara que nesse encontro apareça alguém.” Umas pessoas foram para esse encontro, e a gente começou a frequentar esse encontro, até porque ele tinha um objetivo muito mais político, no sentido de discutir e falar sobre assexualidade mesmo, ao contrário das outras reuniões, que tinham um objetivo um pouco mais social, eu diria.
Essas reuniões continuavam acontecendo. Às vezes era um enrosco, porque como elas eram sempre divulgadas abertas, sempre chegava alguém novo, que tinha ouvido falar e queria saber o que era assexualidade. Pra gente, às vezes era meio cansativo, porque a gente não conseguia avançar. A gente queria discutir tanta coisa e a gente tinha que voltar lá para o começo e falar: “Então, assexualidade é isso, não é isso”. Mas foi daí, dessa constância de reuniões que a gente falou: “A gente precisa ter um lugar, ou alguém que fale por nós, porque…” O que acontecia? A gente sempre ia falar individualmente: “Eu sou uma pessoa assexual, estou falando sobre a minha experiência.” Isso nos deixava muito expostos ainda nesse período. Embora até algumas entidades, organizações LGBTQIAPN+ falassem sobre serem diversas, elas não… Ainda hoje a gente tem um pouquinho de dificuldade com isso, né? Ainda hoje, acho que as pessoas não entendem o que é a assexualidade. As pessoas pensam que pessoas assexuais são pessoas que não querem transar, então elas acham que é “um povo que só não gosta de sexo, não quer transar. Isso não é importante, isso não significa nada, tem gente morrendo aí na rua, apanhando.” Eles sempre dizem isso para gente: “Você não apanha na rua por ser assexual.” Então, era um espaço muito ______, a gente ficava muito exposto, né? E a gente entendeu que a gente precisava ter um grupo de pessoas que falassem, para ter algum tipo de respaldo.
O coletivo surgiu assim, com o intuito de poder falar sobre a assexualidade. A gente queria falar de uma forma madura, inclusive, porque havia uma certa infantilização, até, da assexualidade, justamente por essa… A gente vive em uma sociedade que marca o sexo como um momento importante, em que você deixa de ser uma criança para se tornar adulto, então havia até uma certa infantilização sobre o movimento assexual, e para gente foi muito importante existir como movimento, estar ali falando de uma forma política, especialmente pensando em uma forma de falar sobre educação.
Foi assim que o coletivo surgiu. Ele já foi maior do que é hoje, a gente teve algumas baixas, especialmente no período da pandemia. A própria Cris decidiu se afastar, porque era muito cansativo, mas pessoalmente sou muito contente pelo que eu acho que foi conquistado. Se a minha memória não falha, o coletivo foi um dos primeiros coletivos e grupos organizados no Brasil a falar sobre assexualidade. Hoje a gente tem mais, eu acho isso muito legal. Digo organizados pra falar sobre isso, porque a gente tem uma comunidade aqui em São Paulo ainda, ela existe, ela continua ativa, continua fazendo encontros. Hoje eles são bem mais abertos do que já foram no passado, mais divulgados, só que demorou um tempo inclusive para esses grupos passarem a se impor e falar sobre isso.
Acho que a gente tem muito ainda o que falar, acho que as pessoas ainda não entendem o que é assexualidade, mas está tudo bem, acho que hoje o cenário é um pouco diferente.
(01:42:11) P/1 - Eu queria saber também sobre a sua atuação como advogado na ABRAI [Associação Brasileira Intersexo].
R - Quando cheguei aqui em São Paulo eu tinha muito tempo livre, muita disponibilidade, e acabei me aproximando das comissões da OAB, da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero. Na época, a Adriana era coordenadora, inclusive.
Eu já conhecia o movimento intersexo, porque o movimento assexual se materializou muito recentemente na internet. Se a gente considerar o marco de Stonewall, as primeiras paradas, existia o movimento assexual desde lá; ele acabou meio que sendo expulso do movimento LGBTQIAPN+, porque as pessoas assexuais eram vistas como pudicas, e uma das pautas do movimento LGBTQIAPN+, os espaços onde o movimento cresceu eram espaços de liberdade sexual, ou que falavam sobre isso. Eu, pessoalmente, hoje não vejo nada disso como oposto, mas as pessoas viam muito como oposto, até porque, muitas vezes, é comum, especialmente no processo inicial, que as pessoas assexuais não queriam falar sobre sexo, não queriam praticar, não queiram se envolver. Eu mesmo, quando eu me entendi sendo uma pessoa assexual, eu falei: “É isso, então, mas eu não quero tocar, não quero saber de ninguém, não quero beijar.” E para me entender [como] disposto a estar aberto a um relacionamento eu precisei de tempo também, o que eu acho justo.
Eu não estou dizendo que todas as pessoas assexuais precisam passar por esse caminho, mas é compreensível que às vezes a gente precise de um tempo para se entender, entender o que te deixa confortável, especialmente quando tudo isso é tão imposto. O movimento assexual se formou na internet, e ele se formou muito proximo do movimento intersexo, que também se formou na internet, então foram movimentos que se apoiavam. Teve um momento em que o movimento assexual, especialmente no exterior, passou a ter mais espaço que o movimento intersexo, e para gente isso era desconfortavél, porque a gente dizia: “Olha, a gente finalmente está ganhando um tipo de espaço, mas a gente não quer deixar vocês.” Então, onde a gente ia falar sobre assexualidade, a gente tentava trazer o movimento intersexo junto.
Eu estou falando isso, porque foi assim que eu me aproximei. Embora eu não conhecesse tudo sobre o movimento intersexo, eu conhecia um pouco, e era algo que eu sempre… Onde eu ia para tentar falar sobre assexualidade, eu falava: “Olha, mas você já ouviu falar sobre intersexo? Vamos falar sobre isso?”
Foi nesse período em que a Thaís [Emíia] - que é uma grande ativista, está hoje como presidente da ABRAI - ela teve o Jacob, e passou a viver todas as questões no nascimento de Jacob, um bebê intersexo. A OAB de São Paulo acabou ajudando muito, porque ela não conseguia ter acesso aos documentos, não conseguia ter acesso a nada, então eu acompanhei isso, embora não quisesse me envolver, acho que especialmente quem tem que se envolver é quem é intersexo, né? Eu posso no máximo falar: “Esse grupo existe, você conhece tal pessoa.”
Eu lembro inclusive quando eles foram tentar criar a ABRAI pela primeira vez. Eu tinha conversado com Thaís. “A reunião vai ser em tal lugar, tal horário”, aí eu falei para ela: “Legal. Não vou, porque para mim acho que não faz sentido participar de um grupo desses, de uma associação dessas, porque eu não sou uma pessoa intersexo. Acho que tem que falar sobre isso especialmente é uma pessoa intersexo, mas desejo boa sorte.”
Teve a fundação. Eu lembro que uns meses depois encontrei com ela e perguntei: “E aí, como é que está?” Ela falou assim: “Nada foi para frente, a gente não conseguiu.” Eu falei para ela: “Thaís, se você precisar de gente, número de advogado para assinar documento, me avisa, eu ajudo vocês.” Ela falou: “Vamos ver.” Não conseguiram, aí ela me ligou e falou assim: “Você ainda está disponível? “Eu falei: “Estou. Vamos lá, vocês precisam disso.” E foi por isso que eu me aproximei.
Acabei participando da ABRAI, tenho muito orgulho do que a ABRAI conquistou, apesar de achar que nem tudo o que veio são coisas positivas. A gente tem, por exemplo, hoje… Não sei por quanto [tempo], se amanhã ainda vai ter, mas hoje a gente tem um documento, [que foi] o CNJ que disciplinou, e determinou porque a gente tem a lei do DNV [Declaração de Nascido Vivo] e tudo mais, são documentos muito antigos… A lei de DNV é de 2012, só que o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] regulou, permitindo que as pessoas intersexo sejam registradas na DNV. A gente tentou, inclusive, alterar o termo, porque o termo usado é ‘ignorado’; acho que esse termo é um termo bem difícil de engolir, de aceitar, mas foi um processo difícil durante o CNJ, porque tinha outros atores envolvidos. Eu lembro que a gente tentou atuar, porque na semana o processo já estava decidido, o CNJ tem um rito especial de julgamento. A gente ficou sabendo, avisaram para gente: “Tem o processo tal, está sendo julgado e vai sair desse jeito.” Fui olhar o processo e ele já estava decidido porque embora nem todos os conselheiros tivessem votado, ele já tinha votos suficientes para ter uma decisão. Eu falei: “Caralho…Thaís, a gente está fudido. A gente precisa virar voto até o final da semana, esse processo não pode chegar na sexta-feira com esses votos.” E a gente passou a semana inteira enchendo o saco de todos os conselheiros, para alguém… A gente precisava que alguém que já tivesse votado virasse, tirasse seu voto, ou pelo menos mais duas pessoas que não tinham votado votassem de uma forma diferente.
Felizmente, a gente conseguiu. A relatora da época foi muito sensível, ela retirou a decisão dela, então o processo saiu de pauta, mas o que acabou ficando foi isso, de que o termo usado é o termo ‘ignorado’, que é o termo que está no DNV [declaração de nascido vivo] - até porque, por eles nos perguntarem, havia um racha. A gente dizia “tem que ser intersexo”, mas algumas pessoas achavam que ao mudar o termo de ‘ignorado’ para intersexo, isso ia deixar para trás as pessoas não-binárias, aí eu falava: “Gente, esse não é o momento. Agora a gente está falando sobre intersexo. Quem vai usar isso aqui não é uma pessoa não-binária, a gente está falando sobre a DNV.” Mas processos políticos são complicados, e eu falei: “Não faz isso, pelo amor de Deus. Vocês vão perder tudo.”
A gente acabou ficando com ‘ignorado’. Não é algo que a gente gosta, até porque eu acho que é muito doloroso você passar por toda a experiência, toda a vivência de uma pessoa intersexo, todo o sofrimento, apagamento, e você carregar esse termo ‘ignorado’ em cima de você. Acho que é bem difícil, ainda assim é o que a gente tem. Acho que é uma conquista, porque isso garante que as pessoas intersexo que nasçam possam ter acesso aos seus documentos, o que era uma dificuldade. Acho que a gente tem muito que avançar ainda, mas fico contente pelo que foi conquistado na ABRAI.
(01:50:26) P/1 - E no Abrace eu queria saber se tem alguma história marcante que você queira contar? De algum momento.
R - História marcante no Abrace? Nesse sentido, quando a gente compara as entidades, vou dizer que eu acho que o Abrace é até mais tranquilo, porque eu acho que a gente não tem tantas emergências no mundo assexual.
Para mim, talvez, o que eu diria como marcante… Tenho uma amiga, Sofia. Ela continua no coletivo hoje. Ela é cineasta e fez um filme sobre assexualidade. A gente se conheceu por causa do filme, a gente se conheceu por causa desses encontros, e o coletivo ajudou. A gente foi figurante, inclusive, do filme dela. Acho que a gente ajudar esse curta, que foi na época um dos primeiros curtas feitos sobre assexualidade… Outros passaram, mas acho que foi um momento muito marcante.
Comemorar, por exemplo, o primeiro ano de aniversário do coletivo… A gente, na época, encomendou um bolo médio, porque a gente não sabia quem ia aparecer ou não ia. A gente falou: “A gente vai estar em um bar aqui, para comemorar e celebrar um ano de conquistas.” Acho que essa é uma memória muito legal, porque muita gente querida apareceu do nada.
Acho que a gente tem muito ainda a conquistar, mas fico muito contente sobre as repercussões que o coletivo teve quando a gente falou sobre assexualidade no Brasil.
(01:52:20) P/1 - Eu queria saber qual é o nome do documentário.
R - O nome do curta é Infinito Enquanto Dure.
(01:52:28) P/1 - E eu queria saber o que você gosta de fazer nos seus momentos de lazer aqui em São paulo?
R - Eu adoro muito musical, adoro ir em musical repetidas vezes. Eu sou daquelas pessoas que vão assistir ao mesmo filme no cinema, vão assistir à mesma peça de teatro quando gostam. Gosto de ir em teatro também, gosto muito de cinema, mas eu vou dizer, desde o período de isolamento eu não estou sentindo uma liga, sabe? Para ir assistir. Mas teatro e musical são duas coisas que eu gosto muito.
Eu curto muito ler. Acho que acabei nos últimos anos me acostumando a ficar muito dentro de casa, então eu leio bastante, jogo muito videogame, e sempre que possível dou uma saidinha. Uma das coisas que eu mais gostava, antes do período de isolamento, era estar andando assim, indo de um lugar para o outro na rua, ter um tempo livre, sentar em uma cafeteria e tomar um café - e curiosamente eu não gosto de café, eu passei a tomar café pelo meu trabalho, porque é uma ofensa você recusar café quando as pessoas te oferecem. Especialmente na minha área, você tem que beber café, então eu me acostumei muito a parar no meio do caminho e sentar para tomar um café. Hoje, sempre que eu saio para fazer alguma coisa, sempre tento dar uma paradinha em algum lugar para pegar um café, que é algo que ficou. Apesar de não gostar de café, não sentir falta, esse costume ficou.
(01:54:10) P/1 - Eu queria saber, pensando em toda sua trajetória - a gente está indo para umas perguntas mais finais, avaliativas da sua vida -, se você considera São Paulo uma cidade acolhedora de alguma forma com pessoas LGBTQIAPN+?
R - Olha, eu acho que São Paulo é uma cidade muito difícil, é uma cidade que não tem hesitação nenhuma em te moer, te picar e te cuspir para fora. Curiosamente, apesar disso, eu acho que é uma cidade acolhedora a qualquer um, porque eu acho que eu sinto, ou pelo menos sempre senti, na minha experiência, que São Paulo tem possibilidades, né? Possibilidade de você poder mudar sua vida, encontrar caminhos diferentes, encontrar pessoas parecidas com você. É um dos espaços onde as pessoas menos se importam com quem você é, então acho que apesar de ser essa cidade que tem a possibilidade de te moer, te cuspir, é uma cidade que curiosamente oferece um espaço acolhedor, especialmente quando a gente pensa em pessoas LGBTQIAPN+. Não é à toa que a gente tem um número muito grande de pessoas LGBTQIAPN+ que migram para São Paulo, né? A gente tem uma comunidade grande, onde você pode viver a sua vida, apesar de tudo, com uma certa segurança ou com um espaço que te permite ser quem você é - muitas vezes você não consegue isso - e mais, né? Talvez você até possa ser quem você é, mas não tem outras pessoas ao seu redor que são parecidas com você, então eu acho que São Paulo te proporciona encontrar uma comunidade. Acho que isso é muito importante.
(01:56:12) P/1 - E o que é importante para você hoje?
R - O que é importante para mim hoje? Macarrão é importante para mim hoje, chocolate… Tô zoando.
Acho que importante… Eu sempre falei assim, desde antes de mudar para São Paulo, quando eu parei para pensar na minha vida. “Eu posso continuar aqui. Eu tenho uma vida boa, uma vida tranquila, mas eu não estou satisfeito.” Hoje eu sei que isso talvez seja muito etéreo, muito vazio, mas eu sempre falo para as pessoas que eu busco uma sensação de estar satisfeito, de me sentir satisfeito, e São Paulo, mais do que em qualquer outro lugar, me proporciona isso, de me sentir satisfeito e contente com as escolhas que eu tomei.
Acho que as pessoas sempre perguntam: “O que você faria de diferente?” “Gente, claro que a gente talvez seria menos babaca se a gente pudesse voltar no passado, né? É sempre bom ser um pouco menos babaca, ser um pouco menos cuzão, porque ser trouxa a gente vai ser, então não adianta, mas pelo menos ser mais legal, acho que vale a pena.”
Acho que o importante é estar satisfeito, e eu estou muito satisfeito no espaço e lugar em que eu cheguei. Eu espero que isso continue muito, se não continuar vou tentar chegar de novo nesse espaço de satisfação, isso para mim é… Importante para mim é sentar e olhar, e achar que eu estou satisfeito e contente com o que eu estou fazendo.
O mundo não é como eu queria que fosse, mas eu estou satisfeito com o meu caminho nele.
(01:58:04) P/1 - Essa pergunta é um pouco pessoal, você só responde se você quiser. Eu queria saber se você tem algum relacionamento.
R - Eu tenho. Bom, eu tenho vários relacionamentos, na verdade, mas hoje eu estou namorando. Sou muito contente dentro desse relacionamento, acho que a gente conseguiu encontrar um equilíbrio perfeito entre as nossas diferenças, nossas similitudes, coisas que a gente quer buscar. Sou muito contente dentro dessa relação, espero que ela dure por muito tempo ainda.
(01:58:43) P/1 - E quais são seus sonhos?
R - Meus sonhos? Olha, eu sou uma pessoa tão básica… Eu sonho com coisas pequenas. Sonho em estar satisfeito. Meu namorado gosta muito de viajar, eu gosto um pouco menos, mas ele adora viajar, viajar é o mundo dele, então eu sonho que eu consiga ser uma pessoa disciplinada para juntar o dinheiro da viagem, porque isso é uma pessoa que eu não sou, tenho que tentar fazer meu esforço aqui.
Acho que eu não tenho grandes sonhos, porque… Óbvio, eu quero, por exemplo… Eu moro aqui em São Paulo já tem mais de dez anos e ainda não consegui tomar vergonha na cara para comprar um apartamento. Acho que comprar um apartamento é uma ideia legal, mas eu estou contente e satisfeito, apesar de tudo, na minha péssima escolha de morar de aluguel. Acho que eu tento, ou quero muito que eu esteja satisfeito com o caminho que eu escolher, e eu digo isso porque eu tenho certeza que o Walter de dez anos atrás, de dez anos de idade, não pensaria, não teria ideia, não faria uma conjectura da vida que eu tenho hoje. Até porque eu nunca consegui pensar grandiosamente assim: “Nossa, eu quero isso, quero aquilo.” Eu sempre fui uma pessoa que buscou muito mais uma satisfação nesse presente e estar satisfeito com o caminho que está seguindo, e isso eu estou.
(02:00:34) P/1 - Walter, qual é o legado que você deixa para o futuro?
R - O legado que eu deixo para o futuro? Olha, essa é uma pergunta bem complexa, não sei se eu sei te responder. Eu espero deixar para o futuro um pouquinho, ou que seja possível, do mundo que eu imagino, que a gente merece ter.
Talvez eu seja um pouco distante, ou substancial, mas eu sinto que tive sempre muita sorte. Apesar de momentos tristes, acho que eu sempre tive muita sorte na minha vida. Eu tive sorte de encontrar pessoas que majoritariamente entendem a pessoa que eu sou, me acolhem, me acolheram. Tive sorte de encontrar uma família em outros amigos, então eu espero que eu consiga deixar para o mundo - e para isso eu me esforço - um pouco do que eu acho que deveria ser o mundo que a gente merece. Espero que eu consiga deixar esse legado por aí, mas vamos ver, talvez no final do dia eu só diga: “Olha, o legado que ele deixou foi de uma pessoa chata, vou lá dançar em cima da cova.” Paciência, é o que é, né?
(02:02:05) P/1 - A gente já está chegando ao final. Eu queria saber se você tem alguma coisa a acrescentar a sua entrevista que eu não perguntei, ou deixar alguma mensagem. Esse momento é livre.
R - Esse momento é livre? Olha, eu odeio momentos livres, acho que é o mais difícil. Eu queria agradecer por esse espaço, queria felicitar esse espaço. Eu acho que as pessoas… Sempre me questionei, o que é que nos faz humanos? E eu digo isso porque até por ser uma pessoa assexual eu sempre ouvi muito que, curiosamente, o sexo nos fazia humanos, e eu falava: “Gente, mas até bicho, cachorro faz sexo. Meu cachorro faz sexo, então acho que o conceito de vocês está meio estranho.” Eu costumava brincar que a culinária nos fazia humanos, porque eu não consigo me lembrar de outro animal que sente tanto prazer em preparar seu alimento como a gente prepara, mas eu acho que uma das coisas que com certeza nos faz humanos é sentir prazer em estar em comunidade, e contar histórias para outros. Acho que esse espaço permite um pouquinho disso, então foi um prazer estar aqui acrescentando, espero, nesse projeto, nesse espaço. Espero que possa somar nessa imensidão da humanidade.
(02:03:46) P/1 - Eu ia te perguntar, mas eu acho que você acabou respondendo: como foi contar um pouco da sua história hoje?
R - Foi divertido, foi tranquilo, foi ok. Foi indolor, até. Será que eu desviei bastante o foco, por isso que foi indolor? Muitas vezes a gente desvia, né? Quando acha que a _____ está vindo você fala “olha aqui”, mas eu acho que foi bem gostoso, foi prazeroso.
(02:04:11) P/1 - Em nome do Museu da Pessoa a gente agradece. Em meu nome também, em nome do Alisson. Muito obrigada, viu?
R - Eu que agradeço.
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