P/1 – Bom dia. Queria começar pedindo que você me diga seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome completo é Clarissa Moreira Worcman. Eu nasci em quatorze de agosto de 1982, em Parati.
P/1 – E os seus pais?
R – Meu pai é Vitor Worcman e minha mãe, Eliana Sander Ferreira Moreira.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho dois irmãos, um por parte de pai e um só de mãe. O da minha mãe é Lucas e por parte de pai, o Ian.
P/1 – Você é a mais velha?
R – Eu sou a mais velha. O Ian tem a idade da minha filha, dez anos, e o Lucas tem dezenove.
P/1 – Você cresceu em Parati? Conte-me como foi.
R – Nasci em Parati e fiquei lá até os seis anos. Meu pai era do Rio e ali ele foi fazer uma visita. Meu avô estava construindo um hotel lá e aí conheceu a minha mãe, que era nascida lá, de uma família grande, de doze irmãos. Eles se conheceram, se apaixonaram. Eu nasci lá mesmo e vivi lá até os meus seis anos de idade. Depois vim para o Rio.
P/1 – Você veio pro Rio com a sua mãe?
R – A gente veio. Logo que eu nasci, meus pais se separaram. Foi bem rápido, eles não ficaram muito tempo. Quando eu fui crescendo, cresci em Parati. Minha mãe tinha uma escolinha lá. Ela começou a montar uma escolinha na casa que a gente morava e, nesta época, quando eu tinha uns quatro, cinco anos, ela conheceu o meu padastro, o Belo. Ele era de Niterói. Ele a chamou para morar com ele, e eu também. Vim de pacotinho. A gente veio pra Niterói - meu pai morava no Rio. Então ficou mais próximo também.
P/1 – De infância, o que você se lembra?
R – Eu lembro muita coisa da minha infância. Eu tenho lembranças de muito pequena. Da minha primeira infância, que foi em Parati, eu lembro muita brincadeira de rua com meus primos; muita brincadeira sozinha também. Eu fui filha única por muito tempo, quase dez anos, então eu me lembro que brincava muito...
Continuar leituraP/1 – Bom dia. Queria começar pedindo que você me diga seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome completo é Clarissa Moreira Worcman. Eu nasci em quatorze de agosto de 1982, em Parati.
P/1 – E os seus pais?
R – Meu pai é Vitor Worcman e minha mãe, Eliana Sander Ferreira Moreira.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho dois irmãos, um por parte de pai e um só de mãe. O da minha mãe é Lucas e por parte de pai, o Ian.
P/1 – Você é a mais velha?
R – Eu sou a mais velha. O Ian tem a idade da minha filha, dez anos, e o Lucas tem dezenove.
P/1 – Você cresceu em Parati? Conte-me como foi.
R – Nasci em Parati e fiquei lá até os seis anos. Meu pai era do Rio e ali ele foi fazer uma visita. Meu avô estava construindo um hotel lá e aí conheceu a minha mãe, que era nascida lá, de uma família grande, de doze irmãos. Eles se conheceram, se apaixonaram. Eu nasci lá mesmo e vivi lá até os meus seis anos de idade. Depois vim para o Rio.
P/1 – Você veio pro Rio com a sua mãe?
R – A gente veio. Logo que eu nasci, meus pais se separaram. Foi bem rápido, eles não ficaram muito tempo. Quando eu fui crescendo, cresci em Parati. Minha mãe tinha uma escolinha lá. Ela começou a montar uma escolinha na casa que a gente morava e, nesta época, quando eu tinha uns quatro, cinco anos, ela conheceu o meu padastro, o Belo. Ele era de Niterói. Ele a chamou para morar com ele, e eu também. Vim de pacotinho. A gente veio pra Niterói - meu pai morava no Rio. Então ficou mais próximo também.
P/1 – De infância, o que você se lembra?
R – Eu lembro muita coisa da minha infância. Eu tenho lembranças de muito pequena. Da minha primeira infância, que foi em Parati, eu lembro muita brincadeira de rua com meus primos; muita brincadeira sozinha também. Eu fui filha única por muito tempo, quase dez anos, então eu me lembro que brincava muito sozinha também, com música, na escolinha com outras crianças. Eu brincava muito sozinha. Gostava de brincar sozinha, de inventar histórias, de me vestir de personagem. Gostava desta coisa de criar histórias. Brincava muito, de todas as coisas: brincava de amarelinha, de elástico, de fazer comidinha, de apresentação de peça com as minhas primas. A gente montava coisas e apresentava de noite.
Depois, quando a gente foi pra Itaipu, que a gente foi morar em Niterói, eu brincava muito sozinha. Lá eu fiquei muito sozinha porque a gente foi morar em Itaipu, que era um bairro afastado do centro, que até hoje é bem de paria, mais afastado, tem muitos terrenos ainda. Na época era mais ainda, não tinha quase nada. Era bem roça. Eu saí de Parati. Parati era mais movimentada que Itaipu e lá não tinha criança, praticamente. Eu me lembro que tinha a casa que a gente mudou e vários terrenos ao lado. Eu vestia uma roupa, brincava com fantasia e me metia naquele mato, passava o dia inteiro. Aí minha mãe me chamava, eu voltava, mas eu brincava muito sozinha.
Eu gostava muito de brincar com bicho. Eu lembro que tinha cavalos neste terreno, andava nestes cavalos. Eu aprontava. Tinha amigos imaginários.
Minha infância foi muito boa. A minha mãe era muito carinhosa, muito atenciosa. Era dona de casa, na época, não trabalhava fora, então cuidava de mim, me chamava pra almoçar, estas coisas boas.
P/1 – E a escola? Do que você se lembra?
R – Minha mãe montou uma escolinha em Parati. Eu me lembro que tinha muito ciúme desta escolinha porque tinha três anos, dois pra três; eu era muito pequena e tinha que ceder coisas porque todos eram alunos e eu era filha. Eu me lembro que queria a minha cadeirinha e não podia ter uma cadeirinha fixa. E a ideia era que todo mundo compartilhasse.
Eu me lembro de ir chorando pro quarto. Minha mãe não era brava, rigorosa, mas estava trabalhando, precisava trabalhar. A gente tinha muito pouco. Na época, até a minha avó deu uma ajuda pra minha mãe montar esta escolinha. Minha mãe era de uma família grande, sem muitos recursos, então ela montou a escolinha e aquilo tinha que dar muito certo. Eu realmente devia atrapalhar um pouco. Eu era meio chorona.
Depois que eu saí desta escolinha que era da minha mãe, eu fui pra outra escolinha, que era Escolinha da Mônica, eu acho. Mas tive problemas nas escolas, eu lembro. Eu me lembro de uma cena muito forte em Parati. Eu cheguei, gostava muito de usar batom; usava um batom vermelho, não sei como a minha mãe me deixava sair daquele jeito na rua. Eu saía com a boca vermelha, tinha um moço do banco que falava: “Cadê a boca vermelha?” Era muito engraçado! Andava que nem uma palhacinha. Aí eu cheguei na escola de batom, porque eu ia de batom religiosamente, todo dia, e eu lembro que uma menina juntou todo mundo da escola e falou: “Olha, a gente não vai mais poder ser sua amiga porque quem usa batom fica velha.” Eu me lembro que fiquei arrasada porque ninguém mais podia ser minha amiga, quer dizer, eu não podia mais usar batom. Acho que eu mudei de escola por causa disto, acho que eu chorei tanto! Foi tão… Que minha mãe trocou de escola.
Nesta outra escola, lembro que eu tinha um bolsinho com meu nome e este bolsinho… Não sei como, mas eu guardava um ovo cozido ali. Não sei como, se eu levava de casa, se tinha na cantina, mas eu me lembro deste ovo cozido dentro deste bolsinho, que tinha meu nome, Clarissa. Aquilo me fazia me sentir muito segura: um bolsinho com meu nome e um ovo dentro. Uma coisa muito engraçada.
Depois eu fui pra Itaipu e meus pais decidiram me colocar numa escola que era uma floresta, era uma chácara. Chamava-se Aldeia Curumim.
P/1 – Perto de Itaipu?
R – Mais ou menos. Eu ia de ônibus escolar.
Era uma escola fantástica. Era mato, era pedra, morros. As salas eram quase em cima das árvores, era um negócio enorme. E eu me lembro muito, tenho mil lembranças, mas uma… O primeiro dia de aula, que eu conheci uma amiga que era um pouquinho mais nova. Eu falei: “Eu já conheço esta escola” – eu não conhecia, era meu primeiro dia – “você quer dar uma volta?" Ela falou: “Quero, porque eu não conheço.” E a gente se perdeu, porque a escola era muito grande e a gente se enfiou nuns matos lá. E chegamos na hora da saída.
Era uma escola construtivista, então a gente não fui muito castigada. Nesta escola eu realmente fazia coisas muito... Aprontei nesta escola.
P/1 – Você gostava?
R – Eu gostava muito porque tinha esta coisa do espaço, de lanchar num lugar que tem verde, em cima de uma caixa d’água. Esta experiência da escola pra mim... Eu gostei mais por causa desta coisa física, este espaço físico, da natureza.
O grupo tinha uma coisa meio seletiva, eram filhos de pessoas ricas. Eu me lembro que isto foi muito conflituoso pra mim porque eu estudava, meu pai pagava esta escola, mas a minha realidade era muito diferente daquelas pessoas. Minha mãe tinha um brechó em casa, eu morria de vergonha. E tinha uma placa enorme: “Brechó – Roupas novas e usadas”. O meu ônibus escolar passava lá e todo mundo perguntando: “A sua mãe vende roupa usada?” Eu falava: “Não, aquela placa não é da minha casa.” Eu tinha muita vergonha. Tirava a placa todo dia, quando eu voltava a minha mãe tinha colocado a placa.
A minha casa era bonitinha, mas tinha um valão na frente, uma cerca. O meu padastro não cuidava muito do portão, que estava quase caindo. Uma vez a mãe de uma amiguinha viu a entrada da minha casa [e] não deixou mais a filha dormir [lá], porque achou com muito pouca segurança. Todo mundo morava em condomínio. Aquilo era muito difícil pra mim.
Depois, mais velha, eu fiz uns amigos que tinham uma realidade mais parecida, eu me fortaleci naquele grupinho.
P/1 – Tinha vizinhos?
R – Não, era muito raro. Eram pouquíssimas crianças. A minha mãe me pegava e a gente ia andando pra procurar crianças pra brincar.
P/1 – Clarissa, e na juventude, você permaneceu nesta escola?
R – Eu fiquei nesta escola até a oitava série, porque ela funcionava até a oitava série, e depois fui pra um colégio mais perto, o Itaipuca. Foi muito difícil porque eu passei muito tempo na Aldeia, e a Aldeia tinha um esquema… Quer dizer, o recreio era muito longo, não tinha sinal. E nesta escola era um clima de pré-vestibular. Eu repeti imediatamente, no meio [do] ano. Eu não acompanhei, eu tinha uma defasagem muito grande em matemática porque tinha uma liberdade muito grande nessa escola; eu não gostava de matemática, nunca gostei, e eu não aprendi. Eu tive muita dificuldade.
Eu já tinha quase dezesseis anos e saí desta escola. Com esta idade comecei a trabalhar.
P/1 – Você decidiu sozinha ou você estava precisando?
R – Eu queria trabalhar, eu precisava; a minha mãe não trabalhava. Eu não era muito… Eu não era adolescente de pedir muita coisa, mas eu queria ter o meu dinheirinho. Eu não tinha isto, não tinha uma mesada, então queria ter. E acho que queria trabalhar porque queria ficar mais independente, me sentir mais velha. Acho que foi mais por isto do que pelo dinheiro, que eu lembre. Talvez, não.
A minha lembrança mais forte é esta coisa da autonomia. O trabalho ia me dar uma liberdade maior, porque eu não tinha. Meu padastro era muito rigoroso. Meu padastro foi muito importante, na minha infância ele brincou comigo, ele cuidou todas a vezes que eu fiquei doente. Ele foi meu pai, dentro de casa. Meu pai vinha com frequência me ver, mas ele era muito careta. Tinha uma coisa que hoje eu entendo muito mais, mas eu não podia nada. Não podia ir à festa, não podia chegar tarde. Tinha horários. Isto me incomodava muito. Eu queria muito poder fazer coisas, poder viajar, e ele não deixava. Isto era difícil pra mim.
Eu me sentia alguém madura, tinha esta coisa de adolescente que acha que é mais velha. Incomodava mais ainda porque, sei lá, com quinze anos resolvi fazer ioga, fazer meditação. E ele: “Isto é absurdo. Por que você não está fazendo vôlei, um esporte da sua idade?” Eu acho que o trabalho veio pra romper um pouco esta relação de total dependência.
P/1 – E você foi trabalhar onde?
R – Fui trabalhar numa escolinha, porque a minha mãe deu aula. Ela falou: “Acho que você pode trabalhar como ajudante, então vamos procurar.” A gente começou a andar pelas ruas de Itaipu. Tinha várias escolinhas de fundo de quintal e ela falou: “Vamos pra você ver se consegue.” E a gente ia perguntando: “Precisa de assistente?” Eu tinha quinze anos, não tinha nem dezesseis. Um dia, deixei o telefone - a gente não tinha telefone em casa, era o da sogra da minha mãe que era perto - e a moça ligou no mesmo dia. E a Nilza, a sogra da minha mãe, que era muito próxima de mim, [avisou]: “Ela ligou, ela precisa de uma ajudante.” Aí eu fui, muito feliz.
Eu fui, comecei a fazer coisas de escolinha, nunca tinha feito aquelas coisas de mural, a letra que o professor usa. E eu perguntei pra ela: “Com que professor eu vou ficar?” “Não, na verdade você vai ser a professora, porque são poucas crianças e acho que você dá conta.” Eu fiquei muito assustada: vou ser professora de quê? Eu nunca dei aula e eram cinco crianças. Mas adorei a ideia de ser professora, ao mesmo tempo; o desafio.
P/1 – E você foi pegando o jeito?
R – Eu sempre gostei muito de crianças e lembro que eu tinha uma coisa de tentar entrar no mundo das crianças, de sempre abaixar pra falar. Eu não tinha estudado, depois eu vi que tinha a ver. De olho no olho com a criança, nunca falar do alto. E a coisa da rodinha, das músicas. Eu me diverti muito, era muito prazeroso.
Nas atividades, eu sempre me sentava com as crianças. No recreio, as outras professoras ficavam sentadas, mas também porque eu era muito criança. As crianças amavam. Eu brincava o recreio inteiro. Brincava de princesa, ficava dentro da casinha. Era ótimo, porque naquele momento eu podia ficar realmente inteira com elas. Na sala tinha a limitação das atividades, tinha uma preocupação muito grande se estava dando. Ela me dava umas folhinhas e eu tinha que passar a semana inteira. Mas eu tinha muita habilidade pra lidar com as crianças. E minha mãe tinha trabalhado, então ela me ajudou um pouco. “Você tem que fazer assim.” Explicou o que era um plano de aula, que eu tinha que saber o que ia trabalhar durante todo o dia. Foi muito bom.
Eu fiquei nesta escola dois anos e eu fazia… Eu levava as crianças pra minha casa, eventualmente. Eu marcava um lanche na minha casa, depois da escola. Eu ia com estas crianças pelas ruas. Lá é bem roça, chegava por trás pra não pegar o asfalto. Chegava na minha casa e era uma festa, porque a gente pulava na cama do meu quarto, lanche, depois os pais iam buscar. Eu ia a todos os aniversários das famílias. Ganhava presente, foi uma relação de muito afeto.
Até que chegou uma criança, a Clarinha, bebê ainda, e ela fez adaptação comigo. Na verdade, porque ela era do maternal e eu estava com o Jardim II, só que ela fez adaptação comigo, não fez com a outra professora. Eu trocava a fralda dela, a lavava no tanque, dava banhinho. Eu me apaixonei pela Clarinha e resolvi ficar grávida. (risos) Foi aí que pensei: “É muito bom.” Eu queria ter um bebê. A Clarinha era a coisa mais fofa do mundo.
Foi um ano vivendo aquilo. Eu me lembro das outras professoras, já no momento de casamento, fazendo chá de panela e tal. E eu pensava: “Quero casar, ter filhos.” Adorava a ideia de sair da minha casa. Adorava a minha mãe, mas eu queria ter a minha casa. E com dezessete anos eu fiquei grávida.
P/1 – Pra ter uma Clarinha.
R – Pra ter uma Clarinha e veio a Victoria.
P/1 – Supermoça, mas você já tinha pego também toda uma experiência com criança.
R – Já tinha trabalhado dois anos nesta escola. Eu já tinha uma relação... Eu treinei com a Clarinha, com a Elisa, com a Daiane, com a Ive, com a Letícia. Estas meninas são adolescentes hoje. Tinha uma que não comia. Eu acostumei supermal as crianças. Eu fiz coisas.
Uma vez, eu lembro, isto é muito engraçado. A dona do colégio saiu, viajou e deixou a escola na minha responsabilidade. Ela era louca, né? A mãe dela morava do lado. Eu lembro que estava muito calor. Eu pensei: “Vamos fazer um banho de mangueira.” Só que eu fiquei... Gente, eu não sei como eu fiz isto, eu tomei banho pelada com as crianças! Só de parte de baixo. Eu achava hipernatural. Eu li num livro que era importante esta relação, foi muito ingenuamente. Uma coisa absurdamente… Sabe, não tomei pelada no quintal, mas a gente tomou banho todo mundo junto num banheiro. Depois fiquei de biquíni, todo mundo jogando água. Foi uma festa inesquecível. Foi o dia mais alegre. Depois a gente fez lanche.
Eu era uma professora muito... Eu achava que quanto mais real, quanto mais próximo, quanto mais aquilo fosse uma experiência...
P/1 – Isto funcionava com as crianças?
R – Muito. Eu peguei uma turma e comecei a andar com esta turma. As crianças tinham um vínculo tão forte que pra não perder… Aquela coisa das mães falando, que gostavam, passava junto. As crianças iam pro terceiro período e eu ia junto. Cheguei na alfa, a gente foi andando junto. Foi muito bom. E eu criei uma relação com toda a escola. Era uma escola pequena, mas foi uma experiência fantástica. Aí resolvi fazer [o curso] normal à noite, aquela coisa do estudo. Pensei: “Eu tenho que continuar, fazer o segundo grau”, comecei a estudar a noite. Aí mudou a minha vida, porque trabalhar de dia e estudar à noite...
P/1 – Você já estava grávida?
R – Não, estava na casa da minha mãe. Eu comecei a dar aulas particulares para varias crianças. Tinha uns quatro alunos que eu ia de bicicleta dar aulas. Já era quarta série. As crianças que tinham dificuldade pra fazer dever sozinha, eu ia lá e fazia o dever junto. E aí eu realmente trabalhava pra caramba, porque eu trabalhava de manhã e à tarde e estudava à noite.
Eu conheci nesta época o pai da minha filha. Ele era da minha rua. Foi um pouco depois, outras coisas aconteceram antes. Com quinze anos eu tinha um namoradinho que tinha uma marcenaria.
P/1 – Você foi namoradeira?
R – Fui muito namoradeira, bastante. Tive este namoradinho que era de uma família de interior. Eu não gostava muito dele, gostava do irmão dele que era bem mais velho, tinha 25 anos. E na verdade este irmão não dava… Eu tinha quatorze, quinze, e ele era muito parecido com o irmão. Ele gostava de mim, ficava atrás. Mas eu fui muito má com ele. Eu era muito nova, não gostava o suficiente. E ele era muito permissivo, fazia todas as minhas vontades. O primeiro namorado, pra acostumar mal uma menina. Levava todos os meus amigos pra comer pizza. Ele trabalhava. Eu também, mas quando namorei o Marlon eu não trabalhava, o namorado foi antes. Depois veio o trabalho.
P/1 – Ele é o pai da sua filha?
R – Não. O pai da minha filha... Eu conheci o pai da minha filha, Breno, que morava na minha rua, músico. Eu conheci o Breno por acaso. Meu tio de Parati estava morando com a gente e ele fazia máscaras de barro, tinha uma técnica. Ele já morreu. Fazia máscaras pequenas, grandes, e à noite ele ia pra um trailer na esquina, com estas máscaras. Ele era uma figura.
Um dia eu fui buscá-lo porque ele bebia, se perdia; fui buscá-lo e conheci o Breno neste bar. Ele já tinha ido pra Parati, tinha ficado em Trindade, cabeludo. E a gente começou a conversar. Na verdade eu gostei mais do primo dele. (risos) Mas depois a gente começou a conversar e viu que tínhamos muito mais afinidade, uma pessoa supersensível. A gente começou a conversar, [ele começou] a ficar comigo. A gente se encontrava pra conversar.
Eu não lembro muito bem, mas lembro que a gente começou a namorar e foi tudo muito rápido. Ele era professor de música em escolinha. E aquilo foi incrível, porque eu também era professora. Ele ia à escola que eu dava aula e dava aula de violão de graça na escolinha. Ele era ótimo professor, é ótimo professor, tem músicas lindas. Ele tem uma relação incrível com as crianças, aquilo me causou muita admiração.
Ele era mais velho, eu tinha dezessete e ele, 25. Aquela relação com as crianças foi alguma coisa que me chamou a atenção. Aí escolinha, ele vinha dar aulas, escolinha… Um dia eu falei: “Eu queria muito ter um nenê, mas eu queria…” Eu não fiquei grávida sem querer. Eu lembro que ele me falou: “Eu acho que ter um nenê agora não vai mudar muito a minha vida, mas vai mudar muito a sua.” Eu me lembro dele ter falado: “Eu não tenho muitos sonhos, mas você quer fazer tanta coisa.” E eu pensei: uma destas coisas é ter um filho.
P/1 – E você falou pra sua mãe, comentou com ela?
R – Um mês antes de eu ficar grávida de fato eu achei que estava grávida. A gente foi ao médico, o mesmo que eu tive a Vivi.
P/1 – Você resolveu ficar grávida?
R – Eu tinha decidido, não sei. A minha mãe enlouqueceu. O meu padrasto nem sabia que eu já estava nesta etapa da vida. A minha mãe, muito apavorada, pouco reflexiva. O jeito dela sempre foi de muito pavor, medo. Aquilo não me assustava muito. Então a gente foi à médica, a gente fez um exame e eu não estava grávida.
Eu lembro que eu fiquei muito triste. Lembro disto e do Breno falando: “Calma, o nosso nenê tá lá, vai vir.” Uma coisa assim.
Ai, meu Deus. A minha mãe falou: “Graças a Deus que ela não tava grávida”. Um mês depois eu fiquei grávida, mas eu fiz um exame que deu que eu não estava porque eu tinha acabado de ficar. Foi uma coisa complicadíssima, a médica me deu remédio pra menstruar, achando que era um problema hormonal. E eu não ficava nunca, nunca, nunca. “Você só pode estar grávida, mas você ficou grávida quando?” Aí eu descobri que estava grávida e quando descobri, simplesmente mudei de ideia. Achei que não era uma boa ideia.
Foi um caos. Meu pai enlouqueceu, ficou muito desajustado. E a mulher do meu pai também ficou grávida na mesma época. Ela tentava ficar grávida há quatro anos e não conseguia e ele achava que eu estava ficando grávida por causa da mulher dele. Foi um caos. Eu vi que era muito mais complicado do que eu podia imaginar.
P/1 – Como foi?
R – Muito difícil, porque no início todo mundo interferiu. Minha avó, meu pai. Entrou todo mundo em cena. Meu padrasto ficou desiludido, ele achou que a culpa era dele. Foi uma coisa... E eu cheguei a quase fazer um aborto. Meu pai me levou, eu não queria, mas eu fui pra uma clínica porque eu estava numa situação muito complexa. Eu era muito nova, o pai da Victoria não tinha casa, ganhava pouco.
A situação era muito complexa. Quando eu vi o cenário real, o que ia envolver ter um filho, eu queria não ter ficado grávida, mas eu não queria tirar, não queria fazer um aborto. Eu fui, não à força, mas muito conduzida pelo meu pai. Fui até a segunda clínica, porque eu fui numa primeira, fui na segunda, que de fato ia acontecer. Uma coisa meio absurda, porque eu deitei na cama e quando fui anestesiada o médico olhou pra mim e falou: “Olha, aqui todo mundo chora, mas você está chorando mais do que todo mundo. Você quer fazer isto?” Eu falei: “Não.” Eu me lembro de uma moça no fundo falando: “O pai da criança quer assumir?” Eu falei: “Quer.” “Você está doida! Minha mãe teve quinze!”
Houve uma mobilização e eu estava com a roupa, estava deitada. Eu lembro que saí e tinha uma moça, eu falei: “Eu não fiz.” Ela falou: “Você já fez e nem sabe.” “Não, não fiz.” Aí chamaram o meu pai e o médico falou pro meu pai: “Não vou fazer, de jeito nenhum. Ela é menor e se ela não quiser eu não vou fazer. Se ela quiser, ela volta daqui a uma semana.” Meu pai ficou muito nervoso. Ele tinha pago, foi uma coisa horrível. Mas eu também fiz uma análise curta na época. Eu lembro da analista falando: “Você precisa escolher entre um pai e um filho, se você tiver o filho você pode ir mantendo o pai.” Porque meu pai ficou: “Não vou mais ser seu pai. Se você for ter filho agora, não vou mais ser seu pai.”
P/1 – Você era adolescente, né?
R – Tinha dezessete anos. E o pai da Victoria, eu acho importante falar, queria ter. Ele ficou muito mal, passou noites sem dormir. Ele ligou pra todas as pessoas pra ver o que podia fazer pra impedir. Ele realmente queria.
P/1 – _______ . Fez valer a sua vontade, mas você tinha noção do que você estava fazendo? _______ exercer o seu direito? Como você ________?
R – Eu lembro que o que batia muito forte pra mim… Eu lembro na manhã que eu fui fazer. Eu estava dormindo na casa da minha avó, minha avó estava viajando.
P/1 – Sua avó, mãe da sua mãe?
R – Mãe do meu pai. Ela estava viajando. Ela já tinha me levado, tinha tentado. Eu já tinha voltado. Já tinha acontecido muita coisa. Ela já tinha tentado uma interferência e eu não conseguia. Não consegui marcar, não consegui fazer. Voltei, meu pai me buscou em casa. Então esta foi a segunda vez.
E me lembro desta manhã. Aquela coisa de acordar com o dia escuro ainda e a sensação de não querer fazer. Pensar que eu queria ter a minha filha. Eu queria, mas não acho que eu tinha consciência total do que ia envolver. Não tinha, claro, era muito nova, mas tinha uma força que me levava pro preservar. A força que vinha era assim: “Eu preciso preservar esta vida.” Por mais que as pessoas falassem “não é nada”, eu sentia que era uma vida e que eu precisava preservar. Precisava cuidar daquela vida. Eu não queria fazer nada, mas não queria aquela confusão também. Conscientemente.
Foi muito difícil. Minha mãe ficou o tempo todo comigo. Meu pai me levou pra minha mãe e minha mãe não falava. Não dizia nem que sim, nem que não. A gente só se olhava e ela não ia, mas ela não falava.
P/1 – Ela não queria que você tirasse?
R – Não, não queria.
P/1 – E a gravidez, como foi?
R – Aí quando eu decidi, a gente decidiu casar. Quer dizer, decidi. Meu pai falou: “Vocês têm que casar no papel.” E eu não queria casar. Esta coisa do casar foi uma coisa por tabela, era muita coisa ao mesmo tempo. Aquela gravidez, a ideia de casar. O pai do Breno começou a fazer uma casa no quintal pra gente morar. Eu fiquei na casa da minha mãe enquanto isto e enjoei muito. Foi uma gravidez com muito enjoo. Enjoava muito, vomitava muito. E continuei estudando. Tentei estudar. Estudei até o oitavo mês. Continuei estudando, continuei dando aulas, só que teve um momento que eu não consegui mais.
Foi a Alfa. Eu estava dando aula pra Alfa e tinha que aprender a alfabetizar. E eu ficava muito enjoada, não conseguia, aí eu parei. Eu não conseguia mesmo. De manhã, eu vomitava, eu enjoava o dia inteiro. Emagreci muito no início da gestação. Não tive nenhum problema de anemia, mas foi uma gravidez com muitos sintomas, enjoo.
Comecei a morar com o pai da Vivi, morar na casa dele. Eu morria de saudades da minha mãe, voltava, ficava à tarde na minha casa. Dormia lá. Ficava na minha casa, no meu quarto. Não conseguia desfazer o meu quarto. Lavava as nossas roupas. Era superdifícil porque tinha que lavar a roupa lá embaixo, na casa do pai dele. Era uma casa muito suja, sabe? Era um senhor sozinho. E eu detesto sujeira, então resolvi limpar tudo. Eu tinha uma rotina de limpar toda a casa do pai dele, toda a nossa casa. Eu lavava as roupas, deixava tudo em ordem e ia pra casa da minha mãe, [pra] ficar no quarto.
Eu vivi a minha gravidez assim, lá e cá, mas foi gostoso. Foi uma gravidez... Aí descobri que era uma menina. Foi legal porque eu liguei pra ele, ele estava tocando em Búzios um período. Eu falei: “Pensei num nome.” Ele falou: “Eu também. Fala primeiro.” Eu falei: “Victoria.” Ele falou: “Eu também.” A gente escolheu juntos, longe. Foi muito legal essa coisa da Victoria. E no judaísmo, meu pai é Victor, você não pode colocar o nome… Quer dizer, Victoria vem de Victor, mas é um nome parecido; meu pai me ligou e falou: “Você não pode colocar o nome do seu pai, porque no judaísmo só se ele estivesse morto.” Falei: “Olha aqui, é Victoria de Victoria, de vitoriosa, não é de Victor.” Aí ele: “Você que sabe, não é o ideal.” Falei: “Tem muita coisa que não é o ideal aqui. O nome dela vai ser Victoria e acabou”.
Eu me lembro que depois, em outubro, que era o mês do perdão, eu já estava de barriguinha, já estava bem grávida, e [foi] a única vez que ele me abraçou. Foi uma vez que estava muito bêbado, acho que foi num churrasco; ele me abraçou, fez carinho. Foi a única vez. Foi muito difícil pra ele, ele ficou muito triste. Depois eu acabei sabendo de uma história, recentemente, que tem uma coisa de judaísmo... Meu pai não é judeu que frequenta sinagoga, mas tem umas coisas que ele segue muito. Então, por exemplo, no judaísmo, quando você vive um conflito grande você tem que escolher alguém pra colocar a questão pra esta pessoa, alguém que você confie muito. Vai você e a outra pessoa, e o que esta pessoa decidir, os dois vão ter que acatar. E quando esta outra pessoa não pode ir, que no caso era eu, estava grávida, ele levou um amigo dele pra me representar. E a pessoa que era, não sei quem era, disse: “Você está errado. Você tem que deixar a sua filha em paz e precisa viajar, sair de cena um pouco.” Ele viajou. Fiquei sabendo disto, não foi nem que ele seguiu isto.
P/1 – E o nascimento dela, como foi pra você?
R – Foi lindo. Ela nasceu numa sexta-feira, a minha pressão subiu um pouco e eu fui à médica; queria ter um parto normal, li vários livros pra me preparar. Queria que o Breno fizesse uma música quando ela nascesse. Mas quando eu fui à médica ela falou: “A sua pressão está muito alta, a gente vai ter este nenê agora.” “Agora? Nem vou pra casa?” Ela falou: “Não, você vai ter este nenê agora.” Liguei pro Breno e falei: “Pega um anjinho.” Tanta coisa pra levar, mas eu lembrei do anjinho. (risos) “Pega um anjinho que eu preciso ter no quartinho.”
Quando eu cheguei no hospital era muito claro, sabe? Eu falei: “Meu Deus, a nenê vai nascer nesta claridade! Que coisa horrível estas luzes! Não tem como apagar um pouco?” Ela falou: “A não ser que você queira que eu te corte no lugar errado.” Eu falei: “Nossa, este lugar não é acolhedor.” Tinha uma imagem de um lugar mais bonito pra ela nascer. E o Breno não chegou a tempo. Aí ele entrou, botou aquela roupa.
P/1 – Você foi sozinha?
R – Não, fui com a minha mãe e com a mãe dele. A minha mãe estava muito nervosa. Eu não estava tão nervosa assim, não sabia o que era. Eu tenho uma coisa de que quando eu não sei o que é não fico muito nervosa, então eu fui e entrei pra ter a Vivi.
Tinha uma coisa quando eu ficava de barriga pra cima que meu coração ficava péssimo, disparava. Eu tive que botar uma máscara. Foi difícil ali, na hora do parto. E o Breno ficou branco, quase desmaiou. Ele, com aquela touca, quase desmaiou e eu falei: “Ele vai cair em cima de mim.” (risos) E a Vivi nasceu. No momento que ela nasceu e eu olhei pra ela eu me lembro da sensação. “Minha filha está nascendo.” E de estranheza, porque acho que você não imagina nada e se você imagina é sempre diferente do que você imaginou. Bem gordinha, uma carinha toda amassada.
Ela chorou tanto, tanto, tanto naquela maternidade que a levaram antes pra mamar. Ela veio mamar, eu tinha bastante leite, queria muito amamentar. E a primeira noite eu decidi que o Breno ia ficar, que ela ia ficar no quarto. Foi um desastre! Ela achou a noite inteira, ele não sabia o que fazer. A enfermeira brigou com ele e eu não dormi. Na segunda noite eu falei: “Não, quero a minha mãe” e deixei-a dormir no berçário porque eu não dormia há muitas noites. A melhor sensação de todas foi esta última noite, quando ela veio às seis da manhã; eu tinha dormido e ela veio. Aquele pacotinho e a ideia de começar.
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R – Eu queria muito e fiquei muito feliz. Eu não tinha dúvidas que eu ia saber cuidar dela. Era muito natural aquilo.
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R – Não, eu fiquei na casa da minha mãe até a casa ficar pronta e começou a ficar complicada a relação com o Breno porque ele era músico, trabalhava à noite. Eu, cuidando da Vivi. O cuidar da Vivi nunca foi um peso pra mim quando ela era bebê. Eu gostava de cuidar dela, gostava de amamentar, gostava de dar banho, mas o fato dele não estar junto comigo... Foi tudo muito difícil, no momento que a gente foi pra uma casa com o filho eu esperava que ele cuidasse da gente, que a gente fosse uma família, mas ele não foi. Ele bebia, bebia muito. Não voltava pra casa. Voltava de madrugada, às quatro, cinco da manhã. Eu pensei que ou eu ia – a minha mãe estava superdisponível pra ficar com a Victoria… Ia deixar a Victoria com a minha mãe e sair também, pra tentar disputar alguma coisa com ele, ou vou cuidar da minha filha. E resolvi cuidar da minha filha. Claro que não foi fácil, não foi romântico, não era isto que eu queria, mas eu falei: “Vou priorizar a minha filha. Vou priorizar dormir bem, estar preparada pra amamentá-la. Vou priorizar estar bem pra ela.” E eu falei: “Não posso me separar agora porque não tem como, é muita confusão pra eu me separar.” E a gente se separou. Ele não dormia na cama, a Victoria passou a dormir comigo. Esta coisa dele beber era muito difícil pra mim. Nunca bebi, eu queria uma vida saudável. Era muito difícil, doloroso. Foi uma frustração muito grande, mas eu segurei. Quando ela tinha dois anos eu me separei.
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R – Muito a contragosto, não queria voltar pra casa da minha mãe. Não, não voltei pra casa de minha mãe. Ele saiu da casa, só que era impossível, porque era a casa do pai dele, então eu não tinha nenhuma liberdade. Eu entrava pela casa do pai dele, ele morando embaixo. Eu acordava e ouvia a voz dele, não fazia sentido aquilo ali, mas tentei quase sete meses. Como ficava mais na minha mãe do que nesta casa, também não achei justo ocupar um espaço que eu não estava pra dizer que estava. Resolvi sair. Ele me ajudou com a mudança, arrumou de novo o meu quarto. A gente nunca brigou.
P/1 – E você trabalhava? Ficava cuidando da Victória?
R – A Victoria foi pra um colégio que ele dava aula. E quando eu fui adaptar a Victoria, as moças viram que eu tinha muito jeito com criança e me chamaram pra trabalhar nesta escola. Eu já tinha experiência e pensei: “Poxa, é uma maneira de trabalhar porque eu trago a Victória, trabalho e volto.” E aí comecei a trabalhar, mas foi um caos. Eu fiquei com uma turma de 28 crianças, juntaram, fizeram uma coisa assim. Fiquei trabalhando muito, com muitas crianças.
Fiquei um ano nesta escola, foi o tempo que a Victoria ficou. Aí fui pra outra escola que uma prima da minha mãe nos convidou pra trabalhar; ia pagar um salário, assinar carteira. Eu fui pra esta escola. A Victoria estudava e eu trabalhei nesta escola mais um ano. Foi um período muito difícil; era longe, a gente pegava ônibus, andava pra caramba pra chegar nesta escola. E quando a gente chegava nesta escola, a Victoria chorava muito. Todo o tempo que eu trabalhei nesta escola ela chorava muito. Ela queria ficar comigo. Até que eu consegui, no meio do ano, passar – porque ela estava numa turma errada pra não ficar comigo; ela era grande e estava numa turma de menores, ela tinha três e estava numa turma de dois. A dona da escola falou: “Você assume o fato de estar dando aula pra sua filha? É muito difícil.” “Não, eu assumo.” Dei aulas pra Victoria mais um ano. As crianças tinham ciúmes, a Victoria era a mais mordida. Puxavam o cabelo dela porque ela era minha filha. Eu cobrava muito dela e ela tinha que me ajudar a segurar aquilo ali.
Ela era muito pequena. Aí voltava, minha mãe seguia no ônibus, a Victoria sempre dormia; ela era pesadíssima, ainda mamava no peito. A Victoria mamou até os três anos. Minha mãe seguia com a Vivi no ônibus e eu seguia pra fazer, porque eu não consegui terminar o meu segundo grau, fazer o supletivo. Mas sempre o estudo foi muito difícil porque eu estava muito cansada; a coisa da matemática, estas matérias que eu fiquei com uma defasagem, sempre difícil estudar algumas matérias. Outras eu adorava. Fiquei nesta escola quase dois anos.
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R – Consegui. Consegui porque todo mundo passava naquele colégio. Eu tinha muita falta.
P/1 – E o teatro, como chegou?
R – Chegou neste momento quando meu avô por parte de pai morreu; o Diduche, ________ Worcman, ficou doente e morreu muito rápido. A morte dele foi muito triste, meu pai ficou muito triste, foi muito ruim. Um dia a gente foi numa sinagoga e eu fui com a família do meu pai e um primo. Depois desta cerimônia, que eu acho que era como sétimo dia, alguma coisa assim, sentei com um primo, o Juca - o nome dele é Júlio Worcman - e falei pra ele uma coisa que eu tinha escutado nesta sinagoga, uma fala do _________, que é o rabino, que dizia que sempre na vida a gente tem que estar… Era mais ou menos isto, o que ficou pra mim foi isto: que sempre na vida a gente tem que olhar pra estar caminhando em direção ao que a gente acha que é o nosso destino. E eu achava que não estava. Achava que a escola, toda aquela situação, estava muito distante. E começou a ficar muito forte a coisa do teatro na escola. Eu sempre fazia peças, - monólogos, porque eu sempre fazia sozinha – pra todas as festas da escola. Eu era o coelho de Páscoa, no dia dos pais eu fazia não sei quê, no dia das mães. Fazia para as crianças teatro na hora do recreio. Esta coisa do teatro estava muito forte na escola, neste trabalho com as crianças. Teatro? A Clarissa, então eu fazia.
Aí falei pra ele. Eu queria muito, já queria ser atriz: “Eu acho que estou num caminho que vai ser muito difícil.” Ele falou, ele tinha dinheiro: “Olha, eu vou te pagar um ano pra você parar de trabalhar e estudar teatro.” “Mas como assim?” Eu me lembro que eram seis mil reais que eu ia ganhar aquele ano na escolinha. Ele falou: “Vou te dar seis mil reais e você vai estudar teatro.” “Você vai me dar seis mil reais?” “Vou te dar porque eu acho que você tem que tentar. Eu acho que você tem que ter esta oportunidade.” Ele gostava de mim, sempre gostou, desde pequena.
E assim foi. Ele depositou na minha conta e eu me lembro que eu fiquei assim, falei: “Gente, o que eu faço?” Era uma coisa do outro mundo, né? Seis mil reais na minha conta pra eu parar de trabalhar. Eu fui à escolinha, fiz tudo, aviso prévio. Eu me lembro de uma fala da diretora que foi muito importante pra mim. Ela falou: “Você é uma grande perda. A gente está perdendo alguém muito importante nesta escola.” Eu pensei: “Que bom que estou saindo assim.” “Mas a gente sabe que é o seu caminho.” Todo mundo reconheceu.
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R – Foi muito legal. E aí foi todo um processo, me matriculei na Tao. Ele queria que fosse na Tao, que era referência em teatro. Ele ligava e falava: “Clarissa, vai a tal lugar.” Uma coisa muito difícil pra mim nesta época era vir no Rio. Sair de Itaipu, deixar a minha filha, deixar toda aquela situação que eu estava acostumada, pra começar a estudar. Mas ao mesmo tempo me lembro do primeiro dia naquela escola, o chão de madeira. Eu falei: “Gente, isto aqui é fantástico.” E foi a primeira vez que eu estudei sem faltas. Eu realmente me dediquei.
Foi fantástico! Uma experiência muito boa. Coisa de ir pra casa, pensar em personagem, decorar texto, me apresentar, ouvir o que as pessoas tinham pra dizer depois, do seu trabalho.
Fiz um ano e meio de Tao. Tinha todo um esquema com a Victoria; ela tinha que ir numa Kombi, ficava na casa da minha mãe, que me ajudou muito.
Fiquei este período, até que começou a ficar complicado para o meu primo manter esta situação, e isso me incomodava muito, estar totalmente dependente dele. Eu pensava: “O que vou fazer da minha vida?” Quando estava acabando, eu pensava em formas de me sustentar a partir daquilo ali, porque meus prazos eram muito curtos. Ele me sugeriu fazer o acompanhamento de um espetáculo de uma pessoa que ele conhecia, a Estela Miranda. Hoje eu vejo que foi uma oportunidade, mas tinha situações-limite: ou eu ia à festinha de dia das mães da Victoria ou... Eu sempre priorizei as coisas da Victoria, as coisas desta vida da casa. E esta vida de atriz, de badalação, de ir a tal lugar porque tal pessoa está, eu nunca tive vocação. Nunca tive jeito pra fazer isto. Nunca tive jeito pra fazer contato com ninguém que não fosse uma coisa natural. Ir falar com tal pessoa, ter que ________ com tal pessoa. Eu não conseguia fazer deste jeito. Nunca fui a um teste; todo mundo ia fazer e eu não me sentia legal pra ir. Não era aquilo, não era daquele jeito. Uma coisa muito Zona Sul, de se vestir pra mostrar que você está fazendo teatro. Isto não me enchia os olhos. Não que isto seja um mérito, mas não me adaptei.
Minha realidade era muito diferente. Eu não tinha dinheiro, tinha que trabalhar, tinha uma filha. Tinha que ter uma casa pra viver com ela. Aquilo ali era um sonho, mas eu tinha que viabilizar. Não dava pra ficar naquela história, não era pra mim. Eu já pensava, comecei a pensar em teatro na praça; tentar unir o trabalho com as crianças. Foi aí que eu conheci algumas pessoas muito importantes que depois vieram trabalhar comigo, mas as coisas não davam dinheiro. As coisas eram muito “vamos ver.”
Uma situação-limite foi quando minha mãe e meu padrasto faliram. Esta falência já estava acontecendo na família, a família trabalhava junto e a gente perdeu a casa. A gente teve que mudar da casa, foi uma situação horrorosa. Minha mãe teve que ir pra casa da sogra. Nesta época, falei: “Preciso me mudar. Preciso de uma casa com a minha filha. Não posso ir também pra casa da sogra da minha mãe.” Foi quando a minha avó, que sempre foi muito presente na minha vida, falou: “Não, vou te ajudar nos primeiros meses, mas você tem que trabalhar.” Eu mudei pra um apartamento no Vital Brasil, no quinto andar, com escada e tudo, pra ficar mais barato. Conseguimos um aluguel e meu pai e minha avó iam me ajudar. Perto da escolinha que a Victoria estudava, pensando num esquema. E aí eu mudei pra Vital Brasil, que é um bairro distante de Itaipu. Isto foi em 2005, que foi um ano que muita coisa aconteceu porque foi o ano que eu precisava trabalhar. O que eu ia fazer? Não queria voltar pra escola. E aí foi quando a minha avó, muito a contragosto… Não foi uma coisa legal, foi uma coisa: “Tem uma vaga lá na BrazilFoundation. A Kátia precisa de alguém que a ajude com coisas de banco, uma coisa muito provisória. Vai enquanto você está procurando outro trabalho.” Eu falei: “Tudo bem”.
Tinha que trabalhar no Rio de Janeiro, a coisa do Rio era outro mundo pra mim. Eu vim à tarde, [no] dia três de outubro de 2005 foi a primeira vez que eu vim ajudar com planilhas. Eu me lembro: “Meu Deus, você é ótima nisso.” Comecei a trabalhar na BrazilFoundation.
P/1 – E como foi a sua chegada aqui na BrazilFoundation?
R – Foi pra ajudar na parte financeira e banco. Na verdade, não tinha uma coisa muito definida. O que ela decidisse fazer, ou o que ela precisasse eu ia fazer, mas ela me recebeu muito bem. A Kátia é uma pessoa aconchegante. Por mais que seja séria, ela é bem aconchegante. Mas eu era neta, né? Neta da presidente aqui, da Suzane, então também tinha uma coisa que eu estava chegando, mas eu era neta. Tinha certo cuidado por ser neta. Isto, pra mim, inicialmente não era ruim nem bom, era só um fato. [Isso] me pesava assim: “É o trabalho da minha avó. O trabalho da minha avó.”
Tudo que estava relacionado à minha avó eu sempre admirei muito. Sempre tive muita admiração pela minha avó. O fato de ela ser uma mulher independente, ter uma casa bonita, valores que já eram importantes pra mim. Não conhecia a BrazilFoundation, mas sabia que era alguma coisa bonita. Não sabia o que fazia, ela também não me explicou muito. Eu cheguei de paraquedas, já no final do ano, quando as coisas já estão num ritmo. Este final do ano, que foi de outubro a dezembro, foi de chegada. Chegada pra conhecer, a Kátia me mostrava as coisas; dizia como elas funcionavam na parte administrativa. Só que neste final de ano estava chegando o projeto da próxima seleção e eu fiquei bastante curiosa. Fiquei pensando o que era aquilo, as primeiras reuniões eu ______ as pessoas sérias, falavam coisas importantes.
“O que será que eu vou fazer aqui?” Minha experiência com criança... Foram as minhas primeiras impressões: um lugar agradável, um escritório agradável, com pessoas inteligentes e “o que eu vou fazer aqui?” A Kátia não me passava muita coisa. Ela tinha que se entender também nas coisas, então era muito pontual: “Faz isso, no final do dia faz aquilo.” E eu ficava muito tempo mais observando do que trabalhando de fato. Eu nem mexia muito bem com computador. Não era muito ligada à computador, também estava aprendendo a mexer nos programas. Levou um período pra entender como as coisas funcionavam.
Não me lembro exatamente quando, mas foi neste processo seletivo. Eu gostei muito da Carlona, que era uma voluntária que trabalhava aqui. Na sala trabalhavam a Carlona, a Carlinha e o Tiago. E na outra sala, a Sheila e o Gláucio e eu ficava com a Kátia na primeira sala. Quando eu entrei, a Carlona saiu de férias. Quando a Carlona voltou eu a achei ótima, porque ela falava alto, era animada, descontraída. Falei: “Nossa, que pessoa diferente.” Ela tinha um jeito muito dela de fazer as coisas. Ela falava, brincava. Ela já chegou: “Você: se você quiser ajudar aqui pode fazer isto, aquilo.” Eu achei o máximo, me bandeei pro lado dela na mesma hora. E a Kátia foi percebendo que não era muito a minha praia nem a minha vocação trabalhar com planilhas. Foi acontecendo e quando eu vi eu já estava ali com a Carlona, abrindo projetos.
P/1 – É a Carla Neto?
R – Carla Neto. A gente passava a tarde abrindo os projetos, colocando no saquinho, fazendo todo aquele primeiro cadastro, conversando muito, fazendo isso e ela explicando. E ela falava coisas muito legais, a gente se divertia muito. Era muito agradável, mas tudo ainda muito distante do que a BrazilFoundation fazia. Já estava mais inteirada até de projetos, mas comecei a querer ler. Os que eu abria eu já dava uma lida. Olhava: “O que é isto?”
Comecei a ler projetos e comecei a fazer pareceres. Na época, tinha a primeira leitura. Eu comecei a fazer porque a primeira leitura, na época, todo mundo fazia, era uma primeira olhada. A Carlona começou a me orientar: “Você olha isto, olha aquilo, aquilo outro.” Era um parecer mais superficial, mas [pra saber] se ele pode ir pra uma segunda leitura. E eu comecei a escrever.
Na época, tinha um banco, eu fazia estes pareceres e o Gláucio, que estava começando a pensar no monitoramento, começou a ver. Os projetos chegavam pra ele. Ele era o segundo leitor e via todos os pareceres. E quando ele começou a ver os meus pareceres, ele começou a achar interessante, começou a achar que podia dar um caldo aquilo ali. Foi quando ele falou que estava montando o monitoramento e pediu que eu fosse trabalhar com ele. Eu estava bem solta porque eu estava fazendo pareceres, mas estava com a Carlona. Eu falei - bem, o Gláucio não falava. Era uma pessoa que entrava muda e saía calada.
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R – Na época ele era analista, na seleção ele fazia esta análise de desenvolvimento local e cidadania e estava engatinhando com o projeto do monitoramento, que não era oficializado. O monitoramento era alguma coisa que estava sendo construída. Ele pegou este bonde do monitoramento e começou a construir, a fazer os protocolos, como os relatórios podiam ser feitos, os modelos de relatório. Começou a organizar tudo pra gente ter um monitoramento. E ele me chamou pra ser assistente dele. Pra receber, pra responder e-mail, fazer uma primeira análise pra poder passar pra ele.
Ali tinha alguma coisa que eu podia contribuir. Tinha toda a coisa do projeto, toda a parte dos projetos que chegavam. Ele foi construindo todo o processo comigo e depois com a Mariele, que também entrou. Depois que o projeto era selecionado, o que acontecia quando ele era apoiado pela BrazilFoundation. E a gente foi construindo junto com ele, qual a relação que queria com este gestor. Como a gente recebe este documento. O que a gente cobra. Aquilo foi sendo construído e surge neste momento o projeto, com a ideia de capacitar estes gestores, de comunicação em gestão. E a Sheila, que na época era gerente de programas.
Aconteceram, na verdade, outras coisas antes. A Verônica, que na verdade eu ia ficar com ela antes de ficar com o Gláucio... Antes dessa puxada do Gláucio, eu tive algumas experiências com outras pessoas que entraram na BrazilFoundation pra trabalhar junto e não ficaram. Já nesta parte de monitoramento.
P/1 – Testando como ia ser esta parte do monitoramento.
R – Eu lembro que quando a Verônica entrou ela ia ficar com uma parte, o Gláucio com outra e eu ia ficar com ela, então isto não foi tão assim... Coisas aconteceram. Inclusive este projeto da Lina, que foi o piloto e que a Sheila... Na verdade, eu estava na sala trabalhando com as coisas de banco; uma menina que estava no projeto tinha saído e eu me ofereci pra ajudar. E passei a vir de manhã alguns dias.
P/1 – Era a capacitação?
R – Era um projeto piloto pra mandar pra Vina fazer uma capacitação com os gestores na seleção. Fazer a seleção e capacitar os gestores. Era uma ideia pra começar o apoio com mais subsídios, com uma troca maior com os gestores. Eu me ofereci, não tinha nada a ver com isto - quer dizer, eu não tinha nada a ver com quase nada. Estava começando um monitoramento e falei: “De repente, posso ajudar.” Era uma coisa de pesquisa, pra ver material de comunicação, eu achei que podia. Eu passei a ganhar duzentos reais a mais, passei a ganhar pelo projeto. E comecei a pesquisar, a trazer algumas bibliografias. Pesquisa mesmo de algumas coisas que me pediam, [algo] bem específico. Até um dia que eu peguei um livro “Gestão de associações do dia a dia”, e era um roteiro. Era uma peça de teatro. Tinha fala. Eu falei: “Nossa, isto dá uma peça.” E fiquei pensando nisto. “Poxa, será que neste projeto não caberia uma abertura com uma peça de teatro?” Fiquei com um pouco de medo, estava chegando, mas cheguei e falei: “Sheila, tive esta ideia. O que você acha?” Ela falou: “Monta. Faz”. “Não, sou atriz, eu vejo isto.” “Mas você faria como?” “Tenho pessoas que posso chamar”. A gente foi discutindo e ela aprovou. Uma ideia meio maluca, mas ela aprovou. Eu liguei pra Márcia.
P/1 – Você foi fazer esta peça para _______?
R – Pra este projeto piloto. Era pontual, era uma peça. Na verdade, eram duas apresentações porque a gente ia fazer no Rio e em São Paulo, mas era pontual.
Na época, eu tinha um namorado que trabalhava com cenário; ele ajudou nesta parte, fez um preço superbarato o cenário. A gente não tinha muito recurso, não tinha como pedir, mas tinha que ter cenário. Eu liguei pros meninos, a Márcia... A gente ensaiou uma peça juntos e o Lirinha era filho de um dos atores que fez esta peça junto comigo e com a Márcia. Eu tinha visto o Lirinha uma vez, mas tinha assistido a uma peça do Lirinha em Niterói que eu tinha ficado muito impressionada. Eu o achava ótimo ator e fiquei com ele na cabeça. Chamei então ele e a Márcia e a gente se encontrou aqui.
P/1 – Márcia?
R – [Márcia] Alves, Ricardo Lira. A gente se encontrou aqui, um encontro inusitado. Aquela situação: “Ai, meu Deus, este grupo de teatro aqui na Raquel Foundation.” Muito estranho. Eu me lembro na primeira sala, estava um pouco vazia ainda, não tinha nada ocupado e a gente começou a ler um texto. Eu me baseei no livro, mas a peça era nada. Não tinha nada. Peguei o início do texto, acrescentei outras coisas. A gente foi ensaiando e aconteceram coisas muito legais. Ensaiava e cada vez aparecia um improviso e foi virando uma peça, um texto; foi ficando legal. Só que a gente não sabia pra quem a gente ia apresentar. Se as pessoas iam gostar. Se aquilo tinha cabimento. E eu pensava que tinha todo o cabimento.
P/1 – Qual era a temática desta peça?
R – Gestão de associações no dia a dia. A gente ia trabalhar com gestão e comunicação. E este livro falava de um grupo que não tinha virado ONG, uma associação. Quais eram os prós e contras pra virar uma associação. O que era difícil nesta relação; de um grupo que está vivendo ali, de uma forma, que tem os seus _______, que tem a sua comunidade. Que lida de um jeito e de repente [tem que] se oficializar, tem que ter nome, papel. E todas estas questões que envolvem a mudança de lugar de um grupo quando vira associação. Mas acabou virando uma coisa muito interessante porque estes personagens foram ganhando muita vida.
A Dona Luz, a minha personagem, é uma líder comunitária, articuladora; a Joana, a líder, a pessoa que está ali há muito tempo e o Jerônimo, que é um músico, e o seu Tadeu que é o comerciante. E a gente foi brincando com a cidade, a Dona Luz que vai nesta cidade, vai levar os artesanatos dela. E esta história dos artesanatos foi crescendo muito porque ela tem uma loucura com estes artesanatos, e a alça. O comerciante pede pra tirar a alça e ela diz que a alça é um sentimento da mulher, que se ela tirar a alça ele não pode tirar a alça. O Seu Tadeu é um comerciante português, mal humoradíssimo. A Luz e o Jerônimo têm um caso mal resolvido. A Joana é super-resistente.
Isto foi sendo alimentado pela experiência nossa com o público, minha aqui no escritório, com os gestores. Eu conheci uma gestora do monitoramento, a dona Eulima, uma gestora do interior, e a gente foi trocando muito por telefone, eu fui trazendo muita coisa e tudo foi muito coletivo. O trabalho de teatro a gente fez junto. Eu tive a ideia porque eu estava aqui, eu viabilizei, mas a gente fez tudo junto.
P/1 – Como chama a peça?
R – Esta peça chama Lá no morro azul. Ela ficou muito tempo sem nome, a gente tem dificuldade até hoje de dar nome às nossas peças, e este nome quase que [foi] se impondo, porque precisava de um nome.
Eu lembro a nossa primeira apresentação. Uma situação, muito poucos gestores e...
P/1 – Ela foi apresentada lá na ________.
R – Não, foi apresentada num hotel no Rio.
P/1 – __________.
R – Foi abertura. Você imagina, era abertura de tudo, né? Primeiro os gestores, umas dez pessoas. Eu me lembro mais do nosso nervoso. Era nossa sensação de: “Será que isto vai funcionar?” Foi muito legal, mas muito sério ao mesmo tempo.
Neste período, a gente não fazia os improvisos que a gente faz hoje; a gente não brincava do jeito que a gente brinca hoje. Tinha uma coisa muito mais do texto, o que é dito. O Morro Azul, quando nasceu, era outra peça. Ele existe até hoje, então isto foi lá em 2006, era outra realidade. A gente também era diferente.
P/1 – E a primeira recepção?
R – Foi legal, as pessoas gostaram bastante. As pessoas comentaram que gostaram. Eu confesso que não lembro muito desta primeira apresentação, porque acho que foi tanta tensão. Mas deu certo, porque eu lembro aqui no escritório todo mundo comentando que deu certo. Todo mundo comentando: “Nossa, a Clarissa é atriz”. Ninguém tinha visto esse lado ainda, então foi bom, muito bom. Depois fomos pra São Paulo.
P/1 – Clarissa, deu certo e aí eles adotaram? Como foi a decisão?
R – Nada foi decidido, foi muito mais acontecendo. A coisa da demanda, do retorno. Eu continuei no monitoramento com uma cobrança muito grande do Gláucio neste início de trabalho, porque ele queria consolidar coisas. Esta coisa do teatro começa a dar certo e a ocupar um lugar. Ele queria muito que na capacitação eu me preparasse pra dar oficinas. Ele queria muito que a equipe desse oficina nesta capacitação.
Ele fez a oficina quando surge esta parceria com o HSBC, porque primeiro foi o projeto da Vina. Eu não lembro exatamente como acontece este processo. Ela se firmou de modo que a gente já tinha uma sequência de apresentações. Não era uma, eram quatro.
P/1 – Você falou que o Gláucio queria que você fizesse uma oficina de capacitação. Quais eram as oficinas?
R – De gestão e comunicação. Eram quatro porque eram divididas em dois níveis. A Gestão 1 e 2 e Comunicação 1 e 2.
P/1 – Você chegou a dar?
R – Eu assisti umas dez oficinas. E era muito difícil, porque eu saía da peça, ia pra aquela oficina. O Gláucio era muito professoral, ele tinha muito conteúdo, mas era uma oficina pesada, uma oficina que as pessoas reclamavam muito. Aquilo era difícil; eu achava que aquilo tinha que ser de outro jeito, com outra dinâmica. Complicado, porque no momento que eu falava isso não era bem vindo.
P/1 – E você se deu conta que estava reunindo a sua experiência pedagógica com o teatro?
R – Sim, de alguma forma esta coisa do teatro... A gente faz intervenções a partir de um tema.
P/1 – Você teve o cuidado de ser pedagógica. Você pegou o livro e foi criando em cima daquilo, para as questões que você queria abordar.
R – Como aquele livro trazia questões muito burocráticas, questões muito práticas - como você registra, como você consegue certidão, eu achei que aquele livro trazia pra outro plano. De pessoas. Aquela coisa assim: o tesoureiro tem um nome, a articuladora é alguém com sonhos e a líder ocupa tal lugar. Eu achei que trazendo isso pro mundo desses personagens, com situações cotidianas, as pessoas poderiam se ver; as pessoas poderiam se envolver mais com aquilo, então aquele teatro poderia ser muito mais útil pra estas pessoas. O que me batia muito forte era isso: como eu trago uma história que vá cativar as pessoas pra assuntos que elas vão ver e que às vezes não são assuntos agradáveis, são coisas às vezes muito chatas. Teve esse lado pedagógico, foi muito isso. E acho que artístico, porque é unir o que poderia ser um aprendizado a partir de uma experiência artística, a ferramenta do teatro.
Quando a gente foi se dando conta que este trabalho estava tendo retorno, espaço, as pessoas estavam gostando; e no momento que fomos construir a nossa segunda peça, que foi O Buraco, [pensamos]: “Deu certo aquela, mas será que a próxima também vai dar? Será que a gente vai saber fazer direito? Será que a gente vai dar certo de novo?” Como grupo, a gente tinha e tem ainda muita insegurança porque é sempre alguma coisa nova, alguma coisa que não foi feita, então você tem que buscar outros elementos que funcionem. Você não pode ficar acomodado naquilo que já deu certo. Quando a gente trouxe O Buraco, a gente teve uma troca muito grande, tanto com ______ quanto com a Márcia, de [dizer]: “O que a gente leva de novo pra essas pessoas?” Aí a gente usa a ferramenta do audiovisual, da gravação com outra linguagem, a gente usa o sotaque de outra região - todo mundo fala com sotaque nordestino.
O Buraco é realista, a gente tem ali outra linguagem mesmo. Morro Azul é mais fantasia e O Buraco foi uma peça voltada para os gerentes do banco, do Instituto HSBC que eventualmente são voluntários, são padrinhos de projetos. Como a gente toca estas pessoas? Este foi um desafio maravilhoso porque era muito claro: a gente precisa tocar ‘este’ público. Como a gente toca estes padrinhos pra questão do voluntariado sem ser clichê, sem trazer o que todo mundo já sabe? Na verdade sabe, mas não coloca em prática. Então a gente tentou ir por outro caminho, pelo caminho do que está subentendido. O Buraco tem muito subtexto, tem muita coisa que não é dita, mas é dita, está ali. A construção dos personagens: o Lirinha faz um gerente que todo mundo pergunta se ele é um gerente ou [se] ele fez um laboratório, porque ficou muito real. Ele faz um gerente com muita construção. Eu faço uma esposa que é bem uma esposa mesmo, que está precisando sentar com este marido e conversar. A gente trabalha a questão do tempo, que é uma questão universal, pois as pessoas não têm tempo. Como você lida com o tempo que você tem?
Esta segunda experiência foi também com muita insegurança porque a gente foi apresentar pra cinquenta padrinhos, piloto também. Depois a gente conseguiu apresentar esta peça junto com os gestores, que eu achei que foi melhor ainda, porque esta experiência dos gerentes assistirem junto aos gestores faz com que haja uma troca naquela hora. Este padrinho também é legal porque ele pode refletir, discutir talvez com mais abertura com outros funcionários do banco. Mas a primeira experiência foi em Curitiba, piloto, cinquenta padrinhos e a gente: “Meu Deus!” Porque a gente fala mesmo.
É um gerente de banco que não sabe que projeto é este, usa aqueles termos de criança carente, quer dar ovo de páscoa para adolescentes. Então a gente vai na ferida, mas ao mesmo tempo a gente está mostrando o indivíduo ali, com as questões da casa. É O Buraco porque tem um buraco na frente da casa dele e a mulher acha que eles precisam passar um abaixo-assinado e ele diz que isso é problema do prefeito, que ele já faz a parte dele. A gente foi neste caminho.
Eu começo então um trabalho simultâneo de construção de roteiro, de ensaio, de tudo o que envolve a construção de uma nova peça. Com o trabalho diário na BrazilFoundation cada vez mais apertado no sentido de horário. Neste momento ainda tinha uma flexibilidade maior, quer dizer: “Quarta-feira você pode deixar para o teatro e os outros dias você está aqui, mas precisa estar completamente para o monitoramento.” Eu me vi em vários momentos...
P/1 – Como você conciliou o seu tempo? Você também acompanhava o monitoramento? Como era a divisão do tempo?
R – Nesta época do monitoramento a gente estava num período muito intenso, no ano de 2007. Entrou a seleção de um Instituto com as escolas rurais e nesta seleção a gente conseguiu viabilizar de fato o monitoramento, ou seja, o pagamento das pessoas por um ano, de material. A gente conseguiu unir a partir desta seleção que foi das escolas rurais com o monitoramento que estava se consolidando na BrazilFoundation.
A ideia do Gláucio era que eu e Mariele virássemos analistas, tivéssemos um crescendo. Ele tinha um tempo pras coisas. Ele tinha muito este pensamento de preparar, queria muito investir nas pessoas que já estavam aqui. O que eu acho que é bacana, que ele tinha uma ideia, mas ainda uma cabeça muito de fundação internacional, cargos e salários, uma coisa bem definida. Ele tinha muito claro que ele queria que este monitoramento... A gente divergia muito, mas ao mesmo tempo tinha muita troca.
Eu comecei a pensar em planos de assessoria pra projetos, comecei a discutir com ele. Foi um momento muito rico de discussão de qual era o papel da BrazilFoundation na vida destes projetos; de que forma a gente deveria lidar, até onde a gente _______; até onde a gente está do lado. O que é um monitoramento pedagógico.
P/1 – E como vocês estavam fazendo este monitoramento? Como eram feitos antes deste momento de formatação?
R – Antes disto, os projetos enviavam relatórios.
P/1 – Tinha um modelo?
R – Sempre teve um modelo. A questão é que o Gláucio trouxe a metodologia do marco lógico, então todas as ferramentas do monitoramento, todos os modelos de relatório, planos de trabalho, planilhas e tudo ali tinham uma metodologia, que é o plano de trabalho. A partir deste plano, eles fazem relatórios sempre pensando em produtos, atividades, objetivos. Por que pedagógicos? Porque a ideia é ensinar para esses gestores como fazer um relatório dentro desta metodologia do marco lógico. A gente esbarrava em muita coisa, porque se a gente apoia uma organização pequenininha, de base, até onde a gente vai com este ensinamento? Até onde a gente também não está perdendo um monte de trocas, um monte de aprendizado? Eu via e vejo assim até hoje: eu acho que a gente aprende muito com estes gestores e estes gestores se beneficiam muito com o que a gente pode fornecer - o apoio financeiro e parte de apoio técnico. E a assessoria: o que cada projeto precisa? Porque cada projeto está num lugar; tem pessoas, tem um público específico.
Eu sempre fiz aqueles projetos de cultura e educação. A gente fazia a divisão por área e ficava com os projetos de cultura e educação. Comecei a ter uma relação próxima com alguns projetos porque a gente dividia os projetos para cada um e você podia ligar diariamente, acompanhar. A partir daí, a gente fazia relatório em cima de relatórios deles; foi quando, em 2007, a gente apoiou o projeto da dona Erli, que foi o Arte na Roça. Foi uma história interessante porque foi um projeto muito simples, que inicialmente era um projeto C, ou seja, nem ia pra uma segunda leitura, mas foi resgatado.
P/1 – Era projeto de risco?
R – Ainda na leitura. Ele foi apoiado como projeto de risco e foi aprovado com metade dos recursos. Eu aprendi muito com aquele projeto porque a dona Erli é uma agricultora do interior da Bahia, de Lagoa da Boa Vista, que fica perto de Seabra, um povoado. E a gestora, neste monitoramento, nesta proximidade, nesta troca. E aí neste momento eu vejo que consigo alimentar muito o teatro com as experiências da dona Erli, do _______, de todos os gestores que eu me envolvo. Com a Maria do Carmo... Todos estes gestores que vão me falando quais são as reais demandas deles. O que eles realmente precisam, o que eles esperam, o que eles têm de potencial. É um momento muito bom quando eu consigo alimentar uma história, trocar com os meninos sobre o que é esta experiência e também trazendo para o monitoramento questionamentos. Ao mesmo tempo fazendo, organizando e produzindo relatórios. Mas assim: “Vamos pensar isso aí.” [A] todo momento.
Desde o primeiro dia até hoje eu penso no monitoramento. Não acho que ele é estático, acho que a gente está aprendendo; a gente tem que se reinventar porque o que ontem funcionava hoje já é diferente. Todo tempo existiu essa inquietação, que por um lado foi muito boa, porque provocou muita mudança; por outro lado, foi muito desgastante pra mim porque em muitos momentos eu não estava cabendo dentro daquele espaço, cabendo naquilo que estava delimitado ali. “Não, é isto. Nossa relação vai até aqui.” “A gente se envolve até aqui.”
Eu me lembro que virei pro Gláucio e ele falou assim: “Este projeto deu errado. A gente precisa assumir que ele deu errado.” O Arte na Roça. “Ele foi um fracasso”, porque não estavam conseguindo fazer um relatório. Nunca tinham tido contato com um computador. Tudo isso foi causando uma dificuldade de documentação. Foi quando, logo em seguida, ele recebeu uma visita e ele tinha feito muita coisa - pelo contrário, era um projeto de sucesso. Por sugestão nossa, ele fez uma parceria com a escola. O projeto só cresceu.
P/1 – O projeto estava andando lá, o único problema era que não chegava?
R – Não, na verdade mais do que isso. O movimento do monitoramento - no caso, o meu - com aquele projeto, era muito. Ela tinha dificuldades, tinha dúvidas e a gente pensava junto. Eu pensava junto com ela, não pensava pra ela nem dizia o que ela tinha que fazer, até porque ela sabe muito mais que eu. Ela mora lá. A gente pensava junto e: “Vamos fazer isso?” “Vamos fazer isso.” Só que o tempo dela era outro pra resolver uma parceria com a escola, você conseguir sensibilizar as mães. Ela foi descobrindo que o projeto era, na verdade, para trabalhar com as crianças num centro comunitário. Com aula de capoeira, dança, mas sem a parceria da escola a relação com estas crianças ficava muito limitada. Quando ela entra na escola, ela descobre que sem falar com as mães você não tem como trabalhar com estas crianças.
Que mães são essas? Que crianças são essas? Que comunidade é essa? Então ela vai fazendo praticamente um mapeamento desta comunidade. Só que este tempo para o monitoramento, no tempo de execução de projeto e entrega de resultado, ele parecia um fracasso porque não respondia às perguntas imediatas. Então qual o resultado desta atividade? Não deu certo. Oficina não deu certo no centro comunitário. Ah, mas aí vem a parceria com a escola, então muda tudo. Não vai fazer mais fazer no centro, vai fazer na escola.
Também foi uma experimentação muito grande, no sentido de que a gente apoiou a iniciativa e tinha a questão: “Vai receber a parte dos recursos?” Porque é prêmio-incentivo. E neste momento foi que ele falou: “Não, este projeto é um fracasso.” Eu falei: “Não, este projeto não é um fracasso. Este projeto está tendo muito retorno, mas ele precisa de tempo e você precisa acreditar; precisa estar do lado.” Se a gente está dizendo que faz monitoramento pedagógico, investe, vende toda uma história e quando chega uma situação real você vai dizer que ele é um fracasso e abandonar? Não. A gente precisa ver o que ela precisa. O que a gente pode fazer agora?
Eu briguei por este projeto porque achei que estava dando certo. E ele: “Não, você precisa me dar números.” E eu estava muito envolvida com este projeto. Ele cresceu, ele hoje consegue aprovar um projeto pelo próprio instituto. Ela é uma referência pra todo mundo aqui, eu acho, hoje na fundação, porque ela veio e fez capacitação.
P/1 – ____________
R – Do projeto: o primeiro foi Arte na Roça, foi o nome do projeto. Tá nos dez anos agora.
P/1 – Vocês repassaram então depois?
R – Repassamos, conseguimos repassar. Na verdade, o Gláucio falou: “Deu certo. Você também resolve, me prova que ele está aí.” Aí eu fui provar. Não foi uma coisa que ele falou “não vamos”, não era uma coisa de bom ou mau. Ele tinha uma visão de muito tempo ali. Eu estava [como] trainee. “Prove-me que este projeto não deu errado, porque eu tenho que ter isso.” Foi mais isso.
P/1 – Ele, até então, seguia uma metodologia.
R – É, a gente teve muita. Tinha um projeto de circo em São Paulo que a gente tinha muita divergência quando ia decidir o indicador. Os projetos de educação, os projetos que trabalham com estas mudanças mais subjetivas, mudanças de comportamento… Coisas que não são como projetos de construção e outras coisas que você faz tanto e isto está muito claro. E eu achava que a gente passava batido. Que a gente tinha um indicador, mas não tinha o cuidado necessário para conseguir o indicador real. O importante era o indicador, não era descobrir realmente se a história do indicador era importante para aquele projeto.
Eu olhava muito mais para o projeto do que para o retorno do total pra dizer onde que apoiou e quanto que foi, isso não conseguia fazer valer pra mim. Eu acho que até pela minha personalidade, pelo meu jeito de olhar as coisas... Acho importante ter uma pessoa com outro olhar também, porque tem uma hora que eu acabo me enrolando. Porque não é fácil você buscar tudo isto. Você tem que ter uma limitação do “agora acabou”. Esta coisa do corte pra mim fica difícil, estou aprendendo, mas nesta época estava muito forte. A coisa toda de: “Não, a gente não tá dando.” Eu acho que pra isso era ótimo. Ele não deixava de gostar de mim, de me querer na equipe, pelo contrário, até o momento que eu comecei a incomodar mais. Quando o incômodo vinha pra fora, quando o incômodo aparecia numa reunião como proposta, ele ficava bem incomodado. A questão toda era que ele queria que tudo fosse resolvido na equipe, ele queria o monitoramento fechado. “Eu sou o chefe. Fala comigo. Eu resolvo.” [Era] uma forma de trabalhar e eu achava que a gente tinha que fazer isso mais abertamente. Conhecimento é pra todo mundo.
Acho que todo mundo tem que ter acesso às coisas na própria BrazilFoundation. Ele não queria limitar o monitoramento, ele queria estabelecer um setor, umas regras muito _______. Eu lembro que chegou uma hora que ele falou: “Você vai ter que escolher o teatro ou o monitoramento, porque você não vai conseguir. Pra você estar no teatro você precisa abrir mão. Ou então pra você estar no monitoramento inteira, pra crescer aqui, pra estar ocupando o meu lugar, você precisa fazer a escolha.” Eu nunca consegui fazer isso, por vários motivos.
P/1 – Até hoje você mantém os dois?
R – Até hoje eu mantenho os dois. Mas nesta época do Gláucio... É porque teve uma história que o Instituto queria que o teatro crescesse. Realmente, se isto fosse acontecer ia ficar um pouco difícil pra conciliar, mas acabou que não aconteceu e a gente continuou o trabalho em 2007, 2008, 2009.
P/1 – Aí quando ele saiu você ficou com tudo, eu soube pelo Claudio. Você se assoberbou. Como foi este período?
R – Aconteceu antes uma coisa que foi muito importante. Foi esgotando a minha... No meio de 2009 eu já estava muito desestimulada; foi um período muito difícil aqui, as pessoas estavam saindo. Foi uma época que saíram cinco pessoas em um ano, foram procurando outras coisas. Estava muito difícil. A Sheila e o Gláucio assumiram a BrazilFoundation, de modo que as regras só valiam pra eles. Estava doente. Sabe quando você percebe que tem uma coisa doente? A Brazil estava doente. Nas reuniões era tudo muito tenso. As pessoas não se colocavam, porque a Sheila sempre achava que aquilo era contra ela. O Gláucio colocar o limite do organograma, quem é o que aqui dentro. Tudo tava muito voltado pra isso e muito pouco voltado para o que realmente a BrazilFoundation se propõe a fazer, que é se concentrar nos projetos. Em cuidar de sua equipe também, mas estava muito complicado. As pessoas estavam muito insatisfeitas.
Acho que, na época, a questão da minha avó, da Suzane, de gerir tudo isto, foi um superdesafio porque ela, desde o início, teve os dois. Construiu junto com os dois, eu acho, pode-se até dizer que muito mais com a Sheila do que com o Gláucio. E era muito difícil para ela ver que tinha perdido um pouco o controle e eles estavam com tudo porque ela era gerente, ele era o monitoramento. Basicamente a BrazilFoundation era isso, porque a comunicação é muito pouco consistente, muito pouco valorizada. E a Kátia com o financeiro, tudo bem, mas eu estou dizendo que na parte de programas eram eles que estavam com a bola. E a Sheila doente, não estava bom. A Mariele já tinha saído.
Eu estava muito desestimulada, estava muito desanimada mesmo. Por mais que tivesse coisas que eu gostava, não estava bem. Foi quando – e isto foi muito marcante pra mim – entrou outro estagiário e ele foi passando tudo pra ele. O estagiário foi tirando as coisas de mim e eu me via cada vez mais com menos coisas. Eu também não queria muito, então não foi difícil. Chegou um momento que ele me chamou e falou: “Você vai ficar trabalhando com a Sheila na capacitação. Todo mundo aqui sabe que você não tem perfil. Este monitoramento vai se tornar cada vez mais um setor burocrático. Você não é uma pessoa burocrática, não tem este perfil. Você queria estar vivendo só do teatro.” Ele foi colocando muita coisa ali. [Foi] difícil pra eu ouvir, e inesperado. Foi uma conversa muito pessoal, mas decidindo uma coisa profissional. E eu saí do monitoramento.
Bem ou mal, eu estava ali há três anos. Não se faz isso assim. E vai trabalhar com a Sheila! Por quê? Foi muito ruim. Fiquei dois dias sem trabalhar. Fiquei tão triste, tão machucada com a falta de tudo, com a falta de tato. Com a falta de reconhecimento. Com a falta de cuidado pra lidar com uma pessoa. Total. O que é isso? Ele me falou muitas outras coisas, mas nem convém...
Aí eu falei: “Vou ver o que a Sheila tem pra me dizer.” E o trabalho era planilha da capacitação. Era uma coisa que não existia, que estava sendo jogada pra mim porque ele queria me tirar do monitoramento. Eu levei uma semana pensando, arrumando toda a sala com a Sheila. Ela arrumou a sala, tirou um módulo. Eu ficava escondida atrás de duas estantes, no canto da sala. E eu comecei a pensar que aquilo ali estava esquisito.
P/1 – Meio simbólico.
R – Botou duas estantes e eu ficava escondida. Você entrava na sala e só via o Gláucio do monitoramento. Pra você ir lá tinha que dar uma volta. Uma coisa muito claustrofóbica. Falei: “Gente!” Eu tinha um laptop pra trabalhar, nem computador mais eu tinha. “O que está acontecendo?”
Um dia, eu sentei nesta sala, chamei a Suzane - eu também não tinha o apoio da Suzane na época, minha avó, porque pra ela tudo estava muito difícil. E eu já tinha falado antes: “Olha, não tá bom.” “Mas não é a hora. Pelo amor de Deus. Está vindo uma seleção. Fica quieta.” Neste dia, eu falei: “Não vou nem falar com ela.” Sentei com a Sheila e com a Suzane e falei: “Olha, Sheila, eu não vou ficar, não. Desculpa, mas não vou ficar na capacitação com você. Isto não faz o menor sentido. Eu acho que se não tem mais o que eu fazer aqui eu vou embora.” E ela ficou transtornada.
Aí veio a tona uma história que não tinha nada a ver, porque eu tenho fobia de avião. Isso começou a acontecer com o início das capacitações, porque eu tinha que viajar muito. E eu comecei a fazer um tratamento pra poder viajar. Comecei a ter uma fobia muito violenta, não conseguia entrar no avião. Fui de ônibus algumas vezes para Curitiba. Foi muito difícil, fazia a terapia e não melhorava. Comecei inclusive a tomar remédio, me medicar pra poder viajar pra trabalhar. E ela colocou isto. “Como você quer fazer qualquer coisa se você não anda de avião?” E eu fazendo todo um esforço. Eu não estava deixando de ir, estava indo do jeito que eu podia ir naquele momento. Eu até melhorei, mas na época estava muito difícil mesmo. E foi muito difícil. Estava num lugar que não me pertencia, não me interessava e eu realmente queria ir embora. Se fosse pra continuar daquele jeito eu ia embora. E aí: “Não, mas não é assim. Você é importante, você construiu coisas aqui.” Aí eu falei: “Eu tenho uma coisa pra fazer aqui, eu posso desenvolver dentro do monitoramento. Eu tenho relação com o próprio teatro. Eu posso me alimentar… Eu comecei a pensar muito num projeto que a ferramenta principal seria o teatro, mas toda pensada, toda estruturada a partir de uma experiência de três anos aqui dentro. Experiências de sucesso e de fracasso também. Conhecendo a BrazilFoundation.”
E isto foi... Eu fui pra sala da Kátia com o laptop. Não tinha mais lugar pra ficar. Ficou muito complicado. A Sheila não falava mais comigo, o Gláucio não falava mais comigo e a Suzane ficou numa situação muito difícil e tudo muito difícil. Eu, ser neta dela nesta hora... O Gláucio falou: “É muito difícil te mandar embora”, então foi uma coisa horrível. Foi pesadíssimo.
Eu fiquei animadíssima. Eu vou com o laptop pra sala da Kátia. Falei: “Bem, agora vou poder trabalhar naquilo, tanta coisa que a gente pode fazer.” Falei com os meninos do teatro. “Vamos fazer”, propondo e tal. Quando eu estava animadíssima fazendo isso o Gláucio foi embora de repente, estava trabalhando e foi expulso daqui.
P/1 – Eu queria que você contasse.
R – A gente estava lá na sala da Kátia, tinha entrado a Graciela Hopstein. Foi uma forma que a Suzane imaginou de colocar uma pessoa que tivesse doutorado, conhecimento, pra poder... Porque os argumentos do Gláucio e da Sheila eram argumentos técnicos: “eu sou formada nisso, eu sei daquilo”. Então veio uma doutora que sabia mais que todo mundo pra poder ver se a coisa ficava mais compartilhada e se existia alguma possibilidade de descentralizar aquele poder que tinha sido...
P/1 – Eles foram se apropriando.
R – De tudo. A seleção, era a Sheila que sabia. Se alguém falasse: “Não, não é assim”... Se concordasse tudo bem, ela ria. A ponto de uma amiga dela, que estudou com ela, que fez Serviço Social com ela, ir embora chateadíssima porque numa reunião eles... Eles eram violentos. Qualquer discussão política eles brigavam mesmo, entre eles; era uma coisa que eles achavam natural, mas as pessoas não estavam ali pra brigar. As pessoas estavam ali pra compartilhar, fazer uma reunião de equipe, trocar entre elas. E eles estavam acostumados com outra coisa, entre eles inclusive. Então quando tinha uma pessoa de fora… Esta amiga da Sheila, que era uma amiga de vida, foi embora muito chateada. Ela me falou. E as pessoas me falavam as coisas. A Raquel me falou, a Alice me falou antes de sair. O Tiago, a Mariele, todo mundo vinha me falar tudo, porque estava saindo, o que não estava bom. E era muito triste porque eu estava vendo uma história afundar.
A minha avó não me ouvia, era muito difícil ela me escutar. O meu lugar não era o lugar ideal - a neta, e a história do teatro e o fato do Gláucio dizer que não era o meu perfil, coisas do tipo. As coisas estavam muito complicadas pra ela. Eu tentava dizer, mas também não conseguia dizer claramente. Era muito difícil você falar. Você está legitimando esta história. Muito difícil pra mim porque é minha avó, admiro, queria fazer isto com todo o cuidado do mundo.
P/1 – Mas conta como ele saiu.
R – O Gláucio estava aqui trabalhando com dois estagiários. Eu estava na outra sala e parece que teve uma história de umas fotos - não, tinha um site no ar, uma história de outra fundação com fotos de projetos da BrazilFoundation. A Sheila tirou pela BrazilFoundation e uma pessoa de Nova Iorque mandou um e-mail dizendo: estão usando as nossas fotos em outro site. Uma fundação que está iniciando, mas que vai fazer exatamente o que a gente faz. Aí parece que ela chamou o Gláucio e ele foi super-reativo, dizendo que aquelas fotos não eram da BrazilFoundation, que eram da Sheila, que aqui não tinha ninguém à altura dele. Estava difícil pra ele estar num lugar onde ele não podia dialogar com alguém igual. Então ela estourou com ele, mandou ele embora. Ele foi escorraçado, não voltou nem pra desligar o computador. Foi embora porque as coisas vinham se acumulando e, eu acho, a forma como ele se colocou naquele dia… Ninguém sabe exatamente o que ele disse, como ele disse, mas eu imagino, e ele foi embora deste jeito. Foi escorraçado, vai embora. Trocou a fechadura, a Sheila tinha entrado em licença e foi embora.
P/1 – E nesta saída você ficou acumulando?
R – Quando ele saiu não tinha ninguém do monitoramento. Imagina! Um estagiário que tinha acabado de entrar! Tinha saído um monte de gente. “Clarissa, só você conhece o monitoramento, a relação de projetos. Você vai ter que ficar.” Nem foi uma coisa: “Como que isso...?” “Você vai assumir esta história.” Eu fui pra apagar incêndio, porque nem pensei. Falei: “Eu vou, é óbvio, eu sou a pessoa que conhece. Imagina que eu vou deixar isto no meio do caminho, os projetos no meio.”
Aí o Willis, que era o estagiário que estava na época, era como se fosse… O Gláucio abriu uma ONG paralela e ele trabalhava nesta ONG, então ele não podia ficar porque a Suzane achou que tinha que mandá-lo ele embora. E ali eu fiquei literalmente sozinha, com vinte e tantos projetos, mais as escolas rurais, tudo no meio. As coisas mal registradas, porque o Gláucio salvou muita coisa, a gente não tinha acesso às coisas dele. E aí eu fui fazendo. Respondendo os e-mails, fazendo o que eu já fazia, mas de repente virei a coordenadora do monitoramento.
P/1 – Ainda acumulou a parte do teatro.
R – O teatro, só que o teatro já estava estruturado. A gente não tinha nenhum roteiro pra fazer neste período. E eu fui administrando.
Foi muito difícil. Eu não concordava com a forma como aquelas coisas estavam acontecendo. Não podia nem sonhar em mudar nada, porque o melhor que eu tinha era continuar acompanhando exatamente como era. Não podia dar mais assessoria. Tinha que fazer as coisas andarem, as coisas caminharem, pra não ter nenhum problema de recurso, nenhum problema grave. A ideia era que não tivesse nenhum problema grave, porque [é] óbvio que o trabalho ficou muito comprometido. Não tem como acompanhar, ligar.
Tinha muita coisa. Tinha os relatórios. Cada dia tinha um relatório pra um lugar diferente, coisas que eu nem sabia que existia. Ficava sabendo alguns dias antes. “Olha, tem isso.” E eu nunca tinha feito algumas coisas.
P/1 – Você acha que ele deixou um esquema muito burocrático?
R – Estava burocrático, mas estava mal cuidado. Não estava registrado. A coisa não estava organizada. Hoje está muito mais.
P/1 – O problema era que estava tudo na cabeça dele.
R – Tudo na cabeça dele. Ele sabia muita coisa de cabeça.
Ele já não estava tendo cuidado com a BrazilFoundation. Ele teve a época de paixão, mas tinha acabado. Ele estava ali levando. Chupando, fazendo as coisas pra ele. Não era pro monitoramento. As coisas do monitoramento estavam que nem arquivo morto, que você abre e tem cheiro de mofo. As coisas eram assim. As coisas não eram vivas, as coisas não eram dinâmicas. As coisas estavam acontecendo.
Não tinha nenhum problema grave, depois coisas mais graves aconteceram, mas a princípio as coisas funcionavam na medida em que poderiam funcionar, sem nenhum investimento de pessoa. O Willis, o menino que entrou, estava basicamente recebendo, arquivando. Não tinha envolvimento. Tinha perdido o envolvimento com os projetos. Isso foi fato.
P/1 – Você acha que foi proposital deixar esta área tão desestruturada?
R – Eu não sei, porque eu acho que ele fazia isso há um tempo.
P/1 – Então o monitoramento ficou todo na sua mão. Teve este vácuo da saída do Gláucio. Como vocês foram reestruturando?
R – A gente, quer dizer, eu fui fazendo o que era possível, fui levando. Era meio final de ano e quando a gente voltou, eu precisava de alguém - de um estagiário, de uma pessoa. A gente começou, mas isso não foi rápido, eu fiquei de novembro até maio. Um tempo longo pra estar completamente sozinha.
Eu me lembro que o Cláudio começou a chegar aqui na BrazilFoundation, nem era exatamente para o monitoramento. Ele foi chegando, foi conversando. Mas este período que eu estava sozinha foi o período que a Graciela Hopstein entrou e a gente trocava. Ela foi bem legal, me deu muito retorno. Eu tinha uma relação boa com ela de trabalho. A Tânia também entrou pra comunicação.
Os lugares foram sendo ocupados, mas não o monitoramento, a fundação como um todo. Aquilo me deu certa segurança porque as coisas estavam caminhando. A Dani e a Graciela já estavam. Mas o clima ficou mais leve, a gente pode trocar mais com a própria comunicação. E a Graciela estava nesta sala, a gente trabalhava nesta sala. Ela assumiu também a capacitação.
Ela gostava muito de teatro, foi um momento muito legal que o instituto deu um retorno muito positivo do teatro. Uma das primeiras coisas da lista que eles destacavam como lado positivo da parceria, que eles achavam mais importante, eles exigiram que tivesse uma hora de debate depois da peça, [coisa] que o Gláucio e a Sheila não permitiram. Eles achavam que isto era desperdício, que não tinha que oficializar. Que se as pessoas falassem... O instituto exigiu. Exigência do próprio instituto pra que houvesse este debate.
Até hoje a gente tem esta uma hora. Todo mundo gosta. Eu sempre pego as anotações, assisto. A Graciela super assinou embaixo. Adorava o teatro, deu muita força, me deu muita coisa legal pra ler. Foi um momento que eu estava sozinha, mas tinha uma troca legal ali. Era um outro cenário, depois de tudo que eu já tinha passado. Já estava muito melhor.
Aí começou uma seleção. A gente tinha uma seleção. Estava no monitoramento, mas eu também sou analista na área de cultura. Eu também leio e visito projeto, então isto complicou mais as coisas. Essa seleção paralela, que eu gosto muito de fazer - mesmo que não gostasse, era muito importante porque a equipe estava muito reduzida. Eu estava fazendo as duas coisas: lendo todos os projetos de cultura e com o monitoramento. Realmente era muita coisa.
Foi quando o Cláudio foi chegando, chegando, e a gente decidiu que ele ficaria junto no monitoramento. E junto chegou o Vitor, que foi um estagiário nesta mesma época e a gente começou a formar uma equipe. Assim: formando a equipe, já preparando pra capacitação. [Em] maio... Julho a gente já ia estar com as pessoas. E eu tinha a missão de passar pra eles muita coisa, de descobrir junto com eles muita coisa. Formar uma equipe. E também não era a hora de rever nada, porque não dava. Você tinha que melhorar a forma como passava aquilo adiante, aquela informação, o plano de trabalho. mas não era a hora de dar o formato de nada, a metodologia de nada. E caminhamos.
Foi um momento muito importante porque a gente formou uma equipe. A gente aproveitou muito, lógico, muito daquilo que já existia. Foi muito importante a forma como a gente começou a fazer aquilo, cada um com o que tinha de ponto forte. O Claudio [era] muito afetivo na equipe e [havia] uma troca muito boa com os gestores - e-mail, telefonema. O Vítor, um lado dele de sistematizar, de organizar as coisas, de equipe também.
A gente formou uma equipe muito inteira, com respeito. Não tinha competitividade. Foi muito rápido, em pouco tempo a gente já era uma equipe. Logo em seguida teve a saída da Graciela, que também foi um tumulto. Ela saiu bem chateada, antes da seleção. Ela ia dar uma oficina na seleção. Saiu uma semana antes e isto foi difícil. Eu fiquei pensando: “Meu Deus, o que está acontecendo? As coisas nunca se acertam.” Troca a capacitação, volta a Raquel, o que pra BrazilFoundation foi um ganho, na minha opinião. Na capacitação a Raquel é muito sensível - muitas dinâmicas, uma forma de facilitar, realmente. Aprendi o que é facilitação com ela. A gente usava este termo e usa até hoje: facilitação. Facilitador, não professor. E ela realmente é uma facilitadora. Até então não eram professores, não eram facilitadores de fato e a Raquel trouxe estes facilitadores.
Eu podia aprender com ela e assumi algumas oficinas, já tinha assumido na época da Graciela. Ela me pediu pra fazer uma parte: o papel do gestor como multiplicador. Foi uma experiência difícil, porque eu me sinto insegura pra dar oficina. E ainda pensando que eu estava ensinando. Sabe essa ideia de ensinar? Apesar de eu ter sido professora, tem a coisa da troca. Eu achava que tinha que trocar, tinha que fazer uma facilitação realmente. Vim aprendendo e acho que já estou conseguindo fazer isto com mais tranquilidade. Sempre pego questões que eu possa trabalhar muito com o retorno dos gestores.
P/1 – Isto você trabalha na parte da comunicação?
R – Não. Trabalho na parte da gestão, com duas oficinas: uma que é o papel do gestor como multiplicador, [em] que a gente cita os projetos, experiências de monitoramento. E outra em avaliação, [em] que eu também trago experiência do monitoramento e faço uma roda de casos de projetos que deram certo, outros que foram um desafio. Sempre trazendo as questões vividas, sempre conseguindo fazer com as coisas vividas. Eu acho que funciona.
O Gláucio, naquela época, queria que eu assumisse uma parte de dar aula de gestão, mas não deu muito certo.
E aí continuou este trabalho do monitoramento, a capacitação com as mudanças, a seleção. Mas o Vitor saiu, há pouco tempo ele deixou a equipe, e teve a entrada recentemente da Cecília, que é agente de programas, que também está superafinada com a equipe. E hoje a gente tem um monitoramento, a gente está neste momento dos dez anos revendo muita coisa. Acho que é ótimo estar fazendo este exercício, repensando a nossa atuação: como a gente vem fazendo, o que a gente vem fazendo.
A gente faz coisas muito legais, a gente tem pessoas muito boas aqui. A BrazilFoundation tem hoje uma identidade de fundação que se funde com as organizações que apoia, aprende com elas e pode dar um retorno pra elas que poucas hoje dão. Uma relação que não acaba com o término do apoio. Isso é um superdiferencial, o fato de a gente ter todo um olhar pra selecionar e um cuidado neste monitoramento.
A gente tem muita coisa positiva. Muita coisa que a gente faz bem, que a gente tem que sistematizar realmente. Hoje eu penso que tudo que a gente está fazendo é pensando nas próximas pessoas que vão chegar porque a gente está gerando conhecimento, mas como a gente gera conhecimento e deixa isto tudo registrado? Como a gente faz pra isto não ficar ensimesmado? Cada um que passa leva tudo. A BrazilFoundation tem um pouco isto, um status de experiência, ela agrega, mas é muito importante que as coisas fiquem. As coisas vão, mas [que] também fiquem na fundação para a fundação.
P/1 – Alguma coisa própria dela.
R – Dela também e que alguém vai pegar, vai se apropriar e reinventar. Ninguém vai continuar nada igual, ainda bem. Mas que o que a pessoa encontre ali seja o que de fato foi construído. As contas registradas, que ela encontre a história dos projetos, que ela encontre um olhar que foi importante. Que as coisas estejam ali e eu acho que com os dez anos a gente vai poder mexer nisto tudo e poder pensar daqui pra frente como a gente vai atuar, o que a gente precisa continuar, o que a gente precisa mudar, rever, reinventar.
Eu fico muito feliz de poder estar vivendo este momento da BrazilFoundation. O trabalho do teatro, há pouco tempo eu tive um retorno muito importante, eu acho que por si só... Acho que como retorno já foi muito importante. O que vai resultar deste retorno vai depender da gente e de outros fatores externos. Mas na ultima reunião, que foi uma reunião de saldo do planejamento estratégico, eu coloquei mais uma vez o teatro na fundação porque a gente até hoje vive um conflito de se o teatro é da fundação, se é um produto da BrazilFoundation, se é terceirizado. A gente investe como grupo e sai pra fazer outras coisas, ou se fortalece aqui pra poder atuar nos projetos que a gente apoia. E isto é muito conflituoso, porque eu quero andar com este trabalho. Quero que ele cresça, que se apresente mais; eu quero que ele possa virar uma metodologia de trabalho, então eu quero ter este retorno e os meninos querem muito também. Pra gente caminhar a gente tem que ter uma posição. Nesta reunião eu coloquei novamente, porque a princípio não [estava].
Ah, nossa! Naquela briga que eu tive com a Sheila anos atrás eu me esqueci de falar o ponto principal: o teatro foi chamado pra se apresentar em Vitória, no Espírito Santo, por uma ONG. E ela disse que o teatro jamais poderia ir sozinho porque o teatro não era um produto da BrazilFoundation sozinho. Esta foi a grande questão, esqueci o principal. Hoje o teatro já é reconhecido, a gente já foi algumas vezes informalmente. A gente quer agora formalizar pra que ele possa ir, que ele possa gerar um debate. Eventualmente uma capacitação, mas que ele vá com o nome da BrazilFoundation, com os objetivos claros, que ele possa [ir].
A gente recebeu um aval pra montar um projeto do teatro, dentro da BrazilFoundation, dentro do monitoramento, _______ as coisas se _______. E a gente poder caminhar, a gente não sabe exatamente como, mas a gente está tendo várias ideias. Eu acho que é ótimo porque é num momento que tudo está sendo reformulado, então quem sabe a gente vai conseguir conciliar um trabalho que tem sido tão prazeroso, tem tido um retorno tão importante, com o trabalho do monitoramento, que é um trabalho que eu venho reinventando. Acho que tem muita coisa boa que a gente não pode perder que é o retorno destes gestores, que é pensar em formas de conhecer mais estes projetos, de entender com mais profundidade cada um deles.
P/1 – E chegar mais neles.
R – E chegar mais neles, porque pode entrar na comunicação, na avaliação, no monitoramento. [O] relatório vivo, que eles mandem, mas [que] a gente possa trazer outros elementos pra este monitoramento se tornar mais, cada vez mais humanizado, cada vez mais eficiente.
P/1 – Esta parte do teatro vocês estão organizando, guardando direitinho?
R – Não, a gente precisa fazer isso. Sistematizar o teatro.
P/1 – Você falou que “Lá no morro azul” já mudou, é outra peça.
R – Hoje a gente tem Lá no morro azul, que é a primeira peça; O Buraco, que é para os voluntários; uma peça de avaliação que ainda está sem nome - a gente já fez uma intervenção, que virou esta peça. Na avaliação a gente criou três peças, mas a que está em cartaz, esta última que a gente fez agora, a gente vai apresentar [no] dia primeiro para a equipe e depois para a capacitação de novo. Temos também sustentabilidade, que a gente tem usado uma técnica interessante, a gente reparte a peça; a gente para a peça. A gente apresenta no início um conto de sustentabilidade, a gente para a peça no momento do conflito e retoma essa peça no final do evento, chamando os gestores pra inventar um final; bebendo da fonte do [Augusto] Boal.
Esta última, da sustentabilidade, é a mais completa porque a gente inovou. A participação das pessoas funcionou muito bem, a gente tem gravado. Então a gente tem quatro peças. E a ideia com este projeto é a gente fazer mais roteiro pra BrazilFoundation.
P/1 – Sempre inspirada nos projetos?
R – Sempre. Na verdade, Morro Azul, avaliação e sustentabilidade é continuação. Sustentabilidade é outra luz, passando pela mesma situação que a Joana, com resistência, com medo de não mudar o artesanato, de não vender.
P/1 – Estamos nos encaminhando pro final e eu queria perguntar se ficou alguma coisa que a gente não perguntou e você queria deixar registrada. E se tem alguma história, alguma coisa engraçada, até das suas visitas no projeto.
R – Eu quero muito deixar registrada uma coisa aqui: que na seleção de 2009 a gente apoiou um projeto na área de saúde, que fica dentro de um hospital psiquiátrico, o Nise da Silveira. Foi uma das maiores experiências que eu já tive na vida. Foi uma coisa que não tenho como mensurar. E culminou com um momento muito difícil da minha vida, a coisa da fobia, do medo do avião. Eu estava tendo muita dificuldade pra vir trabalhar. Tive um período muito difícil com esta coisa de ter uma ansiedade muito grande.
Nesse dia eu tinha ido fazer a minha análise de manhã e eu não queria visitar projeto porque estava muito mal, estava com medo. Eu simplesmente ia dizer que sim, apesar de ser uma coisa que eu adoro, eu amo fazer, que é visitar projeto. Adoro. Uma das coisas que eu mais gosto. Nesse dia eu fui neste hospital psiquiátrico e quando eu cheguei lá eu achei que ia ficar pior, ou sei lá, não achei nada. Eu fui e foi incrível porque é um bloco de carnaval que se chama Loucura Suburbana, dentro deste hospital. Eu conheci este hospital inteiro com uma gestora que se chama Ariadne, que se tornou uma pessoa muito importante pra mim. Ela tem um trabalho que tem 26 anos dentro deste hospital. A gente viu o ensaio deste bloco, cada pessoa numa situação-limite, às vezes com alguma deficiência além da questão da saúde mental, de algum transtorno, também com uma deficiência, mexendo só uma parte do corpo, aquela coisa do samba. E eu fui recebida de uma maneira! Visitei as casas assistidas.
Até hoje quando vou lá…. Porque a minha relação também é um caso interessante. Fui recebida por um paciente que na época que foi internado teve aquela coisa do choque, ele foi internado criança e parou de falar. Não falava. Ele não fala mais. Ele perdeu totalmente o vínculo com a família e mora numa casa assistida; numa casa que tem alguém que cuida de pessoas que não têm casa, mas não podem mais ficar internadas e vivem nesta casa. Ele me deu a mão - tem uma foto - e me convidou pra entrar na casa dele. A gente foi de mãos dadas e ele me mostrou a casa inteira, todos os amigos dele. Ele é um fujão, não pode abrir a porta que ele vai parar em Araruama, dizem. Mas ele me convidou, ele me mostrou a casa inteira. Depois eu conheci outra moça que me contou a história dela: que não pode cuidar da filha dela, que teve que ir pra adoção.
Tive um contato com sofrimentos e me deu vontade de trabalhar, de estar com aquelas pessoas, me deu um entusiasmo inexplicável. Eu vivi uma experiência naquele hospital com aqueles pacientes, que me renovou de tal modo... E eu apostei nesta gestora, nesta história, nesta organização.
No ano seguinte, veio uma doadora que queria apoiar esta área, a família Salem. Eu falei: “Vou te levar num lugar.” E a gente fez uma visita que durou quatro horas naquele no hospital, que é um mundo - tem um museu, tem a experiência da Nise da Silveira que foi neste hospital. Ela apostou quase cem mil reais neste projeto e eu hoje estou fazendo o monitoramento. Visito este projeto, já fui este ano três vezes; visito este projeto, vejo, conheço os pacientes. Toda a equipe de profissionais é composta pelos clientes do próprio hospital. E eles estão conseguindo agora um espaço, com a mudança da diretoria; um bloco, quer dizer, um espaço onde eles vão reunir todas as oficinas de arte, de dança. A editora… É tudo fragmentado, uma inclusive é no prédio da internação. E esta experiência agora vai ser reunida, quer dizer, um sonho, uma coisa que eu quero muito que aconteça, que está dentro do projeto, é levar o teatro pra lá pra poder mobilizar os cuidadores. Porque se os cuidadores não levam os pacientes pra estas oficinas, estas oficinas ficam lá e as pessoas que estão internadas, que eu acho que é o grupo que mais precisa… Que está internado num lugar que é pior que um hospício, um espaço vazio com sofrimento mental. O quanto levar pra uma oficina, pra estar com as outras pessoas... Acho que esta experiência de visita pra minha vida profissional, pra minha vida emocional, foi a coisa mais marcante.
Isto foi em 2009 e este projeto está acontecendo agora de novo. Com este apoio eles estão conseguindo formalizar, fortalecer a equipe. Continuam fazendo as oficinas. O bloco hoje está bombando.
P/1 – Clarissa, você casou de novo? Quais as novidades com a Victoria?
R – Bem, eu vou casar em novembro. Eu já casei algumas vezes, sou a maior casamenteira, mas eu vou casar com festa, com alguém que eu acho que as coisas se encontraram.
P/1 – Como é o nome deste alguém?
R – O nome deste alguém é Vítor, ele era o meu estagiário. O estagiário veio; foi embora, mas não está tão longe. A gente já mora junto e a gente vai fazer uma festa, uma cerimônia em novembro. A Victoria agora vai fazer onze anos e adora o Vítor. E é Vítor o nome do meu pai.
P/1 – Vítor e Victoria. Clarissa, obrigadíssimo.
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