Programa Conte Sua História
Depoimento de Maria do Rosário Mesquita Melo
Entrevistada por Carol Margiotte e Fernanda Regina Ferreira dos Santos
São Paulo, 14/09/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV696_Maria do Rosário Mesquita Melo
Transcrito por Eliane Miraglia
Revisado e editado por Pa...Continuar leitura
Programa Conte Sua História
Depoimento de Maria do Rosário Mesquita Melo
Entrevistada por Carol Margiotte e Fernanda Regina Ferreira dos Santos
São Paulo, 14/09/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV696_Maria do Rosário Mesquita Melo
Transcrito por Eliane Miraglia
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Dona Rosário, boa tarde!
R – Boa tarde!
P/1 – Muito obrigada por ter vindo aqui hoje.
R – Dever, não é? Fui chamada, tive que atender.
P/1 – Para começar, diga o seu nome completo.
R – Maria do Rosário Mesquita Melo.
P/1 – E, por favor, diga-nos o lugar e a data em que a senhora nasceu.
R – Eu nasci em Ipojuca, no dia 29 de outubro, no dia 2 de outubro de 1929.
P/1 – E a senhora sabe por que os seus pais lhe deram esse nome, Maria do Rosário?
R – Dizem que foi uma amiga da minha irmã mais velha, moça já, que tinha essa amiga na praia, lá em Ipojuca. Elas ficavam tomando banho juntas, fizeram amizade e ela chamava-se Maria do Rosário. E quando a minha mãe ficou grávida, ela pediu para minha mãe pôr o nome da amiga.
P/1 – A senhora chegou a conhecer a Maria do...
R – Não. Não. Não gostei muito, mas... (risos). Foi gosto dela, não é? Fazer o quê?
P/1 – E os seus pais contavam a história do dia em que a senhora nasceu? Como foi?
R – Não, eles não contavam muito essas coisas para nós, não. Era meio... Eu sei que eu nasci lá em Ipojuca... Tia... Posso falar?
P/2 – Claro!
R – O meu avô teve só os dois filhos: o meu pai e o meu tio. E criou uma sobrinha. Mas cada um tinha a sua casa. Meu pai, como eu já falei, descendente de português, minha mãe índia, minha avó, não é? Índia, a mãe do meu pai, não é? Eles formaram a família. Cada um tinha a sua casa. Tinham uma situação boa até, eles tinham assim sítio, criavam gado, plantavam, a gente fazia farinha... Tinha casa de farinha no sítio. E tinham uma vida regular. Depois, meu avô - não sei o motivo - teve depressão. Ele já era meio de idade, estava viúvo, aí ele pediu para não morar mais em Ipojuca, queria ir para Recife. Ele quis que comprasse uma casa em que coubessem todos os filhos, as duas famílias. E o meu pai e o meu tio fizeram o gosto dele, compraram em Cavaleiro uma casa grande e passamos a morar juntos. As duas famílias. Meu pai com doze filhos e meu tio com sete. Dezenove moços juntos. Não tivemos escola porque era longe de tudo. O meu pai - que foi alfabetizado por um chefe de estação de trem, ensinou muito bem, ele parecia que tinha escola - e ele passou tudo para nós, entendeu? Ele ensinava os filhos em casa, porque era longe ir para a escola também. Não tinha muito interesse também, naquele tempo. E dali estudou... Meus irmãos... Um passou a ser chefe da estação de bondes. Chefe do escritório. Com o ensino que o meu pai deu. Missionárias, duas. Enfermeira. Entendeu?
P/1 – E falando nos pais da senhora, quais os nomes deles?
R – Meus pais? Eram Honório José de Mesquita e Joana Maria de Mesquita.
P/1 – Eu queria que a senhora falasse um pouquinho sobre eles. Como eles eram? O que eles faziam?
R – Como eu estou falando. Quando mudaram-se para Cavaleiro, meu pai... O sítio era muito grande. E tinha muitas casas, o nosso sítio. Que era como se fosse o terreno arrendado, entendeu? Eles tinham as casas, mas o terreno era nosso. Eles pagavam assim uma mensalidade pelo terreno e o meu pai fazia essa cobrança, muita casa. E plantava roça, cana de açúcar, muitas fruteiras, tinha mangueiras de tirar de cesto quando chovia de manga no chão. E nisso, a gente vivia de frutas, de... Entendeu? O pouco que ele ganhava, vivíamos.
P/1 – E como era o dia a dia? Nas tarefas de casa?
R – Naquele tempo era assim: as mães eram responsáveis por tudo. O pai só tinha que trazer o mantimento. E a mãe tinha que cuidar de doze filhos. Educar, muitas vezes surrar (risos), e assim a gente foi vivendo. Feliz, graças a Deus, numa família unida. Não tinha briga. Porque eram sete primos com mais doze primos. Hoje em dia, dois não se dão, não é? (risos) Mas se davam, era como se fossem irmãos, entendeu? Não tinha nada de briga. Dormia tudo num quarto só, primas com primas. E foi assim.
P/1 – A senhora consegue falar para mim o nome de todo mundo? Dos irmãos?
R – Ah, pode ser que eu esqueça de algum, não é? O mais velho era Francisco José de Mesquita, que era o nome do tio, mais velho. Manoel José de Mesquita, Maria Benedita de Mesquita, Paula Feliciano de Mesquita, Maria Feliciana de Mesquita, João Tiago de Mesquita, Júlio José de Mesquita, José Manoel de Mesquita, Eugênia de Mesquita, Benedita já falei, não é? Eugênia de Mesquita, Maria do Rosário que sou eu, e a caçula, Jovita Maria de Mesquita.
P/1 – E a senhora tem lembranças de antes de se mudar para Recife? Na casa de todo mundo junto?
R – Não, eu não tinha porque eu era pequena. Eu lembro assim muito pouco, quando mudou, que chegamos na casa estranha lá. Assim, muito vago. Mas eu era muito pequena. Não dá para... A convivência lá eu não lembro.
P/1 – E a senhora consegue descrever a casa para mim? Como era essa casa, com todo mundo junto?
R – Sim. Era um chalé grande, naquele tempo. Hoje tem maior. Mas naquele tempo chamava-se a casa grande, entendeu? Está lá, de pé, até hoje. Só que está muito ____________________ [8:09] E tinha quatro quartos grandes, era tudo grande, os quartos, duas salas bem grandes, sala de jantar enorme, tinha uma mesa comprida, cabia todo mundo. Um terraço do comprimento das duas salas, duas cozinhas. Era que a família do meu pai cozinhava numa e a do meu tio, noutra. Era uma despensa que, quando eles mudaram com as duas famílias, fizeram da despensa uma cozinha, entendeu?
P/2 – A senhora falou que o pai da senhora ensinava vocês, ensinava vocês no lugar da escola. A senhora lembra de como eram esses momentos em que ele ficava com vocês?
R – Lembro. Lembro. Ele dava um caderno para cada um. E tinha os livros. Ele dava lição para a gente ler. E mandava a gente fazer a cópia, fazer conta. Então, cada qual fazia a sua tarefa. Só não tivemos diploma nenhum. Mas aprendemos um pouco, não é? (risos).
P/1 – E, dona Rosário, ainda queria saber umas coisas dos seus pais. A senhora sabe como eles se conheceram?
R – Ah, minha filha, era assim, não é? Sítio. Cada família meio longe. Mas trabalhavam na roça. Minha mãe lavava roupa nos brejos. Se cruzavam ali. Aí foram se apaixonando. Era coisa tão rápida os casamentos de antigamente, não é? E casaram. (risos).
P/1 – E os seus avós? A senhora chegou a conhecer?
R – O avô, sim. O avô, ele morou conosco, já viúvo, mas já era paralítico. Foi quando ele pediu para morar todo mundo junto. Já estava paralítico. Aí, ele ficava num quarto na frente. O padre, todo mês, vinha confessá-lo. Porque ele tinha uma depressão, como se tivesse culpa de alguma coisa. Que ele não tinha, nunca fez mal para ninguém, mas ele convivia muito com senhor de engenho, sabe? Misturado. Eram aquelas fofocas. Teve um senhor de engenho que foi traído pela esposa e o meu avô soube da história, conhecia a pessoa que o traiu. Depois, ele começou a pôr na cabeça que ele falou alguma coisa dessa história para alguém e que o senhor de engenho estava bravo com ele. Aí ele ficou meio nervoso. Foi a razão por que ele pediu para ir para mais longe. Aí, já era paralítico, já muito triste. O padre vinha confessá-lo. Saía e ficava do mesmo jeito. Depois, com o tempo, as moças já eram todas grandes, eu era a penúltima. Aí, meu irmão foi trabalhar em uma rede de bonde. Ele manobrava as_____ [11:20] de bonde. Sabe o que é bonde, não é?
P/1 – Mas conta para a gente: o que é um bonde?
R – O bonde é assim como se fosse um ônibus, mas só que era ligado na eletricidade, entendeu? Como vagão de Metrô. Tinha a mesma coisa. Só que era elétrico também e tinha o fio elétrico e aquele gancho que passava pelo fio, mas o meu irmão ficava num certo lugar para desviar quando tinha outra linha. Aí, ele com aquela... Um ferro, ele mexia e o ônibus ia na linha certa. Manobreiro, não é? (risos) Então. E ali ele ficava em frente a uma igreja Batista. Sem querer - tinha que trabalhar ali, não é? - foi ouvindo o pastor falando, o pastor falando. Aí ele pegou e disse: “Eu vou comprar uma bíblia”. Entrou lá e pediu a bíblia para o pastor, comprou. Minha filha, quando ele chegou com essa bíblia em casa foi tratado como um animal. Há tantos anos, a bíblia ninguém podia ler. Você sabe disso? Não? Há uns setenta anos os padres não deixavam ler a bíblia. Eles diziam que a bíblia era livro mau. Os padres... Só eles tinham. Ele vinha confessar o meu tio, meu avô. Os que podiam, iam na igreja confessar. Mas continuavam na mesma, sem esperança de nada, entendeu? Aí, meu irmão traz a bíblia. Aí foi guerra.
Todos que se confessavam, as meninas – que eram Filhas de Maria – misericórdia! Ai, para elas, era um animal. A ponto de fazerem assim... No terraço, escreverem com carvão... No terraço, quando ele vinha almoçar, estava escrito: um maço de capim, diziam, essa é a comida do bode. Porque os evangélicos são tratados como bode, entendeu? Ele lia ali, ia para dentro, almoçava, saía calado. Uma das irmãs mais velhas, que era bem encostada a ele, chorou bastante porque achou que estavam maltratando ele, mas não podia tirar a bíblia porque ele estava entusiasmado. Minha mãe escondia num pacote de algodão, no sótão, ____________________ [14:06] da cama dela, ele ia lá e achava. Aí, começava a perseguição. Até que, enfim, a irmã mais velha que... Com dó, saiu da mesa onde estava almoçando, foi debaixo de uma moita de bananeira, no quintal, ajoelhou lá no meio das bananeiras e falou: “Senhor, se esse livro que o meu irmão tem, como dizem, é do capeta, tira da mão dele. Faça com que ele nunca mais pegue. Mas se for teu, faça com que todo mundo aceite”. Ela fez essa oração, voltou, meu irmão perseguido do mesmo jeito.
Aí, um dia, meu tio, que é esse bravo, morava junto, falou: “Dá esse livro para eu ler”. Ele falou: “Agora ele vai rasgar. Tem que comprar outro!”. Deu para o tio, aí o tio ficou uma semana lendo, no quarto dele. Aí, quando ele terminou a semana, ele veio e disse: “Compra uma para mim”. Aí acabou. Acabou a guerra. Aí começou todo mundo
a ler a bíblia, que o meu tio era o manda-chuva, autoritário. Aí todo mundo começou a ler, todo mundo mudou de religião. Ficaram evangélicos. Aí tem missionário, cinco pastores, entendeu?
P/1 – Em que momentos que vocês se reuniam para ler juntos?
R – Então... Aí começou a ir para a escola dominical que havia na igreja, muito longe, andava meia hora numa linha de trem para ir para a igreja. Começaram a ir e estudar na igreja, com o pouco de leitura que tinham, iam até melhorando, porque passava a ser assim trabalho na igreja. Um assumia um grupo de mocidade - eu mesma assumi um grupo de mocidade para dirigir - outros eram professores da escola dominical... Começou assim a exercitar a leitura, e aí foi melhorando. (risos)
P/1 – E, dona Rosário, como chama o bairro da casa para onde vocês se mudaram?
R – Vila São José.
P/1 – Em Recife?
R – Em Recife.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse: como era esse bairro?
R – Então... O lugar, a casa, era um terreno muito grande e eram todos... Compraram juntos. Tinha riacho, a gente pescava com cofa [16:50] - não sei se você sabe o que é cofa - e quando tirava estava cheio de peixe. Cofa era um negócio assim parecido com um tamborzinho, desse tamanho, só que tinha sangria embaixo, trançado assim, sabe? O peixe entrava por aqui, para dentro do covo, porque tinha assim... Os espetos eram pelo lado de dentro. Quando vinha, ele passava para comer a isca que tinha dentro - colocava mandioca assada para cheirar - aí os peixes vinham, sentiam o cheiro e passavam naquela sangria, entendeu? Quando eles queriam voltar não conseguiam, se encontravam com os espetos, aí ficava cheio de peixe. E eles tiravam do rio muita mandioca. Muita coisa assim. Meu pai plantava batata. Muita cana. Criava cabra também. Assim... Não tinha dinheiro, mas também não passava fome porque o sítio resolvia. As plantações (risos), entendeu?
P/1 – E como vocês se ajudavam para cuidar do sítio? Quem fazia o quê? O que a senhora fazia para ajudar?
R – Para ajudar como assim?
P/2 – No sítio.
R – Assim, de enxada, nunca pegamos - as mulheres. Só os homens que plantavam, iam com enxada para fazer os canteiros, para plantar as batatas, plantar roça. Nós não. Nós lavávamos roupa no rio, não tinha água encanada. Eu tinha que ir para o riacho, lavava muita roupa, com água muitas vezes na cintura para poder jogar os cobertores na água - eu e a trouxa. Minha mãe às vezes falava: “Você é louca, você vai lavar toda essa roupa!?”. Mas precisava, não é? Doze irmãos. Quando serviu o Exército, naquele tempo era engomada a roupa do Exército. Não era como hoje, que a gente vê cada soldado do Exército com aquelas roupas amassadas. Era de você ver o rosto, tinha que dar brilho nas roupas! Era ferro de brasa. Já conheceu ferro de brasa? Colocava as brasas dentro e passava, engomado. Depois punha no sol. Quando estava quente, voltava, passava de novo o ferro até ver o rosto na roupa (risos). Era assim a minha vida.
P/1 – E a senhora tinha... A senhora começava a lavar a roupa de algum jeito especial? Primeiro lavava uma coisa, depois lavava outra? Como que era lavar a roupa?
R – Aí era muita água, uma tábua grande, a gente colocava as brancas em cima e ia lavando. Estendia pelas gramas, para quarar, pegar o sol. Depois era fácil (risos). Depois esfregava, jogava no meio do rio para tirar sabão. E estendia por cima dos pés de araçá, por cima das gramas mais altas. Quando levava para casa, às vezes... Meu irmão fez uns varais no quintal para estender, e aí fazia.
P/1 – A senhora não tinha medo de entrar no rio para lavar roupa?
R – Não.
P/1 – Nunca perdeu nenhuma roupa no rio?
R – Não. Porque fazia represa. Eles faziam assim uma barragem e represavam a água. Não ficava corrente, entendeu? Mesmo que escapasse, esbarrava no morrinho que eles faziam para separar a água.
P/1 – E com quem a senhora ia lavar a roupa?
R – Ah, ia sempre... Porque era muita gente, nunca ia sozinha. Ia sempre com a minha tia, minhas irmãs mais velhas, cada uma ia. Já tinha algumas casadas, iam lavar a roupa da família. Casava e ficava dentro de casa, às vezes, com o marido e tudo (risos).
P/1 – E vocês cantavam?
R – Como?
P/1 – Vocês cantavam?
R – Se nós cantávamos? Cantávamos! Tinha vez que nós fazíamos assim como se fosse coral em casa. Porque havia pessoas que tinham voz de soprano, outras de contralto, tinha muita moça. Tenor, dos rapazes. E baixo. Aí, na hora de fazer o culto doméstico, à noite, aí tinha um coral em casa.
P/1 – Tem alguma música que a senhora se lembre, que vocês cantavam nessa época?
R – Ai, minha filha, minha voz agora não dá para cantar.
P/2 – Dá sim! Dá sim!
P/1 – Ia ser muito bonito. Canta para a gente! Pode ser um pedacinho só.
R – Tem assim um... Foi a conversão do meu pai. Meu pai não queria saber. Mas um dia, ele estava... Acordou com o grupo cantando esse hino. Ele parou, escutou, aí ele entregou-se para Jesus por causa desse hino. O hino falava assim:
Há na Glória um bom país, onde noite não há.
Água viva e frutos bons, tudo isso tem lá.
Não há lá nenhum pavor
Não há morte, não há dor
Nem um dia fim terá, por que noite não há.
Aí ele ouviu e se converteu.
P/1 – E quando vocês iam para lavar roupa? O que vocês faziam para passar o tempo? Cantavam também?
R – Não. A preocupação era com a roupa, não é? Sol quente, muito quente. Sem cobertura nenhuma. O negócio era terminar a roupa e ir para casa. (risos)
P/1 – E aí, chegava em casa e fazia o quê, dona Rosário? Qual era a próxima atividade?
R – Então... Aí tinha cozinha para arrumar, tinha que carregar água na cabeça, numa lata e uma jarra. Sabe o que é jarra? É um depósito de barro que eles faziam, parecia assim uma caixa, colocava no canto da cozinha e a gente enchia, trazendo água na cabeça. Caminhava umas dez viagens para encher esse... Para fazer comida, lavar louça para tanta gente. Fogão de lenha. Não foi fácil, não. Eu falo hoje para minhas filhas: “Vocês reclamam de bobas que são, porque são ricas. Tanque dentro de casa, fogão elétrico, a gás. Queria que vocês morassem como eu morei, e lenhar na mata, trazer o feixe de lenha na cabeça”.
P/1 – Como é que era pegar lenha?
R – Então... A gente ia na mata, meio longe, atravessava riacho, lá do outro lado, onde tinha um morro, tinha a mata. A gente entrava naquela mata escura e procurava os galhos que caíam, secos, entendeu? Tinha muito galho pelo chão. Aí, a gente ia catando, ia cortando, fazendo os feixes, cada uma pegava um na cabeça e trazia.
P/1 – Algum dia aconteceu alguma coisa, de vocês encontrarem algum bicho? Ou de se perder? Que medo que a senhora tinha nessa época?
R – Eu tinha medo até de cobra. Porque mata, diziam que tinha cobra. E tinha um bichinho, chamado maruí [24:49], que mordia as pernas da gente por ser escuro, não é? Juntavam aqueles ‘insetinhos’ pequenos e mordiam as pernas da gente. Tinha também um mato, chamava ‘tiririca’, que quando passava na perna arranhava. Ficava a perna toda marcadinha. E quando a gente ia com aquele feixe para casa, que caía uma chuva e que salpicava toda a perna de água, começava a morder e você não podia abaixar para coçar (risos). Foi fácil não!
P/1 – E aí, chegava em casa e como é que fazia com as picadas?
R – Então... Aí passava álcool, entendeu?
P/1 – Que comidas que vocês faziam, dona Rosário?
R – Assim como?
P/1 – O que é que tinha no dia a dia para comer, que vocês cozinhavam?
R – Então... Tinha assim muita criação de galinha. Aí tinha muitos ovos, tinha o peixe, como a gente falou. Passavam miúdo também de boi. Você sabe o que é miúdo de boi? É fissura do boi, as tripas, tantas folhas [26:12], coração. Aquilo lavava bem lavado com limão e fazia, entendeu? Tinha Natal que a nossa festa era... Chamava panelada, não é? Fazia uma panelada dessas fissuras de boi, e era a festa. Bolo de mandioca (risos). Mas nós éramos felizes. Mais do que hoje. Não tinha medo de assalto, não tinha medo dessa... Como é que chama? Você sai na rua, não sabe se volta, não é? Às vezes minha filha sai, vai me levar, porque ela mora numa casa e eu em outra, ela vai levar a gente em casa, demora, toma café, sai de casa onze horas de carro, sozinha, eu fico com medo porque você escuta tanta coisa. Naquele tempo, não. Você andava a pé ou ia de trem, não tinha medo de nada (risos).
P/1 – Dona Rosário, queria saber da senhora, quando era uma criança ainda. Dava tempo de brincar?
R – Dava.
P/1 – Conta para mim: que brincadeiras a senhora...
R – Eu brincava muito de boneca, não é? Boneca, casinha. Fazia aquelas casinhas no canto da casa; no terraço era onde a gente mais brincava. Ali, cada um tinha a sua casinha. Fazia, de caixa de fósforo, as poltroninhas. Carretel fazia o vaso para pôr florzinha, entendeu? E ali formava uma casinha de boneca e brincava o dia todo, entendeu? E pular corda. Catar araçá pelo meio do mato. Araçá é uma goiabinha que dava muito no meio do mato. A gente... Parecia goiaba mesmo. A gente ia catar de sacolinha cheia (risos).
P/1 – E as bonecas, vocês que faziam?
R – A minha tia. A minha tia, irmã de criação do meu pai, que fazia as bonecas para a gente.
P/2 – Como eram essas bonecas?
R – Era boneca de pano. Ela formava a perninha, os braços, bem apertadinho formava um bracinho, fazia até dedinho. Fazia carinha, fazia boca, nariz, cabelo e dava para a gente brincar. Às vezes, a gente fazia roupa (risos).
P/1 – Tinha algum nome a boneca que você tinha?
R – Ah, eu não lembro não, dos nomes, não. Acho que nem tinha nome. Às vezes, as galinhas vinham pular pela casinha, desmanchavam toda a casinha, a gente tinha que tocar as galinhas (risos).
P/1 – E, dona Rosário, era muita gente em casa, não é?
R – Era.
P/1 – Em que momentos ficava todo mundo junto?
R – À noite. À noite assim, porque os que trabalhavam na roça, à noite tomavam banho, vinham. Aí começou a ir para a igreja, a gente ia para a igreja. Voltava, já eram mais de nove horas. Mais de meia hora por cima de uma linha de trem. Escuro. Aí chegava em casa, já ia dormir. Quando não ia para a igreja, aí o pai botava para ensinar na mesa. E foi assim.
P/1 – Como é que seu pai organizava essas aulas? Em que momento eram feitas e como eram feitas essas aulas?
R – Então... Mais à noite que ele fazia. Como eu falei já, tinha uma mesa muito grande, cada um na mesa, sentado, com seu caderno, ele ia passando a lição. A gente ia lendo o que ele mandava, escrevia os pedaços que ele mandava a gente escrever, fazia conta. E quando eu fui aprender corte e costura, fiz curso, eu não me saí mal não. Fazia conta para dividir os números, para dividir, porque a gente fazia o molde, não é? Fazia direitinho.
P/1 – E nessas aulas com o seu pai, como é que fazia com a luz?
R – A luz? Era lampião de querosene (risos). Não tinha luz!
P/1 – Quando é que chegou a luz em casa?
R – Ah, minha filha, lá em Cavaleiro... Eu saí... Eu saí com 24 anos ainda não tinha luz. Eu vim assim a ter casa... Meus irmãos casaram, foram para a cidade, aí tinha, não é? Moravam assim em rua que já tinha luz. Mas nós ficamos no sítio. Era lampião. Eu fui ter casa com luz quando cheguei aqui, com vinte e quatro anos, em São Paulo, entendeu?
P/3 – Como fazia – uma curiosidade – como não tinha luz, como fazia com a comida para estocar? Guardava a comida de alguma forma?
R – Então... Como eu falei para você, a gente carregava a água na cabeça. Enchia aquela jarra do canto da parede. Tinha aquelas bacias para lavar louça e bacia para lavar a carne, comida. Jogava a água fora. Não tinha esgoto, não tinha nada. E lenha, o fogão era com lenha. E para luz era lampião, lampião de querosene.
P/1 – E para guardar a carne, como é que fazia?
R – Aí não comprava. Só comprava carne seca. A gente comprava assim carne fresca para usar no dia, entendeu? Mas para guardar tinha que ser charque. Aquela carne de charque.
P/1 – A senhora ajudava na criação das galinhas?
R – Não. Eu ajudava mais na comida, feira quem fazia era eu. Minha mãe ficou doente, paralítica, de repente. Não passava, não vinha carro onde nós morávamos. Era uma linha de trem, com mais de... Quase meia hora a pé. E quando a minha mãe ficou paralítica, eu estava no hospital com outra irmã que tinha operado. E quando eu chego em casa, minha mãe, nervosa, porque achava que a minha irmã estava passando mal e eu estava lá, operada também. Começou a ficar preocupada, conversando com outra prima que morava no sítio e tinha vindo visitá-la. Quando eu cheguei, ela estava falando: “Ela foi para o hospital, operada, e tal”. Varrendo a casa e falando. Quando se viu, ela estava caindo. Aí a minha prima disse: “Ela está caindo”. Segurou. Teve o derrame. Aí, minha filha, e para levar em médico? E para ter médico em casa? Eu saí descabelada. Falei: “Pai, aonde é que eu vou arrumar médico?” “Vai na farmácia. ‘Seu’ Pedro... Ele conhece muito médico”. Eu corri na farmácia, falei para o tal do farmacêutico a história. Ele disse: “Vai em tal lugar chamar o doutor José Roberto Maia”. Eu fui lá. Ele veio. Topou de vir por cima da linha de trem. Sem carro. Não podia passar com carro. Chegou vermelho, que ele era muito branco. Chegou vermelho. Mas cuidou da minha mãe. Cuidou. Passou todos os remédios que precisava. Toda vez que ela piorava, ele vinha ver minha mãe. Certo? E passamos assim.
E depois, essa tia teve lepra. Aí, do dia para a noite, ela amanheceu com as manchas no corpo. Ela pegava em brasas e a gente ria porque ela não sentia queimar. Essas lagartas de pelo, que tem muito no Norte, passavam por cima da mão dela e ela nem ligava, porque ninguém queria que aquilo passasse na gente. Ela não sentia nada. Cheiro, ela não sentia cheiro de nada. E a gente achava aquilo comum. Ria. Lá, um dia, ela amanheceu toda manchada. A mão, os braços, febre. Aí desconfiamos. Fui no médico. O médico veio em casa. Levou a urina para fazer exame. Quando ele deu o resultado: “Isso é lepra”. Aí, já estava… De um dia para o outro já estava caindo pedaço de pele. E eu... Era tudo eu, não é? Deparei com aquilo lá, não sei se era porque eu era mais nervosa, eu queria ajudar todo mundo. Aí não esperava que alguém resolvesse. Eu ia na frente e já fazia. Eu chorava muito. Eu precisei tomar eletrochoque. Sabe o que é eletrochoque? É... Lá no Norte. Agora acho que não tem mais. Pessoas nervosas... No lugar que trata de doença mental, eles punham dois ferros ligados na eletricidade assim, aqui, aí aquilo dava um choque, você caía. Diziam que aquilo renovava, fazia os nervos acalmarem. Eu tomei dez daquilo ali para ficar mais calma. Que calma nada! (risos)
P/2 – Eram médicos que aplicavam?
R – Médico. Era médico. Chamava... O hospital chamava Tamarineira, hospital de pessoas que tinham problema de... Me puseram como se eu fosse louca.
P/1 – Como é que isso aconteceu? Quem mandou a senhora para lá?
R – Então... Eu comecei a chorar muito. Ficar, sabe? Pode falar? E aí, minha irmã mais velha achou melhor me levar nesse hospital que tratava de cabeça. Chegou lá, já me passaram para tomar esse remédio.
P/2 – A senhora lembra como foi o exame que eles fizeram antes?
R – Ai, minha filha, faz tantos anos, não lembro. Nem sei como eram os exames que eles faziam. Conversa, acho. Conversava para ver. E aí eu tomei esses eletros.
P/1 – Mas a senhora ficou internada lá?
R – Não. A minha irmã ia comigo. Eu tomava. Deixava acalmar, porque ficava toda... Sabe? Os nervos davam assim uns tremeliques na gente, se batiam, não é? Quando acabava, ia para casa de ônibus.
P/1 – E como é que a senhora ficava depois?
R – Aí depois ia passando e eu continuava na lida.
P/1 – E quando a senhora sabia que era o dia de ir para lá? O que a senhora sentia?
R – Quando eu fui para o hospital?
P/1 – Nas outras vezes que a senhora teve que fazer isso?
R – Tinha receita. Eram dez sessões e tinha que cumprir as dez. Cumpri certinho, dez sessões de eletrochoque. Mas continuava toda a responsabilidade comigo. E aí, como eu estava falando, a tia desse jeito e o médico, quando disse que era lepra, ele falou: “Tem que levar urgente para um hospital de doença contagiosa”. Era Oswaldo Cruz o hospital que tratava dessas doenças infecciosas. Aí eu fui lá falar com o diretor, que precisava internar. Não tinha outro jeito porque havia o medo de todos nós pegarmos. E lutei lá nesse dia, procurando. De repente, apareceu um médico conhecido, no corredor, que eu nem sabia que trabalhava lá, o doutor Pio. Aí conversei com ele. Ele já foi falar lá com o chefe do hospital, conseguiu uma ambulância para buscar minha tia. Só que essa ambulância tinha que ir por outro sítio porque não passava lá. E pararam de frente ao nosso sítio, mas sendo distante, no outro lado. Tinha o rio entre os dois sítios. A ambulância veio. Ficou esperando. Meus irmãos pegaram ela e puseram numa rede. E pegaram, quatro segurando a rede, passaram por dentro do rio e subiram até chegar na ambulância, para levá-la. E quem foi junto? Eu. Levá-la, interná-la. Segurando, sabendo que era lepra. Aí internei, tudo. E ela assim... Caía...
Uma bolha saía, já começava a cair a carne. Internei de tarde e falei para o médico: “Amanhã cedo eu venho”. Aí, quando eu vou, no outro dia, chego na portaria, pergunto. Ele liga lá dentro e fala: “Morreu”. E eu escutando. “É, não sei o quê”. E eu ali. Falei: “O que aconteceu?”
“Ela morreu”. Eu falei: “Então, onde é que está? Cadê o corpo?” Ele disse: “Já foi enterrada”. Porque ela morreu e já começou a cair toda a carne. Você acredita isso? Aí enterraram de noite. Aí eu chego lá, não encontro minha tia. Medo de ter pego. Porque eu fui pegando. A gente dava banho. A gente pegava nela. Eu fui segurando ela na ambulância. Falei para o médico: “Peguei lepra”. “Não, não pegou. Foi do sangue. Ela nasceu com essa doença. Não pegava em ninguém, mas mesmo assim vai todo mundo fazer exame”. Fizemos exame. Não deu nada.
P/1 – E como foi voltar para casa e dar a notícia?
R – Aí, cheguei em casa, meu pai, que era o irmão dela, de criação, meu avô, meu tio, minha mãe, todos os irmãos que tinham ela como tia, amavam ela, aí eu sozinha chego lá. “Cadê?” “Já foi. Já morreu”. “Mas morreu, não vai fazer o enterro?” “Já foi enterrada”. Não foi fácil, não é? Meu pai chorou muito. Aí passou. É muita coisa, não é?
P/1 – E como foi cuidar da sua mãe? Nessa época, a sua mãe já tinha ficado paralítica?
R – Tinha. Estava paralítica ainda na cama.
P/1 – Que cuidados a senhora tinha que ter com ela?
R – Minha mãe era assim... Ela não andava. A gente tinha que dar banho de cama nela, no leito, trocar, dar comida, ela tinha só uma mão, porque a outra... Paralisou um lado. A gente fazia o asseio dela na cama. Trocava de roupa e punha ela numa cadeira assim, de encosto, balanço, encostada. Colocava as pernas dela num lugar mais assim altinho, e ali já dava o alimento para ela, sentada. O remédio. Ela ficava o dia naquela cadeira. Quando cansava, a gente levava ela para a cama. Aí passou nove anos minha mãe, nove anos eu cuidando da minha mãe. Correndo para médico.
Aí, meus irmãos vieram para cá, para São Paulo, e eu com toda essa tarefa de cuidar dela. Mas aí minha mãe... Eles vieram primeiro e deixaram as esposas lá com as crianças pequenas. Quando eles conseguissem serviço aqui, eles iam buscá-las. Aí chegaram aqui e conseguiram emprego de auxiliar de pintor em prédios. Com o tempo, os meses, foram buscar. Quando foi buscar, minha mãe falou: “Ah mas não vai, não”. “Sem você, eles não vão”. Porque não era, passava oito dias na estrada, de ônibus. Se dormia em pensãozinha de beira de estrada, os ônibus eram velhos, eles não andavam de noite. Tinha que pousar naquelas pensões pobres de beira de estrada. Aí, para fazer o mingau das crianças - eram duas crianças de mamadeira, entendeu? - e fralda. E minhas cunhadas eram essas mulheres bem caipironas, de sítio, que para ir ao médico a gente tinha que levar a criança, porque elas não tinham coragem de ir. Minha mãe disse: “Se elas forem com essas crianças, as crianças vão passar fome. Oito dias no caminho. Elas não vão pedir para fazer mamadeira. Você vai com elas. Aí, a minha irmã mais velha tomou conta dela e eu vim com as cunhadas. Eu entrava nas cozinhas, com as mamadeiras, com leite, pedia para as cozinheiras licença para chegar no fogão e mexer as mamadeiras. Umas respondiam bem, outras resmungavam. Eu queria era fazer as mamadeiras. Eu ia lá, mexia na mesa, nas panelas, fazia mamadeira, enchia, levava para as crianças, trocava.
Quando cheguei aqui, ficava doente, eu ia, elas iam comigo. Só que lá no médico, eu que consultava as crianças. Aí o médico dizia: “De quem é a criança?” Dizia: “É dela”. (risos) Mas como se diz, não confiava, não abria a boca para falar nada. E assim foi a minha vida.
P/1 – Dona Rosário, isso foi a vez que a senhora veio para São Paulo pela primeira vez?
R – Eu vim e já fiquei.
P/2 – Aí já ficou.
P/1 – Com que idade?
R – Eu tinha 24 anos quando cheguei.
P/1 – Quando a senhora era um pouquinho mais nova, a senhora tinha o sonho de ser alguma coisa quando crescesse?
R – A única coisa que eu podia ser era – pela situação, o estudo que eu tinha – era uma costureira. Aí eu tinha... Eu pedi para o meu pai para ele pagar uma aula de corte para mim. Ele consentiu. E eu fui para uma escola de corte, uma senhora muito até famosa, o lugar, e eu fiz uma escola de corte e costura, entendeu? Aprender a tirar medida, fazer o molde no papel, recortar, cortar no tecido, tudo isso eu aprendi. Fazia... Eu fiz vestido para noiva, entendeu? Consegui ir para boutique em Sorocaba, dez anos, boutiquezinha. Criei os filhos assim, trabalhando na boutique.
P/1 – E quando a senhora aceitou vir para São Paulo, a senhora lembra como é que foi o último dia com sua família?
R – A minha mãe ficou triste. Mas eu disse para ela: “Mãe, eu volto. Eu vou levá-las e volto”. Mas não sei se foi destino. Porque era assim: eu era muito apegada com a minha mãe. Eu não podia ver uma senhora falecer que eu chorava muito. Eu achava que quando a minha mãe morresse eu não ia aguentar. E eu acho assim. Deus tirou de junto dela para eu não ver ela morrer. Aí eu vim, cheguei aqui, me segurei aqui, comecei a costurar, mandava algum dinheiro para lá e depois noivei e casei. Aí, pronto! Com um ano que eu estava aqui, minha mãe faleceu. Depois, meu pai também faleceu. Quer dizer, os dois que eu não queria ver, não vi.
P/1 – E como a senhora recebeu a notícia?
R – Ah, minha filha, primeiro era assim. Vinham as cartas. Não tinha telefone. Vinham as cartas. Eu vim a saber depois de oito dias que já tinha enterrado. Aí meu irmão chegou do serviço, a gente... todos nós ali - eu morava com ele ainda - todos ali pondo a mesa. Aí ele falou assim: “Eu tenho uma notícia que não é boa, não”. Aí me deu a carta para eu ler. Entendeu? Eu, na cabeceira da mesa, comecei a ler a carta. Aí, quando chegou no trecho em que ela tinha morrido, joguei a carta longe, joguei a cadeira para o outro lado e saí correndo. Entendeu? Aí precisei ir para o médico, para acalmar. Acalmei. Acostumei. Depois faleceu o pai também. Eu estava aqui. Entendeu?
P/1 – E como foi receber a notícia do seu pai?
R – Também. Eu estava de dieta. Eu já tinha casado. Estava de dieta da primeira filha. Dez dias que ela tinha nascido. Aí chegou a notícia que o meu pai faleceu. Aí também foi outra dor muito grande. Mas passava. Com a ajuda de Deus passava tudo.
P/2 – E quem escrevia essas cartas, dona Rosário?
R – Minhas irmãs, minhas irmãs que ficaram lá. Eram quatro, comigo, aqui. Entendeu? Não, três. Eram dois irmãos e eu. E as cunhadas.
P/1 – E eu quero saber um pouco mais dessa viagem que a senhora fez para cá. A senhora lembra o que a senhora colocou na sua mala?
R – (risos) O que eu tinha, porque lá não é frio. Você sabe. Recife é quente. Lá ninguém nem falava de roupa de frio, nem cobertor, nada. E eu vim assim, com roupa assim. Entendeu? Com a mala e com roupa de calor. Quando eu cheguei aqui, com as duas cunhadas e as crianças - três crianças pequenininhas - aí, quando cheguei aqui, enfrentar o frio, que era época de frio... Ai, minha filha. Só Deus para esquentar a gente. Mas aí tinha uma que foi... Terminou sendo minha cunhada, morava do lado, já tinha bastante roupa, dividiu os casacos, deu os casacos para a gente, deu os cobertores para as crianças, entendeu? E depois a gente foi comprando, e aí foi equilibrando.
P/1 – E ainda na viagem, o que a senhora imaginava que fosse encontrar aqui em São Paulo?
R – Ah, eu não vim enganada. Eu sabia que ia encontrar luta. Porque eles há pouco tempo estavam aqui, pintor de parede. Não tinham lá esses ganhos. Não tinha família estruturada que tivesse nada para a gente. Sabia que a gente ia sofrer. Mas tinha que vir porque...
P/1 – E a senhora lembra do dia em que chegou aqui? Como foi?
R – Lembro.
P/1 – Conte para a gente.
R – Então...Era... Descia num lugar que eu nem sei onde que é mais. Longe, no centro da cidade. Os ônibus de Recife paravam lá. Aí a gente pegava condução para vir para cá, entendeu? Aí, nesse dia, meu irmão que veio conosco pegou um táxi. E nós viemos todos dentro de um carro, garoando, porque estava uma garoa fina, serração, de, assim, uns quatro metros. Não dava para ver quem estava na frente. Eu já estranhei. “Puxa, nunca vi isso”. Aí, descemos aquela ladeira lá, aquela garoa, frio. Chegamos em casa (risos).
P/1 – Para onde vocês foram?
R – Para Vila Moraes. Conhece? Vila Moraes, para o lado de Saúde, não tem a Saúde? É perto. Pegar só um ônibus e vai para lá.
P/1 – Mas já tinha essa casa pronta quando vocês chegaram?
R – Era a casa... Era assim... Tinha a proprietária, que era corretora de imóveis e ela tinha umas casas que mandou fazer no quintal. Assim... De cômodo e cozinha. Umas três casas que ela alugava. Aí, meus irmãos alugaram essas casas, cada um pegou uma casa dessas. Um cômodo. Cômodo e cozinha. E ficamos morando nessa casa. Aí, depois que eu casei, eu fui para Sorocaba. Aí ficava em Sorocaba. Eu tenho casa em Sorocaba. Não fui feliz no casamento. Tive que me separar. Criei os cinco filhos sozinha. Aí, foi quando eu fui para a boutique, trabalhei dez anos para acabar de criar os filhos, entendeu?
P/1 – Mas como a senhora conheceu seu...
R – Então... Era cunhado dessa senhora que nos ajudou. Eram irmãos. Os dois homens. Aí eles também já conhecidos e por eles meus irmãos vieram. Eram do Recife também. Pintores. Aí, sabe como é, não é? Chegamos, aí, sei lá. Não sei se é destino, o que é. Tinha, assim, possibilidade de achar pessoas até melhores do que ele. Foi com ele que eu casei, foi com ele. Tinha um italiano - trabalhava com ele, era o irmão dele que era amigo do italiano - trabalhava com madeira e ficou assim interessado em mim, queria falar com os meus irmãos. Aí, o tal irmão do que casou comigo falou para o irmão: “O Rocco está atrás da Rosário. Se você não falar logo, ele que vai falar”. Olha que azar! (risos) Aí ele se atravessou e falou. Não sei dizer se estava louco para casar. Não, não estava não. Mas, sei lá. Aí, aceitei e casei.
P/1 – Mas como é que foi? Ele chegou para conversar o quê com a senhora? Como foi a primeira vez que vocês se falaram?
R – Então... Ele... Amigo do meu irmão. Porque o meu irmão veio por causa dele, lá no Recife. Aí, ele ficou assim mais perto do meu irmão. A gente ia para a igreja, ele interessou-se de ir junto, até aí era como um amigo. Aí, quando foi um tempo, ele falou para o meu irmão que queria casar comigo. Falei: “Bom, não tenho nada contra”. Até parecia uma boa pessoa mesmo. Foi indo, casamos. Mas, no fim do relacionamento, ele era muito agressivo, muito nervoso, com cinco filhos para criar, era mais assim situação desagradável do que agradável. No fim, terminamos, separamos e eu cuidei, fui trabalhar para cuidar dos filhos.
P/1 – Eu posso perguntar mais coisas sobre o casamento?
R – Pode.
P/1 – Não tem problema? Qual é o nome dele?
R – Ivan Piedade de Melo.
P/2 – Ivan?
R – É.
P/1 – Foi ele quem pediu a senhora em casamento?
R – Foi.
P/1 – Como é que foi esse dia?
R – Ele chegou, conversando comigo, disse que estava assim muito interessado em casar comigo. Se eu aceitava. Eu não dei resposta na hora. Falei: “Não, vou pensar”. Aí, escrevi para minha mãe contando. Pedi para ver o que ela falava. Ela respondeu que sim, que ela não era contra. Eu resolvesse com o meu irmão que conhecia ele. E se eu visse que dava certo, que eu casasse. Meu irmão falava bem dele. Era assim... Não sei. Depois que casou, virou a cabeça para ser louco.
P/1 – E como foi organizar as coisas para o casamento? Como foi o vestido? Onde vocês se casaram?
R – Eu casei na Igreja Metodista de Sorocaba. Os meus padrinhos foram os donos de uma padaria de Sorocaba, até muito famosa a padaria. Se um dia você for por lá, pergunte: padaria Real. Eles tinham armazém e minha irmã trabalhava na casa dela, entendeu? Doméstica. Aí, quando eu cheguei, o meu tio morava no porão da casa dos patrões e eu fui para o porão também. Aí ficamos amigas, eu e a dona Nê [56:26], da padaria. E ficamos amigas. Ela era da Igreja Metodista. Aí ela começou a querer que eu cantasse, do cantor, para ela aprender. E ficava no quintal, cantando. Patroa da prima, no fim, quando eu resolvi casar, ela se prontificou para ser a madrinha e ajudou a fazer o casamento na igreja que era Metodista.
P/1 – E o vestido?
R – O vestido eu fiz. Eu comprei a fazenda e fiz o vestido.
P/1 – Como é que ele era?
R – Ele era godê, até os pés. Com uma parte aqui assim e aqui tudo bordado de sinhaninha. Sabe? Aquele sutache de pé e a sinhaninha no meio. Aqui também tinha bordado. Ficou bonito o vestido.
P/2 – Como a senhora se sentia no dia do seu casamento? A senhora lembra?
R – Eu senti... Não sei se alegre, não sei se porque a mãe estava lá, ajudava, não é? Mas eu achava que ia fazer um bom casamento, entendeu?
P/1 – E como que foi conhecer a intimidade do casal?
R – Assim? Como?
P/1 – Como que foi conhecer? Como que foi a vida a dois? O relacionamento?
R – Então... Ele era respeitador, ele não era atrevido, não me exigia nada se eu não quisesse, entendeu? Tive a primeira filha, se preocupou muito. Porque eu não passei bem na gravidez. Não me alimentava direito. Fiquei fraca. Quando eu fui para ganhar a criança ficou todo mundo pensando que eu não ia resistir. Aí ele ficou preocupado, nem almoçou nesse dia. Aí ele tinha um amigo aqui, tem ainda, é vivo, doutor Alexandre, médico _____________ [58:33], ele ligava no hospital, o hospital não dava notícia, ele ligou para esse médico, esse médico foi lá e telefonou para ele: “Está tudo bem, ela está sob cuidados”. Gostava assim, mas depois foi, não sei, foi mudando, ficando mais estúpido, não tinha paciência com as crianças.
P/2 – Quantos anos vocês passaram juntos?
R – Dezessete anos.
P/2 – Foi a senhora que decidiu?
R – Quando ele faleceu... Quando a gente se separou, as crianças estavam com dezessete, mas assim... Coisas que talvez... Não sei! Ele andava encrencado, tinha mulher fora, entendeu? E um dia... Tinha casa própria, aí ele chegou e falou assim... Eu fui trabalhar na boutique, trabalhava até tarde no sábado, porque entregava roupas que eram encomendadas mais no sábado. Quando cheguei em casa, achei o quarto meu com o vão de uma porta tirado. E a cozinha, que tinha a chave e tudo, fechada. Aí eu cheguei e falei para a menina assim: “O que é que foi isso?” “O pai que abriu. Ele falou que a senhora vai ficar nesse quarto”. E tinha uma cozinha grande, do lado, de tábua, que era tudo ali, banheiro e tudo. “A senhora vai ficar com esse quarto e ele vai ficar com a cozinha”. Aí quando eu vi aquilo ali, eu disse: “Agora chegou a última. Eu não vou aguentar isso”. Era de noite e eu dormi. Fechei com um pano. Fiz uma cortina e dormi. No outro dia, já tinha uma tia lá em Sorocaba, com os primos, todo mundo lá. Que foram um pouco antes de mim. Aí eu fui para a casa da tia para procurar um lugar para morar, com os filhos. Aí, quando eu estava lá para procurar, chegou um primo, morava aqui, na Mooca, com uma perua, sozinho, ele com a esposa. Deixou os filhos em casa e foi lá não sei fazer o quê. Aí, quando ele chegou e me achou ali naquela situação, ele falou: “Você não vai ficar aqui. Vamos para a minha casa”. Pegou meus cinco filhos, peguei toda a roupa e fui para a casa dele. Deixei a boutique para a qual eu costurava. Fiquei aí. Depois, a senhora da boutique não queria ficar sem mim, ligava para eu voltar, que ela até arranjava casa para mim. Eu já era da igreja, o pastor disse: “Não. Tem uma casa nos fundos da Igreja da Vila Jardini [1:01:48], se você quiser ficar lá, você fica nos fundos da igreja. Eu fui lá. Poxa vida! Açougue na frente, ônibus na porta, o sítio que eu morava não tinha nem luz. (risos) Aí eu disse: “Vou ficar aqui”. As crianças todas menores. Aí fiquei lá. Continuei trabalhando na boutique.
P/2 – Ele ia visitar as crianças?
R – Ia. Eu não fazia questão. Deixava ir. Até entrava lá. Às vezes pedia para a Isaura, que já estava mais velha, era mais velha: “Acho que eu vou ficar aqui. Vou dormir aqui”. Aí a Isaura: “Meu pai disse que está tarde para ele ir para a casa dele”. “Olha o sofá”. Tinha um sofá na cozinha. “Põe ele para dormir no sofá”. Eu, no quarto, com as minhas filhas. Ele dormia no sofá. Mas ele queria voltar. Queria voltar. Ficava naquela agonia. Um dia, eu fui falar com ele. Ele disse: “Vamos voltar?” “Está bom assim. Está tão bom assim. Faça sua vida!” Se ele tivesse dito: “Não, eu...”. Porque ele já tinha sido membro até da igreja, depois que casou comigo: “Eu vou voltar para a igreja”. Tinha sido excluído. “Eu vou voltar, vou mudar de vida, não vou mais querer mulher fora...”. Até talvez eu caísse na besteira, ele queria voltar _________ [1:03:17], do jeito que ele queria. Não. Imagina? Sofrer duas vezes?
P/1 – E além dessa questão de ter outras mulheres fora, ele fazia alguma coisa em casa também?
R – Ah, ele era agressivo. Era agressivo. Se brigasse, ele batia. Entendeu? Tinha que andar feito cordeirinho. Batia nas crianças. Não dava, não é? No fim, morreu. Depois, teve um primo que se achava rico, morava aqui na Mooca, filho dessa tia. Quando eu estava separada, ele foi à festa da minha tia, de aniversário, eu estava lá, recém-separada. Aí ele chegou assim... Sabe essas pessoas ignorantes? Olhou para mim, falou assim: “Verdade que você separou?” Falei: “Foi”. “Fez bem. Só que não me espere ajuda, que eu não vou te ajudar”. Sabe? Eu olhei, eu sentada, ele de pé. Olhei bem na cara dele. Eu tinha assim... Deus me controlava, que eu não tinha raiva na hora de responder. Eu olhei no rosto dele, falei para ele assim: “Sabe quem vai me ajudar? É Deus!” Não foi fácil, não é? Criança menor de idade. Acabei de criar todos. Tinha a minha casa, graças a Deus. Trabalhava, não é? E acabei de criar. Aí, uma do meio veio para... Terminou... Nesse tempo era ginásio que falava, colegial. Terminou o colegial. Depois da primeira série de ginásio tinha o colegial, que aí já podia passar para a faculdade. Ela terminou. Eu dizia: “Ilza, não dá para comprar livro este ano”. “Não quero nem saber. Eu estudo sem livro. De qualquer jeito. Peço para as colegas, mas não deixo de estudar”. Pegou firme! Quando ela tirou esse curso e já podia passar para a faculdade, ela veio... Eu morava em Sorocaba... Ela veio morar com a tia e entrou de cara para o Itaú. Caixa. Depois passou a chefe das caixas. Chefe de caixa de banco, com vinte anos! Aí eu fiquei preocupada. Gostei, mas fiquei preocupada. Disse: “E se ela – dá um desfalque lá – e ela tem que pagar, não é?” Ficou. Ela ficou dez anos bancária. Depois, foi visitar minha tia, minha irmã, lá em Manaus, que era missionária lá, volta e nada de trabalhar. Eu falei: “Você não vai voltar a trabalhar?” Ela disse: “Não, já pedi a conta”. “Pediu a conta?”. “Pedi”. E aí eu fiquei sem saber o que ela queria. Aí ela prestou concurso para a Justiça, não é? E passou! Para o Fórum (risos). Passou para o Fórum, foi trabalhar no Fórum, logo foi chefe, chegou a ser diretora da seção. Mas passou no exame como diretora. Mas depois inventaram de tirar o curso [cargo? 1:07:10] de diretora de Fórum. Tem só chefe. Aí ela voltou a ser chefe. Até hoje. Vai se aposentar no fim do ano. Aí começou a ganhar melhor, não é? Comprou dois apartamentos. Um para a gente, outro para ela, por causa do filho. Tem o carro dela. Paga convênio para mim. É isso que Deus tem feito (risos).
P/1 – Dona Rosário, eu tenho umas perguntas ainda...
R – Fale!
P/1 – Só para entender como que aconteceu. Quando a senhora se casou, aonde vocês foram morar?
R – Eu vim morar aqui, na Vila Moraes mesmo.
P/1 – Mas como a senhora foi parar em Sorocaba?
R – Sim, porque depois meus tios vieram do sítio para Sorocaba e a gente começou a visitá-los lá e gostamos e achamos melhor ir para Sorocaba. Aqui a gente não tinha casa. Aí chegou lá, compramos um terreno e fizemos uma casa e fomos morar lá.
P/1 – E quando a senhora saiu dessa casa e foi para aquela outra casa que o pastor tinha falado, a senhora lembra da primeira noite que vocês passaram lá?
R – Lembro.
P/1 – Como foi essa noite?
R – Foi tranquila, porque era um lugar calmo, não é? Era assim habitado. Tinha comércio de um lado, armazém, tinha casa de construção. Era um lugar muito habitado. Era ônibus na porta. Passava um pouquinho tinha o ponto. E a igreja que eu frequentava. Fiquei cuidando da igreja e frequentava. Não ia para outro lugar.
P/1 – Mas a senhora não tinha algum medo de ficar sozinha com os filhos?
R – Não, não tinha. Logo os vizinhos, mesmo sem ser crentes, começaram a ficar amigos. O que tinha o açougue, de frente, ficou muito amigo dos meus filhos. Já pegou o mais velho para trabalhar com ele, entendeu? Eu peguei amizade boa lá e...
P/1 – Porque era uma época em que era difícil ser uma mulher separada. E como que era a reação das pessoas quando a senhora falava que tinha se separado do marido?
R – Quem sabia da história achava que eu fiz bem. Foi bom, até o pastor me apoiou. Porque era uma vida também... Não é? Dava para ver. Assim... A gente é que faz. A gente que tem moral. A gente que sabe entrar e sair. Não fica se sujando, pegando em porcaria, há assim um respeito muito grande pela gente. E eu era respeitada pelos vizinhos, até hoje, graças a Deus (risos).
P/1 – E teve algum momento em que aconteceu alguma coisa ali com os seus filhos que você percebeu que tinha feito muito bem em ter se separado do Ivan? Teve algum momento em que a senhora teve aquela certeza mesmo de “que bom que eu fiz isso”?
R – Sempre eu achava. Porque a mais velha já não estava mais querendo ficar com o pai. Porque ele era agressivo, ele era bruto para eles, entendeu? E eu não achei assim que eu fiz mal para os filhos. Foi o contrário! Eu fiz o bem. Essa mais nova, que trabalha, ela não gosta que fale do pai. Eu também evito. Não falo do passado do pai, porque ela tem assim... Ela sabe, mas ela não quer que fale. Eu falo alguma coisa, ela já fica de cara feia, eu já paro. Tem amor pelo pai? Tenha. Mas a mais velha não queria saber, entendeu?
P/1 – E eu queria saber da primeira vez, da primeira gravidez. Como a senhora soube que ia ser mãe, como é que veio essa notícia?
R – Então... Aí já foi assim... Porque, quando eu comecei a ficar... A sentir enjoo... Porque eu enjoava muito, eu não comia, eu vomitava durante a gravidez toda. Eu comecei a ter enjoo. Eu, casada de pouco tempo, voltei em Sorocaba, assim com vinte dias de casada, aí já voltei enjoada. Já voltei assim, com o estômago ruim. Não queria me alimentar e já desconfiei, não é? Aí, quando eu fui ao médico, estava grávida. Nos primeiros dias de casada. Se tivesse aprontado antes, tinha ficado grávida antes de casar (risos).
P/1 – E como é que foi a primeira gravidez? Como a senhora foi sentindo o seu corpo?
R – Eu era mais magra do que sou. Eu era bem mais magra. Aí já comecei a ficar diferente. E o enjoo também, demais. Não engordei muito porque eu não comia direito. O que eu comia, eu vomitava. Mas fiquei mais gorda. Tinha certeza de que estava grávida e tive que fazer enxoval e cuidar, não é?
P/1 – E quais foram as primeiras descobertas e até dificuldades da maternidade? Depois que já teve filho?
R – Então... Foi bem, não tive problema nenhum. Ela tinha saúde. Ele, nesse tempo, estava bom. Era casado de novo, trabalhava direitinho, era responsável. Depois foi virando a cabeça.
P/1 – Fale o nome de todos os seus filhos, por ordem de nascimento.
R – Então... A mais velha é Isaura Mesquita Melo, a Isaura. Depois tem o Ivanildo, que faleceu; com quarenta e dois anos ele faleceu. Casado, deixou três filhos. Tenho os netos dele, os filhos dele, em Sorocaba, já são casados. O Ivanildo, não é? Depois tem o Paulo, encostado. Isaura, Ivanildo, Isaura. A Ilza, que trabalha no Fórum. E a Isabel. Três. Cinco.
P/1 – E a senhora falou do período de dieta, depois de ter filho. O que é isso?
R – Dieta. Quando tem filho você não pode comer todas as coisas - carne de porco você não come. Tem muitas coisas que as mães, naquele tempo, separavam. Você não comia. E nem pegar chuva. Expor ao frio, à friagem. É dieta (risos). Tinha que passar mais de um mês para poder ficar normal. Enfrentar o batente (risos).
P/1 – A senhora se sente confortável para contar para a gente o que aconteceu com o Ivanildo?
R – Sinto. Ele teve diabetes, ele teve diabetes. Só que o pai morreu em coma, com diabetes. Ele era gordo. Eu falava para ele: “Nildo, vá ao médico fazer um exame para ver se você tem ou não a diabetes”. “Ah, eu não quero saber, mãe. Se eu souber, eu morro mais depressa”. Não queria saber. Aí começou a não ter dieta nenhuma. Porque ele sabia também. Aí, levou um tombo lá, trabalhando, quebrou esse osso aqui da perna, ficou andando com muleta porque a perna ficou... Começou com depressão, porque ele não ficou... Trabalhava por conta, ficou sem trabalhar, ficou com depressão. E eu acho também que a mulher não ajudou. Porque nesse tempo eu já morava aqui. E ele morava com ela lá, pegado da casa minha, que eu dividi a casa. Mas, assim... Se fosse para levar ao médico, se eu levasse, eu ia dizer para o médico: “Precisa saber se ele tem diabete para poder aplicar o soro”. Porque é assim que eu faço com o outro. Quando eu levei o outro ao médico, eu já falei: “Veja se ele tem diabetes, porque o pai faleceu com diabetes”. E ela levou ele lá e não falou nada. Deram o soro glicosado, ele já estava doente por causa da diabetes. Aí, quando eu soube que ele estava entrando em coma eu, daqui de São Paulo, fui embora para lá. Cheguei lá, ele já estava em coma mesmo. Para não voltar. Pararam os rins. E faleceu disso: pressão alta. Diabetes, entendeu? Novo, com quarenta e dois anos, forte, gordo, com toda a saúde. Mas ninguém sabia.
P/1 – E como é uma mãe ver... Perder um filho?
R – Ah, minha filha, não foi fácil não. Não foi fácil. Ver ele naquele caixão, esperando enterrar, não foi fácil não. Eu passei a noite todinha enxergando o rosto dele. Mas eu não fiz escândalo, não. Chegava, eu estava calada. Entregava tudo para Deus e ficava calada. Já tinha ido, não é? Porque tem pessoas que, quando morre, ficam maldizendo, não é? Ela mesma. Chegou a mãe dela, a nora, quando a mãe dela chegou na porta: “Mãe, por que Deus fez isso? Levou o meu marido?” Aí eu a repreendi. Falei: “Por que blasfemar contra Deus?” “Se levou, foi o que Ele quis. Não tem nada que reclamar de Deus”. Ela ficou quieta. “Se você não cuidou direito, agora fica pondo a culpa em Deus?” Ela ficou quieta. Somos amigas, graças a Deus. Ela me diz que eu fui uma boa sogra. Graças a Deus, nunca provoquei ira.
P/1 – E a senhora chegou a casar de novo?
R – Deus do Céu! (risos) Deus me livre! (risos)
P/1 – Nenhum amor de novo?
R – Nada. Nem ninguém se atrevia a falar nada comigo. Não. Porque vivi para os meus filhos, graças a Deus. E também... Então, esse moço chegou me desaforando, que não ia me ajudar. Aí eu olhei para ele e falei assim: “Quem vai me ajudar é Deus!”d Passou. Porque ele se achava rico. Porque, nesse tempo, há quase sessenta anos, ele tinha carro, ele tinha casa boa aqui na Mooca. Ele era construtor de prédios. Por isso ele achava que era rico, só que ele não ia me ajudar. Aí eu, sem raiva nenhuma, olhei para ele e falei: “Quem vai me ajudar é Deus”. E eu sabia que Ele ia me ajudar. Quem que podia me ajudar, se não fosse Deus?
Aí passei tempos sem assim... Depois de muito tempo, a esposa dele morreu, de repente, com um câncer. Aí ele também já estava com problema na próstata, foi ver era um câncer. Ele pagava na base de sessenta salários mínimos, porque ele trabalhava por conta. Pagava por conta para quando ele tivesse aposentadoria tivesse uma aposentadoria boa. Sessenta salários mínimos. Quando ele se aposentou, deram dois salários para ele. Onde ficaram esses cinquenta e poucos que ele pagava? Aí ficou. A esposa faleceu, a filha formou-se, trabalhava no banco. Um dos filhos, que se formou engenheiro, morreu de tanto beber. Casou, separou, começou a beber, quando foi... Do dia para a noite, dormiu bêbado, não acordou. Morto. Foram acordar, ele estava morto. Gastou para formar esse filho engenheiro, engenheiro civil. Aí ficou com a filha, a esposa faleceu na Mooca. Ficou tempo. Eu sabia que ele estava doente. Eu falei: “Ilza, vamos vê-lo?” Sabe? Aí, fiz um bolo, porque ele é diabético, fiz um bolo com açúcar para diabético, fui com a minha filha. Cheguei lá, entramos, ____________________________________ [1:21:39] Daí, a menina fez um café, a gente tomou, eu falei alguma coisa na mesa com ele, para a filha também, confortando a filha, falei um trecho da Bíblia, que Deus falou comigo há muito tempo. Aí, eu mandei ela ler esse trecho - Isaías 54 - que diz: “Não temas, porque Eu estou contigo”. Na hora de mais apuro em que eu estava, eu abri a bíblia, abri, deparei com Isaías 54. Aí, quando eu li: “Não temas, porque eu sou teu marido. Estarei contigo”. E diz um bocado de conforto assim. Eu mandei a menina ler esse versículo, oramos, veio embora... Para ir embora. Eu fui com o irmão dele, que morava ________________ [1:22:36]. A filha, a Ilza... São coisas assim que a gente... Aí, quando a gente foi saindo, ele disse para o irmão: “Comprou, José Bento?”... O carro, não é? Aí ele falou: “Não, é da Ilza”. Entendeu? É da miserável, separada, da filha, não é? Mas eu nunca tive raiva. Tanto que eu fui lá dar assistência para ele.
Eu não tenho raiva, pode me ofender. Nem do meu marido eu não tinha. Ele ia, ele comia lá em casa, dormia lá em casa, só não queria mais nada com ele. Eu não vou me sujar. Pode vir ver os filhos.
P/1 – Dona Rosário, a senhora chegou a voltar para a sua casa lá em Recife?
R – Passear, sim.
P/1 – Quando foi que a senhora voltou pela primeira vez?
R – Ah, minha filha, eu fui muitas vezes lá. Mesmo quando eu estava com o esposo, eu ia. Depois de separada, fui. Agora faz três anos que eu fui com a minha filha. Tenho só um irmão lá. Qualquer dia eu vou lá de novo para vê-lo. (risos).
P/1 – E as sensações que vêm? Que histórias que vêm para a senhora quando a senhora vai lá visitar?
R – Então... De perda, não é? Porque eu chego lá, eu tinha, como eu falei, vinte e quatro pessoas. E chega lá só tem uma agora. Não é fácil, não é? Tem os sobrinhos, não é? Mas de irmão mesmo, de convivência minha com eles, só tem um. Aí, não é muita alegria. É um vazio que eu sinto. Mas esse ano que vem eu vou vê-lo. Vou dar um abraço nele. (risos)
P/1 – Mas teve alguma viagem que a senhora fez com todos os filhos para lá?
R – Não. Assim... Quando eu tinha só dois, eu fui para ver se ficava lá, não é? Mas depois, voltamos. Ele resolveu ir. O irmão foi. Ele queria ir atrás. Quando chegou lá, não deu certo, voltamos.
P/1 – Mas quando a senhora volta para Recife, a quais lugares a senhora gosta de ir?
R – Então... Minha família era de Pacheco, de Tejipió, ali perto de Recife. Entendeu? Onde moravam todos os irmãos era ali.
P/1 – Eu quero que a senhora conte a história desse livro para mim. Por que é que a senhora escreveu?
R – Você tem paciência de ouvir? Você não quer ficar com ele? Eu empresto e você lê.
P/1 – Sim. Mas eu quero que a senhora me conte como foi escrever. Por que é que a senhora escreveu este livro? Mostre-o para o Paulo, na câmera. Faça assim. O que é esse livro, dona Rosário?
R – Este livro aqui é a história. Você está vendo, tudo isso aqui são as vinte e quatro pessoas, entendeu? Primos e irmãos. Está tudo aqui. Então. Aí, quando... Tinha a história da minha mãe, do meu avô, do meu pai e ninguém da família... Está aqui, você lê e você vê uma que fez, ela até mandou imprimir o livro, porque não tinha dinheiro nessa época. Aí eu levei, ela soube. Ela falou: “Eu soube que você está fazendo um livro”. Eu falei: “Estou”. “Rosário, quando você…?” “Não sei, vou guardar para quando eu tiver dinheiro”. “Manda para mim”. Ela falou. “Manda para mim”. Mandei o rascunho para ela. Ela pegou e mandou publicar o livro. Publicou quinhentos livros desse aqui, entendeu? E ela está dizendo aqui - depois você lê - você vê, ela agradecendo, porque eu tive essa iniciativa de pôr a história num livro, que nenhum dos outros tiveram. Nem ela, que era advogada, podia, tudo, não teve esse pensamento de fazer isso. E outros que tinham mais assim... Mais leitura do que eu, sobrinhos formados, ninguém quis saber. Mas eu, pela Misericórdia, eu fiz. Você sabe que eu fiz isso aqui em uma semana? Esse rascunho. Parece que alguém ditava para mim e eu fazia, fazia, fazia. Aí, quando ela pediu, mandei. Aí ela mandou fazer o livro.
P/2 – A senhora escreveu tudo a mão?
R – Ah, é. Fiz um caderno, não é? E o caderno eu mandei para ela, lá no Recife, ela leu e alguma coisa estava assim... O Português errado, ela consertou (risos) e mandou publicar. Os sobrinhos, que são pastores, esse aqui é da Polícia, Tenente-Coronel da Polícia, esse aqui, filho do meu irmão.
P/1 – E como é que a senhora teve essa ideia de escrever esse livro?
R – Porque eu pensava... Assim como eu estou conversando com você, toda a história dos meus pais, da minha mãe, da vida que a gente viveu lá... Mas ia morrer tudo, ninguém ia saber da história. Aí eu peguei, mais para contar a história de todas essas pessoas que se converteram. São evangélicos. De uma família que era assim tudo de coração duro, não é? Confiando mais... Desculpe que eu não sei se você vai se ofender, mas confiava muito em padre. Padre era o Deus deles naquele tempo, não é? Confessava, achava que o padre tinha o poder de perdoar. O padre, coitado, nem podia perdoar Deus. Como é que ia perdoar dos outros, não é? Aí eles confessavam com o padre, saíam meio... O padre ia embora. O meu avô... O padre ia todo mês lá em casa. Confessava. O meu avô não andava. E as meninas iam na missa. Eram Filhas de Maria. E quando a bíblia chegou, que eles mudaram, se converteram, ficaram alegres.E cantavam, a gente ouvia eles cantando em casa, indo para a igreja, eu achava que isso devia não ficar assim. Aí fiz o livro. Eu fiz o rascunho no caderno mas eu não podia fazer porque era caro, aí eu esperava poder fazer. Eu disse: “Um dia eu faço, um dia... Deixa a Ilza trabalhar, um dia a gente faz”. Aí, ela soube. Mandou buscar e fez. E está aqui.
P/1 – E quando a senhora recebeu o livro assim, o livro impresso, como que foi receber?
R – Eu fui para Recife, fazer uma reunião, um culto de família, toda a família. Para eu... Como é que se diz...? Apresentar o livro.
P/2 – O lançamento, não é?
R – Isso, o lançamento. Aí eu fiz o lançamento desse livro na igreja, na Primeira Igreja Batista de Recife. Com toda a família junto, os amigos, entendeu? Foi lançado este livro aqui. Foi um dia de festa, depois teve coquetel, teve lanche (risos).
P/1 – E a senhora pensa em escrever mais algum livro?
R – Eu já tinha falado para a minha filha que eu ia continuar. Porque tem muita coisa que eu não pus. Especialmente assim da minha vida com o meu marido, não falei muito não porque eu não quis humilhar a família. Sabe? Eu disse: “Eu vou falar o que passei com o marido, essas coisas, vão os cunhados ler, não é? E não vão gostar”. Aí, muita coisa eu não pus. Esse aqui é como se fosse irmão, não é? Meu pai era tio e a minha mãe era tia. Foram casados tio com tio. Casamento com irmão. Criado com a gente. Casou com essa menina aqui, que é a mãe dessa Edilene, que é advogada.
P/1 – E o que fez a senhora agora se decidir a contar em livro a história do seu ex-marido?
R – Então... Porque aí ele já está morto, a maioria dos parentes já morreu (risos), não vai ofender, não é? (risos). Não sei se eu vou fazer. Não sei se ainda eu tenho tempo de fazer. Se eu tiver, ainda faço. Não só isso. Não só contando, mas ampliando. Porque aqui eu fiz pequeno, tinha mais coisa para falar.
P/1 – Que título teria esse novo livro?
R – Eu acho que faria a continuação desse aí mesmo.
P/1 – Mas teria um título diferente, ou não?
R – Aí eu ia pensar, não é? Como é que eu ia pôr.
P/1 – Dona Rosário, a gente está caminhando para o fim. Eu tenho mais umas perguntas para fazer, mas tem alguma história que a senhora teria para contar para a gente, que a gente ainda não sabe? Alguma outra história que a senhora queira contar para a gente?
R – Não. Eu acho que já contei tudo, não é? Do rapaz que me humilhou, que eu falei, não é? Terminei. Depois ele, coitado, morreu humilhado. Aí, quando eu cheguei em casa, ele foi levar a gente na frente, falou: “Isso é seu?”, para o irmão. “Não, é da Ilza”. “É da Ilza?” “É”. Aí ele viu que eu não estava precisando da ajuda dele. Aí eu cheguei em casa, no outro dia cedo, ele ligou para mim e disse assim: “Rosário, eu queria muito falar com você. Eu tenho um assunto para falar com você. Só que não deixa para vir quando eu estiver no caixão”. Pior é que eu não fui. Eu esperei a Ilza ter tempo de me levar, porque era na Mooca. Aí quando, de repente, ele morre. Não sei o que ele queria falar comigo, entendeu? Por isso que eu digo... Vieram uns sobrinhos de Recife esses dias, seis, filhos do meu irmão, estavam hospedados aqui e foram almoçar comigo. Estavam na mesa, todos, conversando com os sobrinhos, assim como eu estou conversando com você, depois ele disse assim: “Tia, dá a receita?”. Sabe? “Dá a receita”. “Que receita?” Eu falei: “A única receita que eu lhe passo, se você está achando que eu estou bem, é ser humilde, não ter rancor de ninguém, não guardar ódio, porque o ódio maltrata a gente”. Você sofreu qualquer coisa de uma pessoa e você guardar aquela raiva... Até de... Pode nem ver, se você está em um lugar e chega aquela pessoa e você se sente mal, esse mal que você sente faz mal dentro de você. Tanto para a doença, quanto para a mente, não é? Você não é mais uma pessoa feliz. Porque você traz raiva. Você guarda aquilo que falaram e se magoa. Eu não guardei raiva. Tanto que eu fui lá vê-lo, abracei-o. Beijar, abraçar, do mesmo jeito.
Em igreja, quantas coisas acontecem. Não é porque é igreja, mas quantas fofoquinhas, quantas coisas. Já fui presidente das Senhoras, lidar com um monte de senhoras, nunca tive nada com ninguém, está entendendo? Se alguém me ofende, eu entrego tudo para o Senhor. Não tenho raiva. Tanto que não tive do meu marido, não é? Chegava em casa, almoçava na mesa comigo.
P/1 – Sabe o que eu queria saber? Qual foi a roupa mais legal de costurar que a senhora já fez? Que a senhora adorou ver pronta?
R – Vestido de noiva. Às vezes, meninas necessitadas como... Tinha uma vizinha que noivou e a família desprezava ela, e ela nervosa porque ia casar. E eu fiz o vestido de graça, comprei até o pano. Fiz. Entendeu? São essas coisas assim que eu lembro, que eu sinto feliz. Certo? (risos).
P/1 – E a senhora é avó?
R – Sou. Eu tenho sete, oito netos, com o Júlio. E tenho onze bisnetos. Já tenho bisneto com quatorze anos, coisa mais linda. Não é porque seja branco. O pai era branco, o menino nasceu, ninguém diz que é parente nosso. Nasceu assim da sua cor, com os olhos verdes, quase azul. Que quando ele fica perto ninguém diz que é parente. É que puxou o pai, não é? Se fosse uma menina, já com quatorze anos, daqui a pouco eu seria tataravó. É que menino demora.
P/1 – Fale o nome dos netos. Pode ser?
R – É Caíque... Vou falar pelos irmãos... Caíque, Léo - Leonel é Léo, o apelido - e a menina... Esqueci o nome dela. Depois eu lembro. Tem o Cauã e a Camile, são cinco. Camile. Tem a mais novinha do filho, o neto, é Manoele. Agora dos netos do filho que faleceu, tem... É muito, não é? (risos) Guilherme, Larissa. Guilherme, Larissa e um nome bíblico, Davi, que é do outro e tem agora uma pequenininha, que é Maria Alice. Maria Alice.
P/2 – E o Júlio?
R – E o Júlio (risos).
P/1 – Muito bem! Dona Rosário, eu queria que a senhora falasse como é hoje o seu dia a dia. O que a senhora faz hoje?
R – Ah, minha filha, hoje me tiraram da cozinha. Não cozinho mais porque dizem que têm medo de que eu me queime. Mas não me queimo. Não sou doida. Mas tiraram. A minha filha que cuida de mim faz tudo, lava a roupa... Aí, sabe o que eu faço? Crochê! Eu faço joguinho. Estou terminando um jogo para uma menina que está esperando bebê na igreja. Eu faço xale, faço sapatinho, a touquinha e estou terminando o casaquinho. E dou! (risos). Fiz para todos os bisnetos. E se eu não faço, cobram. Tem que ter guardado o xale para, quando eles crescerem, darem para os filhos deles. Todos eles têm xale que eu fiz. E assim faço. Faço blusa.
P/1 – Como foi comemorar os noventa anos?
R – Eu vou comemorar ainda.
P/1 – Este ano?
R – É, agora no dia dois de outubro. A filha disse que ia fazer uma festa no apartamento dela, no salão de festa. Depois resolveu fazer em Sorocaba porque está todo mundo lá, fica mais difícil trazer para cá. Aí ela disse que vai para lá, no dia 12 de outubro, fazer uma festa. Alugar uma chácara e fazer um almoço na chácara. Não sei se vai ser. Depois eu te conto (risos).
P/1 – E como é que a senhora se sente comemorando noventa anos?
R – Eu me sinto feliz. Eu me sinto feliz porque eu vejo pessoas com oitenta, até menos, esclerosadas. Às vezes não andam mais, às vezes não enxergam mais. Tem uma senhora, da minha idade também, amiga, ela não está ouvindo, precisa pôr o aparelho, entendeu? A mão trêmula, assim. Quer dizer, eu me sinto feliz.
P/1 – Eu tenho mais duas perguntas. Mas, antes, Paulo? Rê?
P/2 – Eu tenho uma: a senhora falou, durante a sua entrevista, bastante sobre religião. O que você começou na mocidade, liderando um grupo da mocidade. Queria que a senhora contasse um pouco da sua história com a religião. A senhora continua indo à igreja?
R – Sim.
P/2 - Desde jovem?
R – Então... Quando passaram a ler a bíblia, e aceitaram, passaram a ser religiosos, assim, evangélicos. Eu tinha uns quinze para dezesseis anos quando os mais velhos foram. E eu comecei a ir. Meu pai não queria deixar que a gente fosse. Ele dizia: “Você é humano”, quando a gente ia para a igreja. “Pode voltar. Você é humano, pode voltar”. Depois eu cresci, não podia dizer mais nada. Eu continuei indo para a igreja. Tinha uma voz melhor do que tenho. Cantava no soprano, no coral. E fui indo assim na igreja. Depois de moça, já com vinte e dois anos, tinha o grupo de jovem, eu passei a ser a líder das jovens. Aqui em Sorocaba eu fui... A Batista fala presidente da Sociedade das Senhoras. Eu fui presidente de uma Sociedade das Senhoras. Organizava os cultos de aniversário, dirigia. Agora eu estou meio parada. Mas estou firme, não estou desligada não. Estou firme (risos).
P/1 – Dona Rosário, como foi para a senhora vir aqui hoje contar sua história?
R – Foi fácil. Achei ruim a chuva. Que até o Júlio disse assim: “Vó, vai ficar para o dia quatro”. Eu disse: “Ai, que bom!”. Porque estava chovendo. Eu tinha que vir com a Ilza, muita confusão. Eu falei: “Deixa para o dia quatro que está bom”. Aí, quando ele ligou de novo que ia ser hoje, eu disse: “Ai, meu Deus do Céu, com essa chuva?” Eu liguei no serviço da Ilza, mas ela tinha ido ao dentista. Não estava. Para dizer, para pedir para ele passar para o dia quatro, por causa da chuva. Mas depois eu disse: “Fico livre já, já vou com chuva e tudo”. (risos) Aí, ele dirigindo nessa chuva e eu com medo, mas ele é bom motorista, viu? Ele é bom motorista. Veio, não deu medo nenhum. Esse menino aqui é uma bênção, viu? Vou contar para você. Eu não gosto é desse cabelinho dele. Já que ele pediu tanto. “Vó, deixa o meu cabelo. Eu vou ficar careca, vó. Deixa eu aproveitar enquanto eu tenho”. Porque o pai dele é careca. É do Exército. Mora... Ele já falou? O pai dele mora em Brasília. É Tenente-Coronel lá em Brasília. Só que foi um pai ausente. Um pai ausente. Mas ele sempre manda passagem para ele ir. Não sei se este ano ele vai, mas todo ano ele vai. Ficar uma semana de Natal com o pai. Mas... O que eu estava falando?
P/1 – Sobre vir aqui hoje com o Júlio.
R – Com o Júlio. Então... Eu vim com ele dirigindo. Porque é longe de onde a gente veio para cá. Muita chuva. Mas ele é um bom motorista. Sim, do cabelo, não é? Eu queria que ele cortasse o cabelo. “Deixa o cabelo. Vó, eu vou ficar careca. Deixa eu aproveitar enquanto eu tenho”. Mas ele ficava tão bonitinho quando tinha o cabelo cortado, não é? Mas não quer. Fazer o quê? Outra coisa também. A profissão dele. Não queria que ele fizesse o que ele faz. Eu queria que ele fosse um engenheiro, entendeu? Pedi para ele: “Vai ser um médico, filho, é tão bonito um médico pretinho assim, no corredor do hospital, de branco, vai ser um médico”. Não quis nada. Aí vai dar para fazer esse negócio aí de... Como é que ele está fazendo?
P/2 – Cinema.
R – Cinema. As pessoas dizem que é bom. Eu acho que não. Acho que se ele tivesse uma profissão mais firme seria melhor. Cinema vai tirar ele da gente. Vai viajar para longe. Mas é como o que o pai dele disse: “Faz o que ele quer. Ninguém pode pôr na cabeça dele de fazer outra coisa”.
P/1 – Queria que a senhora contasse como foi que o Júlio convidou a senhora para vir aqui.
R – Então... Ele falou assim: “Mãe, a moça lá, vó, a moça lá quer fazer uma entrevista com a senhora”. Eu digo: “Comigo?” “É”. Falei: “Por quê?” “Ah, não sei, vó. Ela quer fazer. Porque faz de outras pessoas. Tem pessoas que já foram lá fazer. A senhora vai?” Fiquei pensando: “Não vou fazer vergonha para ele lá?” “Tem certeza, Júlio?” “Tenho! Vamos?” Aí eu digo: “Bem, se eu esquecer de alguma coisa, der branco, porque às vezes dá branco, não é?” Mas eu disse: “Vou, digo o que eu posso. Vou fazer o gosto dele”. Está satisfeita?
P/1 – A senhora gostou?
R – Eu gostei. Estou muito feliz, viu? Espero que alguma experiência minha sirva, não é? Não sei se vai servir. Porque a primeira que eu mais vivo é essa de amar os outros. Desse tardio irar-se. [1:49:04]. Você recebe uma pancada, não se ira de responder na hora, de responder mal, nada. Se controla e põe na mão do Senhor que Ele resolve. Ele é o nosso advogado. Aí, você fica velha com a mente perfeita, entendeu? Deus conserva. (risos).
P/1 – Eu tenho mais uma pergunta. A última.
R – Pode falar.
P/1 – Quais são os seus sonhos?
R – Meus sonhos? Ah, minha filha, meus sonhos agora são muito poucos. Meu sonho é de ver meus netos, se eu puder ver, serem felizes. Os bisnetos, porque os netos já estão grandes. Os bisnetos serem todos felizes, não entrarem em droga. Pessoas assim como o Júlio. Se forem todos como o Júlio, eu estou feliz, entendeu? Porque eu vou falar: a única coisa que o Júlio... Eu não queria, eu queria que ele cortasse o cabelo, o resto está tudo bom (risos). Eu confio que ele vai ser um bom profissional, entendeu? Não sei se aqui ele dá trabalho, mas em casa é calado. Não tem papo, não tem nada. É ele e ele. Mas a gente confia nele. Eu quero que os outros sejam todos assim. Meu sonho. E quando for para partir com o Senhor, o Senhor me recolha. Não quero sofrer não (risos). Entendeu?
P/1 – Então, dona Rosário, muito obrigada por ter vindo aqui hoje.
R – Eu que agradeço filha, foi muito bom.
P/1 – A gente adorou.
R - Eu também gostei.
P/1 – Que bom. Muito obrigada, viu dona Rosário?
R – Espero, espero que não seja assim inútil, que alguma coisa possa, tanto para mim, quanto para você, ter fruto, não é?
P/1 – Muito obrigada.
P/2 – Obrigada.
FIM DA ENTREVISTARecolher