Projeto Memórias dos Bairros
Depoimento de Heraldo Panico
Entrevistado por Marina e Stella
Na residência do entrevistado
São Paulo, 19 de setembro, de 2000
Entrevista 003
Realização Museu da Pessoa
P/1 –De novo, por favor, qual é o seu nome, data e local de nascimento?
R – Meu nome é ...Continuar leitura
Projeto Memórias dos Bairros
Depoimento de Heraldo Panico
Entrevistado por Marina e Stella
Na residência do entrevistado
São Paulo, 19 de setembro, de 2000
Entrevista 003
Realização Museu da Pessoa
P/1 –De novo, por favor, qual é o seu nome, data e local de nascimento?
R – Meu nome
é Heraldo Panico, nasci aqui em São Paulo, no bairro do Brás, em 21 de agosto de 1937.
P/1 –O nome dos seus pais e atividade deles?
R – Meu pai era industrial, italiano, trabalhava na Indústria Ítalo Adami, minha mãe era comerciante também e fundou quase a minha firma que está aberta até hoje, há quase 50 anos atrás. O nome da firma é Heraldo Panico Móveis e decorações.
P/1 – E agora me fale do seu pai. Nome, local e data de nascimento.
R – Meu pai era italiano, nasceu na cidade de Campobasso, no norte da Itália,e veio pro Brasil ainda moço. Ele veio casado, ele estava casado com dna Albertina, certo. E minha mãe também era casada. Era casada com um capitão do exército, chamava-se João Lafemina.Com a guerra, o marido da minha mãe foi chamado, como ele era oficial do exército,
ele foi pra guerra, e ele era casado há pouco tempo com a minha mãe, e deixou a minha mãe grávida
e foi para os campos de batalha. E meu pai naquela época tinha chegado também da Itália com a esposa dele, e depois de uns dois anos ela faleceu, o marido da minha mãe também veio ferido da Itália, e uma rainha da Inglaterra deu um presente pra todos os brasileiros e italianos, deu uma viagem regresso ao Brasil com uma equipe médica, num navio especial da Inglaterra, com UTI, e veio aqui pro Brasil. E trouxe ele de volta pra cá. Chegando aqui ele
não agüentou e faleceu. Aí, morrendo também a primeira esposa de meu pai, eles casaram. Porque eram vizinhos um do outro. Eles moravam aqui na rua Claudino
Pinto, aqui no Brás. Aí, ele ficou com uma menina, uma filha ...
P/1 – Só pra entender. Quem ficou...
R – Meu pai. Meu pai ficou viúvo, com uma mocinha. E minha mãe ficou viúva com um menino. Seria o filho do capitão, né. Aí eles se casaram e veio então a minha geração. Nós somos em sete filhos. Eu tenho dois irmãos, um por parte de mãe, e uma irmã por parte de pai.
P/1 – E já estão na conta dos sete?
R – Ah, sim, sem dúvida. Eles eram tão irmãos da gente que eles que nos criaram. Minha irmã, por exemplo, essa mais velha que é filha só do meu pai, ela que automaticamente levava a casa pra frente. Minha mãe era comerciante. Trabalhava muito na firma. E minha irmã, que era a mais velha, que cuidava dos filhos, tomava conta de todos nós. Então pra nós, ela era realmente a irmã mais velha e nós gostávamos muito dela.
P/2 – Como surgiu a idéia da sua mãe de montar essa firma aqui no Brás?
R -
Olha, a minha mãe, eu posso dizer pra você, que ela é a pioneira do crédito aqui no São Paulo. Ela fazia um sistema de crediário, naquele tempo lá existia o jogo do bicho, foi no começo de quando saiu o jogo do bicho, essa coisa toda. E ela ... Naquele tempo não tinha talão de cheque, não tinha nota promissória, não tinha nada disso. Ela fez um cartão, que a pessoa
toda a semana se comprometia a pagar uma prestação daquele bem que comprava, que adquiria. E, se naquela semana, ela tinha o número do cartão, ela
tinha um bicho, uma coisa assim, jogo de bicho, ela sorteava, então
ela não pagava prestação. E todo o mundo comprava, porque naquele tempo lá era difícil alguma pessoa comprar assim, mas todos compravam e todos pagavam muito bem. Então posso dizer que minha mãe foi a pioneira de crediário. Porque não existiam os magazines, não existiam lojas grandes, eram tudo lojas pequenas, naquela época, isso
há 50, 60 anos atrás, então, até hoje... No tempo da guerra,
aquela loja era do meu pai e da minha mãe. Mas como ele era estrangeiro, no tempo da guerra estrangeiro não podia ter nada em nome dele. Segunda Guerra Mundial. Então, ele me emancipou, eu tinha
18 anos na época, fez um documento no cartório, no tabelião, pra que eu pudesse ter essa firma em meu nome. E eu tenho ela até hoje, aberta, graças a Deus, funcionando, e estou numa boa até hoje.
P/2 – E essa estratégia da sua mãe de fazer um sorteio era para atrair as pessoas ...
R – Exatamente. Era um motivo pra atrair as pessoas pra que elas comprassem, e quando eram sorteadas, não pagavam prestação naquela semana ou naquele mês.
P/2 – E ela começou sempre com loja de móveis?
R – Não. No começo nós tínhamos uma loja de tecidos, onde eram vendidas roupas, artigos masculinos, e eu me lembro, naquele tempo se usavam chapéus, então vendia chapéu, capa de borracha, borracha não, era gabardine, e ela ficou muitos anos com isso aí.
P/1 – Onde era?
R – Era na Rua Piratininga. 1672. E depois, com o falecimento do meu pai, então, ela continuou com esse ramo. E eu já era mocinho. E não me dava bem com esse negócio de roupa de... mulher, aquela coisa toda, achava que era um pouco meio esquisito, lidar com mulher, e roupa de mulher, eu não gostava mesmo, né. Aí eu resolvi, através de um grande amigo nosso que eu posso dizer que, se eu estou nesse ramo aqui eu devo a ele. É o Jacob Lafer, o Simão, e o Samuel. Eram dois judeus, gente fora de série, muito bons, que deram uma
reviravolta na minha vida. Eles me ajudaram muito. Por isso que eu acho que o judeu é uma pessoa que, quando ele confia, e a gente retribui essa confiança, você tem tudo com eles. Então naquela época, eu comprava móveis usados, do Simão e do Samuel, que representavam móveis Jacob Lafer Cia.
Ltda.
P/1 – Existe até hoje?
R – Existe, existe, mas... já não é a mesma coisa, eles vendem agora eletrodomésticos, mas é uma loja assim... Eu nem sei se eles vivem hoje, naquele tempo eles já eram de uma certa idade... Mas eu comprava móveis usados deles. Como era uma loja muito boa, de padrão alto, os móveis usados
que entravam na época, eram móveis muito bons, bonitos, que os ricos trocavam. Então, esses móveis usados vinham tudo pra mim. Eu até recebia caminhões, em um mês assim eu recebia um, dois caminhões de móveis usados. E como eram móveis bons, dava pra negociar e ganhar muito dinheiro.
P/2 – Mas eles não estavam instalados aqui no Brás.
R – Não. Eles estavam instalados na Vila Mariana. Mas eu sempre aqui. Eu comprava móveis de lá pra cá.
P/2 –Voltando um pouquinho, o sr.
nasceu numa casa na Rua Piratininga,
tem lembranças dessa casa?
R – Tenho. Era uma casa, boa, o Brás, naquele tempo lá era uma maravilha. Fora de série. Nós tínhamos, por exemplo, antigamente eram três nações que dominavam aqui, acredito que em São Paulo, mas no Brás, principalmente,
eram os italianos, os espanhóis e os portugueses. E os paulistas, né. Mas os paulistas seriam mais os filhos desses estrangeiros. Então era uma coisa maravilhosa, uma alegria muito grande, você chegava, existia os cinemas, eu me lembro, quando eu era mocinho, 10, 12 anos, nós íamos no cinema, aqui no Brás nós tínhamos o Ideal, aqui na Rua Piratininga, tínhamos o Olímpia, o Santo Antonio, na rua da Moóca, o Glória, na rua do Gasômetro, o Piratininga, na Rangel Pestana, que naquela época tinha sido inaugurado...
P/2 – Nós estamos mais ou menos em que ano?
R – Isso foi mais ou menos no ano
de 45, mais ou menos. 45, 46. Então, como naquele tempo não existia televisão, não existia muita coisa, então o povo conversava mais. As pessoas se confraternizavam, conversavam, ficavam na porta de casa, eu me lembro que tinha umas lâmpadas nas portas, e ficavam conversando, cantando, os espanhóis, por exemplo, tem muito espanhol aqui na Rua Caetano Pinto, a gente saía do cinema meia noite, meia noite e meia, não tinha problema nenhum, não tinha assalto, roubo, você saía que era uma maravilha. Não tinha preocupação nenhuma
P/1- E essas lâmpadas eram pra iluminar...
R – Pra iluminar, e ao mesmo tempo para as
pessoas conversarem. Então ficavam conversando até meia noite, uma hora da manhã. Os espanhóis, eram tudo ... Na Caetano Pinto, por exemplo, que é essa
rua aqui atrás, era tudo cortiços, não tinha ainda Matarazzo, não tinha ainda muitas indústrias têxteis,
nem Fontoura, então, era tudo... terrenos vazios,
P/ 1 – E quem morava nos cortiços?
R – Nesses cortiços moravam essas famílias antiquíssimas daqui, depois vieram os Matarazzo, pra cá que eram gente simples, o conde Francisco, por exemplo, que era muito
amigo do meu pai, ele conversava, ele ia na minha casa, o conde Francisco Matarazzo, era uma coisa que, hoje em dia você, entendeu, não existe mais.
P/1 – Quem morava nos cortiços eram pessoas de menor posse?
R – De menor posse, exatamente, apesar que naquele tempo lá, eu vou dizer pra você, não existia gente
muito rica. Era uma minoria, eram muito poucas famílias ricas. Não se ouvia assim falar de rico, era tudo da classe média pra baixo. Então era uma coisa que ... você não tinha assim esse negócio de rico, pobre, todo o mundo ganhava, todo o mundo se satisfazia com pouco. Não é como hoje que uma pessoa, por exemplo, luta pra
ter em casa o Zero quilômetros, luta para
uma propriedade, um apartamento, naquele tempo não existia
nada disso. Todo o mundo trabalhava pra comer e beber. Que era o fundamental. Todo o mundo casava e morava nos quartos de cortiço, e quando falo cortiço, assim, antigamente falava-se cortiço, mas eram lugares limpos, entendeu, era aquelas mulherada, aquelas senhoras, aquelas espanholas antiga
de roupa tudo de preto,
pra se ir na casa delas era uma alegria muito grande, elas convidavam os vizinhos: Olha, vem comer hoje
na minha casa
que eu fiz puchero, entendeu, venha comer aqui...Eu me lembro que as famílias italianas,
você passava assim na porta , ô!,
aquele cheiro de molho gostoso, aquele pão feito em casa, aquele pão italiano, entendeu, e eles te chamavam. Ô Antonio, vem aqui, trás a Tereza aqui pra almoçar com a gente! Isso você não vê nunca mais hoje.
P2 – E aí as famílias iam.
R – As famílias iam. Então, era aquela confraternização, não tinha briga, não tinha nada.
P/2 – E os filhos todos também acompanhavam?
R – E os filhos todos participavam de tudo aquilo. Então a gente ia crescendo, naquele tempo, ia crescendo no meio de toda essa gente. Você não tinha maldade, não tinha nada. Você, por exemplo, eu me lembro quando eu tinha 13, 14 anos de idade, nós íamos nesses bailes de carnaval no cinema, não tinha maldade. As mocinhas tudo de odalisca, os meninos de pierrô, mas era aquela coisa alegre sem maldade nenhuma.
P/ Que cinemas davam bailes de carnaval.
R -
Bom, o Oberdan, dava muito, o Ideal aqui na Rua Piratininga,
também dava muito baile de carnaval. O Oberdan era aqui no Brás, perto da rua Oriente, no Largo da Concórdia.
P/2 – E carnaval de rua, tinha também?
R – Muito, eu me lembro que eu comecei a dirigir, por exemplo, com sete anos de idade. Porque o meu pai, justamente no corso, o meu pai tinha aqueles Ford Ramona...
P/1 – Como era ?
R – Era um daqueles carros antigos, importado,
então meu pai me punha no volante, como era o corso, andava os carros devagar um atrás do outro,
meu pai punha aquele afogador, no automático, e o carro andava devagarinho. E eu ficava no volante dirigindo. Quer dizer, eu tenho noção de motorista desde os sete anos de idade.
P/1 – Era aberto, o carro?
R – Todo aberto. Todos os carros eram abertos. Então, no corso nós conversávamos, eles brincavam, jogava-se serpentina, uma coisa maravilhosa, lança-perfume, o maior dos respeito, esse negócio de hoje, de jogar ovo, jogar coisa ruim, não! Eram todos cantando, aquela coisa alegre, muitos homens vestidos de mulher, saíam nas ruas.
P/1 – Havia alto-falantes nas ruas com a música, ou o povo cantava sem música.
R – Olha, não tinha alto-falante, não tinha nada. O povo é que cantava mesmo espontaneamente. Saía de dentro, feito com aquelas caixinhas de... que hoje em dia são brinquedo, mas naquele tempo lá se usava muito,
a gente tocava naquele
pandeiro, fazia aquelas músicas... samba mesmo, brasileiro, aquela coisa muito bonita...
P/1 – Por onde passava o corso?
R – Era na Avenida São João, na Paulista...
P/1 – Mas aqui no bairro.
R – Aqui no bairro? Na... Rangel Pestana, na Piratininga, dava-se a volta assim em toda a Rangel Pestana, naquele tempo
lá, não existiam os viadutos aqui, o viaduto do Brás... A gente também fazia muito.... você saía,
de sábado à noite, pra
fazer o flerte, com as meninas,
na Rangel Pestana. Então do lado ficavam os moços, encostados na parede, e as moças passavam. Olhavam, davam risada, a gente conversava, então, alguns levavam elas por exemplo pra comer um spumoni, porque não tinha esses sorvetes prontos que existem hoje, por exemplo da Kibon, da Gelato, então eram os spumoni, sorvete feito mesmo na própria padaria, então , depois do spumoni serviam um copo de água gelada, existia por exemplo, onde é hoje o Bradesco, na Rangel Pestana, existia o Guarani,
uma confeitaria muito famosa aqui do bairro, a gente também entrava lá, comia doces...
P/1 – Como era esse spumoni?
R – Era servido em taças, feito com diversos
sabores de sorvete. Uns pediam com creme, outros com morango, ou com chocolate. Era uma taça grande. Era um tipo de quadrado. Não era como agora
como massinha.
Ele vinha tudo com frutas,
e a gente tomava aquilo lá, três ou quatro fatias. Essa Guarani existiu durante muitos anos.
E por incrível que pareça, outro dia eu estava no banco, encontrei um senhor, olhei na fisionomia dele, ele tinha um pequeno defeito na face, na boca, deve ter sido algum derrame cerebral. Boca puxada. Com cabelos brancos, tal, ele passou por mim, olhei pra ele assim, muito velho, velhinho, já, isso foi há uns dois anos e meio atrás, três. Aí tive curiosidade, não agüentei. Falei: O sr. não era do Guarani, por sinal nós estamos aqui banco, era
nesse próprio local, mesmo. E ele falou: Sim, era eu mesmo. Só
que naquele tempo eu era moço, eu me lembro do senhor. E eu era menino, tinha uns 13 ou 14 anos, que eu vinha aqui com o meu pai e minha mãe comer doce,
eu via muito o senhor.
P/1 – Só voltando um pouquinho. Como foi a sua infância, como era a sua casa, com seu pai e sua mãe?
R – Minha infância foi sempre aqui no Brás, minha casa, como as de antigamente, eram casas grandes, a minha, por exemplo, na Rua Piratininga 1672, onde é hoje um
depósito de
máquinas, tinha três andares. Eram todos andares com assoalho de madeira, bem espaçosa, não eram casas luxuosas, mas eram confortáveis. Grandes.
P/1 – Como era a convivência da família?
R – A convivência era muito boa. Nós morávamos na casa da frente, onde tinha o nosso armazém, como falei pra você, minha mãe e meu pai começaram lá, e atrás era uma vila, que tinha mais ou menos umas 30 casas. E nessas vila aí, tudo casinhas pequenas, e em cada casinha dessas morava uma família.
P/1 – Era uma vila operária?
R – Era, exatamente. Naquele tempo existiam muitas fábricas...
P/1 – De que, por exemplo?
R – Existia a Souza Cruz, de cigarros, existia uma de tecidos, existia umas indústrias de brinquedos, da Estrela, conhecíamos muitos que trabalhavam nessas fábricas, mamãe, por exemplo, começou numa fábrica de cigarros, onde ela trabalhou muitos anos, meu pai fumava e ela é que fazia o cigarrinho do meu pai. Cigarrinho feito de palha, ela enrolava, eu me lembro que eu ajudava ela a enrolar o cigarro do meu pai.
P/2 – Quais eram as brincadeiras de infância entre os irmãos, entre as crianças da rua...
R – Naquele tempo lá, as brincadeiras,
por exemplo,
eram muito bonitas. A gente tinha aquela brincadeira simples, de... os nossos presentes naquela época, que nós ganhávamos no Natal, e em festa de aniversário, eram caminhões, de madeira, existiam os patinetes, com rodinha
de madeira, aqueles caminhões grandes, eram brinquedos educativos que incentivavam a gente a arrumar, a pintar, numa semana você pintava uma rodinha de vermelho, depois você pintava a carroceira de preto, isso era muito bonito. E as brincadeiras eram de pular corda, esconde-esconde.
P/1 – Cantigas de roda, vocês brincavam de roda?
R -
Sim, cantávamos...
P 1 – E o patinete era na rua?
R- Na rua, bicicleta também, as bicicletas, elas eram todas importadas,
que a Calói não existia, ainda, eu por exemplo ganhei uma bicicleta do meu pai, era uma Bianchi. Era muito bonita. Naquele tempo era um charme você andar com uma bicicleta.
P/2 – E como era o chão?
R – O chão era todo cimentado. E os paralelepípedos não eram.... não existia o asfalto. Na Rua Piratininga eram paralelepípedos grandes, que eram colocados com areia, então no meio deles eram criadas plantas, a gente brincava inclusive de plantar alguma coisinha lá, não tinha carro, os bondes vieram depois, quer dizer, era uma alegria muito grande, que a gente passeava de bicicleta , não existia industria, eram muitos terrenos, vazios, a Matarazzo, a indústria, não existia na Caetano Pinto. Então tinha muita oficina de carroça. fazia aquelas rodas ainda de madeira, com burrinho na frente, e aquelas rodas, e com aquilo lá ele vendia leite, vendia peixe, naquelas carroça ainda virada com rodas de madeira.
P/2 – Ia de casa em casa.
R – Ia. Inclusive tinha um bigodudo, um senhor de idade que tinha um bigode enorme, ele era peixeiro. Então ele carregava aquelas duas cestas no ombro, e todo o dia ele vinha vender peixe. E quando você podia você comprava aquilo lá. Tudo na porta.
P/1 – Que mais traziam na porta?
R – Por exemplo, vinha o queijeiro, vinha o cabriteiro que servia leite, ele vinha com as cabras, você percebia quando ele chegava porque todas as cabritas tinham um sininho no pescoço. Então a gente saía correndo: Vamos, o cabriteiro já chegou. Ia lá na rua,
ele pegava nas tetas daquelas cabras, tirava o leite e você tomava aquele leite quente na hora. Sem açúcar e sem nada. E o mais gostoso era que quando você ia no bar, existia aquele leite que já vinha pronto, ainda em litros de vidro. Toddinho, por exemplo vinha aqueles litrinhos pequenos, tudo vidro,
ainda não existia embalagem de plástico, guaraná, vinha tudo embaladinha, bonitinha, então era uma coisa muito bacana que a gente nunca mais esquece.
P/1 – Então vinha um de carroça, outro com carrinho, outro com sacola... e os lugares de abastecimento?
R – As lojas de abastecimento, eram chamadas empórios, né. Então a gente comprava, por exemplo, arroz, feijão, eu me lembro
na Rua Piratininga, tinha o seu Afonso, ele lá vendia queijo, queijo fresco, a gente ia lá e comprava 100 gramas, 200 gramas, do jeito que queria. Aí o arroz e feijão era comprado, a gente pegava no saco, eles serviam no saquinho, a granel, pão, por exemplo, existiam umas padarias aqui na Ceetano Pinto, a padaria da dna. Rosa, que você tinha que ficar na fila quando houve lá a Segunda Guerra, faltou muita farinha muita coisa, então a gente levantava de manhã
às cinco e meia pra ficar na fila do pão.
P/1 – Como era o pão durante a Guerra...
R – Olha, por incrível que pareça, o pão era
uma delícia, viu? A turma fala que... sei lá se hoje, por exemplo, hoje existe muito pão,
mas aquele pão acho que era tão gostoso porque ele faltava ( risos) . Então você sabia que tinha que enfrentar uma fila de duas horas pra comprar dois filões de pão,
então era uma coisa gostosa, a gente levava pra casa. Mas antigamente eram pães grandes, era um pão mesmo pra valer. Eram redondos, hoje se fala que esses pães são italianos. Mas naquele tempo, não. Era mesmo feito grande, né.
P/1 – No bairro, de que outras formas foi sentida a guerra.
R – No bairro, eu acredito que no nosso tempo a guerra não foi muito sentida não. Só quando os pracinhas foram, mas foram poucos os pracinhas que foram pra Itália, foi uma quantidade de homens muito pequena
que enfrentou a guerra, assim mesmo porque mandaram,
porque se não acho que eles nem pediam pra gente
pra ir.
P/1 – Tinha black-out?
R - Tinha, tinha sim. A gente às vezes,
de repente, chegava a noite assim, e você era obrigado a apagar as luzes, né. Se a gente ouvisse assim barulho de avião, imediatamente tocava uma sirene e você imediatamente apagava todas as luzes. E ficava tudo escuro, na rua também.
P/1 – Como é um bairro de italianos, na guerra os italianos eram
os Quinta Coluna. E como isso funcionava aqui no bairro.
R – Olha, aqui no bairro, meu pai era italiano, por exemplo, e ele não foi na guerra. Não foi chamado. Na escola era normal. Não existia isso aí. Não se falava em Quinta Coluna.
A minha infância, por exemplo, foi no meio dos italianos, dos espanhóis, dos portugueses, foi uma infância bonita...
Fim do Lado A da Fita Hum
Início do Lado B da Fita Hum
...nós não temos nenhuma lembrança de alguma coisa ruim. A nossa lembrança era tudo boa, era uma coisa maravilhosa, antigamente se fazia o macarrão em casa, não existia esse macarrão empacotado, o molho por exemplo era feito em casa. Mamãe, quando ia fazer macarrão, ela levantava às cinco horas da manhã, também porque não tinha gás! Era carvão. Ela colocava aquele molho, aqueles tomates no fogo às cinco horas da manhã. Aquilo ficava quase até às duas horas da tarde. Mas você passava pela rua e não agüentava o cheiro do molho. ( risos).Aí passava na rua: Dna. Terezaa!, tem o molho?
Olha, que cheiro gostoso! É, entra aqui, entra aqui um pouco. Pegava aquele pedaço de pão assim, molhava no molho, o que se fazia, aqueles tachos de molho. Molhava o pão assim e comia. O queijo, por exemplo era um queijo... importado. A maioria deles era importado. Da Itália que vinha, né. E mamãe, graças a Deus nós já estávamos mais ou menos bem de vida, então ele comprava muito essas coisas. Na minha casa tinha uma geladeira, onde eu morava quando era menino, era mais ou menos um quarto com 4x4, e era um refrigerador lá dentro. Era uma geladeira. Meu pai comprava salame, queijo, provolone, vinho,
vinha por tonel. Então, nós mesmos engarrafava isso. Era um vinho gostoso.
P/2 –Onde vocês compravam esses produtos importados.
R – Esses produtos nós comprávamos aqui mesmo dos importadores. O seu Ranieri, que era importador, então nós comprávamos anchova, azeitonas...Ele era
atacadista na rua Coronel Mursa. Eu era muito amigo do filho dele, naquela época ele estava muito bem de vida, era uma pessoa rica, e nós corríamos em Interlagos, eu e o filho dele. Corríamos com automóvel, fazíamos prova em
Interlagos.
P/1 – Com que idade?
R – 18 ou 19 anos.
P/1 – Com que carro?
R – Bom, eu tinha um Citroen na época. Ele parece que tinha um Corvette, um carro importado. E nós corríamos lá em Interlagos. Até que ele infelizmente sofreu um acidente e morreu. E o seu Ranieri então ficou muito abalado. Muito abalado. E ele começou a definhar muito, a esposa dele faleceu, e... Nós comprávamos essas coisas tudo dele, anchova, azeitona, queijo, lingüiça calabresa, e fora o que se fazia em casa. Se fazia muito também, naquele tempo não existia manteiga, margarina, se fazia muito o torresmo, a banha, então minha mãe comprava o toucinho, e minhas irmãs faziam aquela banha, a comida era feita tudo na base da banha.
P/1 – Quem mandava na sua casa?
R – Olha, vou ser sincero, mas quem mandava era a minha mãe.
P/2 – Por que ela mandava?
R – Por que? Pelo
seguinte. Como ela trabalhava muito, o meu pai depois aposentou, e ficava muito em casa, o meu pai ficava cuidando mais da gente, dos filhos, do que ela. Ela trabalhava, ela era muito dinâmica, era super- conhecida aqui do Brás, ela implantou aquele sistema de crediário, que naquele
tempo ninguém fazia isso aí. Ela vendia
jóias, ela vendia roupa, ela vendia... tudo o que você podia imaginar, minha mãe tinha. E quando ela não tinha, ela arrumava. Por exemplo, vendia o enxoval das moças da época,
cobertor...
P/2 – E ela , além disso, também era a pessoa que exercia a autoridade...punha todo o mundo na linha, vai almoçar, vai tomar banho...
R – Não, nesse sentido, não. Porque como ela trabalhava muito, quando ela chegava, ela queria ficar perto da gente. E naquela época eu era muito pequinininho, não via a hora dela chegar e me pôr no colo dela. Então com os filhos, ela tinha o amor. E meu pai também era um homem bom, que não tinha boca assim pra gritar, ele gritava porque era italiano,
o italiano fala alto,
e ele não precisava bater. Eu vejo meus filhos criarem os filhos deles,
e eu acho um absurdo. Hoje em dia uma criança chega pro pai e
com autoridade....Não. Você não podia falar com o teu pai olhando na cara dele. Você falava olhando pro chão. Tinha um irmão meu, casado, com 45 anos, jamais ele fumou na frente do meu pai. Às vezes quando calhava, assim, e ele já era casado, com filhos, calhava de meu pai passar, ele pegava o cigarro e punha pra trás, assim. Tal o respeito que a gente tinha pelos pais naquela época. Era um respeito muito grande.
P/2 – E a sua família tinha alguma religião?
R – Naquela época nós éramos tudo católicos, apostólicos, romanos,
praticávamos, eu não, mais era a minha mãe, nós íamos no São Judas Tadeu, nós íamos na Igreja dos Enforcados, no São Judas Tadeu eu lembro que nós íamos todos os dias 28, de cada mês, íamos lá acender vela, eu era moleque, ia eu , meu pai, minha mãe, meus irmãos...
P/1 – Como vocês iam até lá?
R – Não, nós tínhamos carro, naquela época também.
P/1 – E nas festas das igrejas aqui, vocês freqüentavam?
R – Não, algumas vezes participamos aqui da Igreja do Brás. Tinha um padre, até não me lembro o nome dele, era uma pessoa boníssima, muito bacana, e a gente ia lá de vez em quando em alguma festa, colaborava,
ajudava nas quermesses, essa coisa toda, né.
P/2 – A Igreja dos Enforcados era na Liberdade?
R – Na Liberdade. Era uma igreja que você ia lá só pra acender vela, né. Minha mãe ia lá toda a segunda-feira e acendia vela lá. Todas as segundas-feiras. Ia pagar promessa, agradecer aquilo que ela tinha recebido naquela semana.
P/1 – E o sr. sabe porque ela escolheu aquela igreja?
R – Uma amiga dela levou ela lá, e ela se sentiu bem. E ficou lá. Não tinha a Casaluce naquele tempo, não existia. Existia a San Gennaro.
P/1 – Ela ia nas festas de San Gennaro?
R – Não. Não existia. São mais recentes, de 30 anos pra cá. Ia mais na Igreja do Brás.
Essa antiga. E lá tinha festa.
P1/ Hoje em dia não tem mais?
R – Hoje em dia, não. Porque, com essa situação que está havendo aqui, a igreja do Brás você sabe que ela é aberta ao público. Eu, por exemplo não freqüento mais, como disse pra vocês, eu há 40 anos atrás sou evangélico. Eu e minha mãe só, da minha família. . E meus
filhos agora, é lógico.
P/2 – Como foi essa conversão?
R – Quando meu pai faleceu, minha mãe ficou muito abatida. Meus irmãos todos casados, ficou só eu e ela. E eu me formei, naquela época era o científico, segundo grau. E fiquei sozinho eu com ela. Nós saímos da Rua Piratininga, que tinha sido vendida, e fomos morar aqui na Rua Professor Batista de Andrade, que foi meu segundo endereço. Ela ficou muito abatida, muito chateada, já não freqüentava mais a igreja, e aí tinha uma vizinha nossa que era evangélica. Isso há 45 anos atrás. E ela nos levou pra essa igreja que eu freqüento até hoje. E nós nos sentimos bem lá. Minha mãe ficou uma pessoa muito diferente, alegre, ficou contente, se sentia bem nesse novo ambiente. Mas também logo em seguida ela ficou doente. Ela congregou uns sete, oito anos, e ficou doente. Ela sofreu um derrame cerebral, e aí como eu estava sozinho com ela... eu já era casado. Eu tinha um ano de casado.
P/2 – Sua esposa era do bairro também?
R – Minha esposa era do bairro. Nasceu aqui na Rua da Moóca, era a minha primeira esposa. Tive duas esposas. Essa aqui que tenho agora é outra. Com a primeira vivi 13 anos, exatamente. Que é mãe dos meus três filhos que eu tenho agora.
Eu sou casado e tudo.
Conheci, ela tinha 13 anos. Conheci na rua da Moóca mesmo. Ela era da minha igreja, aqui da congregação, e nós flertamos... Como as mulheres de antigamente eram mais assim... gordinhas, tinham mais corpo de mulher,
e ela tinha 13 anos mas já aparentava uns 18. Não é como... hoje em dia, parece que as mocinhas....estão tudo magrinhas, você pensa que é uma menina , mas tem idade.... Naquele tempo, não. Tinham uma conduta mais assim de mulher, né. Tinham mais a cabeça no lugar, ajudavam muito as famílias, meu sogro tem muitos filhos, ele era empalhador, gente pobre,
do bairro também. Aqui da rua da Moóca, no Brás. E nós nos conhecemos, eu comecei a passear com ela, nós íamos passear, por incrível que pareça, na Avenida Presidente Wilson, naquele tempo não existia ainda a Antártica, a Antártica era um pedaço só. Era tudo terreno vazio. Tanto de um lado como do outro. Então, 10 horas da noite, nove e meia de noite, eu de braço, de mão dada com ela, a gente sentava naqueles bancos da Presidente Wilson, e só via assim.... uma pessoa lá conversando, um casalzinho lá conversando, de mãos dadas, tal... Hoje jamais se faria uma coisa dessas. Por isso que eu digo. Isso aí é uma coisa que eu nunca mais esqueço. Porque não existia violência naquele tempo. Você tinha total liberdade de andar, de passear, de conversar, chegar em casa tarde, não tinha nada de coisa ruim. E nós casamos. Casei, fui morar junto com a minha mãe, logo depois que eu casei mamãe teve um derrame cerebral. A minha esposa cuidou dela 13 anos. No leito, mas cuidava que era uma maravilha. Não faltava nada, mamãe fazia todas as necessidades na cama, mas ela cuidava, trocava a minha mãe duas, três vezes por dia. Dava banho. Você entrava na minha casa, ninguém dizia que naquela casa tinha um doente, um enfermo. Era um cheiro gostoso. Porque eu comprava talco, eu comprava Lysoform, então ela trocava minha mãe duas três vezes por dia e lavava, certo. Mas, depois de três anos, minha mãe faleceu. Nesse ano mesmo que minha mãe faleceu, falei pra ela. Ela se chamava Carmem. Olha Carmem, agora você vai descansar, ela era nova, muito nova, ela tinha mais ou menos, casei com ela com 17, ela tinha 30 anos quando minha mãe faleceu. Já tinha os três filhos, são esses aqui que eu disse pra vocês, e depois de 13 anos, mamãe faleceu, eu disse:
Agora você vai descansar,
nós vamos passear.
Eu tinha um apartamento na Praia Grande, agora todo o domingo vamos pra praia você vai descansar. Depois minha mulher morreu. A minha esposa faleceu. Depois de ter cuidado da minha mãe 13 anos. Aí
fiquei viúvo uns três, quatro anos, aí casei novamente com a Ivete. E até hoje vivo com ela, 22 anos, já. Essa minha esposa é do interior. De Catanduva. Mas a primeira era aqui do bairro.
P/2 –Retornando um pouco, o sr. falou que fez
o colégio...
R – Fiz o científico. Naquele tempo era o clássico e o científico. Clássico pra quem ia fazer Direito e científico pra quem ia fazer Engenharia ou Medicina.
P/2 – E antes desse nível. O sr. estudou...
R – Eu comecei na escolinha da dna Yayá. Que era aqui na Rua da Alegria. Era o prézinho, né. O fato curioso foi que quando eu comecei a estudar, o meu pai me levou pela primeira vez na escolinha, eu não gostava, chorava, e meu pai me disse: Olha, filho, você fica tranqüilo, que quando ela te dá um papelzinho pra você, pronto, você já tem diploma, você leva pra casa, e acabou. ( risos). No segundo dia ela deu a relação de material e falou: Olha, você pega essa relação de material e leva pro teu papai e pra tua mamãe. Tem quem trazer aqui. Eu fiquei feliz da vida. E falei: Olha, pai, o papel que você queria está aqui (risos). Depois a escolinha da dona. Yayá era uma delícia, eu me lembro até hoje, naquele tempo lá
existia aquelas lancheirinha,
então a minha mãe fazia aquele sanduíche de mortadela, cheirava gostoso dentro da lancheira. Ficava do lado,
aqui. E a gente não via a hora de
tocar a campainha pra você comer o lanche. E tinha aquelas garrafinhas de Toddinho, que eu falei pra você, igual ao litro de leite, só que era pequeno, né. Então meu pai comprava um Toddinho daquele e um sanduíche de mortadela. Aí depois de uma hora e meia duas horas tocava a campaínha pra gente fazer o lanche. Era uma alegria muito grande.
P/2 – Era uma escolinha particular?
R – Era uma escolinha particular. A professora se chamava dna. Yara. Mas era a dna Yaiá. Não se chamava de tia, se chamava professora mesmo. Aí eu saí de lá e fui pro primeiro ano. Aí estudei no Romão Puiggari. Era uma escola muito bacana, naquele tempo lá as professoras... me lembro de todas elas, a dna. Odete, dna. Poncina, dna. Gilda, dna. Clarrisse, e era uma coisa muito bonita aquele tempo lá. Mas era tudo levado da breca. A gente fazia, não tinha conversa, não.
P/2 – O que vocês faziam?
R – A gente aprontava muito.
P/1 – Tipo o que?
R – Ah! Tipo. Quando eu estava no quarto ano, as professoras naquele tempo usavam aqueles tailleurzinhos, né. Não tinha esse negócio de calças compridas, nada disso. Então começou a sair aquele tailleur, aquela coisa. E a gente era apaixonado pelas professoras. E a gente ficava conversando, e perguntando com quem a gente queria casar. Ah, acho que vou casar com a dna. Helena. E você? Mas, era uma paixão, não sei. A minha esposa era professora e dizia que era natural isso. A gente tinha paixão pelas professoras. Gostava delas. E tudo o que elas faziam a gente levava pra casa pra mãe da gente fazer também.
P/2 – E elas eram severas?
R – Não. Ah, sim. No Romão Puiggari eram. Não davam colher de chá, não. Você tinha que levar todo o dia a lição de casa, fazer a lição de casa, fazer as provas orais, ginástica, a ter comportamento exemplar no recreio, as mocinhas todas de uniforme, aquelas sainha azulzinha, aquela meia branca, soquete,
aquele sapatinho,
com aquela blusinha... e os meninos também. Do mesmo jeito. Calcinha azul marinho, aquelas camisas fechadinhas, e tinha que estar limpinho. A gente brincava no recreio, nada de se
atirar no chão...tudo brincadeira bonita.
P1 – Como foi o seu envolvimento com a porteira do Brás?
R – A gente, naquele tempo lá, quando existia a porteira do Brás, ... existiam muitos.... naquele tempo, não existia tanta gente em São Paulo. Eram filhos de estrangeiros.... e a gente brincava muito nas porteiras. A gente corria, a gente tomava até trem andando, que os trens andavam na base de 2 0
por hora, 10 por hora, aquele Maria Fumaça, né. E gente pegava o trem assim , corria assim, falava: Vamo tomar o trem, vamo tomar o trem.
E descia na outra estação pra não pagar a passagem, depois
voltava no trem que vinha de volta, entendeu.
P/1 – Vocês usavam como transporte?
R – Como transporte e como brincadeira também.
P/2 – Vocês iam sem pagar, pendurados no trem?
R – Sem pagar, pendurado no trem.
P/1 – Como eram esses trens?
R – Bom, os trens eram bem diferentes dos de hoje. Por exemplo, eles não tinham aquele luxo, eram aquelas cadeiras de ripa, como os bondes, antigamente. Eram tudo cadeiras ripadas, assim, aquelas janelinhas que você puxava assim uma lona, pra não bater sol na cara da gente, e soltava, ela rolava e vinha assim pra cima. Aquilo era uma tal de brincadeira pra você jogar assim pra baixo soltar assim pra ver ele correr.
P/1 – Mas quer dizer que dava assim pra pegar o trem andando...
R – E a gente pegava assim também o bonde. Um fato curioso, muito bonito, porque quando você estava dentro de um bonde, por exemplo, na Piratininga passava o bonde,
tinha os cobradores português, eles batiam o sininho assim , por cima de você,
sinal que tinha recebido. Pra marcar lá em cima. E numa dessa aconteceu um fato muito curioso. Que meu irmão, meu pai pensava que ele estava na escola, ele estudava no São Luiz, naquela época, no ginásio, e meu pai estava sentado no
bonde e viu um menino que chegou com um monte de jornal na mão, oferecendo jornal , pendurado no bonde, andando, pendurado no estribo do lado e com aquela correia assim que usavam os jornaleiros
naquela época, uma correia, e ia oferecendo o jornal. E aqueles que queriam jornal pegavam, e quando meu pai olhou assim, ele ofereceu o jornal pro meu pai. Quando ele viu que era o meu pai e meu pai viu que era ele, meu pai pôs a mão na cabeça, né : PelamordeDeus, o que que você está fazendo aqui com esse monte de jornal vendendo jornal?! Isso no bonde aberto. Os bondes eram tudo aberto, né.
P1 – Mas tinha os fechados.
R -
Fechado tinha os camarões. Mas os camarões vieram depois de uns quatro ou cinco anos. Mas o camarão era diferente, o camarão era mais restrito...
P/1 – Mas o seu pai
viu o filho dele ...
R – Vendendo jornal num bonde aberto. Aí, que que ele fez? Ele não foi pra cssa naquele dia lá: Eu vou apanhar. Então, ele ficou na casa da minha avó. E a minha avó ( riso) a minha avó não deixava bater na gente. Ela falava: Olha, se você bater nele ele vai ficar aqui. Aí nós dormíamos dois três dias na casa da minha avó. Aí quando a gente voltava a raiva já tinha passado, aí não acontecia mais nada.
P/2 – O sr. lembra da porteira quando fechava?
R – Lembro, bom, as porteiras , quando elas fechavam, a gente o que fazia. Pra aproveitar aquele negócio lá
da... que ela fechava com dois ferros assim do lado,
puxava assim do lado, com motorzinho,
que dava um retrocesso, girava ao contrário, então a gente o que fazia? A gente pegava e se pendurava nelas. Pra dar aquele ângulo... entendeu? Pra fazer a voltinha. Então, toda a criança, a gente ficava brincando perto das porteiras. O que fazia com que... a gente não deixava de correr um perigo,
porque batia, aquilo batia às vezes muito forte, a gente estava pendurado e bum! você caía do outro lado da linha, entendeu? Onde passava o trem.
P/2 – Não era manual que
fechava porteira, pelo o que estou entendendo?
R – Não. Era manual. Era dois calços assim que viravam, dois cabos de aço. E os caras puxavam de dentro assim das... cabines, puxavam aquele cabo de aço e a porteira vinha. Entendeu?
E os guardas, eles já não agüentavam mais
falar pra você
não fazer isso aí, então eles largaram mão. Mas a gente brincava muito lá. Se pendurava, aquelas porteiras fechavam, e quando abria era o contrário. Era os daqui que puxavam ela pra lá. Aí também era um outro perigo, porque os que estavam lá, queriam vir pra cá. Então
era perigoso,
porque você às vezes ia pra cá, e podia cair no meio da linha,
no caso de vir outro trem do outro lado, você podia ser pego e atropelado.
P/2 – Nunca aconteceu?
R – Nunca aconteceu. Agora, vi muitos acidentes com bonde.
Uma vez estava saindo do Guarani, então tinha o camarão que vinha, por exemplo, da Praça da Sé, ele pegava, vinha , ele ia pra Consolação. Então ele ainda passava na Piratininga, dava aquela baita volta...
P/2 – Onde tinha a sorveteria que o sr. falou?
R – Não, não era sorveteria, era confeitaria. Dos doces. Onde é o Bradesco atualmente, agência Rangel Pestana. Então eu estava saindo, e vi que o moço caiu. Do bonde aberto , pendurado, assim,
ele caiu. Mas ele não ia se sofrer nada. Porque ele tinha caído assim....Mas aconteceu que
vinha vindo um
camarão. Camarão atrás, bem encostado no outro. E as duas pernas dele ficaram naquela posição. E não deu tempo do condutor parar. Então passou. Eu vi o moço em baixo, né. Aí eu corri lá pra ver. Você podia correr porque
naquele tempo não tinha muito carro, não tinha nada.... era tudo aberto, assim, aí eu vi lá o rapaz, metade do corpo dele pra fora, e metade pra dentro do bonde. Eu me
lembro como se fosse hoje, um senhor que estava perto de mim , falou :
Filho não olha, Não olha, porque as pernas dele ficou do lado de lá. Então eu falei pra ele: Mas como, ele não está chorando ele não está gritando. Falou: Não, é que o sangue está quente. Ele não sentiu o corte ainda. Mas o rapaz
já estava morrendo. Aí já veio o carro
do.... e aí tirou o rapaz de baixo do bonde. Tirou em duas partes, né. Mas era muito acidente com bonde. De ficar de baixo do bonde. Era uma coisa comum. E outra coisa comum da época também era o passeio de bicicleta. Você via assim muitos moços e muitas moças passeando de bicicleta pela rua, na Rua da Moóca, na Rua Professor Batista de Andrade, que é aqui do lado, perto da Rua Piratininga, e nós íamos lá e era tudo terreno... sabe, nem paralelepípedo tinha naquela época. Era tudo terra. Então você passeava com as bicicletas, as mocinhas ficavam tudo na porta, a gente passeava, conversava, parava na casa de um, parava na casa de outro... As meninas, então a gente tirava linha com elas, conversava, aquela coisa gostosa.: No domingo a gente se encontra no cinema...
P/2 – O que vocês iam assistir?
R – Hugo Del Carril, Libertad Lamarque, aquelas músicas muito bonitas, José Mojica, um ator mexicano que depois se tornou padre. Depois que se tornou padre ainda ele fez dois filmes. Nossa, a mulherada chorava quando via ele. Ele era muito bonito, depois ficou padre,
elas achavam que perderam aquela esperança. Cantinflas, também, muito filme do Cantinflas, olha, a gente gostava. E no intervalo também tinha aqueles jornais. Quando você entrava no cinema tocava aquelas músicas, sabe, e quando abria a tela assim, você via primeiro o jornal, falando assim da guerra, falando dos pracinhas brasileiros que tinham ido pra guerra, aquela
coisa toda, tinha também os baleiros, que você estava sentado no cinema, na cadeira, não era poltrona....
Fim do Lado B da Fita Hum
Início do lado A da Fita Dois
...era cadeira, mesmo,
aquelas cadeiras de madeira, então tinham os baleiros, que ofereciam, no intervalo. Ofereciam chocolate... Um fato curioso, que minha irmã começou a namorar com o José, que é o meu cunhado e até hoje está vivo, e meu pai falou pra mim você vai, que aquele tempo não tinha esse negócio de as meninas ir sozinha
no cinema
com o namorado, não. De jeito nenhum. Então meu pai falou: Olha, a Lina vai com o José no cinema, era um domingo de tarde, numa mati não era de noite, na matiné:
Você senta no meio dos dois... Mas esse meu cunhado ele era vivo pra chuchu. Ele me comprava,
quase. Aquele tempo existia uns chocolates, existia uma fábrica Gardano, que fabricava uns chocolates gostosos,
a Soncksen, a Lacta, então ele pegava e dizia: Ô Heraldo, faz o seguinte. Vai comprar um chocolatinho lá pra você, ele estava bem de vida na época, ele tinha uma cantina aí Rua Piratininga,
ele dizia: Vai lá comprar chocolate pra você, né. E eu falava: Não, não vem com essa , não, eu não vou comprar coisa nenhuma Meu pai falou pra não sair do lado dela: Mas por que, rapaz? Não, ele falou pra não sair... Meu pai falou : Não saia do lado dela, você fica do lado dos dois, heim, não dá moleza. Eu falei: Bom. Mas eu não agüentava, a tentação era muito grande, eu ia lá comprar o chocolate. Mas também eu judiava muito dele. Porque eu comprava bastante, então chegava em casa dava pros meus outros irmãos: Pra que
que você comprou tanto chocolate? Até o dia que meu pai descobriu e ele me bateu. Então falou: Então, você por causa de chocolate você deixa sua irmã sozinha namorar, lá? : Pai, eu estava lá, perto, ele me comprou chocolate e eu vou dizer que não queria chocolate?
P/2 – Deixa eu perguntar uma coisa. Tinha time de futebol aqui no Brás...
R- Tinha. Tinha o Palestra Itália, tinha ... O Palestra Itália era lá na... onde é hoje o Parque Antártica,
não tinha... era mais só futebol,
era um campo que os jogadores faziam os treinos lá...
P/2 – Mas, e aqui no bairro?
R – Aqui no bairro tinha. Tinha o Ápia Futebol Clube, e tinha mais o Palestra Itália, que também era do bairro aqui, tinha o Juventus, que era mais da Moóca do que do Brás. Mas, sempre estavam aqui jogando junto com a gente. Eram esse três times aí.
P/2 –O Palestra eles só não jogavam aqui mas os jogadores eram daqui?
R – Exatamente.
P/2 – O estádio é que não era daqui.
R – Exatamente. O estádio era na Lapa. Sempre foi da Lapa, mas os jogadores eram todos daqui. O Ápia era um clube de futebol que tinha aqui na Rua Caetano Pinto,
e os jogadores eram tudo do Brás, a gente se juntava e jogava lá. Eu não cheguei a jogar lá Eu, sinceramente, não era adepto do futebol. Eu gostava mais de natação, então eu ia mais no Floresta, era sócio do Floresta, que ainda existe,
era sócio do Juventus, ia mais nesses clubes aí. Tietê também, o Tietê e o Floresta.
P-1 – O sr. freqüentava o Tietê também?
R – Freqüentava.
P/1 – Como era o rio, era muito poluído?
R – Não, não era. Não existiam enchentes,
porque como não tinha asfalto, em chuvas grandes, tempestades, o solo absorvia aquela água, então não tinha enchentes, mas também não existiam favelas. Não tinha problema nenhum de enchente.... de poluição...não tinha nada disso.
P/1 – Então, fale um pouco sobre as mudanças no bairro. Tiraram as porteiras, fizeram viadutos, o que o sr. diria dessas mudanças, incluindo também a construção do Metrô.
R -
A gente sentiu muito quando acabaram com
tudo isso aí, quando veio o progresso, aí nós já fomos percebendo, principalmente quando apareceu a televisão, foi muito bom. Muito gostoso, muito bonito. Mas tirou aquele calor humano que existia naquela época quando nós éramos jovens. Porque a televisão segurou o povo dentro de casa. Apesar que
quando ela saiu, na época de 54, mais ou
menos, 55, que veio aqui pro Brasil, pouca gente teve a oportunidade... Minha mãe, comprou. Logo que saiu. Minha mãe e meu pai. Mas a gente percebia que aquilo lá tirava muito a convivência das pessoas da rua. Então, a gente
ainda conviveu algum tempo. Com amizades... vinham na casa da gente pra ver televisão, diziam: Que que é isso aí, dizem que as pessoas aparecem numa tela, vamos lá ver, vamos lá ver... Mas aí, quando veio mais ou menos o progresso, vieram as indústrias,
aqui em São Paulo, aí veio também o Metrô...
P/2 – O sr. lembra da época da construção do Metrô?
R -
Lembro perfeitamente.
Bom. O início da construção do Metrô, vieram... Por isso que eu digo. Eu não sou contra os nordestinos, porque acho que nós devemos muito a eles. Acredito que 80% dos trabalhadores do Metrô eram nordestinos. E eram muito trabalhadores. Agora veio uma pequena escória, certo, acredito até que vieram fugidos do norte, então esses poucos que vieram começaram as violências aqui em São Paulo. Porque no meu tempo, existiam os bandidos. Mas não eram bandidos. Tinha o Meneguetti, que ele era assaltante, mas ele roubava, coisa assim. Se você deixava uma bicicleta na rua ele levava mesmo. Mas ele vendia aquela bicicleta e distribuía entre os pobres. Era um bandido
um tipo de
Robin Hood, vai, brasileiro. Agora, depois do Metrô, não. Quando começou o Metrô, que eu fui inclusive desapropriado, com duas casas. Aquela parte de cá, eu perdi duas casas. Digo que perdi, porque naquele tempo eles pagaram pouco, valor venal, muito pouco. Mas eu tive sorte, porque naquela época
eu estava estabelecido na Rua Campos Salles, que era prédio alugado. Aí comprei esse prédio vizinho aqui, era uma casa velha, e aí fiz
o meu depósito. Mas a minha loja era lá. Na Rua Campos Salles. Mas quando saiu esse negócio do Metrô, quando começou a se falar em fazer o Metrô, não foi rápido que fizeram, não.
Isso ficou mais ou menos uns seis sete anos. Aí apareceu o traçado. O traçado dele pegava aqui. Pegava nesse lado. Falei: Peloamorde Deus, eu tinha acabado de construir
a casa, naquele tempo lá você construía sem planta, sem nada, depois é que você regularizava. E...fiquei preocupado. Falei: Puxavida, agora pegou meu prédio novinho lá,
meu Deus do Céu, o que que eu vou fazer? Aí, não. Acho que devido ao Matarazzo, à política que existia naquela época, então eles retrocederam. Desviaram o Metrô por causa da Matarazzo. E pegaram justamente
o lado de lá, e não pegaram aqui.
P/2 – Mas o sr. foi desapropriado, afinal. Eles pagaram abaixo do valor, e pagaram logo?
R – Sim, pagaram. Eu inclusive, aconteceu uma coisa curiosa comigo nessa época, porque foi justamente quando eu fiquei viúvo. Eu tinha esses três filhos meus menores de idade. E o Metrô, eles me pagaram naquela época, vamos dizer, vai, fosse, recebi dois cheques de 120 reais. 120 mil cruzeiros, não me lembro na época o dinheiro que era. Bom, metade desse cheque veio pra mim. E a outra metade foi pros meus filhos, que seria a parte da minha esposa. Mas, eu encontrei uma advogado picareta
que não soube me orientar. Então o que que eu fiz? A parte dos meus filhos, eu falei: Olha, o curador pede que essa parte seja depositada em juízo. Então o Metrô fez dois cheques. Um cheque pra mim, e um cheque... Eu falei: Tudo bem, não tem problema. É deles. E eu depositei esse dinheiro na Caixa Econômica Federal. Lá na Praça de Sé. Bom. Aí passou-se muitos anos. E o dinheiro lá. O meu dinheiro, não. Com o meu dinheiro comprei propriedades, comprei casas, muita coisa. Mas o dinheiro dos meus filhos ficou lá. Quando o meu filho mais velho fez os 18 anos, aí eu falei: Bom tá na hora de ver como está esse dinheiro dele. Quando eu cheguei na Caixa Econômica Federal, não tinha mais na-da. E disseram : O sr. vai me desculpar, mas o sr. tirou esse dinheiro. Como eu tirei? Esse dinheiro aí tinha sido, porque o curador pediu que fosse depositado logo no começo, quando começou a sair a poupança. Então vamos depositar esse dinheiro em poupança das crianças. O juro vai ser creditado todo o mês na continha deles. Bom, com esse dinheiro aí, o menino já tinha 18 anos, até brinquei com ele: Bom, a tua parte você já pode tirar. Que foi depositado em três cadernetas. Conforme ele completasse 18 anos, podia tirar. Falei: Com esse dinheiro aí, filho, você compra um apartamento, alguma coisa pra você: É, papai vamos tirar esse dinheiro, pra que deixar lá. Quando eu cheguei lá, eu falei: Eu queria saber dessa conta aqui. Não, o sr. vai me desculpar, não existe essa conta. Nenhuma dessas três contas. Falei: Como não existe? Então, eles não depositaram em poupança. Simplesmente depositaram numa conta comum. Ficou parado, e como houve mudança do dinheiro, aquela coisa toda, o cruzeiro desvalorizou. E foi tirando. E realmente... o dinheiro acabou. Eu falei: Não, não pode ser, não pode ser. Aí o gerente da Caixa falou: O sr. tem certeza que não tirou esse dinheiro? Falei: Pelo amor de Deus, o dinheiro era do meu filho, foi depositado em juízo, se eu tirei, se o sr. está duvidando, me mostra o documento que eu tirei! Aí me enrolaram, me enrolaram, me enrolaram, até que pus num advogado. Aí mexeu com a gerência geral, com a inspetoria da Caixa Econômica, porque tinha sido uma ordem judicial... Aí o advogado falou: Mas por que, por que você fez isso? Por que você depositou em juízo esse dinheiro. Falei: porque meu advogado mandou...Não senhor, você é pai deles. Você com esse dinheiro você podia ter comprado uma propriedade e posto no nome deles, dos três. Falei: Não, mas eu não sabia... Mas depois, foi acertado, o juiz pediu que fosse calculado os juros e correção
monetária, aí realmente me deram todo esse dinheiro de volta pra eles. Graças a Deus.
P/2 – Seu Heraldo, essa casa que foi desapropriada, da qual o sr. recebeu esse dinheiro, o sr. chegou a morar nela?
R – Cheguei.
P/2 – O sr. viu a casa sendo demolida...
R – Vi, perfeitamente. Perfeitamente. Inclusive, quando nós fomos desapropriados, o Metrô deu toda a liberdade pra nós
tirarmos o que quiséssemos de lá. Torneira, lâmpada, todo o material, que ia ficar tudo no chão. Eles iam derrubar mesmo. Naquele tempo não eram companhias de demolição. Era a própria prefeitura que derrubava. Então, não tinha interesse em guardar material usado. Naquele tempo os chuveiros eram tudo de metal, as torneiras. Não eram de plástico com banho de cromo, nada disso. Eram tudo ...Então a gente aproveitava, entrava lá dentro e tirava tudo aquilo. Fiquei indo quase três meses lá. Abria a porta, fechava, e já era do Metrô. Então eu tirei a fechadura da porta, tirei...
P/1 – E quando começaram as escavações foi muita bagunça no bairro?
R – Foi muita bagunça. Foi um transtorno muito grande, inclusive aí,
na minha opinião, é que
começaram as violências, principalmente contra as mulheres. Porque. Todo o sábado, depois,
quando começou essa... todo o sábado, tinha uma mulher estuprada morta aqui perto. Do Metrô. Todo o sábado, na madrugada de sexta pra sábado, a gente podia contar: Quem foi que morreu desta vez?
P/1 – Vocês atribuem os crimes ao pessoal da obra?
R – Ao pessoal da obra, por causa daquela escória que veio também, né. Que nem eu falei. 80% dos nordestinos, na minha opinião,
era gente boa. Trabalhadora, inclusive eles tinham os alojamentos deles. Mas, esses 20% aí....
P/1 – Tinha assalto, roubo, assassinato?
R – Exatamente. Aí a gente já não podia mais sair na rua. Não podia inclusive passar perto do Metrô. De noite. Você era assaltado, você era roubado...
P/1 – E o transtorno em termos de fornecimento...água, luz, etc.
R -
Não, porque eles ocuparam uma grande área pra guardar todo esse material. Então a desapropriação ela foi muito além da construção. Foi uma área muito grande desapropriada, e muito pouca construída. Hoje você vê aqui nesses prédios um apartamento com uma salinha pequena, uma cozinha que não cabe duas pessoas, uns quartinhos que mal cabem um guarda-roupa e uma cama. E você vê uma área, por exemplo onde se guardam os automóveis, enorme, que é garagem do Metrô. Então você vê que essa área onde você vê os estacionamentos é enorme, enorme. E uma área de construção dos apartamentos pequenininhos.
P/1 – Tudo isso foi reurbanizado, tal...
R – Foi, mas na minha opinião, o Metrô não trouxe desenvolvimento nenhum pro bairro. Trouxe sim em termos de condução, que na minha opinião o Metrô é uma sétima arte, vai, depois da sétima arte é o Metrô. Que é uma condução fora de série. Então em termos de transporte o Metrô foi espetacular para a população. Mas não trouxe assim nada em termos desenvolvimento econômico, financeiro, de habitação, também, porque eu acho um absurdo um apartamentozinho desse aí, da COHAB, custar 100 mil , 120 mil. Isso não foi construído para o operário, para o pobre... Nem pro rico também. Porque o da classe média, pra morar num apartamento desse aí, a maioria deles que eu conheço já estão todos abandonados. Que o cara está lá brigando na Justiça e não paga mais as prestação. Que prestação de 800, 900 reais por mês, é um absurdo.
P/1 – O sr. acha que a facilidade de ligação entre os bairros não compensa o que o Metrô trouxe de negativo?
R – Não.
Compensou, sim, compensou. A gente nota que foi uma maravilha. Não sei, eu uso pouco o Metrô. A primeira vez que usei achei uma sensação muito gostosa. A rapidez com que você está num lugar e está no outro ...Você fica até assim meio atordoado. A primeira vez que eu entrei no Metrô, me deu até tontura, porque eu entrei dentro daquele trem lá e como brecou,
falei: Ah, que coisa, né. Inclusive
você é capaz até de cair, né. Foi uma coisa sensacional. Se bem que me perdi muito também, né. Eu não controlava esse negócio de estação...e tomava o trem errado, e direção contrária, agora não. Agora já está tudo certo.
P/1 – O sr. participou da viagem inaugural, as primeiras?
R – Participei em algumas delas. Apareceu o prefeito, tudo, mas não foi uma coisa assim... muito... sabe? Comemorativa, não, porque eles atrasaram um pouco a obra, então quando inaugurou já... antes da inauguração já teve uma saída, depois inauguraram depois, política aqui no Brasil e assim, né. Eles inauguram uma coisa duas , três vezes.
P/2 – Não teve uma coisa de andar de graça, na primeira viagem, lembra disso?
R – Teve. Eles liberaram a viagem, se eu não estou enganado foi liberado, sim.
P/1 – A primeira vez que
o sr. viajou foi até onde, o sr. se lembra?
R – Olha, a primeira vez eu fui até a Praça da Sé, depois até o
Anhangabaú, depois na estação Conceição, um pouquinho em cada lugar. Foi um passeio. Mas o que eu gostaria de frisar bem, nessa entrevista, é que, se Deus me desse o poder de conhecer 10 anos pra frente agora, ou voltar 50 anos pra trás, eu preferiria voltar pra trás, e não ver o que eu estou vendo. Acho que o futuro não é tão promissor. Acho que o passado foi uma coisa muito bonita. Muito bonita, muito simples, muito bacana, assim, por exemplo, não existia maldade, os namorados, por exemplo, não tinham a maldade que existe hoje. Os moços respeitavam muito as moças, queriam casar mesmo, e queriam que elas fossem virgens mesmo, isso sem ser assim de machismo, não existia esse negócio de machismo, não existia esse negócio de homem querer mandar na mulher. Não! Era uma coisa mesmo natural do homem querer isso aí. E as moças também se guardavam muito naquela época. Sempre existiu sem - vergonhice, sempre existiu. Desde os tempos de César.
P/2 – Sr.
Heraldo,
essa projeção
pessimista que o sr. fez pro futuro se estende também pro bairro do Brás?
R – Não. Pro bairro do Brás, não. Porque hoje,
o Brás,
ele é tido como o bairro assim, puxavida, muito próximo ao coração de São Paulo, então ele é considerado um bairro assim ainda de antigos. Um bairro antigo. Porque hoje, por exemplo, a coisa ruim, eu acho que, está uma previsão ruim pros bairros que estão longe. Na Zona Sul, por exemplo, hoje em dia não existe mais lugar onde você tem paz, você tenha sossego. Até no Morumbi hoje é perigoso. Até na Vila Mariana, que é um bairro, residencial, Hoje, não. Hoje existe perigo em todo o lugar, entendeu? Porque o perigo não está no bairro. Está nas pessoas. Onde vão morar essas pessoas,
que existe o perigo. O bairro é bom, a Vila Mariana é um bairro bonito, que sempre foi bem desenvolvido,
de gente rica, de gente famosa. O conde Francisco Matarazzo, por exemplo, é aqui do Brás. Ele se criou aqui no Brás também, e no entanto...o Brás é um bairro gostoso, bonito, eu gos-to! Poderia morar num bairro onde não tinha um vizinho, que quando eu quisesse comer um pão eu tinha que pegar o carro e ir numa padaria longe comprar?
P/2 – Do que o sr. mais gosta no Brás?
R – No Brás? O Brás é a terra onde eu nasci. A turma fala: Ehhh, aquele Brás... como é que você vive ...É o lugar que eu gosto, que eu nasci e me criei, cresci aqui, tive os meus filhos aqui, me desenvolvi aqui, eu
ganhei dinheiro aqui, o que eu tenho hoje graças a Deus foi feito aqui no Brás, e nuuunca na minha vida tive problemas aqui no Brás. Graças a Deus, nem fui assaltado. Graças a Deus. Não teve problema de violência nem comigo nem com a minha família.
P/1 – Então caberia aqui perguntar: se o sr. tivesse esse poder, como
melhoraria esse bairro?
R – O Brás pro futuro, eu não poderia fazer nada por ele. Se fosse uma varinha mágica, eu faria tanta coisa boa. Eu tiraria muita coisa, muito progresso que tem aqui, por exemplo, hoje em dia você vai numa churrascaria, não tem aquela alegria que tinha antigamente nas cantinas, onde você comia, bebia, você cantava... Eu me lembro, quando eu ia com os meus pais na cantina, a gente cantava, ficava lá duas, três horas sentado na mesa comendo, bebendo, sem ficar bêbado, sem falar palavrões, e tomando um vinho, e saíamos das cantinas voltávamos pra casa, íamos ainda conversar com o vizinho, ficávamos sentados
na casa do vizinho conversando mais uma, duas horas da noite...Então, eu simplesmente eu acho o seguinte. O Brás foi desenvolvido nesse sentido. Do Metrô, das indústrias que vieram pra cá, que agora já estão saindo também daqui... O caso do Matarazzo nós tivemos há pouco tempo... E esperamos
que não venha pra cá um cadeião, que estão falando que vão fazer,
a Febem, por exemplo, que aqui está perto de nós, o SOS Criança, isso tudo traz ... não é uma coisa boa. Isso tudo acho que o governo, os políticos, deviam ser mais honestos, deviam ter mais coração com o povo, que afinal fomos nós que colocamos eles lá, confiamos, e depois a gente recebe da parte deles uma coisa que não é lícito nem falar.
P/1 – Agora, em relação à sua experiência de vida, que lições o sr. poderia registrar?
R – Eu recebi uma educação fundamental dos meus pais. Eu aprendi com os meus pais, naquele tempo, que a gente tem que respeitar, pra ser respeitado. E eu sou um homem muito respeitado aqui no Brás. Muito respeitado. Não sei se pelos anos, pelo tempo que estou aqui, sempre me dei bem com as pessoas, sempre procurei fazer o bem aqui com a comunidade, sempre quando parece alguma coisa pra eu fazer aqui no bairro eu faço, ajudo, colaboro, mesmo precisando falar com políticos, com a prefeitura, até na limpeza das ruas nós colaboramos, eu colaboro, faço parte aqui do Alô Limpeza, acho muito bonito uma rua estar limpa, estar sem lixo, isso aí colabora pra você se sentir bem. Gostoso você sair na porta de casa assim e ver tudo limpo, tudo arborizado. Eu faria isso aí. Mas o fundamental é o que está dentro do teu coração. É você transmitir aquilo que você aprendeu no passado. Que eu transmiti para os meus filhos, e eles aprenderam. Mas eu não vejo, na geração futura, eu não vejo essa mesma coisa. Hoje eu vejo por exemplo uma criança com 10, 12 anos já
falando coisas muito bárbaras, palavrões na rua, palavras que nem é lícito aqui falar, acho que não dá pra fazer nada mais pelo Brás.
P/1 – Só pra encerrar, o senhor tem algum sonho que gostaria de realizar?
R -
O meu único sonho, pro bairro,
seria acabar com essa violência toda. Queria que as pessoas novamente pudessem conversar, que a gente pudesse sair na rua oito horas, nove horas da noite, encontrar um vizinho, sentar com ele na rua, bater um papo, tomar um guaraná na porta, pegar umas cadeiras, sentar na porta e ficar
conversando, que hoje é impossível fazer isso.
P/1 – É um costume que se acabou?
R – O costume acabou, e era tão gostoso, cinema não digo, porque a televisão acabou com tudo isso aí. Mas, você poder conversar. Só conversar, não ficar em bar tomando cerveja, bebendo cachaça, e falando bobagem. Não! Conversar. Um vizinho sentar perto de você e dizer: Péra um pouquinho que você vai comer um sanduíche que eu fiz aí agora;
Péraí que você vai tomar um guaraná, uma cerveja junto comigo. Eu gostaria disso aí.
P/1
- Muito obrigada pela entrevista.
R – Eu também agradeço e estou aqui às suas ordens.
P/2 Obrigada.Recolher