P/1 – Tatiana, você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Tatiana Tibúrcio da Silva, nascida no Rio de Janeiro, Flamengo, no dia 29 de maio de 1977.
P/1 – Tatiana, seus pais são do Rio?
R – Minha mãe é. Meu pai eu não sei, não conheço. Minha mãe é do Rio,...Continuar leitura
P/1 – Tatiana, você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Tatiana Tibúrcio da Silva, nascida no Rio de Janeiro, Flamengo, no dia 29 de maio de 1977.
P/1 – Tatiana, seus pais são do Rio?
R – Minha mãe é. Meu pai eu não sei, não conheço. Minha mãe é do Rio, é de Campos.
P/1 – E os seus avós, os pais dela, você conhece a história?
R – Minha avó, minha avó também é de Campos. Isso, minha avó também é de Campos, a mãe dela já era de Minas. Minha bisa era de Minas.
P/1 – Você sabe um pouco a origem, o que eles faziam, sua avó, bisavó?
R – A minha árvore para na mãe da minha bisa, porque ela era escrava, tinha uma irmã, as duas eram do mesmo dono. E a minha mãe diz que a bisa falava que ela veio da Bahia com essa família, e ela só lembra que passou por um túnel, e depois a vida mudou completamente. Ela atravessou o túnel e depois não lembra mais nada, a vida mudou completamente. Uma irmã foi pra um lado e ela continuou com essa família. A irmã foi separada por algum motivo que a gente não sabe qual, e ela continuou com essa família.
P/1 – E sua avó?
R – A minha avó é de Santo Eduardo. Minha avó é de Santo Eduardo. É isso, de Santo Eduardo, interior do Rio. Eu sei tão pouco da minha avó, apesar de ela ter me criado até os sete anos, mas ela morreu quando eu tinha dez anos. Então eu sei muito pouco da minha avó. Minha avó era Zenir Lourenço da Silva, casada com Alcides Tibúrcio da Silva, veio de São... Como é o lugar que eu falei? Veio e depois sumiu.
P/1 – Santo Eduardo.
R – Santo Eduardo. Santo Eduardo. Eu lembro que quando eu morava com a minha avó, a gente morava em Casimiro de Abreu, que é tudo dentro da mesma região, Campos, Macaé, Santo Eduardo, Barra de São João, eles viveram muito tempo por ali. E eu fui criada na primeira infância em Casimiro de Abreu.
P/1 – Por que você foi criada pela sua avó?
R – Porque minha mãe trabalhava, minha mãe era empregada doméstica aqui no Rio. E aí nos primeiros meses, depois que eu nasci, eu até pude ficar com ela, até o segundo, terceiro mês, depois eu tive que ir, porque a patroa dela não deixava.
P/1 – E você tem mais irmãos?
R – Não. Filha única.
P/1 – O que você se lembra dessa convivência com os seus avós até os sete anos?
R – Ah, eu tenho muitos flashes, tenho muito flashes, mas... Eu lembro que meu avô tinha um bar que ficava do lado da rodoviária de Casimiro de Abreu. Então nossa infância foi que meio ali, porque a gente morava nos fundos do bar. Tinha o bar, aí vinha o reservado onde guardava as bebidas, tal, e depois do reservado era a casa do meu avô e da minha avó, onde a gente morava. Eu odiava o reservado. E pra ir pra casa a gente sempre tinha que passar pelo reservado, era escuro, eu detestava. Isso é um flash que eu tenho, de sempre passar correndo pelo reservado. Meu avô era uma figura engraçado, porque meu avô não sorria, não. Eu nunca vi meu avô sorrindo, nunca na vida eu o vi sorrindo. E ele nunca chamava a gente pelo nome, era sempre “essa menina”. Todos os primos moravam com a minha avó. Éramos eu e mais três primos numa faixa etária muito próxima, minha prima mais velha tem a mesma idade que eu, a diferença é de meses, ela nasceu em março, eu nasci em maio, os dois irmãos dela a diferença dos três, de um para o outro, é de um ano, uma carreirinha assim. E os quatro, no caso, eles três, mais eu, éramos criados pela minha avó, meus primos por um motivo diferente, a mãe foi embora e os deixou aos cuidados do pai e o pai ainda morava com a minha avó, mas era jogado de futebol e aí não ficava nunca lá, enfim. E tinham os meus dois tios mais novos. Eu tenho tios que a diferença de idade da gente é de cinco anos. Os três tios mais novos a diferença é de cinco, dez, 15, é tudo muito perto, então a gente cresceu todo mundo junto. E meu avô chamava todo mundo de “essa menina”, todo mundo, menino, menina, “essa menina”, era sempre assim, não sabia o nome de ninguém ali . E eu tinha muito medo do eu avô. Meu avô andava sempre com chapéu de Panamá assim, arrastando o chinelão pelo bar e pela casa, sem sorrir, extremamente sério. O pai dos meus primos é a cara do meu avô, parece que é a cópia assim, o que era jogador de futebol, parece que é a cópia do meu avô, até no jeito sisudo de ser assim, o meu tio, que curiosamente se chama Dadá, apesar de ter essa cara tão séria, tio Dadá.
P/1 – E a sua avó?
R – Minha avó, minha avó era uma gracinha. O pouco que eu me lembro da minha avó é que ela também era uma mulher muito séria, muito firme, mas muito doce. Eu gostava muito da minha avó. Ela era muito doce, apesar de muito exigente com tudo, no nosso asseio, nos nossos deveres, nos nossos horários, ela era muito exigente, mas também muito amorosa, de um jeito só dela de ser. Do nada ela vinha, fazia um carinho discreto na cabeça, dava um tapinha assim, era o jeito de ela ser amorosa. Você tá sentado... Eu lembro que a gente sentado na sala vendo TV, aí de repente vinha a minha avó e dava uma ajeitadinho no vestido assim. Era o jeito dela de dar carinho. Ela não falava muito, era muito quieta, muito na dela. É isso.
P/1 – Quais eram as brincadeiras de infância?
R – A gente brincava muito de pique-bandeira, que eu gostava demais. Tinha uma brincadeira que era Bete e Paula, era a brincadeira com as minhas primas, com essa minha prima, principalmente. São duas meninas e um menino, no caso desses meus três primos, aí o Juninho era meu filho e a Daiana era filha dessa minha prima, que é a Eliana, ela era a Bete, eu era a Paula. Então era assim, a nossa brincadeira era: ou era pique-bandeira, todo mundo brincava de pique-bandeira, ou a gente brincava de Bete e Paula, que na verdade era brincar de casinha. Entendeu? A gente levava os filhos pra escola, os maridos estavam sempre por chegar, era uma coisa assim. Era gostoso.
P/1 – Aí a sua avó morreu, você tinha quantos anos?
R – Minha avó morreu eu tinha dez anos, mas aí eu já não morava mais com ela, com sete anos eu fui morar com a minha mãe.
P/1 – Aí a sua mãe conseguiu, mudou de trabalho, como foi?
R – Não, porque ela conheceu o meu primeiro padrasto e aí eles namoraram um tempo, e quando a relação tava firme, ele sabia que ela tinha uma filha, ele falou: “Bom, traga a sua filha, vamos fazer uma família”. E aí eu fui morar com ela. Ela parou de trabalhar, casou, e aí eu fui morar com... Pegou-me pra morar com ela.
P/1 – Onde que você morava com a sua avó?
R – Casimiro de Abreu.
P/1 – Como era Casimiro de Abreu quando você era pequenininha?
R – Casimiro de Abreu era uma versão antiga de Paquetá. Era uma cidadezinha do interior, não tinha nada pra fazer em Casimiro, nada, nada, nada, mas a gente tinha muita liberdade, a gente andava muito pela rua, sempre descalço. A gente trabalhava, a gente não os sobrinhos, mas os tios, por exemplo, com a faixa etária muito próxima, eles trabalhavam vendendo picolé. Essa é uma lembrança que eu gosto assim, eu me lembro do meu tio Cadinho, o nome dele era Claudio, mas a gente o chamava de Cadinho, ele vendia picolé e andava pela rua com um bordão assim... Era muito engraçado, ele um molequinho com aquele short molinho, tipo Adidas, com aquela listrinha do lado assim, pés no chão, com o isopor pendurado assim, aí ele andava gritando: “Olha aê o picolé, água pura ninguém quer, vá buscar em Macaé”. Era por Casimiro inteiro ele andando com essa cantiga assim, e a gente atrás do Cadinho, correndo e ajudando-o a vender picolé. Mas pra gente era brincadeira, pra ele era um dinheirinho que ele já tava ali dando um jeito de conseguir. Isso era legal. Aí a gente morava atrás do bar do meu avô, mas depois minha mãe ajudou meu tio Dadá a comprar uma casa no antigo BNH, que hoje já não existe mais, agora é um bairro e as casas já não têm mais aquelas carinhas todas iguais, a dele então, tá completamente diferente. E aí a gente ficava, aí minha avó foi morar com a gente no BNH e meu avô continuou morando na casa atrás do bar. Ali era mais... Não era tão legal morar ali, não. Era mais distante do centro, então não tinha pracinha perto. Casimiro nunca teve, até hoje não tem, transporte, não tem ônibus, não tem nada disso. Eu acho que agora que tá tendo van pra levar desse ponto do BNH até ao centro da cidade. Que ao mesmo tempo em que é um lugar muito pequeno pra esse tipo de locomoção, também é muito distante pra quem anda a pé, então às vezes andar do BNH até à rodoviária, eram 40 minutos caminhando. Pra mim era um inferno, mas...
P/1 – E aí quando você vai morar com a sua mãe e com o seu padrasto, você vai pra qual bairro?
R – Aí a vida mudou completamente assim, porque a gente era paupérrimo lá em Casimiro, era uma vida bem limitada, bem difícil. Quando minha mãe se casa, eu levo um choque cultural, porque eu vou morar numa cobertura na Estrada Froes, em Niterói, um dos pontos mais elitizados ali de Niterói, no Rio.
P/1 – Seu padrasto tinha dinheiro?
R – Tinha. Ele era engenheiro naval. Foi esquisito, foi estranho, porque ao mesmo tempo a minha mãe não me deixava entender que ele... Não me deixava chamá-lo de pai. Ela me ensinava a chamá-lo de Fisher, tio Fisher. O nome dele era Fisher. E eu não podia chamá-lo de pai. Só depois de muitos anos que ela permitiu isso. O porquê eu também nunca perguntei, mas era o tio Fisher. E era muito esquisito, porque ao mesmo tempo em que a casa era minha, não era minha, era do tio Fisher. “Cuidado que isso é do tio Fisher. Tem que ajeitar isso porque é do tio Fisher”. E era muito esquisito, no início eu preferia estar com a minha avó, porque lá era tudo nosso, não era nada de tio de nenhum. Mas foi legal, depois eu me acostumei.
P/1 – Como a sua mãe o conheceu?
R – Não faço a menor ideia.
P/1 – Ela era empregada quando o conheceu?
R – Ela trabalhava de empregada doméstica. O que eu sei é que ele era amigo de um amigo dela e aí eles se conheceram. Não sei se saíram juntos e acabaram se conhecendo, não faço a menor ideia.
P/1 – E você entrou na escola. Que lembranças você tem da escola, do primário?
R – Péssimas lembranças.
Detesto escola. Porque em Casimiro de Abreu, que foi onde eu estudei primeiro, a minha avó me ensinou a ler e escrever em casa. Então eu não fiz CA, não fiz jardim, não fiz nada disso. Na época tinha essas coisas, não sei como é agora, mas eu não fiz nada disso. Eu já cheguei preparada pra entrar na primeira série, só que a diretora da escola não acreditava que eu sabia ler e escrever, por questões raciais mesmo. Aí minha avó explicou: “Não, ela sabe ler e escrever sim, tal, tal, tal”. Eu tinha oito anos. Não, não tinha oito não, eu era mais novinha, oito anos eu já tava na segunda série. Mas, enfim, ela disse que eu não tinha como já saber ler e escrever, aí minha avó: “Não, ela sabe, tal, tal, tal”. Aí a diretora pediu que a minha avó provasse, aí botou uma cartolina do lado de fora do muro da escola, pregou, ficou segurando lá e pediu que eu escrevesse meu nome, e tudo que ela ditasse. E eu fui devagarzinho escrevendo, com todo mundo passando pela rua pra ver essa situação. E era ruim essa escola. Essa é a lembrança que eu tenho desse período. O ensino fundamental também foi uma droga.
P/1 – Aí você foi estudar em Niterói?
R – Não. Aí eu saí da casa da minha avó, a gente foi morar em Niterói, mas esse período que a gente morou em Niterói foi justamente período de férias e um período de adaptação pra mim. A gente ficou morando ali os três meses e depois a gente se mudou pra Teresópolis, que é onde ele tava comprando uma casa lá. Aí eu fui estudar num colégio chamado Colégio São Paulo, tem aqui no Rio também, é um colégio de freiras e tal.
P/1 – Particular.
R – Particular, era o mais caro de Teresópolis. E foi uma bosta, porque o colégio tinha dois quarteirões de escola, era muito grande, tinha muitos alunos, e os únicos negros da escola éramos eu e o filho do porteiro, os únicos dos dois quarteirões da escola. Que era jardim, essas coisas, ensino fundamental e segundo grau, éramos eu e o filho do porteiro só, e era muito esquisito. As freiras eram muito antipáticas, já eram antipáticas naturalmente e a impressão que eu tinha, e na época eu não fazia a menor ideia por que, mas a impressão que eu tinha era que comigo era um pouco mais, sempre era um pouco mais. As professoras não tinham muito paciência. Eu saí de um colégio em Casimiro de Abreu, que era um colégio municipal, e entrei nessa escola, que era uma escola particular, puxada pra caramba, então eu lembro até hoje que eu cheguei a casa com uma prova de Matemática e não tinha nota nenhuma, aí minha mãe: “Quanto você tirou?”. Eu falei: “Não sei. A professora não botou a nota”. Eu tinha tirado zero, óbvio, só que eu não tinha entendido que eu tinha tirado zero. Então foi um choque muito grande assim, até me adaptar, pegar meu ritmo de novo, me adaptar a toda aquela realidade foi complicado e muito ruim, eu odiava aquele colégio.
P/1 – Você sentia, naquela época, que era preconceito?
R – Eu não fazia ideia, naquela época, que era preconceito. Eu entendo isso hoje, mas naquela época não tinha como eu ter essa referência.
P/1 – Mas você falava pra sua mãe que você achava estranho?
R – Falava. Falava que eu não gostava da escola, que eu não queria ir pra escola. Ela sim percebia e sabia por que, mas ela dizia que eu tinha que ir sim, que tinha que olhar todo mundo de frente. Eu não entendia, eu chegava à escola assim, eu não entendi o que era olhar de frente, eu chegava olhando para as pessoas . Ai como eu era boba. Mas era muito ruim. Eu lembro que uma vez teve uma festa na escola, aquelas festas de final de ano e tal, tal, tal, aí como era um colégio católico, tinha presépio, aí tinha aquela representação toda e tal. E a freira, irmã Nazaré, ela entrou na sala perguntando quem da nossa turma que queria se candidatar a fazer a Maria, aí as meninas levantaram a mãe e eu, logicamente, levantei também, aí ela virou pra mim: “Não, Tatiana, você não pode fazer Maria”. Aí eu: “Mas por quê?”. Ela não respondeu. E continuou lá a seleção dela. Aí tá e queriam que eu fizesse parte do coro, do grupo que passava. Aí eu não queria, queria fazer Maria, queria de todo jeito fazer a Maria, porque eu achei linda a tal da roupa azul que escolheram pra Maria, eu queria de todo jeito botar aquele negócio. E eu ficava perguntando pra freira o porquê eu não podia ser a Maria, e ela não me respondia, sempre dava uma desculpa e saía. Aí eu falei: “Bom, se eu não posso ser a Maria, também não quero ser nada”. Aí quando eu fui à festa da escola, eu lembro direitinho disso, porque eu não queria ir e falei pra minha mãe que eu não queria ir, mas minha mãe me mandou pra escola e tal, tal, tal. Eu fui, mas não tinha pra fazer, porque eu disse que eu não ia fazer anda, que eu não queria participar de personagem nenhum, e eu fiquei perambulando pelo colégio inteiro. Quando começou... Na verdade foi antes da festa, isso foi ensaio, nos últimos ensaios, que já tava fazendo com roupa, com tudo direitinho. Aí você entrava na escola e tinha uma escadinha de pedra assim até o pátio, onde era a quadra, tal, e era ali que tava tendo o ensaio. Eu cheguei nessa muretinha, tinha um portãozinho de ferro, eu fiquei olhando, aí que eu entendi o porquê eu não podia ser a Maria, porque eu vi quem é que tava fazendo a Maria, quem é que tava fazendo o Jesus, o José e nã, nã, nã. Mas a minha tradução era: era a menina mais bonita. Eu ainda também não tinha... Eu entendi que eu não podia ser porque eu não era tão bonita, aí eu entendi qual era o padrão. Eu lembro direitinho, naquele momento eu entendi o que era “bonito”. E “bonito” não era ser como eu, então eu não podia ser a Maria. E não fui à festa da escola. Eu fui ao ensaio e à festa da escola eu dei um jeito de não ir.
P/1 – Você sofria na sua casa com isso?
R – Na minha casa não, mas na rua, sempre. Era muito ruim. Porque acontece o óbvio assim, você entra na fase dos namoradinhos, você não é a menina que querem namorar. Entendeu? As meninas vão brincar de alguma coisa, pentear cabelo, seu cabelo não é nunca o que alguém quer pentear. Entendeu? Você tava sempre fora das brincadeiras. Tinha uma parada de brincar de Barbie, e as meninas compravam roupinhas, e às vezes pediam pra mãe fazer, ou comprar, ou mandar alguém fazer as roupas iguais assim, delas para as bonecas, isso tinha muito na minha época. E elas eram parecidas, algumas, obviamente, eram parecidas com a Barbie, pelo menos o cabelo comprido, aquele estilinho, pá, pá pá. E eu, minha mãe nunca me deixou ter uma Barbie, eu fui entender isso muito depois, ela nunca me deu uma Barbie, eu implorava: “Dá-me uma Barbie. Todo mundo brinca de Barbie, eu queria tanto ter uma Barbie”. Ela ignorava e não me dava a Barbie. E depois eu fui entender, mas também não adiantou nada, porque as meninas brincavam de Barbie, e eu além de não parecer com a Barbie, eu não tinha Barbie pra poder brincar. Apelido da escola foi muito ruim nesse sentido, porque a criança é cruel, ela sabe como atacar você ali na veia mesmo, porque ela é direta, ela não tem freio.
P/1 – Mas o que te dava prazer assim?
R – Eu gostava de ler. Eu sempre gostei muito de ler. Eu lembro que com 12 anos eu lia Agatha Christie, nada a ver assim, pra minha idade, mas tava lendo Agatha Christie com 12 anos.
P/1 – Quem te dava pra ler?
R – Ah, eu achava em casa. Eu achava assim. Minha mãe lia, aí eu pegava dela e lia. Eu gostava... O meu padrasto tinha uma coisa curiosa assim, tudo que eu expressava de desejo criativo ele estimulava. Ele tocava piano, tocava muitíssimo bem. Aí quando ele saía do piano, eu ficava tentando tocar, aí ele me botou num conservatório. E eu adorava tocar piano. Eu tocava com ele em casa, achava o máximo, eu me sentia tocando.
P/1 – Ele era carinhoso com você?
R – Era. Era. Ele pintava também. A mãe dele pintava natureza morta, essas coisas mais... E ele também, tinha aprendido com a mãe a pintar. Aí eu o via pintando e ficava lá tentando fazer igual. Aí ele me deu cavalete, tela, tudo bonitinho, tinta, tudo pra eu poder pintar. Então ele sempre me estimulou muito. Na época, máquina de escrever, datilografia, eu fiz curso de datilografia. Ai meu Deus, eu to velha, eu fiz curso de datilografia. Porque ele digitava em máquina elétrica, eu achava aquilo o máximo, fazia um barulhão e ele mandava bem, fazia rapidão. Aí ele tinha uma que não era elétrica e ele me deu, eu tenho até hoje essa máquina em casa, nunca me desfiz dela, ainda funciona, inclusive. Ele me deu e aí eu fui pra um curso de datilografia pra aprender a datilografar. Hoje todo mundo fica lá no tecladinho no computador, dois dedinhos, achando que tá arrasando, eu vou com todos os dedos, me sinto . Mas é isso. Essas coisas são legais. Eu me lembro do primeiro recital que eu fiz de piano. Eu fui a única na turma que pude tocar com a professora, isso era a maior honra e tal. Eu toquei Cidade Maravilhosa, piano a quatro mãos com a minha professora. Eu me senti. Todo mundo batendo palma, eu achava o máximo. Os momentos que eram legais eram mais isolados, eram mais familiares, ou desempenho individual, que não dependesse do coletivo.
P/1 – E vocês iam visitar seus avós? Sua avó já tinha falecido aí?
R – Minha avó faleceu quando eu tinha dez anos. Foi muito, muito, muito ruim. Muito ruim. Mas eu não via muito a minha avó, não. O período que a gente morou junto eu não vi muito a minha avó. A gente meio que se afastou mesmo assim.
P/1 – Você teve algum tipo de formação religiosa, ou da sua avó, ou com a sua mãe?
R – Oficial não. Lá em casa minha avó era muito católica, mas um católico como a mãe Bia, porque reza pra Nossa Senhora, mas faz banhos de ervas que vovó não sei das quantas mandou, sabe assim? Essa era a noção religiosa que a gente tinha em casa. Mas nenhuma doutrina oficial assim. Durante um tempo as minhas tias mais próximas, que é a minha madrinha, a minha tia mais nova, a minha tia do meio, que morou a vida inteira com a minha madrinha, que é a minha tia mais velha, elas foram umbandistas, então tinha essa presença dessa religião dentro da minha casa, da minha vivência. Não da minha casa, mas da minha vivência. Mas nunca tive uma religião oficial assim, de fato, uma coisa que veio de família.
P/1 – A sua mãe tinha?
R – Não.
P/1 – Nem nada de religião?
R – Não. Da mesma natureza, ouvia os conselhos das minhas tias, ouvia os conselhos da minha avó, que era mais para o lado católico, assim, nada...
P/1 – Quantos anos você tinha quando você começou a tocar piano, fazer esse recital?
R – Ah, eu tinha... Foi logo que a gente foi morar em Teresópolis, eu devia ter de sete pra oito, o recital deve ter sido final do primeiro ano, com oito anos, mais ou menos. Deve ter sido isso.
P/1 – Aí o ginásio você fez aonde?
R – O ginásio eu fiz...
P/1 – No São Bento.
R – Não.
P/1 – No São Paulo.
R – Era São Paulo. Eu fiz parte no Colégio São Paulo, que eu estudei no colégio São Paulo até eu acho que quinta série, quinta série. Depois, com 11 anos o meu padrasto morreu. Aí a vida virou de cabeça pra baixo de novo, mudou tudo, tudo. Eu saí do colégio, saí da casa, saí de tudo, virou tudo de cabeça pra baixo.
P/1 – Por que vocês tiveram que sair da casa?
R – Ah, uma confusão. Uma confusão, porque ele não era brasileiro, ele era alemão e não tinha família aqui, não tinha família lá, ele só tinha uma filha que ele tinha deixado lá. E uma confusão de herança, de tudo e, enfim, a casa que a gente morava não ficou pra gente. Ele tinha uma casa aqui em frente à Ilha de Paquetá, quase uma chácara assim, que essa casa ficou pra minha mãe, ela mora lá até hoje. Mas a casa que a gente morava... Na Praia da Luz. A casa que a gente morava em Teresópolis não. Eu não lembro direito por que, nem exatamente o que aconteceu, mas os bens que ele tinha foram divididos entre pessoas que faziam parte da nossa relação ali, amigos dele, pessoas que ele conhecia, mas minha mãe ficou só com essa casa aqui. Aí a gente foi pra um apartamento que era... Ah, e ficou com esse apartamento em Teresópolis. E a gente ficou lá...
P/1 – Sua mãe ficou com o apartamento em Teresópolis e com a casa.
R – Ficou com esse apartamento e com essa casa. Depois ela vendeu esse apartamento, a gente voltou a morar em Niterói. Aí eu terminei o ginásio em Niterói, entrei no segundo grau...
P/1 – Mas aí ela tinha algum dinheiro, ela não voltou a trabalhar como doméstica mais?
R – Voltou. Voltou sim. Porque ela não sabia administrar, então... Ela não trabalhou o período em que ela ficou com o meu pai, meu primeiro padrasto. Então não tinha essa administração. Aliás, essa é outra carência nossa, a gente não sabe como lidar muito com grana, enfim. Aí foi um período confuso, porque um dia você tá dormindo numa casa com quatro quartos, você tem um banheiro só pra você, estuda no melhor colégio da cidade, pá, pá pá, tudo organizado horário pra acordar, horário pra dormir, horário pra comer, ta rá, rá, e no dia seguinte nada mais é daquele jeito, você tá morando num apartamento quarto, sala, cozinha e banheiro, dividindo a cama com a sua mãe, enfim. Essas mudanças sempre foram muito complicadas pra minha cabeça, não pela questão material, mas pela questão da segurança mesmo, da estabilidade, a vida nunca era uma coisa tranquila, linear, progressiva, era sempre um cavalo de batalha. Quando ele morreu, minha mãe foi costurar, ela começou trabalhando num... Como se fala? Ateliê. É. Um ateliê que fazia roupas pra uma loja lá em Teresópolis. Aí ela ficou costurando um tempo, eu não lembro exatamente quanto tempo, eu sou péssima de datas, mas, enfim. Depois ela vendeu o apartamento e a gente veio pra Niterói. Mas antes de a gente vir, ela vendeu o apartamento, foi fazer uma viagem e ficou um tempo viajando. Ela foi para o nordeste com um amigo dela, o mesmo que a apresentou ao meu primeiro padrasto, o Fritz. Ela viajou com o Fritz, ficou um tempo viajando com ele e eu fiquei morando com uma amiga dela lá em Teresópolis, que foi também uma bosta, porque eu fiquei sozinha, depois do furdunço todo eu fiquei só. E não foi legal morar com essa amiga não, ela era muito chata. Depois a gente veio pra Niterói. Quando ela voltou de viagem a gente veio pra Niterói, aí ficamos morando em Maria Paula, aí eu fui estudar em Icaraí, de novo num colégio metido à besta, mas mais alternativo, já não era mais um colégio tão reacionário, tão caretinha que nem o Colégio São Paulo. Era o Grafite, Grafite II, em Icaraí. Aí fiz metade do segundo grau lá e a outra metade eu fiz num supletivo no Rio, no Wakigawa. Aí me formei com 16.
P/1 – Por que você foi para o supletivo?
R – Porque eu não queria mais ficar no Grafite, não dava, pra mim não dava mais, eu não gostava da escola. Os mesmos problemas, muito sozinha, era sempre motivo de piada, um colégio sempre com muito... No Grafite eu nem lembro se tinha negros, mas, enfim. E eu não explicar, mas eu não me sentia à vontade, não me sentia bem, enfim. Aí eu pedi pra minha mãe pra fazer o Wakigawa, eu queria fazer um supletivo pra terminar logo o segundo grau. Aí ela deixou e eu fiquei morando com meu padrinho, que morava no Rio, porque ela ainda morava em Niterói. Aí eu fiquei morando com meu padrinho, que morava em Laranjeiras, e eu fazia no supletivo na Gago Coutinho, na Wakigawa da Gago Coutinho, que já não existe mais. E aí graças a Deus acabou a escola.
P/1 – Deixe-me só voltar atrás. Como era a sua relação com a sua mãe? Descreva um pouco como era a sua mãe.
R – Ai, minha mãe. Eu fiz um espetáculo em 2003 chamado “Candaces, a reconstrução do Fogo”, e falava de rainhas guerreiras africanas de Meroé, que conseguiram resistir à invasão romana durante muito tempo. Foram quatro rainhas, quatro dinastias. A minha mãe, depois que eu fiz esse espetáculo eu entendi como eu via a minha mãe, eu via a minha mãe como uma rainha dessa, como uma guerreira. Mas como tal, como uma guerreira, era muito firme e não tinha... Não via a minha mãe afetiva, eu não tinha essa relação de afetividade, talvez por a gente não ter convivido muito no período em que a personalidade tá se formando, que a identidade que você tá se entendendo, virando gente. A gente não conviveu tanto, a gente convivia no final de semana nesse período do nascimento até os sete anos de idade. Então eu acho que a gente não se conhecia muito. E eu era muito quieta, muito calada, eu falava das coisas que me incomodava, mas muito pontualmente, não entrava muito no assunto. E, não sei, a minha mãe tinha que ralar muito também. Principalmente depois que meu padrasto morreu ela tinha que lidar com aquela situação e sozinha, não tinha mais a minha avó, não tinha mais com quem contar, as minhas tias já não estavam mais tão perto. Então eu meio que entendo, mas não era uma relação de proximidade, de amizade, era uma relação de obediência, obediência.
P/1 – Quando acaba esse período da escola, que você falou que terminou o supletivo, você tinha intenção... Você parou a música, o que você continuou fazendo de atividade?
R – Eu já tinha parado a música quando o meu padrasto morreu. Eu tive que sair do conservatório, não tinha mais grana pra bancar o conservatório e tive que parar a música. O pior de tudo foi ficar sem piano, porque se pelo menos eu tivesse ficado com o piano, eu continuava estudando, de maneira limitada, mas, enfim. Eu já não tinha mais essa relação com a música. Quando eu terminei o segundo grau eu não queria... Eu ia fazer o vestibular porque era a sequência lógica das coisas, mas eu não fazia a menor ideia do que eu queria fazer.
P/1 – Sua mãe te orientava, falava: “Vá fazer tal coisa”?
R – Não, ela exigia que eu fizesse vestibular, que eu entrasse na faculdade. Estudo sempre foi a obrigação máxima na minha casa. Tinha que estudar, tirar boas notas, e a cobrança sempre foi muito grande. Minha mãe do jeito dela, meu primeiro padrasto jeito dele, mais incentivador, mais acompanhando, mais ali perto mesmo, vendo os exercícios e tal, sempre foi obrigação máxima. A minha mãe queria que eu fizesse faculdade. Eu queria fazer, mas também não sabia o que eu ia fazer. Eu lembro que o primeiro vestibular eu tentei Relações Públicas, Publicidade e uma terceira coisa, que eu não faço a menor ideia mais do que era. Mas coisas diferentes assim, chutando mesmo no escuro, vamos ver no que dá. Não passei no primeiro.
P/1 – Você prestou pra quê, no primeiro?
R – Relações Públicas, Publicidade e uma terceira coisa, que eu não me lembro.
P/1 – Mas os três juntos?
R – Não. Tentei pra cada faculdade uma coisa diferente.
P/1 – Ah, pra cada faculdade um curso.
R – É. Cada faculdade um curso. E na época era UERJ, UNIRIO e UFRJ. UFF, UERJ e UFRJ. Aí eu falei: “Ah, mãe, não passei”. Achando que ela ia desistir, mas: “Não, então vá fazer cursinho, vá estudar mais e tal”. Aí quando eu comecei a fazer o cursinho e comecei a estudar mais... Eu sempre gostei de teatro, porque quando eu tava em Teresópolis, uma das minhas atividades, além do conservatório, era teatro. E eu já tinha feito umas pecinhas lá e tal, com o Nino Honorato, que era “o cara” de Teresópolis na época, um senhorzinho assim. E eu gostava muito. O meu primeiro livro de teatro, meu padrasto me deu, foi da Maria Clara Machado. Eu tenho até hoje. Um livrinho pequenininho assim, fininho, ensinando tudo de maneira muito básica do que era teatro. Eu gostava muito e tal. E aí quando cheguei a Niterói, eu não lembro como se deu isso, que eu vim com essa conversa pra minha mãe, de querer fazer teatro, na na na. Aí eu descobri a Martins Pena, eu descobri por acaso, eu descobri num anúncio de jornal, na verdade, a Escola de Teatro Martins Pena no Rio, no centro do Rio. Aí eu falei pra minha mãe que queria fazer, aí ela falou: “De jeito nenhum”. Porque a gente morava em Niterói, como eu ia fazer? Ia para o Rio? Minha mãe não me deixava andar sozinha. Ela falou: “Não. Não vai fazer. Não vai fazer”. Aí eu fiquei pau da vida, mas eu consegui dar um olé da minha mãe e fazer. A prova era três etapas: tinha a banquinha, tinha a prova escrita e tinha o bancão. Aí eu dei um olé e consegui fazer a banquinha.
P/1 – O que era a banquinha?
R – Banquinha era: você recebia um texto que você tinha que decorar, eram dois monólogos e um... Dois monólogos não. Dois breves textos resumidos de alguma peça, personagem feminino ou masculino, dependendo de quem fosse fazer, e mais um que você levasse. Fiz isso escondido, fui fazer a prova desesperada, porque tinha que terminar cinco e meia, porque tinha que chegar a casa até as sete, mais ou menos, que era o horário que começava o cursinho, pra minha mãe não desconfiar e tal. Aí eu passei na banquinha, eu fiquei: “Ah, meu Deus, passei na banquinha e agora?”. Aí era a prova escrita e a prova escrita era num sábado. Aí eu combinei com uma amiga de dizer pra minha mãe que eu ia viajar com os pais dela e tal, era uma amiga que é minha amiga-irmã até hoje, Angélica. Ela inventou que a gente ia pra casa do tio lá em Penedo e tal com os pais dela, não sei quê, e eu expliquei para os pais dela, que eram caretérrimos, bravos pra caramba, mas expliquei que era pra uma prova, eu ia fazer e que minha mãe não queria deixar, mas eu queria muito fazer, tal. Aí eles concordaram em passar a mão na minha cabeça e eu fui fazer a prova no sábado. Achei que eu não ia passar, passei na prova. Falei: “Ai, meu Deus, agora o bancão. Que desculpa eu vou arranjar pra fazer o bancão?”. No bancão era à noite, eu tava apavorada, porque assim, eu já era quase a última pra fazer a prova e já iam dar seis horas, eu falei: “A minha mãe vai descobrir, não tem como, porque sair do Rio pra chegar a Niterói num horário de pico, vai dar merda, minha mãe vai descobrir, hoje eu vou apanhar, hoje o bicho vai comer na casa de Noca”. Mas eu fui fazer o bancão e não passei. Não passei. A gente sabia na hora assim, saía a lista logo depois do último fazer a prova, uma hora depois eles já davam o nome de quem passou e quem não passou. Aí eu não passei. Voltei arrasada, ainda levei uma coça, minha mãe descobriu e me proibiu de fazer a Martins Pena. Mas deixa estar, que minha mãe é uma macaca velha, é uma Candace da vida, ela já tinha sacado há muito tempo que eu tava fazendo alguma coisa, já tinha pescado. E ao invés de ela me reprimir logo de cara, ela viu que era sério, porque eu dei três olés nela, então eu realmente queria aquela parada, aí ela começou a procurar um curso que fosse mais perto de casa e que fosse legal pra poder não ter dor de cabeça. Aí ela descobriu que a Françoise Forton começou a dar um curso em Icaraí.
P/1 – Quem?
R - Françoise Forton. E aí eu falei pra ela que eu não passei na prova, cheguei a casa chorando, ela me deu uma bronca, me deu uma coça e depois ela falou: “Olha, tudo bem, você não passou, mas tem um curso da Françoise Forton e tal, tal, tal”. Eu não fazia ideia de quem era. Ela me explicou quem era e tá, tá, tá: “Se você quiser, esse você pode fazer, porque é aqui perto”. E aí começou a minha brincadeira de ser atriz, minha brincadeira séria de ser atriz.
P/1 – Deixe-me só voltar um pouco antes de entrar na carreira de atriz. Na adolescência, o que você gostava? Você ia a baile, festa, que som você escutava?
R – Não. Eu não ia a nada, eu era muito... Minha mãe não me deixava fazer nada. Nada.
P/1 – E que som você escutava? Você escutava música?
R – Escutava muita música. Escutava muito o rádio. E não tinha um som específico assim, eu sempre fui muito eclética. Amava Legião Urbana, óbvio, evidente, não tem quem da minha geração não foi fã de Legião Urbana. Amava. O que era desesperador pra minha mãe, porque com 16, 17 anos, eu ouvia aquele “As quatro estações”, e é super down, minha mãe ficava apavorada. Um dia eu a peguei no meu quarto... Que era disco, vinil. Ela ouvindo o vinil assim, séria, escutando aquelas letras, ela: “Então você gosta disso?” “Eu amo, mãe”. E eu gostava das mais pesadonas assim, “Clarisse”, aquelas coisas bem “Ah, cortei os pulsos no banheiro”, aqueles troços assim. Ela ficava apavorada com isso. Mas amenizava, porque eu também gostava de Fábio Júnior, entendeu? Uma coisa bem água com açúcar. Gostava de muita coisa antiga, porque eu ouvia a minha mãe ouvir, coisa que eu não sabia, por exemplo, tem uma música que eu amava, que eu falava pra ela: “Mãe, eu queria tanto ter uma casa igual a dessa música”. Que era: “Tem uma casinha branca de varanda, um quintal e uma...”. Não. “Eu queria ter na vida simplesmente um lugar de mato verde pra plantar e pra colher. Ter uma casinha branca de varanda, um quintal e uma janela para ver o sol nascer”. Aí eu falei: “Poxa, mãe, queria tanto ter um lugar desses”. Aí minha mãe me pegou, me levou na varanda da nossa casa aqui em Praia da Luz, falou assim: “Aí. Você tem”.
E era mesmo. Era bem isso. Mas eu não sabia de quem era. Eu ouvia, gostava, muita coisa de música assim eu tenho na cabeça, que eu gostava, mas não sabia de quem era.
P/1 – Aí você entrou no curso da Françoise.
R – E aí eu conheci, descobri o que era fazer teatro de verdade. Conheci os meus primeiros amigos de teatro e aí ali o universo se abriu completamente pra mim, porque o teatro tem esse poder de ser agregador, na verdade, não tem... É um lugar onde todo mundo pode tudo. Entendeu? Diferente de televisão, de... O cinema não é tanto assim. O teatro não faz distinção, acepção de pessoa. Entendeu? Você é preto, branco, amarelo, gordo, magro, alto, baixo, tudo pode, tudo é possível, todo mundo é bem-vindo. Acho que foi o primeiro lugar na minha vida, naquele curso, que eu não me senti um bicho esquisito, um bicho estranho assim, alguém que tá no lugar errado, alguém que não devia estar ali. E eu conheci minha primeira galera, que foram meus amigos durante muitos anos. Hoje a gente se perdeu, mas foram amigos-irmãos assim, Tiago, Fernando, Ana Tereza, Viviane, Patrícia, Aline, uma galera que virou família mesmo, a gente fez o curso durante alguns anos. Tinham períodos do curso, depois a gente montou um espetáculo depois de um tempo, o “Nós da barca”, com texto do Rogério Blat. Aí a Françoise veio, deixou de fazer o curso em Niterói. Ela começou na Associação Médica Fluminense em Icaraí, aí foi pra Cantareira, a galera toda indo junto, aí quando ela disse que ia trazer o curso para o Rio, todo mundo veio junto pra Faculdade Carioca.
P/1 – Você também veio.
R – E aí eu vim, porque aí a história já era outra, eu já tinha...
P/1 – Mas aí você desistiu de prestar vestibular?
R – Total.
P/1 – O que você fez com a faculdade?
R – Total. Eu não queria mais fazer, agora eu queria uma faculdade de teatro, já não queria mais fazer nada fora disso. Continuei fazendo pré-vestibular, tentei de novo e não passei pela segunda vez, falei: “Mãe, agora tá legal, não passei, deixe-me seguir essa parada aqui, vamos dar um tempo, depois eu tento de novo, eu to nova ainda, posso tentar quantas vezes forem necessárias”. Enrolei-a até os 33 anos. Só agora que eu fui fazer faculdade pra deixá-la feliz, mas enfim.
P/1 – Faculdade de Teatro?
R – Não. Faculdade de História da Arte. Aí o nome mudou um pouquinho, continuou na arte, mas o nome mudou, ela ficou mais: “Ah, minha filha faz História da Arte”. A “História” já ameniza um pouquinho as coisas, enfim. E aí fiquei na Françoise e na Faculdade Carioca durante seis meses, mais ou menos. E aí o curso já não dava mais, a gente já queria mais, a gente acho que já tinha chegado ao limite de tudo que a gente podia usufruir dali. Só que a galera, como tinha uma condição mais legal, muita gente tava querendo ir pra CAL. Eu não tinha como pagar a CAL, aí eu falei: “Pô, Martins Pena. Minha chance de fazer de novo a Martins Pena”. Aí fiz e dessa vez eu dei o troco, porque na primeira vez no bancão a Mona me sacaneou muito, que eu não entendia nada de teatro, não sabia nada de fato de teatro. Teatro? Eu fiz teatrinho de brincadeira em Teresópolis, eu era o porquinho rosinha de não sei das quantas. Então eu não entendi nada. Aí ela me mandava fazer as coisas e eu tentava dentro da minha limitação. Ela cansou, a responsável pelo bancão, aí ela falou pra mim o seguinte: “Agora, Tatiana, você sobe lá e faz uma bruxa pelada tentando me convencer a te aprovar”. Você não acredita que eu fui lá tentar fazer a tal da bruxa pelada? Idiota. Depois eu fui pensar: “Que burra”. Era a deixa pra eu pegar as minhas coisas e ir embora, mas enfim. Aí na segunda vez que eu fiz a Martins Pena eu dei o troco, que eu passei em primeiro lugar. Aí eu falei: “Cadê a Mona?”.
P/1 – Pra ver isso agora.
R – É. Pra me mandar fazer a bruxa pelada agora. E a Martins pena foi outra mudança na minha vida. Porque eu já trabalhava, eu comecei a trabalhar com 16 anos.
P/1 – O que você fazia com 16 anos?
R – Trabalhava nas Lojas Americanas. Eu era operadora de caixa, part time, metade do período eu trabalhava e a outra metade eu estudava. Aí eu saí...
P/1 – E nesse período que você começou fazer teatro, você continuou?
R – Conciliando as duas coisas.
P/1 – Quando você parou?
R – Ah, eu fiquei na Americana pouco tempo, porque eu detestava aquele negócio, era muito mecânico, a gente entrava naquele troço, ficava passando coisinhas, coisinhas, coisinhas, saía 15 minutos, voltava, coisinhas, coisinhas. Então eu falei: “Ah, não dá pra mim, não”. Eu saí, fui fazer a Martins Pena e aí precisava de emprego no Rio, aí fui trabalhar numa lotérica de um shopping. Era uma lotérica com lojinhas de bomboniere, umas coisas. Ficava num quiosque no meio do shopping, no Rio Sul. Aí comecei a trabalhar ali e conciliar esse trabalho com a Martins Pena.
P/1 – E sua mãe continuava como empregada?
R – Não. Aí minha mãe já tinha parado de trabalhar como empregada. O que minha mãe tava fazendo nessa época? Ah, aí minha mãe alugou um apartamento, uma sala comercial, no centro de São Gonçalo, e eu trabalhei com ela um tempo fazendo isso. Ela tinha uma pensão de comida caseira. E aí ela ficou com esse restaurante durante um tempo e eu ficava lá trabalhando com ela. Quando tava fazendo os testes lá pra Martins Pena, fazendo o cursinho de vestibular, a gente trabalhava com esse restaurante de comida caseira. Depois ela desistiu do restaurante, aí veio morar definitivamente aqui, porque quando a gente tinha o restaurante, a gente morava lá, no quarto dos fundos. A gente ficava lá que era mais fácil do que vir pra nossa casa. Quando desistiu do restaurante, ela veio de vez pra essa casa aqui na Praia da Luz. Aí montou um restaurante na parte de baixo, que era bem grande, tinha um quintal grande, na parte de baixo ela fez um restaurante ali e ficou morando ali um tempo. Depois desistiu do restaurante, casou de novo, hoje ela mora lá, virou crente, deixou de ser Candace, um pouquinho, se pisar no calo dela ela vira Candace de novo.
P/1 – Candaço?
R – Candace.
P/1 – Candace.
R – Rainha Candace. E eu segui minha história na Martins Pena, que foi outra mudança quando eu entrei, porque a galerinha do curso da Françoise era uma galerinha classe média, tal, tal, tal, e muito diferente da galera da Martins Pena. A Martins Pena era muito eclética, tinha gente de tudo quanto era lugar e país, inclusive, assim. Então foi uma ampliação de horizonte indescritível pra mim. Foi maravilhoso em todos os sentidos. Com essa primeira galera que eu entrei em contato, eu descobri que eu podia fazer parte. Na Martins Pena eu descobri que eu podia ser eu, descobri a possibilidade de ser indivíduo, de fato, e que era massa ser esse indivíduo, isso foi muito bom. Aí eu conheci uma galera que fazia cinema na UFF também, então a cabeça foi abrindo, abrindo, abrindo, amigos ótimos.
P/1 – E você já tava com algum espetáculo?
R – Não. Ali nada ainda.
P/1 – Só aprendendo?
R – Só mergulhada naquele universo.
P/1 – E trabalhando meio período?
R – E trabalhando meio período, e nas montagens que a gente fazia no final de cada período na escola. O curso são dois anos e meio, então no final de cada período você monta um espetáculo. Entendeu? Só tendo essa relação. Aí várias coisas aconteceram, eu deixei de morar com a minha mãe, fui morar com uma amiga da minha mãe, morei com ela um tempo.
P/1 – Aonde? No Rio já?
R – No Rio. Morei com ela um tempo.
P/1 – Que bairro?
R – Gávea. Primeiro lugar que a gente morou foi na Gávea. E aconteceu outra coisa curiosa, que me lembrava de quem eu era, e aí eu já começava a ter uma noção das coisas, uma noção mais crítica das coisas. Que eu estudei num colégio de freira, como eu te falei, Colégio São Paulo, naquela época o currículo da gente, quando começava a trabalhar, era a escola em que você estudou e o lugar onde você mora, era isso que você colocava num currículo. Eu tentei um emprego no Shopping da Gávea, porque eu morava ali com a amiga da minha mãe e aí eu fui tentar um emprego ali no Shopping da Gávea, então o currículo: Colégio São Paulo, Teresópolis, Colégio Grafite, não sei o quê, não sei o quê lá. Endereço: Major Ávila, Gávea. E não tinha parada de foto, então eu deixei o currículo lá numa locadora. Aí me ligaram na sexta-feira dizendo que eu tinha sido aprovada e que eles queriam que eu começasse como atendente na segunda pela manhã, e que chegasse às nove da manhã. Eu fui toda feliz e contente no auge de meus 18, nessa época eu tinha 18. No auge dos meus 18 anos, amarradona: “Ai, que máximo, eu vou trabalhar no Shopping da Gávea, não sei que tem”. Cheguei à loja, obviamente tava tudo fechado, eu falei para o segurança que tava, que eu ia pra loja tal, que eu ia começar um trabalho, não sei que tem, ele me acompanhou até à loja, aí a moça de lá de dentro fez assim pra mim, aí eu pedi pra ela abrir, ela abriu, eu falei assim: “Oi, bom dia, eu sou a Tatiana”. Aí ela: “Que Tatiana?”. Eu falei: “Tatiana Tibúrcio. Vocês me ligaram, era pra vir trabalhar” “Você é a Tatiana?”. Falei: “Sou eu”. Ela ficou tensa, aí falou para o segurança que tava tudo certo, eu entrei, ela falou: “Espere um pouquinho”. Aí eu fiquei sentada esperando, aí ela pegou a ficha, corrigiu tudo da ficha: “Onde você estudou?” Ai eu falei onde estudei, onde morei, nã, nã, nã. “Você em tal endereço?” “Moro em tal endereço” “Espere mais um pouquinho”. Foi lá dentro de novo, ligou para o dono da loja, ela era gerente, ligou para o dono da loja, que devia morar por ali, uma hora depois o cara tava na loja. Ele passou por mim, olhou pra minha cara, foi lá pra dentro com ela, aí ele veio, perguntou: “Foi com você que eu falei na sexta-feira?”. Eu falei: “Foi. Deve ter sido, porque foi um homem que me ligou dizendo que eu tinha sido aprovada”. Aí: “Só um minuto”. Entrou de novo com a mulher, aí daqui a dez minutos ela voltou dizendo que foi um engano. Aí eu: “Como assim foi um engano?”. Ela: “Não, foi um problema, um engano, a vaga já foi preenchida”. Eu voltei pra casa arrasada. Aí essa amiga da minha mãe sentou comigo e conversou, me ajudou a entender o que tava acontecendo. Isso foi uma merda, uma bosta, mas enfim. Aí eu não consegui esse emprego. Teve um período que eu fiquei desempregada na Martins Pena e aí foi treva, porque eu tinha que ir, vir pra São Gonçalo algumas vezes, eu já não tava mais podendo, aí já tava no final do curso, então já não dava mais pra continuar morando com a amiga da minha mãe, eu ia ter que voltar pra casa. E a passagem de São Gonçalo pra Niterói era muito cara. E o que eu tinha de fundo de garantia, aquelas coisas que você recebe quando você é mandada embora, já tava acabando, eu falei pra diretora que eu ia ter que sair fora. A Martins Pena tinha uma coisa muito legal, que era muito família na época em que eu estudava. Agora não, agora é escola, Faetec, aquela coisa quadrada, hierarquizada, cada um com seu cada qual. Mas na época que eu estudava a gente tinha uma proximidade muito grande, os professores, a direção, os alunos, os problemas de um eram os problemas de todos. Então a diretora, inclusive, que percebeu que tinha alguma coisa errada comigo e me chamou pra conversar. E eu expliquei que eu tinha perdido o emprego, e que eu não ia poder continuar na escola, eu ia ter que trancar. E eu sabia que se eu trancasse, eu não ia poder voltar, porque aí você entra numa coisa de ter que trabalhar e correr atrás de outras coisas. E eu ia ter que procurar alguma coisa que fosse em tempo integral, não ia dar pra fazer a escola. Aí ela me ofereceu um emprego de... Tinha um figurino na escola que tava esquecido dentro de um buraco de uma daquelas salas lá. Ela falou: “Tatiana, é o seguinte, quando você gasta pra ir e voltar nessa loucura sua, que às vezes mora em São Gonçalo, às vezes mora aqui, às vezes mora em Niterói, quanto você gasta de passagem na vida?”. Aí eu fiz um cálculo doido, aí ela incluiu mais um lanche na escola e era o que eu ganhava na época. Eu lembro que eram cento e vinte reais. Ela falou: “Então eu vou te dar do meu bolso cento e vinte e você, em troca, cuida do figurino da escola, assim você não tranca a escola, se forma, e eu tenho o meu figurino”. Eu falei: “Beleza”. E no figurino eu fiquei. Eu me formei, reformei o figurino da escola, consegui uma sala maior, criei araras, organizei, cataloguei. Enfim, a escola passou a ter um figurino de fato, porque não tinha, era um monte de roupa entulhada dentro de um buraco, tipo um closet assim. E a gente conseguiu uma sala grande, organizou tudo, separou por época, por tal. Foi um trabalho bem gostoso de fazer, que eu fiz durante a escola, finalzinho da escola e um período posterior. Formei-me, continuei lá e fiquei um pouco frustrada, porque eu falei: “Pô, eu to vendo todo mundo passar, passar, e eu ficando”. Eu conhecia muita gente e entrou na escola o Cridemar, que hoje faz o Moacyr, o meu irmão na Suburbia. Conheci o Cridemar na escola e em 2003...
P/1 – Na Martins Pena?
R – Na Martins Pena. Ele entrou pra fazer, ele falou: “Tati, eu faço parte de uma companhia de teatro negro chamada Companhia dos Comuns, e parece que o Cobrinha tá precisando”. O Cobrinha era diretor da companhia. Ele falou: “Ele vai montar outro espetáculo agora, acho que ele tá precisando de atriz, dá uma ligada pra ele”. Aí eu liguei para o Cobrinha. E eu digo até hoje que o Cridemar me resgatou do castelo da Rapunzel, porque o figurino da Martins Pena ficava no último andar da escola, lá no topo da coisa toda. Eu falo que ele foi lá e me resgatou, porque aí eu entrei, fiz o teste pra companhia, passei. E aí foi outra virada na vida, porque aí eu fui entender o que era ser mulher negra, fui ter discurso e tudo aquilo que eu sentia começou a ter lógica, ter contexto, ter razão, ter justificativa, ter explicação, começou a ter sentido, já não era mais uma neurose na minha cabeça, agora as coisas tinham sentido, eram fato, tinha motivo, tinha origem e tinha, principalmente, mudança. Entendeu? Ali eu aprendi a ter autoafirmação. Antes eu tinha aprendido que eu podia fazer parte, depois aprendi que podia ser indivíduo e ali eu entendi quê indivíduo eu era. E aí eu achei o meu lugar no mundo, posso te dizer assim. Hoje eu sei onde eu estou no mundo e to feliz demais, muito, muito feliz.
P/1 – E aí você começou a atuar na companhia?
R – Comecei a atuar na companhia.
P/1 – Aí você recebia?
R – Recebia. Aí era maneiro, porque a companhia era patrocinada, então a gente recebia salário mensal e tal, tal, tal, tudo direitinho. Mas essa época também...
P/1 – E essa acabou sendo a primeira peça que você atuou na companhia?
R – “Candaces” foi a primeira peça que eu atuei na companhia.
P/1 – Você é da companhia até hoje?
R – Não. Eu fiquei na companhia por quatro anos. Fiz “Candaces” e fiz “Bakulo”, e nesse ínterim eu substituí uma pessoa... Que antes de “Candaces”, que já era o segundo espetáculo da companhia, na verdade era uma trilogia: “A roda do mundo”, “Candaces” e “Bakulo”. Eu entrei em “Candaces”, então já tinha a “Roda”, aí nesse período, quando a gente começou a viajar com “Candaces”, a gente começou a fazer “A roda do mundo” também e aí eu substituí a menina que tinha saído, no lugar de quem eu tinha entrado, aí fiz “Roda no mundo”, “Candaces” e “Bakulo”. E o interessante é que na companhia, é uma companhia de teatro negro, e a nossa prática era construir o espetáculo, os personagens, a história, tudo surgia a partir de cada um, das experiências de cada um. A gente tinha um tema, tipo, a gente queria falar dessas guerreiras de Meroé, as Candaces, aí como a gente reflete... A pesquisa ia levando, a gente não fazia a menor ideia onde as coisas iam dar. Obviamente não é nada novo, não é uma coisa: “Ai, descobrimos a pólvora”. Um monte de gente já tava fazendo isso. Mas o que era diferente era o recorte, que era um recorte racial. Isso era interessante. Então eu não ia buscar um personagem por todas aquelas técnicas que a gente aprendeu na escola de teatro. Entendeu? À la Stanislavski, Kusnet e todos os outros que, legal, massa, são base, são referência, mas eu já tinha entendido que aquilo ali não me traduzia da maneira exata, do jeito certo que eu queira ser lida ali na prática. Ali na companhia eu descobri outros caras que falavam coisas interessantes, como Makota Valdina, como... E de outras áreas, principalmente, não necessariamente ligados a teatro, como o geógrafo... Meu Deus, o nome dele tá na ponta da língua. Milton Santos.
P/1 – Milton Santos.
R – Entendeu? Então essas falas é que começaram a nortear o nosso discurso, o nosso discurso ideológico e o nosso discurso artístico. E os espetáculos surgiam a partir daí. Isso foi outra virada na minha vida, foi muito bom, foi fantástico ter passado pela Companhia dos Comuns. Eu acho que eu não seria a pessoa que eu sou hoje se eu não tivesse passado pela Comuns. A Comuns me ensinou a ser eu, como um eu social, um sujeito negro.
P/1 – O que é um sujeito negro?
R – Você me fez uma pergunta difícil de explicar, fácil pra mim de entender, mas muito difícil de colocar em palavras. Um sujeito que sabe que tem um lugar no mundo, porque a gente passa a vida toda achando que você não faz parte, você é coadjuvante de um mundo, de uma realidade, que você tá ali pra auxiliar, pra servir, pra... Não sei, pra cenografar a realidade de alguém. Ser sujeito negro é deixar de ser objeto. Eu não sou mais um objeto dessa verdade, eu sou o sujeito dessa realidade e digo qual é a minha verdade. Entende? É isso, é você entender qual é o seu lugar no mundo. Eu estou aqui, esse é o meu lugar, esse é o meu ponto. Eu acho que todo excluído, todo mundo que faz parte do grupo de excluídos, sejam eles quais forem, em qualquer nível, categoria, enfim, sente isso. Quando ele entende que ele não é excluído na verdade, ele tem o seu lugar, aquela realidade ali, aquela pequena porcentagem de seres humanos é que dizem que você não pode estar ali, que você não corresponde àquele padrão, mas isso não quer dizer que você não é, que você não pode, que você não está, e que não é só aquela realidade. Então ser sujeito negro, ser sujeito, e no meu caso, negro, é isso, é saber onde é o teu lugar e aonde você quer estar também.
P/1 – E depois da Companhia dos Comuns?
R – Depois da Companhia dos Comuns eu fiquei num limbo, porque eu falei: “E agora?”. Não dá pra voltar pra fazer “Casa de boneca”, até porque eu nunca ia poder fazer “Casa de boneca” num teatro realista, bá, bá, bá. Hoje, dentro da nossa visão contemporânea, tá, beleza, mas só como exemplo assim, não pra voltar pra “Casa de boneca”, o que eu faço agora? Aí eu falei: “Bom, vou procurar outro tipo, outros autores que me representem, que possam me representar”. Cadê? Não tem. Não achava. Aí lembrei que na Martins Pena eu fiz... Acho que a melhor escola que eu podia ter feito de teatro, no entanto eu não tinha visto um autor negro ou um drama que tratasse onde a gente tivesse presente o nosso conflito, a nossa... Que a gente tivesse como sujeito presente dentro da história. Eu falei: “Puts, e agora eu faço o quê?”. E aí eu fui fazer uma participação numa novela chamada “Sinhá Moça”, onde eu conheci a Rute de Souza.
P/1 – Você convidada pra fazer “Sinhá Moça”?
R – Fui convidada pra fazer.
P/1 – Quem te convidou?
R – O Luciano Rabelo. Alguém da Globo tinha visto Candaces e tinha pedido pra gente fazer um teste, aqueles testes de vídeo, tal. Eu relutei muito pra poder fazer, todo mundo da companhia já tinha ido, aí eu falei: “Tá bom, eu vou lá”. Aí fiz, ficou lá. Um dia fizeram um remake de “Sinhá Moça”, o Luciano, ou alguém, não sei, viu e resolveu me chamar pra fazer um teste pra personagem que quem acabou ficando foi a Lucy Ramos. Mas o teste tinha sido tão legal que eles me inseriram em outro contexto na história depois.
P/1 – Como você recebeu a notícia?
R – Qual delas? Que eu não tinha passado para o teste...
P/1 – Que você não tinha passado e depois que você passou pra outro papel?
R – Ah, a que eu não tinha passado eu falei: “Bom, óbvio”. Porque a personagem que eu tava tentando, apesar de ser negra, era uma versão negra da Sinhá Moça, então era aquela mocinha romântica e eu não fiz a personagem desse jeito, eu fiz com outra pegada e consciente disso, porque eu não queria fazer a mocinha romântica, até porque... É vício de ator de teatro metido à besta: “Não, eu acho que é assim”. E aí eu fui fazer naquela outra vibe, que foi legal, porque eles viram um lado, acharam muito bacana o teste e resolveram me aproveitar de alguma maneira dentro da trama. Eu fui para o quilombo brigar com a Sinhá Moça . E lá eu conheci a Rute de Souza, que tava no mesmo núcleo, que foi um presente na minha vida, porque ela era ídolo, eu olhava assim: “Nossa, a Rute de Souza”. E aí tava do lado dela trabalhando. E a gente conversando muito sobre essas questões, tal...
P/1 – Essa é a primeira experiência sua na televisão?
R – Sim. Sim. Antes disso eu tinha feito uma participação ou outra, aquelas paradas que você vai, faz uma coisinha, serve alguém e volta pra casa, vamos dizer assim. Mas uma participação legal e consistente foi em “Sinhá Moça”.
P/1 – “Sinhá Moça” foi em que ano mesmo? Em 2008?
R – Ah, não sou boa de data, cara. Deve ter sido. Não tenho muita ideia. Não sei. Não me pergunte, não sei. Aí a gente conversando muito, eu já tinha todo um discurso e tal, porque hoje não dá pra falar diferente. Aí a Rute começou a me contar sobre as experiências dela e como ela driblou tudo isso, porque a gente tá falando de alguém que começou a fazer teatro, que disse que ia ser atriz em 1940. Entendeu? Então, sabe, eu tinha que calar a boca e ouvir aquela mulher falar e muito, e foi o que eu fiz. E ela falou assim, o grande problema da gente é que a gente não consegue montar espetáculos, a gente não consegue dinheiro pra montar espetáculos. Se a galera que tá fazendo a coisa que todo mundo quer ver, já não consegue, a gente então menos ainda quando quer fazer uma coisa mais direcionada. O que a gente devia fazer era pegar esses textos que a gente gosta muito e fazer muitas leituras dramatizadas. Eu falei: “É isso”. Eu falei: “Bom, eu não acho um autor negro, eu não acho texto onde eu seja... Que eu possa fazer e tenha um protagonismo, não o protagonismo de ser a personagem principal, mas um protagonismo de discurso, de contexto, de trama de história, não tem essa história, é sempre coadjuvante, é sempre com uma realidade dita padrão. Então espere aí, vamos tentar descobrir, porque alguém deve ter escrito, não é possível”. Aí eu montei um projeto chamado Negro Olhar. Ciclo de leitura dramatizada com autores e artistas negros, que visa trazer à tona essa dramaturgia negra do continente americano, porque aí também toda vez a gente entra nesse discurso a gente vai lá pra África e esquece que a gente teve uma tradução dessa realidade, primeira matriz aqui, no continente americano, muito rica e muito forte. Então eu falei: “Como é esse negro aqui?”. Que ele tá mais perto de mim do que aquele negro de lá. Eu fui para o Senegal, os caras: “Ei irmão”. Irmão nada, não sou teu irmão, você não é africana. Entendeu? Um porradão na cara. E eles estavam certos. A gente tá muito mais perto da galera aqui no continente americano do que lá. Então eu quis entender essa... Quis saber onde estavam esses textos. Aí descobri Amiri Baraka, descobri Langston Hughes, descobri Adrienne Kennedy, Abdias Nascimento,. Olha quanta coisa legal. E botando a gente ali, o nosso drama, as nossas histórias, histórias que você podia fazer também. Entendeu? Mas as peculiaridades da nossa vivência, como esses exemplos que eu te coloquei, estavam ali presentes, não no discurso necessariamente direto. Por exemplo, “O tamborim da glória” de Langston Hughes, que foi uma das primeiras peças no ciclo, fala a história de duas amigas, quase irmãs, que resovem montar uma igreja e ganhar dinheiro com isso, e o diabo vira amante de uma delas. Mas dentro dessa história tá ali presente todas as nossas diferenças de uma maneira muito mais inteligente. Então aí eu descobriria da Maria Martins, que já tinha dado uma assessoria pra gente em Candaces e ela é autora de um livro chamado “A cena em sombras”, que ela faz um recorte do sujeito negro dentro do teatro, da televisão e do cinema, desde 1853 até a década de 90, e que foi um presente essa mulher na minha vida. Porque misericórdia, o livro virou pra mim referência de tudo, porque ela vai mesmo mostrando como a arte, no caso do teatro, da televisão e do cinema, é utilizada como um artifício de manutenção de uma ideologia dominante e não contemplativa do sujeito negro.
P/1 – Mas vem cá, virou uma ONG, uma companhia?
R – Nada de ONG. Isso virou um projeto que é meu e do meu marido, e que toda vez que a gente faz o ciclo a gente coloca uma média de 30 a 33 profissionais famosos e não famosos, conhecidos e não conhecidos.
P/1 – Mas o que é? É um projeto patrocinado, as pessoas pagam?
R – É um projeto patrocinado. Não paga. A gente paga as pessoas pra estarem no projeto. É um ciclo de leitura que tem show de abertura, a leitura dramatizada e um debate no final pra discutir tudo que aquele texto tá levantando, e também procurar inserir esse texto dentro da cronologia teatral, porque não tem. Então aí você consegue unir no palco nomes como Rute de Souza, Milton Gonçalves, Haroldo Costa, Flávio Bauraqui, com pessoas que acabaram de sair da escola de teatro, e todos negros, majoritariamente negros. Os brancos que fazem parte...
P/1 – Mas isso acontece com quê periodicidade?
R – Tem acontecido de dois em dois anos. Agora em 2012 era pra acontecer, mas os Correios fizeram o favor de nos dar uma rasteira e com uma desculpa muito da esfarrapada, e que não cabe entrar em detalhes, e a gente não conseguiu fazer em 2012. Mas o projeto tá inscrito na sua terceira edição na Caixa, a gente tá entrando com ele agora na Petrobrás, no Myriam Muniz, que a gente já ganhou o Myriam Muniz pra fazer a segunda edição, que foi em 2010 no Laura Alvim, foi fantástico. E tem uns videozinhos no YouTube do Negro Olhar.
P/1 – Vou ter que entrar um pouco no Suburbia, eu to preocupada um pouco com o horário.
R – Vamos embora.
P/1 – Ah, mas eu queria ficar falando desse Negro Olhar, maravilhoso esse projeto.
R – Não, é fantástico, porque... Eu lembro que na primeira edição, por exemplo, tinha uma menina que era daqui da Praia da Luz. Praia da Luz é o subúrbio, do subúrbio, do subúrbio de São Gonçalo. Entendeu? É quase uma ilha, o que separa de São Gonçalo é um mangue, uma pontezinha e tal. E ela foi fazer, ela ficou deslumbrada, deslumbrada no sentido bom da coisa, porque ela tava fazendo a leitura de “O tamborim da glória” com Milton Gonçalves e Rute de Souza. Então quando ela ia poder dividir o palco com essas pessoas dentro das coisas como elas realmente são? Então o meu orgulho do projeto é esse. Eu não tinha um espaço, então eu criei um espaço pra mim. Em vez de correr atrás de outras coisas eu falei: “Bom, não tem, então eu faço aqui a minha parada”. E consegui convencer as pessoas a fazerem parte disso. Fabrício Boliveira tá no projeto desde o início, fez parte de todas as edições, o Milton, o Haroldo, a Rute.
P/1 – O Fabrício, Fabrício.
R – Fabrício, Fabrício, do Suburbia. Um monte de gente do Suburbia, o Sérgio Loureiro, o Cridemar, Dani Ornellas, tudo já passou pelo Negro Olhar. Pra mim é uma honra, porque as pessoas não se lembram do Negro Olhar como Tatiana, eles lembram o Negro Olhar e isso que é importante pra mim, isso que é o fundamental, é um palco para o artista negro brasileiro.
P/1 – Bacana. Tatiana, como foi o convite para o Suburbia?
R – O convite para o Suburbia surgiu em parte por conta de toda essa minha história em relação ao teatro negro e em parte por conta de um projeto que não tem muito a ver com isso, mas que eu estava nesse projeto um pouco por causa disso, que era o Júlia, da Cristiane Jataí, que foi o último espetáculo que eu fiz fora os espetáculos que fiz pela companhia, e que a Lara Carmo tava fazendo assistente de direção. Então a Lara me indicou por um lado, a Rute me indicou por outro, e o Nelsinho já tinha o meu cadastro na Globo e já me conhecia, porque ele viu “Candaces” e me indicou também. Então vieram indicações de vários lados e aí eu vim fazer o teste e parei aqui.
P/1 – Quando te chamaram para o teste, falaram qual era o papel? Explicaram que era...
R – Eu fiz teste pra Vera, na verdade. Aí quando falaram que a Dani ia fazer, eu liguei pra Dani, falei: “Ah, sacanagem, você me levou meu papel”. Ela falou: “Não tem como”. Quando eu li, eu falei: “Ah, Dani, não vai dar, eu vou lá pra forma, mas é seu”. E que bom que eu tava certa. Aí não passei para o Vera, obviamente, aí fui fazer o teste pra Amelinha. E tava super na esperança de fazer, porque a Rute já tinha sido convidada e me falou. Quando ela me falou, o Nelsinho já tinha entrado em contato comigo, mas eu ainda não sabia o que era o produto direito, era uma coisa muito superficial, tal, tal, tal. Quando eu fui conversar com a Rute é que eu fui entender o que era o Suburbia. E eu falei: “Bicho, eu tenho que estar nesse negócio de qualquer jeito”. Porque assim, eu nunca corri atrás de televisão, na verdade. As coisas que eu fiz foram porque me chamaram e eu fui lá fazer, falei: “Ah, não vou perder essa grana, vou lá e vou fazer o meu papel”. E eu sempre tive na cabeça uma coisa assim, pra fazer televisão, tem que fazer uma parada que me respeite, que seja coerente com aquilo que eu sou e digo hoje, seria muito esquisito fazer uma obra, um produto qualquer que fosse completamente o contrário, que normalmente é, de tudo que eu faço. Seria muito esquisito, não digo pra você que eu não faria, depende muito de quanto que ia ganhar, depende muito de uma série de coisas, do quanto eu ia ter que negociar comigo mesma pra poder fazer parte daquilo. Mas eu dizia: “Seria tão bom se eu pudesse fazer televisão fazendo uma coisa que fosse arte, e como tal, democrática, e verdadeiramente inclusiva, porque na sua essência assim o é, na prática fizeram diferente, convenceram a gente de uma forma diferente, mas na prática é”. E aí quando a Rute me explicou o que era o Suburbia, eu falei: “Eu tenho que estar nesse negócio de qualquer jeito”. E quando o Nelsinho me ligou dizendo que eu tinha passado, eu quis subir pela... Eu fiquei feliz como eu nunca tinha ficado pra trabalho nenhum, porque todo trabalho que eu fiz, que eu passei: “Ah, legal. Bom, bacana, vou trabalhar e tal”. No Suburbia eu quase fui para o céu, porque eu falei assim, é uma oportunidade, gente. A gente tá tendo com esse produto, a gente que eu digo, o povo negro, tá tendo uma oportunidade com esse produto que a gente jamais teria, eu tenho certeza que não, eu falo isso sem medo nenhum, de nenhum tipo de represália, não teria na televisão brasileira, não teria, não tem, não tem. Entendeu?
P/1 – Um divisor de águas.
R – Ninguém ia dar pra gente esse protagonismo, que não é calçado na violência, apesar de ter violência, porque faz parte da realidade do mundo. Porque não é calçado em estereótipos. A gente tá aqui no Suburbia colocando o negro com a verdade que ele diz qual é. O Suburbia dá à gente a oportunidade de se representar como a gente é e como a gente quer ser representado. A gente tem história. Quando você vê um negro: “Ah, porque agora tem mais negro na novela”. Tá, cadê o pai, cadê a mãe, cadê a raiz? E quando tem é proforma, é uma coisa assim, cenário, você bota ali. Entendeu? Não tem história. Aqui tem. A gente tem uma árvore genealógica nessa parada. A gente tem início, a gente tem meio, a gente tem sequência.
P/1 – Como é a Amelinha personagem?
R – O Luiz me falou uma coisa muito bonita assim, que ele falou que a Amelinha é a testemunha ocular de tudo que acontece. E de fato é, ela é a filha do meio. Se a gente brincar um pouco com esse conceito, quando você tá no meio você vê tudo, você tem a possibilidade do todo, você olha os dois lados da moeda. A Amelinha é isso, a Amelinha é o meio, é aquela que pode ver tudo e pode estar em tudo, e auxiliar em tudo. A Amelinha é doce, a Amelinha é sensual, mas uma sensualidade de menina. Eu acho que a Amelinha tem muito mais dessa morosidade da mãe Bia do que qualquer outra filha. Eu acho que ela vai ser uma mãe Bia no futuro com um quê a mais, porque ela é mais sapeca.
P/1 – Deixe-me te dar um desenho aqui. Vocês fizeram isso, essa atividade, não foi, que o Luiz falou?
R – Foi.
P/1 – Aí são dois desenhos, eu queria que você pudesse explicar um pouco o que você pensou nesse, como você representou aqui esse e depois esse?
R – Então, esse aqui é exatamente como eu vejo a Amelinha, como um beija-flor. Por que um beija-flor? Porque ela tem essa leveza, ela tem essa espontaneidade, tem esse colorido, tem essa alegria, mas ao mesmo tempo ela é muito forte, ela sabe o que quer. O beija-flor é o único pássaro que paira no ar, ele é forte o suficiente pra parar voando. Ele para, analisa o que ele quer e ele vai lindo, leve e solto. Então isso é a Amelinha.
P/1 – E o outro desenho, você fez esse, depois você fez esse.
R – O outro desenho já é o universo mais particular da Amelinha, é ela o Lila. E como a Amelinha aprendeu a ver o relacionamento, são dois a partir de um, só são dois porque é um. A mãe Bia e o pai Aloysio é isso, você olha os dois, essa é a referência que ela tem de vida, de família. Você só tem um todo, você só é um pelo todo. E essa é uma visão de mundo banto, você só é... Essa coisa do eu freudiana, essa neurose toda eurocêntrica e do indivíduo, tal, tal, tal, ou antropocêntrico, o homem como centro do universo, não tem nada disso não, você só é o centro do universo porque existe o universo. E você só pode ser o centro do universo se você entender que o universo é maior do que você e veio primeiro que você, e que você depende dele pra ser um. Entendeu? Mas ele não necessariamente depende de você pra ser universo, então se coloque no seu lugar. Essa visão de mundo é muito mais... É a visão de mundo negra. A família brasileira negra é muito mais isso do que essa visão estanque da mulher sozinha na favela com uma penca de filho que vai virar bandido e vai morar aos 25 anos. Isso é parte, é um pedaço dessa história, mas não somos isso em resumo. A gente é isso aqui, a gente é mundo, a gente é contexto, a gente tem tradição, tem história. E acho que a Amelinha é a responsável por levar essa forma de ver o mundo, agregadora, que abraça.
P/1 – O que tem assim... Vamos fazer essas duas pra encerrar o nosso depoimento. A gente vai te convidar outra vez pra ficar aqui, pra gente falar até mais do Negro Olhar e desenvolver, porque eu acho que rende. O que você acha que tem de comum do seu personagem com a Amelinha?
R – Fé.
P/1 – Quer dizer, você e a Amelinha?
R – Eu entendi a pergunta. Fé. Fé. Fé na vida, fé no sentido de acreditar. A Amelinha acredita, ela sabe que é possível, porque ela tem história e ela tem tempo, e o tempo é o senhor das histórias. Eu acho que é isso.
P/1 – O que você achou, falando em história, dessa experiência de contar o seu depoimento para o Museu da Pessoa, da sua história de vida?
R – Muito estranho. Muito estranho, porque a gente tenta fazer uma cronologia, e enquanto a gente tava conversando eu percebi que algumas coisas escaparam, e: “Não, espere aí, mas isso aconteceu antes”. É estranho, mas é bom demais, porque, não sei, pra mim, particularmente, ao mesmo que é estranho é bom, porque é a oportunidade de falar essa certeza que eu tenho hoje, eu sou feliz pra caramba hoje, pra não falar um palavrão que traduziria muito melhor essa alegria. Eu sou feliz pra caramba hoje no lugar que eu to e quem eu sou, e de saber que eu sou a pessoa que eu sou, não como indivíduo, mas como esse sujeito. Então é muito bom falar disso, porque isso as pessoas não sabem, não entendem isso. Quando a gente vem com um discurso racial, a gente não tá falando de segregação, a gente não tá falando... Eu tenho um amigo que costuma dizer que o branco, não na pessoa da tez branca, mas o branco, a ideologia branca, ela tem medo da nossa autoafirmação, ela tem medo do revide, ela tem medo do troco, mas a gente não tá nem aí pra dar troco pra ninguém, meu irmão. Entendeu? A gente não tá preocupado em dar troco. Eu faço parte de um movimento negro e ninguém perde um segundo de tempo pensando em revidar nada. Porque a felicidade de saber o que se quer e aonde se quer chegar, e de quem se é, é tão bacana, é tão grande, que a gente não tem espaço pra isso. Não é dar uma de Poliana, mas enfim, pelo menos aonde eu ando e os lugares que a gente trabalha, busca, as pessoas que me cercam, ninguém tá nem aí pra dar troco pra ninguém, você tem o seu espaço? Beleza. Eu só quero o meu. E o meu não é o seu, o meu é o meu, dentro desse bolo todo.
P/1 – Obrigada. Entrevista linda.
R – De nada.
P/1 – Que entrevista linda. Eu vou voltar a te procurar.
R – Tá bom. Estamos aí.
P/1 – Querida, Obrigada.
R – Nada.Recolher