Plano Anual de Atividades 2013
Projeto Nestlé - Ouvir o Outro - Compartilhando Valores – Pronac 128976
Depoimento de Guilherme Malpighi Amado
Entrevistado por Tereza Ruiz
São Paulo, 26 de junho de 2014
NCV_HV029_ Guilherme Malpighi Amado
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina
P/1 – Então primeiro, Guilherme, eu vou pedir pra você falar o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Guilherme Malpighi Amado. Eu nasci no dia 11 de maio de 1974, na cidade de Santos.
P/1 – Agora o nome completo e se você souber também data e local de nascimento dos seus pais, mãe e pai.
R – Meu pai chama Rui Antonio Amado. Ele nasceu em Santos também, no dia 13 de junho de 1943. E a minha mãe se chama Iara Malpighi, nascida em Santos também no dia 27 de fevereiro de 1943. Os dois nasceram no mesmo ano.
P/1 – Você sabe qual que é a origem da sua família?
R – A família do meu pai tem origem portuguesa, eles vieram da cidade de Coimbra como imigrantes e permaneceram na cidade de Santos. E da parte da minha mãe, tem a parte do meu avô materno que é italiana, eles vieram de uma cidade de Bologna, uma cidadezinha chamada Crevalcore, inclusive pra trabalhar com o café, como colhedores de café na época; e tem uma parte que é da minha vó materna que são pessoas de Santos mesmo, são caiçaras. Então eles encontraram lá e tem a junção dos dois. Então tem brasileiro e é nessa parte de caiçara, aí tem negros, índios, locais desse lado junto com italiano, com português e tudo isso sou eu hoje.
P/1 – E os seus avós imigrantes, você sabe o porquê eles vieram pro Brasil? Você ouviu essa história alguma vez?
R – Eu não lembro. Eu acredito porque as condições não estavam tão boas na Europa naquela época, mas eu nem sei se eles vieram no mesmo momento, os avós dos dois lados. Não estou seguro se o português foi o avô ou o bisavô. Eu sei que no italiano foi o meu bisavô que veio, ele chamava...
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Projeto Nestlé - Ouvir o Outro - Compartilhando Valores – Pronac 128976
Depoimento de Guilherme Malpighi Amado
Entrevistado por Tereza Ruiz
São Paulo, 26 de junho de 2014
NCV_HV029_ Guilherme Malpighi Amado
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina
P/1 – Então primeiro, Guilherme, eu vou pedir pra você falar o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Guilherme Malpighi Amado. Eu nasci no dia 11 de maio de 1974, na cidade de Santos.
P/1 – Agora o nome completo e se você souber também data e local de nascimento dos seus pais, mãe e pai.
R – Meu pai chama Rui Antonio Amado. Ele nasceu em Santos também, no dia 13 de junho de 1943. E a minha mãe se chama Iara Malpighi, nascida em Santos também no dia 27 de fevereiro de 1943. Os dois nasceram no mesmo ano.
P/1 – Você sabe qual que é a origem da sua família?
R – A família do meu pai tem origem portuguesa, eles vieram da cidade de Coimbra como imigrantes e permaneceram na cidade de Santos. E da parte da minha mãe, tem a parte do meu avô materno que é italiana, eles vieram de uma cidade de Bologna, uma cidadezinha chamada Crevalcore, inclusive pra trabalhar com o café, como colhedores de café na época; e tem uma parte que é da minha vó materna que são pessoas de Santos mesmo, são caiçaras. Então eles encontraram lá e tem a junção dos dois. Então tem brasileiro e é nessa parte de caiçara, aí tem negros, índios, locais desse lado junto com italiano, com português e tudo isso sou eu hoje.
P/1 – E os seus avós imigrantes, você sabe o porquê eles vieram pro Brasil? Você ouviu essa história alguma vez?
R – Eu não lembro. Eu acredito porque as condições não estavam tão boas na Europa naquela época, mas eu nem sei se eles vieram no mesmo momento, os avós dos dois lados. Não estou seguro se o português foi o avô ou o bisavô. Eu sei que no italiano foi o meu bisavô que veio, ele chamava Marcelo Malpighi. Malpighi é um sobrenome bem famoso, porque tem um fisiologista também chamado Marcelo Malpighi que deu nome para muitas plantas, muitos animais, tem túbulos de Malpighi, tem a família das malpighiaceae. Então esse sobrenome no ramo da biologia é bem conhecido. Mas eu não sei porque ele veio exatamente.
P/1 – Descreve pra gente um pouco como é que eram os seus pais, seu pai e sua mãe de temperamento, como é que era o jeito deles.
R – Bom, sempre que eu tenho a lembrança, eles já eram separados. Eles se separaram quando eu tinha acho que um ano e meio. Os dois já moravam na época em São Paulo e as minhas primeiras lembranças são da minha mãe. Minha mãe é uma mulher bem diferente, ela tem uma história de vida também diferenciada. Ela fez Letras na USP, especializada em alemão, e depois foi fazer um mestrado em sânscrito na Alemanha. Ela é uma pessoa bem freak mesmo, bem “riponga”, e aqui no Brasil quando ela voltou, inclusive nessa época eles já estavam casados, então, o meu pai foi junto com ela pra fazer esse mestrado e ela é paisagista. Então ela trabalha com jardins e tem um lado artístico bem forte. Foi ela que me criou e o meu irmão juntamente com os meus avós, eles moraram conosco uma boa parte da minha infância. Então tenho lembrança também dos meus avós maternos, eles foram pessoas bem importantes pra minha formação também. E o meu pai já é uma pessoa totalmente diferente, ele é engenheiro civil, trabalhou muitos anos na Constran do Olacyr. Morou por 18 anos em Brasília, o nosso contato era nas férias, não tinha um contato tão grande com ele, isso acabou afastando um pouco nesse primeiro momento e até gerando algumas mágoas. Eu tenho um meio irmão que morou com ele, então existiam alguns tratos diferenciados, o que é normal. Ele se casou de novo e continua casado com a atual esposa, ela chama Sandra, hoje é uma segunda mãe pra mim. Então, eles são pessoas totalmente diferentes, e têm maneiras de agir e de pensar totalmente diferentes. Nem consigo imaginar como os dois se casaram algum dia. Hoje eles convivem assim super bem, as nossas reuniões de família são bem interessantes porque não existe separação, não existe mágoa. A minha mãe é superamiga da mulher dele e convivem juntos. É uma família. Muitas das famílias acabam cortando, quando existe uma separação em um casamento, às vezes, a pessoa não quer encontrar com a outra por mágoa, mas depois de todos esses anos acho que muito disso foi relevado e hoje nós convivemos super bem.
P/1 – E como é que é o temperamento deles? Descreve um pouco. Você falou que eles são bastante diferentes e tem essa questão da profissão, são áreas muito diferentes, tudo, mas de temperamento assim, como é que eles são como pessoas?
R – A minha mãe é uma pessoa bastante carinhosa e amorosa. Ela nunca foi uma mãe de estar sempre em cima na nossa educação, saber se a gente fez lição, se está estudando. Ela sempre deixou essa educação, encarou de uma maneira com bastante liberdade. Lógico que no final ela tinha preocupação, mas ela deixou... É uma educação diferente da que eu dou pra minha filha, por exemplo. Eu sou mais um general, mas é o jeito que eu sei educar. Eu vejo muito disso no meu pai. Meu pai já era mais assim, mas como ele não era presente todos os dias, o tipo de educação que ele dava era no exemplo dele, mas ele não estava com um contato tão firme. E eu tive essa educação também compartilhada pelos meus avós. Meu avô materno se chamava Donato, também super italianão, uma pessoa que se aposentou no Banco do Brasil, então teve uma carreira bem longa e era uma pessoa muito íntegra. A honestidade é um valor que ele passou pra gente desde pequeno e supersério. Nós éramos dois irmãos, dois homens, e na família são seis netos, três homens e três mulheres. Ele não gostava muito dos homens porque a gente sempre fazia muita bagunça, ele sempre foi mais apegado com as mulheres que eram mais certinhas. Já a minha avó é aquela avó que cozinhava super bem, que gostava de fazer comida, gostava de tratar bem, e eu, particularmente, era bastante paparicado. Como eu fui o primeiro homem a nascer na família, ela fazia essa diferenciação explicitamente e sempre preparava as comidas que eu gostava e me tratava de uma maneira que era muito carinhosa. Eu sinto muita falta deles hoje. Os dois já são falecidos e hoje eu acho que eles teriam orgulho de saber que eu estou na Nestlé. Eu acho que seria uma coisa que... (choro) Desculpa.
P/1 – Imagina. Fica tranquilo. A gente espera, pode ficar tranquilo, retomar. É natural, é lembrança, né?
R – Eu sinto bastante falta deles (voz embargada).
P/1 – Como é que era o nome da sua vó? Você falou o nome do seu avô, não falou da sua vó.
R – Magnólia.
P/1 – Magnólia.
R – Ela faleceu a uns três, quatro anos, né? Mas acho que eles teriam muito orgulho (choro). Desculpa.
P/1 – Imagina. Fica tranquilo. A gente te espera.
R – Vamos respirar. Mas eles participaram ativamente. A minha mãe trabalhava o dia inteiro, nós morávamos numa casa na represa do Guarapiranga e foi uma casa que a minha mãe comprou desde o início. Era um terreno sem nada e ela trabalhou o jardim, nós plantamos árvores nesse jardim desde a sementinha. Nós mudamos faz uns cinco ou seis anos desse local, porque não tinha mais condição de trânsito. Quando nós chegamos não tinha nada mesmo, era estrada de terra, o terreno era um pasto sem nada. Quando nós saímos desse local, foi o local que nós moramos junto com os meus avós, era um bosque mesmo. As árvores que nós plantamos tinham 30 metros. Então era um local muito gostoso de viver. Infelizmente pela questão do trânsito realmente ficou inviável em São Paulo.
P/1 – Foi a casa em que você passou a sua infância?
R – Foi a casa que eu passei a minha infância e até recentemente eu ainda morei lá. Eu tive fora do Brasil por dois anos, quando voltei eu ainda fiquei um tempo lá e aí nós decidimos que não dava mais, a minha mãe vendeu a casa e eu acabei mudando também. Hoje eu moro aqui próximo do escritório, ali perto de Interlagos em um apartamentozinho, mas nada a ver com essa infância e essas lembranças que eu tinha. Na época eu e o meu irmão nós brincávamos tanto no jardim como na rua. Era outra São Paulo. Então esse contato de empinar pipa, de ter esse contato com... Apesar de morar em São Paulo de ter contato com o verde era uma coisa que foi bastante presente pra nós.
P/1 – Você tem um irmão, você falou, é isso?
R – Eu tenho um irmão completo, o Luciano que é um ano mais novo que eu e tenho um meio irmão, Rodrigo. O Luciano acabou de fazer 39 e o Rodrigo vai fazer 30 e... Se eu fiz 40 ele vai fazer 35.
P/1 – Eu vou querer que você conte um pouquinho mais da casa da infância, mas antes eu vou voltar só um pouco. Você mencionou rapidamente as refeições, disse que sua vó cozinha muito pra te agradar, inclusive eu queria saber como é que era nessa fase de infância, como é que eram as refeições na sua casa. Quem que cozinhava? O que vocês comiam? Como que era o momento das refeições.
R – Antes de nós morarmos com os nossos avós a minha mãe tinha uma empregada que se chamava Lourdes que era mineira. Então ela foi responsável por fazer as comidas, cozinhava super bem também, tempero mineiro. Comidas, a gente comia de tudo, não existia... Hoje eu vejo com a minha filha que tem: “Ai, não gosto disso, não gosto daquilo”. Não. Sempre, desde que eu me lembro por gente era comer o que tem na mesa e era comido arroz, feijão, carne, farofa, muita fruta, muita verdura. Nós sempre comemos muito bem. Depois que a minha vó foi morar com a gente também ela foi a responsável. Minha mãe nunca cozinhou bem e não cozinha bem. A alimentação dela, se fosse depender... Por isso que eu gosto de cozinhar, por uma questão de necessidade. Ela nunca teve esse lado de cozinha. Eu acho que é muito porque a mãe dela sempre ocupou esse local e com muita propriedade. Então ela não se especializou. Apesar de que ela tem uma irmã, são três irmãs, Iara, Ioli e Iêda, as três filhas da Magnólia, as minhas tias, e a minha tia do meio, a Ioli, cozinha muito bem! Ela trouxe esse lado e depois da minha vó acho que ela ocupou, hoje ela ocupa isso de fazer festas na casa, receber as pessoas. E na época da minha vó, quando eles moravam em Santos, ela fazia isso também. Ela gostava de ter pessoas em casa, tem sempre mais lugares a mesa. Ela sempre foi uma pessoa de cozinhar e cozinhar comida simples, do dia-a-dia, sem nenhum requinte, mas comidas muito bem feitas. E todas as receitas mais tradicionais e comidas caiçaras que ela fazia muito bem, tem o pirão, o azul-marinho, peixe, ela sempre fazia peixe, carne. Eu me lembro de ter comido muito fígado, hoje eu não como mais por não gostar da textura, mas nessa época como pequeno, tanto eu como meu irmão, faziam e a gente comia, e comia muito bem! Então esses temperos e essa culinária regional praiana, assim, teve muito forte no meu paladar. Hoje o meu paladar eu me identifico muito com a parte de frutos do mar, isso por ter tido contato desde pequeno. Já a minha mãe não cozinhava tão bem, mas ela levava a gente pra restaurantes. Então também me lembro dela nos levando pra Liberdade pra comer comida japonesa, tenho esses primeiros contatos. Lembro que na época nós não comíamos sushi e sashimi, mas a gente comia sukiyaki. Eram pratos quentes da Liberdade, isso eu tenho como lembrança também.
P/1 – E desses pratos que eram feitos em casa, você tinha um favorito, você se lembra?
R – De pratos de casa, macarronada com frango, essa de domingo é tradicional. Em sobremesas eu gostava e gosto muito da torta de banana que a minha vó fazia, era fantástica. E o doce de abóbora com coco e com leite, ela preparava também com muito primor. Então esses pratos, deixa-me ver mais algum, e lógico esses pratos também da praia, arroz, peixe, pirão e salada era um prato que eu gosto ainda muito. Um prato bem simples, mas que eu gosto muito.
P/1 – E nessa fase de infância, no momento das refeições, vocês se reuniam? Como é que era? Tinha uma reunião da família toda, vocês comiam em volta da mesa?
R – Mais nos finais de semana. No dia-a-dia assim, na hora do almoço, se nós estivéssemos lá, não estivesse na escola, e às vezes na escola a gente chegava um pouco mais tarde, então não nos reuníamos, eles almoçavam mais cedo. Mas normalmente se você estivesse na casa, o momento da refeição é sagrado. E foram os meus avós que ensinaram tanto eu como o meu irmão todas as boas regras de mesa, de como comer direito, escolher o talher certo, não fazer bagunça na mesa. Isso era o meu avô que era de um lado e a minha vó de outro que nos ensinou e eu vejo como isso faz diferença hoje, né? Porque você está numa refeição no dia-a-dia e você ainda se lembra daquela coisa da sua vó: “Tira o cotovelo da mesa. Tira a mão da mesa”. Mas nós gostávamos muito de ficar a mesa. Eu me lembro que o meu avô sempre tomava um copinho de vinho em todas as refeições. Não me lembro de tomar tanto café na época, tomava um café com leite que a minha vó fazia, mas o vinho era sagrado. E ele tomava os vinhos Sangue de Boi mesmo, não tinha muita qualidade (riso). Mas nós permanecíamos muito tempo na mesa e permanecíamos muito tempo na cozinha também. A cozinha sempre foi um local agregador da casa. Bastante. Acho que até hoje nós sempre nos reunimos muito na cozinha, mais do que na sala. Está sempre lá alguém preparando comida e o pessoal reunido ao lado das cozinheiras.
P/1 – E você se lembra das conversas? Tinha alguém da família mais próximo assim que era um contador de histórias? Tinha esse hábito na sua família de contar causos, contar histórias?
R – Eu lembro muito que as mulheres sempre cantavam. Elas cantavam em todas as atividades. Minha vó estava cozinhando, estava lavando roupa e a minha mãe a mesma coisa, estão sempre cantarolando. Então esse lado musical é muito forte, do meu pai também. Meu pai é pianista e ele sempre chamou esse lado musical, sempre estava tocando ou tinha uma boa música como pano de fundo. Então essa musicalidade foi muito forte. Como contador de histórias, a minha vó não contava histórias, mas ela contava piadas. As piadas dela eram ótimas, ela tinha um humor, um sarcasmo assim muito, muito ácido. Essas piadas são o que a gente se divertia, todo mundo dava bastante risada. Mas como contador de história, hoje tem o meu irmão mais novo, que adora falar e contar histórias, mas também sempre pro lado cômico. Não tem aquelas histórias com perfil moral, de dar aulas morais. A nossa família sempre teve esse lado debochado, assim, muito escrachado. As reuniões de família são barulhentas e é todo mundo dando risadas. Sempre teve esse lado de puxar para o cômico o mais presente do que pro lado de dar lição de moral, de ser uma coisa mais séria.
P/1 – Você lembra agora de alguma história de família engraçada assim? Algum causo, uma coisa que vocês sempre lembrem e deem risada. Tem isso?
R – Nossa, eu devo ter. Assim, tão rápido eu não consigo lembrar, mas tem muitas histórias... Bom, tem uma história de uma tia nossa que ela chegou a ultrapassar os cem anos, né? Então a longevidade das mulheres na família é bem presente, elas sempre vivem muito. Os homens nem tanto. E todo mundo fazia muitas piadas com ela pra saber quando que ela ia morrer. Eu me lembro disso como... E dava o exemplo dela, né? Como uma Matusalém. Deixa-me ver... Assim eu não me lembro de histórias, vamos ver ao longo se talvez eu me lembre de alguma coisa, eu te conto.
P/1 – Tá bom. Se vier alguma coisa. E as músicas, você mencionou que as mulheres cantarolavam muito, seu pai era pianista, você lembra o que vocês escutavam ou o que era cantarolado?
R – A minha vó sempre era aquelas cantoras mais tradicionais desde... Não vou lembrar o nome das coisas, mas era o que ela ouvia no rádio na época. E ela continuava cantarolando, e a minha mãe e as minhas tias também cantavam as mesmas músicas. Coisas bem antigas assim das cantoras famosas brasileiras. Isso é o que elas cantarolavam. Eu lembro que era um pouco de samba, um pouco de... Foi antes da bossa nova, então era samba e canções populares. Eu não vou lembrar o nome das cantoras. Já o meu pai sempre teve uma pegada, assim, mais jazzística, né? As músicas que eu ouvia com ele e que eu adoro hoje é nessa linha de jazz, um pouco de bossa nova, um pouco de samba, mas sempre com bastante ritmo e groove.
P/1 – Tem alguma canção que seja mais marcante dessa fase? Uma canção que tenha marcado a tua infância?
R – Bom, Summertime que é um clássico do jazz, uma música bem marcante. Músicas de Ella e Louis Armstrong, esse lado assim eu lembro e hoje são músicas que eu gosto de ouvir bastante, que é esse lado mais jazz. Das coisas que a minha vó cantava, é que eu não ouço, então eu não tenho essa... Mas me marcava ela estar sempre cantarolando e eu vejo isso na minha mãe e tias também, elas continuaram com esse lado de cantoras. Apesar de não cantarem muito bem, eu tenho que admitir (riso).
P/1 – Mas gostam.
R – Mas gostam de cantar. Tem algumas reuniões de família que eles alugam equipamento de karaokê e fica todo mundo cantando também. É uma coisa que... Esse lado musical é bem presente pra nós, sempre foi.
P/1 – E você mencionou rapidamente a questão do café, isso era uma das perguntas que eu queria te fazer, que vocês consumiam mais com leite, né? Queria saber se vocês bebiam café na tua casa, na infância e juventude.
R – Nós tomávamos café no café da manhã, café com leite, e depois do almoço tinha um cafezinho, isso eu lembro.
P/1 – E você lembra como é que era preparado esse café?
R – Era sempre filtrado. Sempre café filtrado com o coador de papel mesmo, o filtro de papel. Era o sistema tradicional. E o café que elas compravam nos supermercados. Isso eu lembro. E pra mim não foi uma coisa que marcou a minha infância como uma bebida, eu não me lembro do café. O café estava presente no café da manhã, mas eu me lembro de tomar muito mais leite e achocolatados, né, até por estar em fase de crescimento, isso daí marcava mais e nós tomávamos mais. Mais pelo aspecto nutricional eu acredito e pela demanda. Mas lembro de sempre comer muito bem, tanto no café da manhã, almoço e jantar, nós comíamos mesmo. Nunca pulávamos refeição e comíamos comida mesmo, comíamos muita fruta também e muita salada. Era uma alimentação bem completa.
P/1 – Vou voltar um pouquinho pra questão da sua casa de infância. Queria que você descrevesse um pouco pra gente, você já falou algumas coisas, mas descrevesse como é que era essa casa, como é que era a região na época da sua infância.
P/1 – Nós morávamos num bairro que chama Jardim Herculano, ele fica próximo a Riviera na Represa de Guarapiranga, é do outro lado da Robert Kennedy, você tem Interlagos de um lado, esse bairro estava do outro lado da represa. Quando nós chegamos lá há 35 anos atrás não existia vizinho. Foi um terreno que era uma pastagem, tinha um vizinho que estava muito mais abaixo, que tinha cavalos, e quando nós chegamos a minha mãe construiu a casa, era uma casa não tão grande, tinha três quartos, sala, cozinha, só que o terreno era grande. O terreno tinha três mil metros. Ela começou, juntamente com os meus avós depois que deram segmento, a realmente formar paisagisticamente esse espaço. Então nós acompanhamos desde o plantio das árvores ao plantio de todos os arbustos que tinha, do gramado. Era uma casa que tinha vidros grandes na sala, tinha lareira, era um lugar extremamente aconchegante, isso eu lembro. E eu ficava... Então tinha um quarto pra minha mãe, um quarto pra mim e pro meu irmão e depois tinha o quarto de visitas que foi uma suíte que os meus avós ficaram. Eles ficaram conosco muitos anos, eu acho que uns dez ou 15 anos. Era essa configuração. Da minha janela eu lembro que tinha uma frutífera, era uma tangerina, eu podia estender a mão e colher. Essa época agora sempre tinha frutas. Aqui tinha uma árvore de tangerina, tinha uma acerola, tinha uma pitanga, então tinha muitas frutas. Tinha café plantado também, a minha vó sempre plantou, e ela plantou lá também. Então tinha muitas frutas, muitas frutíferas, muitas árvores e era um lugar, um jardim assim muito gostoso. Ela tinha uma horta também que ela cuidava todos os dias. Então nós tínhamos vegetais frescos, alface, tomate, tudo ela que colhia e ela que cuidava. Essa alimentação era bem saudável mesmo.
P/1 – Guilherme, quais as primeiras lembranças que você tem da escola?
R – Eu fui uma criança que não fez o pré, a pré-escola. Eu ficava em casa mesmo, eu e o meu irmão. Eu comecei a ir à escola com sete anos, seis pra sete. Então antes disso eu não sabia ler. Eu lembro que nós brincávamos nesse terreno, que era um campo de brincadeiras de todos os tipos, eu e o meu irmão. Nós aproveitávamos toda essa parte verde, mas também íamos pra rua. Aí na rua era empinar pipa, eu lembro que tinha tudo tradicional, peão, figurinha a gente fazia também, batia figurinha. Nós tínhamos brinquedos também, sempre tivemos acesso a todos os brinquedos, mas eu lembro que nessa época eram brincadeiras muito ao ar livre, sempre aproveitando o terreno, correndo pra cima e para baixo. Depois mais pra frente foi que eu comecei a andar de skate, depois a surfar, pegar onda, mas nessa época eram coisas mais simples, brinquedos mais simples e era o que justamente atraía a nossa atenção.
P/1 – O que vocês tinham de brinquedo? Cita alguma coisa ou um brinquedo favorito.
R – Ah, esses jogos de mesa nós tínhamos todos, de dama, de ludo, gamão, cartas, a gente brincava disso. Mas fora isso, Playmobil foi um brinquedo da infância, no início a gente tinha Falcon também, que era aquele bonecão, que mais? Aí todos os carrinhos, aviões, nós tínhamos também, robôs também, eu me lembro de alguns. Acho que era isso de brinquedos.
P/1 – E você tinha uma brincadeira favorita? Preferida assim.
R – Acho que polícia e ladrão era uma coisa que a gente brincava bastante, é que precisava ter mais gente, né? Quando tinha mais gente, era uma coisa que a gente sempre fazia. Quando com menos gente, brincadeira acho que era empinar pipa mesmo. Era uma coisa que quando tinha vento, a gente sempre estava lá empinando. Uma coisa bem legal.
P/1 – E dessa fase de infância assim, você se lembra de alguma história que tenha sido especialmente marcante ou significativa? Uma coisa que você lembra até hoje, às vezes conta para amigo ou ainda se fala sobre isso na família, contou pra sua filha, não sei.
R – Dessa época... Eu não tenho muita lembrança, assim, de alguma coisa marcante. Deixa-me ver.
P/1 – Pode ser uma história que envolva brincadeira.
R – Seria nessa primeira infância mesmo, né?
P/1 – Isso.
R – Eu não lembro. Não lembro.
P/1 – Nem depois que você entra na escola assim?
R – Depois que eu entrei na escola (pausa)...
P/1 – Não vem nada?
R – Não.
P/1 – Tudo bem. Eu queria que você me contasse então com quantos anos você entra na escola e quais são as primeiras lembranças que você tem da escola.
R – Entrei na escola de seis pra sete anos. Eu fui sorteado na escola de aplicação da USP, que é uma escola superboa pública, estadual. Normalmente são vagas para filhos de funcionários da própria USP e depois se tem alguma vaga sobrando, eles oferecem como sorteio e eu fui sorteado. Eu entrei na primeira série, era uma escola que ficava longe de casa, no final eu pegava esse trem aqui pra ir de casa até o colégio, mas a minha lembrança inicial assim é que realmente foi um choque de entrar na escola, de estar nesse primeiro passo aprendendo a ler, a escrever. Imagina, eu entrei sem saber nada. Lembro-me de ter feito novas amizades, inclusive tenho alguns amigos até hoje dessa época que são marcantes, que são amigos mesmo. Foi uma educação, assim, pra mim bem boa em qualidade, tive professores muito bons que abriram a minha cabeça pra muitas coisas. Não era uma educação assim by the book, era uma educação bem aberta. Eu tive aula de filosofia, inglês, francês e os professores eram da própria universidade. O lado negativo é que tinha greves, como tá tendo agora da universidade, eu me lembro disso bem marcante, em alguns anos a greve se estendeu por dois, três meses, que foi coisa superdura. E aí você não saber se estava de férias, se não estava de férias, depois tinha que correr atrás. Mas em termos de nível de exigência foi uma escola bem exigente. Repeti uma série, repeti a oitava por pura preguiça. Nunca fui um aluno muito aplicado de tirar as melhores notas, talvez nesse começo sim, até esse início, até a quarta série, depois da quinta pra frente eu sempre fui um aluno de médio pra baixo. Eu tirava a nota porque precisava, fazia o mínimo possível pra passar. Na sala de aula eu prestava atenção, mas não estudava. Nunca fui de estudar, talvez um pouquinho antes da prova dar uma lidinha, mas a minha memória era o que eu me valia e de ter prestado atenção na aula. Chegava a ir pra recuperação, acho que quase todo ano eu ia, mas passava.
P/1 – Você teve um professor marcante, favorito?
R – Acho que eu tive vários na escola. Eu tive alguns professores de Português, de Matemática, de Biologia. Eram professores, assim, que marcaram bastante.
P/1 – E por que eles foram marcantes?
R – Porque eram líderes e eram pessoas que realmente pegavam o melhor de cada um e potencializavam isso. Eles entendiam qual que era o teu potencial e davam ferramentas pra que você desenvolvesse esse potencial. Foram poucos, né? Muitos dos professores não tinham essa visão e não tinham esse interesse, mas outros tinham e esses realmente fizeram a diferença nessa primeira fase educacional.
P/1 – Você se lembra de alguma história que envolva a sua relação com eles que tenha sido marcante, com algum deles ou com alguns deles?
R – Os professores de Biologia sempre gostavam de mim pelo sobrenome, né? Por ser um Malpighi e eu tive uma facilidade muito grande em biologia, não sei o porquê, talvez seja genética. E os de Português também. Eu sempre fui ligado a essa área de humanas, sempre fui um grande leitor. Eu lia muito, muito motivado pela minha mãe e até hoje ela que foi uma das grandes motivadoras da minha filha também, que é uma leitora, assim, de estar sempre lendo. Em casa to sempre com um livro na mão. Tive sempre facilidade em Português e isso aparecia nas provas. Então os professores me adoravam, esse lado, e eles sempre também me motivavam a buscar outras coisas. E Matemática, eu tive um professor que realmente era assim fora do normal, ele era um gênio. E foi esse professor que me fez gostar da Matemática. Como eu era um cara de humanas, sou de humanas, a Matemática sempre foi aquele desafio, nunca ia bem e com esse professor, com o método que ele teve de me fazer entender a Matemática, eu consegui tirar dez em algumas provas. Isso aí que eu vi que o potencial da pessoa que tá te ensinando consegue mudar uma realidade e às vezes um pré-conceito seu. Mas foi um desses professores que realmente me fez entender a Matemática. Esse foi marcante. O cara era gênio. Ele dava aula, ele estava em... Você via que a cabeça dele funcionava de uma maneira diferenciada.
P/1 – Como é que era o nome dele? Não lembra?
R – Márcio talvez. Eu posso estar... Foi muito tempo atrás, mas eu acredito que é Márcio.
P/1 – Você falou que você gosta muito de ler, sempre gostou muito de ler, você lembra da sua primeira grande experiência com a leitura, ou não precisa ser a primeira, mas um livro que seja especialmente marcante?
R – Ah, os livros iniciais que eu li, foi Cecília Meireles. Então esses primeiros livros me marcaram bastante, e depois eu já passei pra Agatha Christie, li bastante Agatha Christie por um momento. E comecei, já mais pra frente, ler bastante poesia. Eu sempre gostei de poesia e lia muito. Bastante. Principalmente, aqui no Brasil, Manuel Bandeira e Drummond, e português o Fernando Pessoa. Foi um poeta que marcou bastante, mas aí já é um pouquinho mais pra frente. Nesse primeiro momento talvez era mais Manuel Bandeira e também Camões, que eram os sonetos de Camões foram bastante marcante também. E escrevia também. Nessa época eu também comecei a mostrar esse lado de gostar de ler e também de escrever alguns textos.
P/1 – Você escreve ainda hoje?
R – De vez em quando. Falta tempo, às vezes eu tenho uma inspiração, mas não tou com caneta e papel aí acaba me escapando e vai fugindo. Mas tem alguns momentos, assim, que eu sinto necessidade de escrever, aí escrevo algumas coisas e aí guardo. Não tenho um livro escrito, acredito que eu vou ter. Na vida você tem que plantar uma árvore, já plantei várias, já tive filhos, agora falta escrever o livro. Vamos ver se mais pra frente eu consigo consolidar esses textos. Mas eu sou muito crítico comigo mesmo, então por ter lido e ter essa bagagem de conhecer até onde pode chegar com a poesia, eu acredito que os meus textos têm muito ainda a mostrar. É difícil, e muita coisa você não consegue exprimir na palavra, né? Continuo escrevendo, eu não consigo escrever em prosa. É uma limitação, assim, não sou um bom escritor em prosa. Apesar de ter utilizado isso quando eu fui trabalhar como advogado, eu escrevia muito, mas eram textos técnicos e profissionais. Aqui na Expresso também eu acabo escrevendo muito, mas mais lendo do que escrevendo. Hoje nós escrevemos muito e-mail, aí é diferente. Contar uma história no e-mail é uma coisa, agora contar uma experiência tua ou uma impressão interna tua e colocar isso em prosa, eu acho difícil. Eu prefiro poemas que eu tenho essa visão mais minimalista de colocar em algumas palavras, brincar bastante com as palavras, com a forma de você escrever e reescrever essa palavra pra tentar conseguir algum significado diferente.
P/1 – Você tem um poema ou um poeta favorito?
R – Fernando Pessoa. Fernando Pessoa é um poeta que pra mim é um gênio, principalmente por ele ter tantos estilos diferentes de escrever. Você vê, hoje é difícil você ter um estilo só, criar o seu estilo, como é que um cara conseguiu trabalhar nisso com quatro estilos totalmente diferentes e ser muito bom nos quatro estilos. Eu acho que na língua portuguesa ele é o gênio. E na prosa aí já puxo pra um escritor nacional, que é o Guimarães Rosa. Acho que no Brasil ele foi o cara que conseguiu atingir, na minha opinião, o topo. Um livro chave dele, Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas, é um livro meu de cabeceira e realmente é uma obra prima. Então esses dois eu cito como grandes escritores. Como escritor internacional não tenho nenhum assim que me venha a cabeça como grande escritor e como eu uso como base.
P/1 – Mais brasileiro ou português, no caso do Fernando Pessoa.
R – Mais brasileiro e português.
P/1 – Você ficou na escola de aplicação até terminar o Ensino Médio, foi isso?
R – Eu fiquei da primeira série até o terceiro Colegial. Repeti a oitava série, então fiquei 13 anos lá.
P/1 – E nessa fase, passando a fase de infância pra fase mais de adolescência, queria saber o que mudou na sua vida, são fases muito diferentes, então em termos de amigos, lazer, interesses, o que você fazia pra se divertir, se você saía.
R – Principalmente uma coisa que mudou, comecei a andar de skate e depois surfar com 12 anos. Isso deu outro significado pra minha vida até de escolhas. Eu acho que o surfe e o skate foram ações que me tomaram, levaram-me pro lugar que eu to hoje até. É uma coisa que... Andava bastante de skate, então tinha esse estilo, era uma coisa que virou um hobby, depois surfar. Sempre que eu podi,a eu ia pra praia pra pegar onda, então estava lá motivado pra fazer isso e até hoje. Hoje eu ainda continuo surfando, faço kitesurf também. Skate menos porque eu tenho medo de cair, meu corpo já não é mais o mesmo, mas eu lembro que isso daí foi uma grande mudança do antes pro depois.
P/1 – Como é que você descobriu o skate e o surfe? Conta um pouco assim como é que foi essa aproximação, quando você começou a andar de skate, como você começou a surfar. Conta qual foi a história.
R – O skate e o surfe, os dois foi um tio meu que trouxe pra um primo. O meu tio era surfista e andava de skate, então ele deu pro meu primo e como nós convivíamos muito próximos então acabei também pegando o gosto pelo skate e depois, posteriormente, indo pra praia no Guarujá, em Pitangueiras, com a prancha do meu tio que a gente começou, que era uma prancha super grande, a gente carregava em duas crianças. Aí foi que a gente pegou o gosto pela coisa. Foi através do meu tio que também é um esportista e ele sempre levava a gente pra fazer esporte. Então foi esse lado aí que chamou. Eu sempre fiz esporte desde criança. Fazia natação desde bebezinho mesmo a minha mãe levou pra nadar e nadei até uns sete anos direto. Depois entrei no Clube Pinheiros, frequentava a escola de aplicação e o Clube Pinheiros quase todos os dias. Fiz atividade, fiz atletismo e depois, posteriormente, polo aquático. Então estava sempre nessa vida, fazia esporte e hoje também pratico bastante esporte. É uma coisa que eu não consigo viver sem. Mas eu me lembro disso como grande coisa. Frequentava festinhas também...
P/1 – Deixa só eu perguntar, antes de você contar das festinhas, como é que era o nome do seu tio que surfava?
R – Aldo. Ele é vivo ainda, continua. Ele é o meu tio casado com a Ioli, então é meu tio de, sei lá, segundo grau, seria isso. E é italiano também. Eles frequentavam um clube que ficava próximo de casa, é o Clube Itaupú que fica na Riviera. Então sempre que ele passava por ali, ele pegava a gente também e levava pro clube. Então a gente acabou tendo bastante contato com isso e também com a vela. Ele é um velejador, ele sempre ia fazer regata na represa então nesse primeiro momento também a gente teve esse contato com barcos.
P/1 – Você lembra como é que foi a primeira vez que você surfou, que você entrou no mar com a prancha ou uma das primeiras vezes?
R – Ah, lembro. Lembro com clareza. A primeira vez que eu surfei foi na praia de Pitangueiras no Guarujá, eu lembro que o mar estava super grande, então a gente não pegou a primeira onda formando, a gente pega a espuma, entrava com a água até a cintura e tentava pegar a onda, remar na prancha, que era uma prancha grande, e ficar em pé. Esse momento eu lembro até hoje, foi uma coisa bem marcante. O primeiro momento do surfe é bastante determinante, porque o teu primeiro estímulo é de ficar com um pé atrás e outro na frente, que pode ser o direito atrás, que a gente chama base regular, ou o esquerdo, que é o chamado goofy, e esse foi o meu primeiro estímulo. Eu sou um surfista que é chamado goofy, que surfa com o pé esquerdo atrás, e que eu me arrependo até hoje, porque eu deveria ser direito, eu ando de esquerdo com o pé direito, que é o meu pé mais forte. Se eu nesse dia tivesse tido a consciência disso, eu teria mudado pro pé direito. Isso mudou bastante! No surfe você tem ondas que vão pro lado direito e pro lado esquerdo e pegar uma onda de frente pra ela é diferente. Tem algumas praias em algum lugar, nós tínhamos casa em Paúba, fica no litoral norte de São Paulo, e passamos a infância lá. Lá é uma praia que tem umas direitas muito boas, e eu pego essa onda de costas. Se eu pudesse voltar nesse dia e dar esse conselho pro Guilherme menor, daria: “Poxa, coloca primeiro o pé direito atrás”. Mas foi um dia bem marcante. Nós começamos a surfar no Guarujá. E depois, posteriormente, fomos pegar onda no litoral norte. Na época tinha poucas pessoas que surfavam na praia que a gente ficou. Hoje já é um inferno, tem surfista pra todo lado, mas na época não era um esporte tão difundido.
P/1 – E com o surfe teve algum momento marcante, um acontecimento mais, enfim, um momento especial?
R – Ah, tiveram vários, né? Durante a vida toda e até hoje continuo tendo. Mas nesse primeiro momento a primeira coisa especial foi ganhar a primeira prancha. Foi minha mãe que deu num aniversário e isso foi uma coisa bastante marcante.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu tinha 13 anos. Essa foi a minha primeira prancha.
P/1 – Como é que ela era, a prancha?
R – Era uma prancha vermelha de uma marca famosa até hoje, chama Lighting Bolt, que tinha um raiozinho amarelo. Era uma prancha superclássica, assim, com a rabeta que a gente chama rabeta de peixe e duas quilhas. Foi essa prancha que eu comecei a aprender a surfar, eu surfei com ela por muitos anos. Muitos anos! Infelizmente não tenho, se eu tivesse até hoje estaria guardada em um lugar muito especial. Esse foi o primeiro momento, depois o aprendizado em si, todos os momentos que a gente tinha livre, a gente ia pra praia. Como nós não tínhamos carro, nós dependíamos dos pais, de levar, e a minha mãe foi bastante participante nisso porque ela ia, levava a gente, a gente ficava lá surfando. Às vezes estava chovendo, estava frio e ela ajudou bastante no desenvolvimento disso.
P/1 – E teve uma situação especial de risco ou de superação ligada ao surfe ou pode ser ao skate?
R – Nesse primeiro momento eu não lembro. Depois mais pra frente, sim. Quando você tá mais pra adolescente, aí tá testando os seus limites, aí eu lembro. Nesse primeiro momento eu não lembro até de entrar em mares tão grandes, de me colocar em situações de risco, não. Era bastante conservador, até por não ter físico pra isso. Depois que eu comecei a evoluir, aí sim, aí eu já me coloquei em algumas situações mais de risco.
P/1 – Isso com que idade mais ou menos?
R – Acho que uma situação de risco já devia ter uns 18, 19, por aí.
P/1 – Conta pra gente como é que foi. Por que foi uma situação de risco?
R – Em Paúba tem uma onda que quebra quando o sol tá de sul, as ondas vêm de sul, que entra uma frente fria grande. Não é uma praia, é um parcel, então a onda quebra, quando ela vem a série, ela quebra nesse parcel. O que é o parcel? É uma formação de rocha que não aflora, então ela é submersa. E aí pra você chegar você tem que sair da praia remando e aí você vai até lá, essa onda, mais ou menos uma remada de uma meia hora, e você tá virado nessa onda em direção a Maresias. Então ali você está como se fosse no meio do mar, nunca sabe muito bem onde você tá localizado, se você tá pra fora, se a onda vai quebrar um pouquinho mais pra frente ou um pouquinho mais pra dentro. E eu fui várias vezes nesse local e estava bastante confiante. Normalmente você usava uma prancha bem maior do que o normal. Vou te dar um exemplo, as pranchas são medidas em polegadas, então se você tá surfando um mar pequeno, você pega uma prancha menor de uns entre seis pés, cinco, seis pés dá um pouco menos de um metro e oitenta. E pra surfar essa onda tem que ser pranchas realmente grande, às vezes de oito pés. Então você pega uma prancha grande, vai remando e eu estava me sentindo muito bem, muito confiante. Tinha ido várias vezes, pegado mares grandes e estava pegando bastante onda nesse dia. Num determinado momento eu estava confiante, eu entrei um pouco mais pra dentro de onde a onda quebra e estava esperando ali pra ver a próxima série pra pegar. Quando veio a série eu vi que eu estava num local errado, num local onde eu não deveria estar. Então quando ela veio, assim, eu vi a onda e aí fui tentar remar, consegui passar pela primeira onda já abandonando a prancha, então larguei a prancha, submergi e aí depois quando eu cheguei a tona, eu vi que tinha outra onda quebrando e aí a onda veio, quebrou bem em cima de mim e ela me levou lá pro fundo. Normalmente você tem uma cordinha que chama de leash e é amarrado no pé que às vezes chega a ter 12 pés. Essa tinha acho que oito pés e ela estava totalmente esticada e a prancha estava em cima. Então veio um volume grande de espuma, você não consegue nadar, não tem flutuação. E eu fiquei lá um bom tempo, um bom tempo nessa situação, vamos falar que são uns dez segundos, que pra você parecem horas. Chegou a determinado momento realmente eu entrei em desespero. Estava desesperado, eu falei: “Nossa, eu não vou conseguir subir. Não vou conseguir subir”. Aí voltou, a sensação: “Não, você não pode ficar desesperado. Tem que ficar calmo”. Aí eu acalmei de novo, procurei onde estava o meu leash, comecei a puxar assim pra subir e aí quando eu consegui efetivamente quase chegar à tona, a outra onda me pegou. Aí eu fui arrastado por mais, sei lá, vamos falar, história de pescador sempre tem um pouquinho mais, vamos falar que foram mais uns dez segundos. Quando efetivamente eu consegui chegar à tona, realmente eu estava com o corpo quase, quase apagando. Se eu tivesse apagado naquela situação, eu teria morrido, porque eu estava surfando sem ninguém, estava sozinho e tomar duas ondas embaixo d’água sem submergir, realmente o que me salvou foi ter bastante preparo. Tinha preparo físico praquilo, mas depois desse caldo aí o meu psicológico ficou bastante abalado. Eu estava tremendo quando eu subi na prancha, imagina que eu tinha que ainda voltar pra praia, fazer uma remada de mais meia hora. Então foi uma coisa que... Mas por quê? Porque eu estava confiante, ultrapassei o meu limite e o mar é um professor cruel, ele ensina a lição, se você não tá preparado pra receber, infelizmente você vai tomar. A partir desse dia mudou a minha forma de encarar também as ondas. Eu nunca daí pra frente ultrapassei o meu limite. Já cheguei a morar um ano no Havaí, também pegar ondas grandes, mas sempre tendo consciência de qual que é o meu limite, qual que é a minha limitação e até onde eu poderia chegar. Mas esse dia foi bastante marcante. Foi uma lição dura que eu aprendi a duras penas, mas que foi uma lição pra toda vida.
P/1 – Você chegou a competir?
R – Não. Nunca competi. Não tinha nem nível pra competição. Como eu morava em São Paulo, eu surfava ou nos finais de semana, quando tem onda, ou nas férias. Então férias de janeiro, férias de julho, nós passávamos todas nessa casa do litoral de Paúba. Então ia a minha vó, normalmente uma tia que era professora, que ficava com a gente lá, e os seis netos. A gente ficava lá esses dias todos e sempre que tinha onda, a gente estava no mar surfando. Era uma coisa... Mas por não ter uma regularidade eu nunca consegui atingir nível de competição, não. Isso é outro surfe. Nem foi minha vontade também. Eu gostava de surfar, mas também não era uma coisa que eu enxergava como caminho profissional.
P/1 – Você mencionou que foi uma virada na sua vida, dessa fase da infância pra adolescência, e que talvez tenha até a ver com onde você está hoje.
R – Estilo de vida, né?
P/1 – É. Aí queria que você desenvolvesse um pouco isso. Por que assim? Em linhas gerais.
R – Ah, eu acho que surfista acaba tendo uma relação diferenciada com a vida. Você tem muito contato com a natureza, muito contato com as ondas. É um esporte que te gera prazer em níveis fantásticos. Pegar um tubo, que é um momento que a onda te cobre, e sair do tubo é aquela sensação de estar no momento certo, na hora certa, fazendo a coisa certa e de realmente surfar nas ondas, de estar em sincronia com o mar é uma sensação muito boa. Pode ter momentos ruins? Pode, como qualquer coisa, mas acaba mudando também a tua maneira de encarar a vida como um todo. Eu acho que isso foi marcante, de ter esse contato, de ter essa visão, de saber que o mundo tem um lado diferenciado acaba moldando o que você é, o que você é como pessoa, é como espírito, né? Porque é uma atividade física, mas no mesmo momento é uma atividade espiritual e a tua mente tá focada numa coisa quando você tá lá... Hoje pra mim é quase uma terapia. Quando eu tou surfando, a minha mente tá num local sem nenhuma preocupação. Eu to focado naquela atividade só e eu acho que esse tipo de meditação muda a tua maneira de ser e a maneira como você encara as tuas opções aqui na cidade. Eu acho que isso foi bastante determinante. E mesmo de roupa, de como o surfista se veste, qual que é o estilo dele, como é que ele é encarado pelas outras pessoas também, ser mais easy going, de ter um relacionamento mais tranquilo com as coisas, acho que isso foi determinante.
P/1 – Eu te perguntei quais eram as atividades, o lazer nessa faze de adolescência, você ia falar das festas, né? Conta um pouco.
R – Desde o início tinha os bailinhos, dança da vassoura, então eu participei bastante. Eu lembro que o meu contato com as mulheres também não foi tão cedo, talvez com uns 12, 13, 14, não sei exatamente quando. Eu dei o meu primeiro beijo talvez com 12, mas nesse primeiro momento, assim, até os 12 eu não me lembro de ter nem a... Talvez um amor platônico, mas não ter efetivamente muito contato com as mulheres. Era uma pessoa bastante tímida, então esse lado mais de ser comunicativo e de chegar nas mulheres nunca foi tão presente em mim. Aí depois dos 13, 14, mudou. Mas nesse início eram mais os bailinhos, de ter música lenta, vassoura, eu participei bastante disso.
P/1 – Você lembra que músicas tocavam nesses bailinhos?
R – Ah, aquelas músicas que tocam até hoje talvez em algumas rádios de péssima qualidade. Mas eram cantoras internacionais que... Tocava o que a gente chamava de “música lenta”, aí as pessoas dançavam e tinha essa vassoura que você trocava.
P/1 – Isso no comecinho da adolescência, né?
R – Acho que bem no comecinho da adolescência mesmo.
P/1 – E mais pra frente assim na adolescência? O que você tinha de atividade de lazer? Essas festas mudaram um pouco? Isso que você mencionou de paquera, flerte, aproximação com as meninas, como é que foi isso?
R – Ah, mudaram. Tinham festas ainda, mas tinham outras atividades. Eu lembro que a gente ia pro shopping também, cinema, fazia outras coisas também além dos bailinhos. Tinha bailinho, tinha uma festa que era famosa no clube, que eram as domingueiras, chamava Blackout no Pinheiros, que a gente ia todos os domingos, era das seis às dez.
P/1 – Como é que eram essas festas?
R – Eram festas que tinha DJ, eu não lembro se tinha bebida. Eu lembro que eu não bebia. Não tive contato com o mundo alcoólico tão cedo, não. Não bebia. Mas não lembro se tinha ou não. E DJ, música tocando, aí tocava de tudo e era das seis às dez. E ali rolava de tudo, todas as pessoas que você encontrava durante a semana no clube estavam ali no final de semana. A gente tinha um pessoal bastante grande, conhecia muita gente. Era bem legal, a gente se divertia bastante.
P/1 – Teve algum primeiro amor ou um primeiro namoro marcante?
R – Ah, teve. Com certeza.
P/1 – Então conta a história.
R – Foi uma menina que eu conheci na praia, que chamava Mariana, chama, deve estar viva ainda. Eu tinha 13 anos, ela tinha 14, era um ano mais velha. Acho que esse foi o grande primeiro amor. Nós ficamos namorando três meses.
P/1 – Como é que vocês se conheceram? Como é que foi a aproximação?
R – Nós nos conhecemos na praia mesmo. Ela estava lá de férias, acho que foram as férias de janeiro, e nós nos conhecemos acho que num luau lá, que a gente fazia luau na praia e eu acho que foi num desses que eu a conheci. Depois a gente ficou junto na praia em janeiro e depois ficamos namorando em São Paulo. Esse foi o meu primeiro namoro, eu nunca fui uma pessoa de namorar, acho que esse foi o único. Daí pra frente, eu sempre fui uma pessoa de estar fora de namoro. Tinha meus rolos, mas nunca ficava com uma pessoa muito tempo. Eu nunca me prendi, assim. Acho que depois desse já foi a mulher que eu tive o primeiro filho, que eu fiquei três anos junto, mas aí já tinha 27 anos. É um gap, que nesse meio tempo eu nunca namorei uma pessoa por muito tempo, sempre estava com os rolos.
P/1 – E nessa fase assim de adolescência tem alguma história marcante? Isso desde o começo até o final da adolescência, um fato que tenha te marcado na sua vida pessoal, escolar.
R – Deixa-me ver. Eu tenho mais pra frente, mas aí já com 24.
P/1 – Um pouco depois, né?
R – É. Nesses primeiros anos?
P/1 – Até uns 18 anos assim.
R – Eu não consigo lembrar, assim, de algo tão marcante na vida, acho que não.
P/1 – E você gostava de música? Você escutava nessa fase de adolescência?
R – Sempre escutei música. Escutava Punk Rock nessa época, bastante. Ainda escuto, né? Eu gosto desse tipo de som também. Escutava bastante surf music também. Acho que eu comecei a escutar reggae um pouco mais pra frente. Eu lembro que nessa época eu era bastante adolescente revoltado. Tinha esse contato com essa música de revolta. Então Dead Kennedys, Sex Pistols, Suicidal Tendencies, todas essas bandas aí são as bandas que eu ouvia em fitas, né, na época. A gente tinha as fitas piratas e eram os sons que eu ouvia. Eu ia bastante à pista de skate também e nas pistas de skate era esse som que rolava. Esse tipo de música. Não escutava músicas mais calmas, que eu lembre. Eram sempre músicas mais com pegada.
P/1 – E na infância ou na adolescência você lembra o que você queria ser quando crescesse? Antes de você efetivamente definir uma profissão?
R – Eu nunca tive isso forte, assim. Eu acho que mesmo mais pra frente, quando eu tinha 18, que eu estava nesse momento de escolha eu não sabia o que eu queria fazer. Mesmo quando eu me formei, que eu saí da faculdade, eu ainda tinha essa dúvida, saber o que eu vou fazer efetivamente da vida. Nunca tive isso desde pequeno, de saber: “Ah, eu quero ser bombeiro, eu quero ser...”. Não, não sabia. E não tinha nem preocupação com isso, nesse primeiro momento.
P/1 – Nessa fase até os 18 anos você só estudava? Não trabalhava?
R – Não. Só estudava.
P/1 – E como é que foi a decisão, quando é que você prestou o vestibular ou entrou na faculdade e como é que você decidiu, como foi essa escolha?
R – Foi meio por falta de opção assim, que eu não sabia, não tinha nenhuma coisa que chamava tanto a minha atenção. Eu sabia que era lado de humanas, né? Acabei escolhendo Direito por não ter outra coisa em mente. Não entrei no primeiro ano na faculdade. Eu saí do terceiro colegial, aí prestei, não passei, eu acho que eu só fiz Fuvest e no outro ano, eu fiz um ano de cursinho no Anglo da Sergipe, e aí eu acabei entrando na PUC aqui em São Paulo. E não passei na São Francisco também. Eu gostaria de ter passado, mas acabei não passando.
P/1 – Mas a PUC é uma boa faculdade também, é um ótimo curso.
R – A PUC é uma excelente faculdade. É outro perfil, mas a gente sempre quer, a minha vontade na época, meu objetivo era passar na São Francisco, mas não passei.
P/1 – E como é que foi esse ingresso na vida universitária? Tanto do ponto de vista do curso assim, como é que foi sua relação com o curso de Direito, mas também de convivência, vida social. O que mudou na sua vida nesse momento?
R – Em primeiro lugar, esse contato primeiro com a universidade, com a faculdade vindo do cursinho foi bem mais relaxado. Eu estava estudando igual um louco e nos primeiros meses eu lembro que não te demandava quase nada. Aí não estava trabalhando ainda acho que até os primeiros seis meses. Eu lembro que os primeiros seis meses foi bem relaxado. Aí depois eu já entrei no estágio, então mudou um pouco o meu dia-a-dia. Mas no início eu ia pra faculdade, fazia esporte, mesma rotina. Comecei acho que a lutar jiu jitsu, eu fiz seis anos de jiu jitsu. Eu lembro que eu ia treinar, ia pra faculdade e depois os finais de semana sempre pra praia. Todo final de semana eu ia pra praia. Então essa era a minha rotina. Aí depois quando eu comecei a trabalhar, aí não tive tanto tempo de fazer esporte, tive que dar um tempo no esporte. Eu transferi a faculdade que eu fazia de manhã pra noite, trabalhava o dia inteiro, estudava a noite. E nos finais de semana ia pra praia.
P/1 – E com o que você começou a trabalhar?
R – Eu comecei a trabalhar primeiro num escritório de direito civil com direito de família. Era um escritoriozinho pequenininho, era uma advogada que me contratou, eu fiquei com ela por seis meses. Aí aprendi o básico mesmo, ia visitar fórum, ia visitar o tribunal, acompanhar processo, fazia essa parte de apoio dela.
P/1 – Era um estágio remunerado?
R – Era estágio remunerado.
P/1 – Você lembra o que você fez com as primeiras bolsas que você ganhou de estágio?
R – Eu acredito que eu guardei (riso). Como eu morava com os pais, então não tinha grandes despesas, eu acredito que eu guardei pra possivelmente viajar, fazer viagens pra pegar onda. Eu fiz nesse início bastante viagem aqui dentro do Brasil pra surfar. Fui pra Itacaré, na época não tinha quase ninguém. Fui bastante pra Guarda do Embaú em Florianópolis. Então eu juntava dinheiro e aí acabava gastando nas viagens.
P/1 – E você lembra como é que foi o curso, se era o que você esperava, se não era o que você esperava.
R – Eu acho que primeiro momento, eu achei bastante fácil o curso. Não era uma coisa que te exigia muito. Eu achei os professores assim razoáveis. Não achei que eles estavam tão interessados em dar aula. Vindo do cursinho e vindo da escola que eu vim, onde os professores eram supermotivados e conheciam você pelo nome, na faculdade já tive essa... E eu via que muitos deles não estavam preparados pra dar aula.
P/1 – E o ambiente universitário em geral? Mudaram as suas relações, as amizades?
R – Eu tive alguns amigos que eu já tinha antes, que eram surfistas e do direito, mas mudaram. E eram pessoas que eram bem diferentes de mim. Pessoas mais formais, mais certinhas. Eu via que eu meio que não me encaixava tão bem nesse mundo. Então não é que ocorria algum atrito, não, nunca nesse sentido, mas eu via que alguns deles me achavam assim meio estranho no ninho. Mas eu sempre tive bom relacionamento na faculdade com o pessoal. Nunca fui muito de estar tão ativo lá também. Não era aquele cara de ficar no barzinho, de participar do grêmio da faculdade, de jogos jurídicos, nada disso. Eu ia lá pra ter aula, saía e voltava pra casa. E nos finais de semana também não participava de atividades, festas, porque eu estava surfando. Nunca fui tão ativo, tão presente nessas atividades da universidade.
P/1 – E dos estágios, depois que você faz esse primeiro estágio você ficou seis meses, como você falou, né? Você fez outros estágios durante a faculdade?
R – Fiz. Aí fiz outro estágio que foi o que efetivamente eu fui efetivado, que era um grande escritório de Direito Financeiro. Ele ficava aqui na Juscelino, e aí eu trabalhei desses segundo seis meses até o final da faculdade e acabei sendo efetivado nesse escritório. E era um escritório aí totalmente diferente desse primeiro. Eu tinha uma chefe na época e tinha muitos processos pra tomar conta e muita responsabilidade, trabalhava muito, isso eu lembro. Trabalhava demais, muitas vezes eu nem conseguia ir à faculdade, porque eu estava no fórum ainda às sete da noite. Mas foi onde realmente eu aprendi, no escritório eu tive uma base de estudos e de caso na prática que me deu uma base muito boa de Direito.
P/1 – Você pode falar o nome ou não, do escritório?
R – Posso. Chama Wald e Associados. O escritório de uns judeus, nós trabalhamos para bancos na época. É um escritório bem conhecido, ele é um professor também de Direito Público, tem vários livros publicados, é uma sumidade nessa área de Direito Público.
P/1 – Durante quanto tempo você trabalhou nesse escritório?
R – Eu trabalhei desse primeiro ano até o final da faculdade. Foram cinco anos, cinco anos. E aí depois eu acabei sendo efetivado em 98 pra 99. Em 99 eu fiquei mais seis meses trabalhando como advogado e depois eu saí.
P/1 – Mas você largou a profissão ou largou esse escritório?
R – Larguei a profissão.
P/1 – Então me conta um pouco como é que foi isso. Você trabalhou esse tempo nesse escritório e aí como é que você decidiu, o que aconteceu na tua vida?
R – Ah, eu não estava feliz. Eu trabalhava como advogado e eu não tinha vontade de acordar nas manhãs. Eu ia pro escritório meio que arrastado, falando: “Nossa, eu tenho que ir de novo lá trabalhar”. E não era uma coisa assim simples e fácil, né? Era uma coisa extremamente exigente em todos os aspectos e foi uma época bem conturbada, porque quando você tá no último ano de faculdade, você não sabe se vai ser efetivado. Então o nível de stress, né? Fiz o exame da ordem nessa época, passei também. Eu estava com o stress num nível bem alto e realmente na época não tinha estrutura como pessoa pra segurar. Aí chegou um momento que não aguentei mais, eu falei: “Não é isso que eu quero fazer da vida”. Aí eu tive esse... Já era uma coisa que eu estava meio que segurando, porque eu sou muito teimoso, eu não gosto de dar o braço a torcer, mas era uma coisa que não dava mais. Eu tive essa vontade e era uma coisa que eu falei: “E agora? Mas eu vou sair daqui e vou pra onde?”. E eu não sabia realmente. Foi uma decisão bastante difícil de tomar.
P/1 – Você pediu demissão? Conta como é que foi.
R – Pedi demissão. Conversei com a minha chefe na época e sentei com ela, falei: “Acho que não é isso que eu quero fazer. Não estou feliz aqui. Não acho que eu vou ser um advogado”. Ela tentou me convencer, ela falou: “Olha, eu acho que você está tomando a decisão errada” por ter mais experiência, mais visão, mas eu na época não consegui. Eu falei: “Não. Estou saindo, não consigo mais”. Era uma coisa que estava me agredindo.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu tinha 23 pra 24. Foi no ano que eu me formei mesmo. E aí eu saí do escritório e fique perdido. Estava sem saber o que fazer. Sabia que não queria ser advogado, pelo menos daquele escritório, daquele tipo de Direito, mas não sabia o que eu ia fazer. Estava formado como advogado, mas não sabia onde trabalhar. E aí tive momentos aí sem estar trabalhando em São Paulo que você fica louco. Acabei fazendo bicos como garçom, trabalhei um pouco como jardineiro com a minha mãe, nesse meio tempo. Mas realmente foi uma época assim meio difícil de não saber pra onde ir. Foi um momento de crise existencial total assim, falar: “O que eu quero ser? O que eu quero fazer? O que eu gosto de fazer?”. E eu não sabia. Não sabia responder. Foi um período assim que eu não consegui me encontrar. Trabalhei num estúdio de som também, fazendo mixagem pra espera telefônica. Aí em 2002, deu esse gap de 99 a 2002. Em 2000 um primo meu saiu do Brasil num barco de veleiro pra dar a volta ao mundo. Então com dois amigos aqui de Santos, e aí eles subiram o Brasil, atravessaram o Canal de Panamá, foram pro Taiti, chegou ao Havaí no ano de 2002 e o amigo que estava com ele na época quis voltar, falou: “Não quero mais” e ele me ligou, falou: “Guilherme, você não quer vir pra cá ser tripulante do barco e ficar comigo por um tempo?”. Aí eu falei: “Quero”. Em abril de 2002 eu fui, saí aqui do Brasil, fui pro Havaí, pra ilha de Oahu, e lá eu fiquei com o barco um ano parado trabalhando como jardineiro e juntando dinheiro. Na época de surfe, que no inverno o Havaí é no lado norte da ilha, no North Shore, de novembro a abril tem as melhores ondas do planeta, onde surfava sempre. Trabalhava, juntava dinheiro, eu consegui juntar dez mil dólares na época só trabalhando como jardineiro. Eu acho que eu ganhava dez dólares por hora. Tinha muito conhecimento de plantas, porque a minha mãe sempre puxava esse lado da gente, falava: “Essa árvore aqui tem tal nome”. Então além de saber o nome popular eu sabia o nome científico das plantas, né? E quando eu cheguei lá com esse conhecimento os caras olhavam pra mim e falavam: “Nossa, como você sabe”. Aí trabalhei como jardineiro nesse tempo.
P/1 – Onde você trabalhou como jardineiro lá?
R – Trabalhava em casas. Comecei a trabalhar em casas, eu coloquei o anúncio num supermercado e aí o pessoal me ligava, falava: “Olha, eu to precisando”. Aí eu ia lá e trabalhava, cortava grama, podava, plantava. E depois eu tive contato com um cara lá que era jardineiro também, que tinha uma empresa, e ele me contratou. Eu fiquei trabalhando com ele, eu trabalhava com ele três dias por semana e nos outros três dias eu trabalhava pros meus clientes. E fiquei nessa vida acho que por uns seis a sete meses. No final acabei brigando com ele um dia também e aí saí. Fui trabalhar numa feirinha vendendo mala pra uma família de coreano. Tinha uma feirinha que era três dias por semana, você acordava cedo, ia, montava a barraca, ficava vendendo até umas duas da tarde, no final ajudava a desmontar e ia embora.
P/1 – E como é que você conheceu essa família de coreanos?
R – Também nesse local que se chama Swap Meet, que é num estádio de futebol americano, tem muito brasileiro que vai lá trabalhar e aí um desses meus amigos que me arranjou. Primeiro acho que eu trabalhei pra um filipino vendendo frutas secas, fiquei acho que um tempo com ele, umas três, quatro semanas e aí depois eu mudei pra essa família de coreanos, porque eu acho que ele tinha mais dias. Eu acho que o filipino só tinha um dia e esse pessoal tinha os três dias da semana. Então eu fiquei com eles até o final, e no final, antes de sair do Havaí, eu estava só trabalhando com eles. Então trabalhava três dias, nos outros três dias a gente trabalhava no barco, que a gente estava arrumando o barco pra fazer a travessia.
P/1- Você morou nesse barco?
R – Morei no barco. Eu fiquei um ano com o barco parado, a gente ficava numa baía próxima a Pearl Harbor, onde teve o ataque lá nas ilhas, que é no lado sul da ilha, fica próximo a Waikiki, Honolulu e depois a gente ia trabalhar no North Shore. Era uma hora de carro. Por quê? Porque era no North Shore que tinha as ondas. Normalmente fazia isso e depois do trabalho a gente ia pegar onda. Em alguns meses a gente saiu com o barco, que o barco é como se fosse uma pessoa, tem que ter visto, tudo, e lá nos Estados Unidos eu não podia sair de uma ilha e ir pra outra. Então a gente permaneceu nessa ilha, a gente só podia dar a volta nela. No lado sul a gente ficava numa poita, que era uma boia. Em alguns meses do verão a gente andou com o barco e mudou o barco pro lado norte da ilha e ficamos ancorados numa praia lá por alguns meses. E ali era mais...
P/1 – De quem era esse barco?
R – O barco era do meu primo. Chamava Bicho Papão. É um barco brasileiro de quarenta pés, Fast Yatchs, 40 pés, é mais ou menos 13 metros. É um barco de regata com duas velas. Era uma vida, assim, bastante espartana, porque você tinha um ambiente confinado pra viver com um armarinho desse tamanhinho pra guardar todas as suas coisas. Foi o primeiro choque. Quando você sai de São Paulo, da sua casa e vai pra um barco, o primeiro choque é esse, de viver num ambiente confinado e com pouco espaço. Mas eu tive pelo menos um ano de tempo pra me climatizar antes de o barco andar e sair, a gente sair pro cruzeiro. Eu ficava trabalhando durante o dia e voltava pro barco pra dormir.
P/1 – E você lembra como é que foi assim quando você chegou no Havaí qual foi a sua impressão do local, das pessoas, da cultura?
R – Ah, sim. A primeira impressão foi essa que eu te falei dessa falta de espaço. Mas no primeiro momento é saber: “Poxa, será que eu tomei a decisão certa?”. Pra um surfista ir ao Havaí é um sonho. Desde o primeiro momento que eu tive esse convite eu falei: “Eu vou. Eu vou realizar esse meu sonho”. E aí com esse tipo de mentalidade, qualquer coisa você passa por cima. Realmente eu não vou mentir, não era uma vida confortável assim, porque você não tem uma casa, você tem um barco. Então tem muito menos coisas e eu estava sozinho, estava eu e meu primo, mas é você que tem que tomar conta de você mesmo. Mas foi um momento interessante também, porque tinha toda essa história que eu te contei pra trás e foi um momento, assim, de eu tentar me encontrar. Então muita falta de conforto você releva porque o teu objetivo é maior. Morar num barco e morar no mar é muito bom. Pra um surfista é uma coisa que é um sonho mesmo. Das pessoas que eu conheci tinha de todos os tipos, tinha gente... A gente convivia mais com o pessoal que morava nos outros barcos também, os cruzeiristas, de várias nacionalidades também. Tinha pessoas bastante interessantes com histórias de vida interessantes também pra compartilhar. Eu lembro que com os americanos, aí já era diferente. Eles nos tratavam com bastante indiferença e às vezes até com preconceito com brasileiro, principalmente no Havaí. No surfe, no mar existe um preconceito formal. O cara nem te olha, nem te cumprimenta e se você fizer alguma coisa errada lá você vai apanhar mesmo. Mas fora disso, eu fiz poucos amigos de americanos mesmo até por eles terem esse preconceito e te fazer uma discriminação mesmo. Porque nós, imagina, eu era jardineiro e o meu primo que era um engenheiro civil trabalhava como peão. Então a gente andava lá com as roupas todas sujas. Você estava no dia-a-dia e eles tratavam a gente como mendigos, né? Mas a gente relevava isso porque justamente o sonho é estar lá e depois o nosso sonho era ir pro Taiti, era atravessar o Pacífico e tinha um prazo pra isso que era os 12 meses. A gente sabia que era: “Ah, vamos sofrer um pouco agora, porque depois a gente vai pro paraíso”. E aí esse tempo a gente ficou lá, tinha muito brasileiro, principalmente do nordeste, morando ilegal. Deve ter ainda lá, porque é o melhor lugar do mundo pra onda, pra surfista. Por que isso? Porque tem muitas ondas diferentes num pequeno espaço. Você consegue surfar ondas diferenciadas num mesmo local, numa mesma ilha. Não existe nenhum outro local no mundo onde é possível isso. E nesses meses de inverno as ondas chegam a tamanhos muito grandes e com qualidade muito boa. Então vai todo mundo do mundo pro mesmo local.
P/1 – Vocês ficaram sete meses lá? Você ficou sete meses lá, foi isso?
R – Fiquei um ano. Eu cheguei em abril, aí depois nós saímos em abril também. Abril de 2002 a abril de 2003.
P/1 – Isso só no Havaí?
R – Só no Havaí na ilha de Oahu.
P/1 – E nesse tempo, nesse um ano no Havaí, teve uma situação marcante que você tenha vivido?
R – Ah, tiveram inúmeras situações. No surfe com certeza, porque ali você tá num local que te oferece todas as condições de onda, de tamanho, de qualidade. É um surfe no coral, então são ondas perfeitas por quê? Porque não é areia, é coral, ele tá sempre no mesmo local. Eu caí algumas vezes no coral, tenho cicatrizes nas costas de rolar no coral, quebrei prancha também. Algumas situações de muito medo porque você tá em praias que têm ondas grandes, o meu limite era até dez pés, é mais ou menos três a quatro metros. Nunca surfei ondas maiores que isso, mas eu estar num mar desses era sempre situações que não eram tão confortáveis pra mim, você estava sempre com o coração na boca, quando vinha a série das ondas, isso eu lembro até hoje, parecia que ficava negro no horizonte, você não sabia se você remava pra frente, pra trás, se você estava bem colocado. Mas eu não tive nenhuma situação assim de risco, de passar risco de afogamento, nada disso, até por respeitar e estar sempre atento. Eu lembro que foi uma época muito feliz da minha vida, porque eu estava lá trabalhando, ganhando dinheiro e sem muita preocupação. Foi marcante também, porque a minha namorada, antes de eu sair eu estava com ela há três anos, a Adriana, e no último mês ela ficou grávida, e eu não sabia. Eu estava no Havaí seis meses lá, ela me ligou, falou: “Tou grávida. Vai nascer uma filha sua. E aí?”. Fiquei, imagina, estava no meio do supermercado lá, eu recebi a ligação pra ela, comprei um cartão telefônico, liguei: “O que aconteceu?” “Ah, você vai ser pai”. Você imagina. “Ah, calma aí”. Eu desliguei, assim, fiquei pensando, daí voltei a falar com ela e aí a gente conversou, acho que ela estava meio que esperando que eu fosse voltar, eu falei: “Eu não vou voltar”. Porque eu sabia que se eu voltasse, eu não ia ter mais essa oportunidade e que realmente era verdade. Então a partir desse sexto mês eu tive mais esse pensamento, quando eu voltar pro Brasil eu terei uma filha. Acho que esse foi o mais marcante (riso).
P/1 – É Adriana o nome dela?
R – Adriana é da mãe e Julia é a minha filha. Hoje ela tem 11 anos. Quando eu voltei pro Brasil em 2004 o primeiro dia que eu a conheci ela tinha um ano e três meses. Então eu fiquei do Havaí, desse dia até o final, quando eu voltei pro Brasil em março de 2004, dez anos atrás. Eu fiquei com sabendo, aí eles me enviavam fotos dela, tudo. Imagina, você fica sem saber o que vai ser.
P/1 – Você lembra como é que foi a sensação assim quando você recebeu a notícia por telefone?
R – Ah, fiquei maluco, né? Comecei a buscar todos os meus amigos que estavam lá, pedir opinião, o que você acha, como é que faço. Porque eu tive que tomar uma decisão se eu ia voltar ou não. E aí depois de ter consultado todas as pessoas que estavam, assim, próximas de mim, realmente que eu tomei a decisão de continuar com a viagem, que não foi fácil. Uma decisão assim bem dura. E depois eu acho que a mãe também não gostou, né? Mas de todas as formas a minha família ajudou bastante, tanto a minha mãe como o meu pai. Nesse momento que eu estava fora, eles sempre deram apoio e sempre que eu tive condição também eu enviei dinheiro que eu ganhei lá pra ela, esse primeiro momento.
P/1 – Como é que você decidiu voltar do Havaí? Vocês tinham um tempo de permanência? Como é que foi?
R – Depois do Havaí, a gente preparou o barco pra travessia, aí a gente atravessou o Pacífico. A gente foi do Havaí pras Ilhas da Sociedade, que fica na Polinésia Francesa perto do Taiti. Foram 21 dias de mar e a ideia era permanecer um tempo lá no Taiti, só nessa vida de cruzeiro e depois sair de lá ainda, a minha ideia inicial era chegar até a Nova Zelândia. Eu não tinha muito tempo pra isso, iam ser dois, três anos, não era uma coisa que eu tinha muito preocupação de quando eu ia voltar. Mas aí eu fiz a travessia em 2003, e aí fiquei com o meu primo até 2004. O Taiti é um lugar fantástico, paraíso total com poucas pessoas, então foi um lugar muito bom, eu peguei muita onda, surfei muito e lá não trabalhava, nem tinha trabalho. A gente só surfava, mergulhava, pescava e curtia. Aí em 2004 a namorada do meu primo foi pro barco viver com ele, que ela se formou, ela é arquiteta no Mackenzie. E aí quando ela foi, aí eu voltei, porque realmente três no barco não dá. Acho que com o meu primo eu tive duas brigas nesse tempo, nesses dois anos, que eu considero pouco. Você imagina, viver num parco é um grande Big Brother, é um ambiente confinado ali e quando o barco tá velejando, eu sempre tive claro que ele é o capitão e eu sou o imediato, então o que ele falar é uma ordem e eu cumpro. Você não pode ter duas pessoas no barco, se um manda e o outro não faz, o barco afunda. Então é uma coisa que era bem clara. Ele era uma pessoa que tinha, assim, um posicionamento e uma forma de ser bem parecida com a minha, uma pessoa calma, que não fala muito, então a gente ficava muito tempo em silêncio, e a gente tem uma convivência muito boa. Eu acho que isso que foi o que garantiu esses dois anos, porque os outros amigos que foram com ele também aconteceu de ter brigas. O relacionamento assim intenso, eu acho que esse é o teste último pra todos os casais. Vai passar um tempo no barco, se você conseguir ficar você passou pela prova de fogo. Aí quando a Mariana chegou lá no barco eu voltei. Achei que era o momento de voltar também, não dava pra ficar.
P/1 – E como é que foi esse retorno pro Brasil?
R – Ah, não foi nada fácil. Foi duro. Imagina que o primeiro choque foi sair de uma ilha cercada de água pra isso tudo de terra. Eu lembro que quando eu estava sobrevoando o avião faz a primeira parada na Ilha de Páscoa aí depois vai a Santiago, de Santiago pra São Paulo. Quando você vê atravessando os Andes cheios de terra já é uma sensação, assim, bem estranha. E chegar a São Paulo tendo uma filha e não sabendo pra onde ir e o que fazer, eu pirei, fiquei... Nesses primeiros meses eu estava totalmente perdido. A única coisa que eu sabia é que não ia ser advogado financeiro. Aí eu comecei a pensar na parte de meio ambiente. Comecei a pesquisar nos escritórios de direito ambiental se existia essa posição. Preparei um currículo pra tentar entrar, fiz algumas entrevistas, mas não acabei sendo contratado. Na época os escritórios de advocacia tinham equipes muito enxutas. E o que eu fiz foi uma Pós em Gestão Ambiental no Senac, começou em 2004 até 2005. Minha mãe me apoiou também nesse tempo, porque eu estava ajudando ela no trabalho como jardineiro mesmo, aí ela me ajudava a pagar. Eu acabei fazendo em um ano, que era o tempo. E realmente esse curso de Gestão Ambiental me abriu assim a vista. Eu comecei a fazer uns trabalhos como freela de pesquisa de legislação ambiental para alguns escritórios. Eu gostei bastante de fazer isso, e finalmente em 2006 em julho eu tive contato com o meu ex-chefe que era de uma empresa de consultoria de Santos. Na época ele tinha estado na Nicarágua fazendo auditorias em fazendas de café na parte de sustentabilidade e a pessoa que estava com ele foi embora e não escreveu os relatórios. Então eu fui contratado em 2006, é uma empresa de Santos, para ir lá e começar a escrever esses relatórios em espanhol, nem falava em espanhol, né, sobre auditorias de sustentabilidade em fazendas de café. Então antes de visitar e de conhecer alguma fazenda de café, eu conhecia todos os requisitos de sustentabilidade, da parte social, ambiental e econômica das fazendas. Aí comecei a fazer isso e gostei, peguei gosto.
P/1 – Qual que era essa empresa?
R – Chama SKG. O nome da pessoa é Soren Knudsen, é um dinamarquês e ele é casado com uma prima minha de Santos. E essa prima, o pai dela é um grande corretor de café, famoso de Santos, um dos grandes tradicionais. Foi justamente ele que abriu as portas pro Soren pra começar a trabalhar na parte de certificação no café. Depois desse primeiro trabalho realmente eu falei: “Poxa, acho que é isso que eu quero fazer”. Gostei mesmo, sem conhecer nada de fazenda, na parte de agronomia. Eu entrei realmente... Eu conhecia era a parte de leis e conhecia era a parte de gestão ambiental. Então tendo esse conhecimento eu falei: “Ah, agora eu vou aprender de café”. Fui à primeira fazenda sem entender nada, mas eu sempre perguntava. E as pessoas quando perguntavam a minha formação, eu falava que eu era advogado, bom, até hoje causa... Quando eu falo aqui, acho que ontem na Nespresso a pessoa que sentou do meu lado falou: “E aí, como é que um advogado foi parar nessa posição de café?”. Eu tento resumir mais ou menos o que eu contei pra você, mas as pessoas não entendem.
P/1 – Você continuou trabalhando nessa empresa?
R – Continuei.
P/1 – Quanto tempo você ficou trabalhando nessa empresa e qual que foi a sua função. Porque você foi para fazer relatório, mas ficou, e o que você fazia nessa empresa?
R – Eu fiquei trabalhando cinco anos, de 2006 até 2011. Eu fui contratado como consultor e como auditor. A minha função, além de escrever os relatórios, era de visitar as fazendas e fazer consultoria sobre sustentabilidade e também, em outros casos, trabalhar como auditor fazendo auditoria de verificação nas fazendas. Nós trabalhávamos aqui no Brasil em todas as regiões de café, São Paulo, Minas, Paraná, Espírito Santo, e também tivemos a oportunidade de trabalhar na Nicarágua. Todos os anos nós íamos pra lá, eu tive a oportunidade de ficar dois meses fazendo auditorias na Nicarágua em fazendas de café e lá é totalmente diferente. E também em produtores de chá na Argentina. Essas experiências internacionais foram bem marcantes assim profissionalmente. E contato com outras realidades. E aqui no Brasil a nossa especialidade era justamente isso, ir pras fazendas prepará-las para receber selos internacionais, aí cuidavam de todos os aspectos na fazenda, não só da produção, mas vê toda a parte social dos trabalhadores, de treinamentos, do produtor também, como é que ele poderia mudar a posição dele no gerenciamento da fazenda: a parte ambiental, adequação ao código florestal, as áreas de reserva legal, das APPs que são as áreas de preservação no entorno de rios, nascentes. Então toda essa parte de adequação, de fauna também dos animais. Você tem que adequar pra preparar a fazenda pra receber um selo de certificação. Então todos esses aspectos eram vistos e eram motivados pela nossa atuação. Então entrava com consultoria e a partir daí o produtor se preparava pra conseguir certificar.
P/1 – E como é que era esse vínculo? O produtor contratava vocês como consultores pra fazer essa adequação, era isso?
R – Então, existiam diversos tipos. Existiam os produtores que nos contratavam diretamente e existiam também exportadoras que nos contratavam para preparar fazendas que eram fornecedoras delas ou cooperativas. As cooperativas nos contratavam e aí nós visitávamos um número X de fazendas pra fazer a preparação. Normalmente os nossos maiores clientes eram as cooperativas e as exportadoras, né? Porque os casos isolados, você ia a uma fazenda, preparava, ela certificava e acabava o teu trabalho. E no caso de quando nós íamos pra Nicarágua, era uma exportadora também. Uma exportadora tinha uma cadeia de fazendas e aí ela nos contratava pra fazer auditoria nessa cadeia. Todos os anos nós íamos e voltávamos e verificávamos se houve mudança, não houve mudança. Aí você, munido de um código de conduta, de uma norma, você ia lá e via se o produtor estava cumprindo ou não com determinada exigência. Muitas vezes nós não éramos muito bem vistos, porque tínhamos braço e punho de ferro, mas era interessante que no final nós víamos que você conseguia mudar a realidade. Não era de um ano pra outro, mas ao longo do tempo, três, quatro anos, as mudanças começavam a aparecer. Isso realmente é uma coisa muito motivadora.
P/1 – E nessa fase você teve assim uma situação que você tenha vivenciado ou uma história que te marcou? De repente alguma coisa que você nunca tivesse tido contato, uma realidade diferente ou uma coisa mais ligada a vida profissional que tenha sido marcante.
R – Ah, sempre o contato pessoal e humano nessas áreas do interior realmente é muito diferente do que a gente tem aqui na cidade. Eu nunca tive um contato assim tão forte com essas pessoas do interior. Muitas vezes elas não têm uma formação técnica, mas elas têm muita sabedora. E quando você tá aberto pra isso e você demonstra, as pessoas te dão lições muito boas. Eu nunca tive uma rotina nesse trabalho, nos últimos oito anos eu tou sempre viajando e tendo contato com essas pessoas, então o meu aprendizado veio basicamente do dia-a-dia, dessa experiência. Eu visitei muita fazenda, muita fazenda no Brasil, as melhores fazendas de café eu visitei, nos outros países também eu tive contato com as melhores fazendas e dentro das melhores fazendas estão os melhores profissionais. Então agrônomos, eu tive contato com bons agrônomos. Por não ser um agrônomo, eu nunca questionei tecnicamente ninguém e eles sempre me ensinaram muito e a mesma coisa dos produtores. O produtor de café, não só no Brasil, mas nos outros países, apesar dele ter às vezes muito dinheiro, ele é uma pessoa muito simples. A maior parte, eu vou falar 99% dos produtores de café são pessoas simples. E essa simplicidade e essa maneira de ser assim acaba te ensinando muita coisa. Esse contato, então, com o interior e com as montanhas – as regiões de café normalmente estão nas áreas de montanha – é muito bom, muito legal.
P/1 – Você se lembra de um caso específico para contar pra gente de contato com o produtor, uma coisa que tenha te sensibilizado, que você tenha aprendido alguma coisa?
R – Com certeza. Durante as auditorias sempre você acaba aprendendo muito porque acontecem coisas, tanto coisas ruins... Por exemplo, eu tive auditorias que morreu uma pessoa no meio da auditoria, então como é que você vai se portar num momento desse delicado? Conduz a auditoria, não conduz, até que ponto. Outra situação que a fazenda foi roubada. Eu estava dormindo na fazenda e a pessoa entrou na fazenda, roubou 300 sacas de café, então no dia seguinte, na auditoria estava eu fazendo auditoria numa sala e na outra a polícia entrevistando o pessoal lá, fazendo as perguntas pra ver o que tinha acontecido. Em algumas situações eu me excedendo como auditor, quando você tá como auditor tem o poder da caneta lá. Já cheguei a fazer produtor chorar.
P/1 – Como é que foi isso?
R – Não foi legal. Porque eu estava pedindo uma coisa e o cara não tinha. Chegou num determinado momento eu fui intransigente e ele explodiu. Então você via como você tinha esse poder de...
P/1 – E como é que você contornou nesse caso?
R – Nesse caso eu não contornei. Realmente eu fiz uma besteira. Isso me fez pensar, refletir a partir desse dia de qual é o poder e porque você tá lá no final. Qual que é a função básica da auditoria, o que você quer e aonde que você pode impactar e como. Essa lição eu tive daí pra frente muito clara. Não tou ali como um fiscal, como uma pessoa que veio aqui pra determinar, é uma ordem, é uma só realidade. Nós temos que ter um bom senso, mas isso só a experiência te ensina. Quando você é um auditor barriga verde, você chega à fazenda e quer achar que a realidade é de uma maneira só, então muitas vezes você é errado. Nesse início eu tive alguns casos de cometer esse erro, mas daí pra frente eu mudei totalmente minha forma de agir profissionalmente. De justamente chegar num local e entender qual que é a realidade, pesquisar qual que é a história daquela pessoa, qual que é a história de ocupação do solo, porque ele tá ali naquele momento se portando dessa maneira. De entender e de se colocar na posição do outro pra justamente primeiro falar a mesma língua, será que eu to falando a mesma língua que ele? Será que ele tá entendendo o que eu to falando e eu to entendendo o que ele tá falando? Então muitas vezes escutar bastante e aí em alguns pontos, em alguns momentos, quando você tem essa confiança que você tem essa parceria e esse relacionamento, aí sim falar. Nesse momento a pessoa vai te escutar. Porque justamente, a gente fala sustentabilidade, mas a chave da questão são as pessoas que estão por trás. É como você chegar na pessoa, como você vai entender essa pessoa e aí, a partir desse entendimento, como ela vai te enxergar profissionalmente e depois como um amigo, porque você acaba tendo um relacionamento que ultrapassa as barreiras profissionais, e aí depois desse momento como você pode interagir e mudar uma realidade e o que pode ser mudado. Então eu acho que esses aprendizados foram muito importantes, de como agir, de como saber se portar como profissional.
P/1 – Depois dessa experiência você já vem pra Nestlé? Então antes de a gente entrar na Nestlé, eu quero voltar só numa coisa da sua vida pessoal, queria saber como e que foi quando você voltou de viagem, esses dois anos que você ficou fora, como foi o primeiro encontro com a sua filha.
R – Foi bastante emocionante. Quando eu cheguei, ela não foi ao aeroporto, nem ela nem a mãe dela, eu achei estranho. Mas aí no dia seguinte eu conversei com ela e eu fui pegá-la na escolinha que ela estava, que foi uma escolinha que ela ficou, ela entrou acho que com quatro meses e ficou até os seis anos, no Pré. Eu fui pegá-la na saída e quando eu vi, assim, já sabia que era ela e aí ela veio. Eu fui meio que abraçar, mas ela não sabia como se portar, mas foi muito emocionante. Foi uma coisa que eu já sabia que eu ia ter um relacionamento com essa pessoa, que já conhecia essa pessoa. Depois ainda levei um tempo pra conseguir digerir qual que era o significado, porque como eu não tive esse um ano e três meses como pai formalmente, eu tive que buscar isso pra frente e não foi tão fácil. Eu sempre tive muito ciúmes da Julia, bastante. Nesse início, assim, ele era bem arraigado. Como eu era muito ligado na minha mãe e na minha família, era uma ligação muito melhor com ela do que comigo, né? E isso no primeiro momento me machucava, de ter tanto ciúmes. Eu não conseguia entender, porque normalmente eu não sou uma pessoa ciumenta com ninguém, mas com ela era uma coisa muito forte. Ainda é, eu tenho tentado trabalhar isso, esse meu lado de não ser tão ciumento, mas lembro que nesses primeiros momentos eu era muito, muito ciumento.
P/1 – Ela sabia quem você era quando ela te viu a primeira vez?
R – Então, eu não sei se ela sabia. Eu acredito que sim, mas não sei, nesse primeiro momento, nesse primeiro choque eu não sei se ela entendeu.
P/1 – Ela já tinha visto fotos?
R – Já. Mas é diferente, né?
P/1 – Claro.
R – É diferente.
P/1 – E como é que é ser pai? Queria que você falasse um pouco o que isso muda na sua vida.
R – Mudou muito de você ter a responsabilidade por alguém, quando você não tinha antes, e como pessoa também de justamente não ter... Porque antes eu não tinha ninguém pra cuidar, então o meu posicionamento como pessoa era mais de liberdade, de falar “se eu não fizer uma carreira, não tiver uma atividade, não tiver uma remuneração não tem problema nenhum”, que é só pra mim. Quando eu cheguei no Brasil e eu tinha uma filha e eu tinha que buscar isso, então caiu meio essa ficha de falar, meu, você tem que se mover aí e a partir de hoje você tem que encontrar uma atividade que você goste de fazer e que te remunere também, porque você vai ter que cuidar dessa pessoa e vai ter que oferecer pra ela todas as coisas que você teve, como mínimo, se não esse mínimo, melhor. Então profissionalmente e como pessoa eu acho que me mudou nessa coisa de te focar e de você ter que seguir esse caminho porque essa pessoa depende de você. E eu vejo hoje como um motivador também. Quando eu acordo de manhã que eu não to tão bem assim é só eu olhar pra foto dela, e a coisa muda de uma hora pra outra. Essa relação minha com ela é bem especial. É uma coisa que é muito forte e que não tem muita razão, é mais emoção mesmo. Nós tivemos a oportunidade de ir pra Europa em janeiro agora, passamos 20 dias juntos, então foi bem legal, bem interessante.
P/1 – Você lembra a primeira vez que ela te chamou de pai ou que você sentiu que aconteceu esse reconhecimento? Teve algum marco dessa mudança?
R – Teve. Eu não lembro assim desse primeiro momento, mas eu lembro que teve um momento que daí pra frente a coisa ficou mais fácil. Talvez uns dois, três meses depois que ela me conheceu, já houve esse clique. É uma coisa que tanto pra ela quanto pra mim foi muito natural isso, até porque nós passamos mais tempos juntos, né? Eu cuidava dela, fazia a comida dela, dava banho, trocava fralda, então foi uma coisa que foi crescendo aos poucos, mas foi super rápido. Você falar em três meses não é nada, é que pra gente parece mais, mas não é. Daí pra frente foi natural, e hoje o relacionamento foi como se esse primeiro momento de ausência não existisse. Acho que tanto pra mim como pra ela. Não sei se isso vai ter algum efeito futuro. Acredito que não. Acredito que não. Tento deixar a relação da maneira mais livre possível, apesar de não ter o contato todo dia como eu também não tive com o meu pai, mas hoje eu tenho um relacionamento totalmente livre com ele, mas que também demorou, até pra eu me formar como pessoa e ele também, foi uma coisa de aprendizado mútuo. Eu acredito que vá acontecer a mesma coisa com a Julia, apesar de que a educação não está sendo a mesma e a forma de educar também não.
P/1 – Ela mora em São Paulo?
R – Ela mora em São Paulo, nas Perdizes. Aqui é um pouquinho longe de onde eu moro, mas nós temos contato sempre. Amanhã, por exemplo, eu pego, ela fica um fim de semana comigo outro com a mãe. E tá indo viajar agora pra Belém, vai passar 30 dias lá com os primos. Sozinha, tá indo viajar sozinha, tá superanimada. Mas a gente tem bastante contato. Eu tenho outro filho também que chama Igor, com outra mulher, ele tem oito anos, mas o nosso relacionamento é totalmente diferente. Na verdade não há relacionamento com ela, então é uma logística mais difícil de ter esse relacionamento com o filho, acaba impactando a relação minha e dele.
P/1 – Vocês não têm tanto contato?
R – Temos contato, mas não é tão contínuo assim como a Julia. Às vezes, eu tento marcar um encontro não dá, aí ele tenta marcar também não dá. Porque eu só tenho contato com o pai dela, com o avô. Então aí esse esquema foi pra justiça, tive que fazer DNA, então, foi uma relação mais conturbada, porque eu não tinha relacionamento com a mãe. Eu nunca tive, assim, relacionamento de ser uma namorada. Então foi mais difícil.
P/1 – Mais delicado.
R – Bem mais delicado. Tá sendo, né? Não sei ainda como vai ser pro futuro, eu espero que melhore.
P/1 – Então eu vou voltar um pouco na questão da sua vida profissional e aí queria que você me contasse como é que você entrou na Nestlé. Como é que surgiu, enfim.
R – Na outra empresa eu comecei trabalhando com café em 2006 e aí comecei a trabalhar com todos os selos de certificação que existem no mercado, Rainforest, UTZ, Fair Trade, 4C. Nós íamos e trabalhávamos tanto aqui, tanto fora do Brasil, e nesse tempo foi que eu comecei a montar minha bagagem de experiência. Em 2010 um dos nossos clientes na época, que é uma grande cooperativa do cerrado chamada Cooxupé, eles tinham um grupo de fazendas que queriam preparar pra certificação, nove fazendas. Aí eles nos contrataram como apoio técnico e justamente essas fazendas faziam parte do programa de sustentabilidade da Nespresso, que é chamado Programa Triple A, dos três As. E esse foi o meu primeiro contato. Então nós trabalhamos como consultores pra essas fazendas e essas fazendas foram certificadas de 2010 pra 2011. Depois em 2011 houve um evento de celebração pra justamente comemorar que essas primeiras fazendas tinham sido certificadas e veio todo o pessoal da Nespresso da Suíça pra cá. Foi em abril de 2011. E aí nesse evento que eu conheci o meu chefe atual, que é o Paulo Barone, é um brasileiro aqui de São Paulo também. E aí nós conversamos, ele conhecia o meu trabalho já e o pessoal da Cooxupé também conhecia, ele falou que estava abrindo uma posição pra cuidar do programa de sustentabilidade deles aqui no Brasil. E aí eu acabei enviando o currículo pra ele em 2011 em abril. Passei por um processo de contratação assim bem longo, bem demorado e finalmente tive a notícia de que tinha sido aprovado em junho de 2011. Foi um período, assim, que eu sempre busquei uma carteira assinada pra trabalhar como trabalhador contratado. Porque como advogado eu trabalhava como autônomo e nessa empresa também eu era consultor autônomo, então não tinha muita segurança, isso que era o “senão” da empresa. Porque nós trabalhávamos, mas nós não tínhamos um volume de trabalho que enchesse todos os meses do ano. Só que as tuas contas chegam em janeiro, fevereiro, março, abril... E eu tinha tido já essa conversa com o meu ex-chefe, falado: “Poxa, eu tenho família aqui. Eu preciso ter um ganho”.
P/1 – Vou te pedir pra retomar então, Guilherme, você estava falando que tinha essa preocupação de trabalhar com carteira assinada, você era até então um prestador de serviços, então se você pudesse retomar isso, essa conversa com o seu chefe na época.
R – Nós paramos eu acho que foi no ano de 2009 pra 2010 e eu tive essa conversa franca com ele, eu acho que foi até num janeiro, fevereiro onde o nosso volume de trabalho diminuía muito. Falei: “Poxa, o que a gente pode fazer pra mudar? Será que teria como você me contratar como trabalhador só pra eu ter um ganho fixo, ter mais segurança”. Ele me falou que não, que não era possível, que da maneira como estava era pra ele também, ele não ganhava, então ele não tinha como me pagar. Então eu fui bem claro pra ele, falei: “Ó, a partir desse momento você saiba que eu estou também procurando outras alternativas e se eu encontrar você vai ser o primeiro a saber”. E quando eu entrei nesse processo seletivo da Nestlé, eu informei que estava fazendo parte disso desde o primeiro momento, ele estava ciente de que se eu encontrasse e finalmente eu acabei sendo contratado. Nesse meio de sustentabilidade, nessa área, nesse nicho específico de café são pouquíssimas oportunidades e quando eu tive essa oportunidade eu agarrei com as duas mãos. Eu fiz tudo que era possível pra ser contratado e finalmente acabei sendo. E hoje eu sei, eu dou todo o valor pro que eu tenho e pra onde eu cheguei, por isso que eu me emocionei no começo, porque realmente sair de onde eu saí e chegar aonde eu cheguei não foi um caminho fácil, meu currículo não é ortodoxo. Talvez nessa área que eu atue nem precisa ser, né? Nessa posição você precisa ter um conhecimento muito amplo, muitas vezes a gente tem equipes multidisciplinares. Mesmo na nossa equipe interna, não são agrônomos. Existem agrônomos, mas existem muitos outros profissionais que estão dentro e que acabam agregando visões diferenciadas pra você chegar a uma solução que seja aplicável no campo. Nós temos muito desafios e muitas vezes não temos a resposta. E nós somos claros, nós não temos a resposta, e nós estamos pensando todos os dias em como fornecer essa resposta pra no caso nossos clientes finais são os produtores de café.
P/1 – Que ano foi o ano que você foi contratado? Desculpa, você me...
R – 2011.
P/1 – 2011.
R – Em agosto de 2011 vai fazer três anos esse ano.
P/1 – E como é que foi quando você chegou aqui na Nestlé? Queria saber como é que você se sentiu, o que mudou na sua vida em termos de tudo, de ritmo profissional, de ambiente.
R – Em termos de ritmo profissional e de ambiente não mudou tanto, porque eu continuo, apesar de estando aqui no ninho, eu sempre tenho viajado. Eu brinco que eu viajo quatro semanas por mês. Então nós temos fornecedores em São Paulo, em Minas Gerais e no Espírito Santo e eu sou o único responsável por eles, então eu tenho que continuar visitando esses fornecedores. O meu dia-a-dia não é aqui na sede. Então isso não mudou muito do meu dia-a-dia anterior. O que mudou foi justamente ter contato com essa corporação e com essas pessoas. Existem pessoas aqui muito boas e que te ensinam muitas coisas. Então ter contato com profissionais diferenciados, isso acaba te demandando também, você fala: “Essa pessoa tá nesse nível, eu tenho que buscar”. Eu lembro quando eu entrei aqui essa foi a minha primeira impressão, falar: “Será que eu tenho nível pra estar aqui?”. Era o meu primeiro questionamento e realmente na época eu falava que não, não tinha, tenho que buscar mais, aprender mais, essa motivação de ter mais conhecimento foi bastante marcante. Em termos de operacional de dia-a-dia não mudou tanto eu acho que por isso. Eu sou contratado diretamente pela Nespresso Suíça, então não tenho vínculo com ninguém aqui do Brasil, eu não respondo pra ninguém aqui. Essa parte de dia-a-dia, de corporação não é tanto a minha rotina, não fui tão impactado por isso e nem senti tanto essa grande mudança.
P/1 – Explica assim pra gente em termos gerais qual é o seu cargo e qual é a sua função dentro da Nespresso.
R – Então, eu respondo pelo programa de sustentabilidade aqui no Brasil. A minha função é visitar as fazendas e conversar com os agrônomos e conversar também com os nossos parceiros comerciais em cada uma das regiões. Porque a Nespresso não compra o café direto do produtor, normalmente ela tem um parceiro comercial que é uma exportadora, um trader ou uma cooperativa como a Cooxupé que eu citei. Vamos pegar o exemplo da Cooxupé; a Cooxupé tem um corpo técnico próprio que é formado por um administrador e um corpo de agrônomos e técnicos, né? A Nespresso paga um prêmio pro café que a gente compra do produtor e parte desse prêmio vai pra justamente financiamento da assistência técnica, o salário do agrônomo e do técnico agrícola. Então a minha função é de justamente gerenciar esse pessoal pra ver se efetivamente eles estão trabalhando com o que eles deveriam, que é justamente melhorar a questão de qualidade, de sustentabilidade e produtividade das fazendas. Nós temos metas de comprar mais cafés dessas fazendas, mas pra isso a gente precisa que essas fazendas trabalhem cada vez melhor e com mais eficiência. Então diminuindo o custo de produção, aumentando a qualidade, melhorando a eficiência social, melhorando a eficiência mental e pra isso nós temos um código também de conduta que é uma ferramenta de avaliação de qualidade, de sustentabilidade, e essa ferramenta é aplicada nas propriedades.
P/1 – Esse código de conduta que você tá mencionando é um código de conduta internacional ou é específico da Nespresso?
R – Esse é específico da Nespresso, do Programa Triple A. Ele é chamado de TASQ, que vem do inglês Tool for Assessment of Sustainable Quality, ou seja, Ferramenta de Avaliação de Qualidade Sustentável. Ele tem dois módulos principais, o primeiro módulo é o módulo de qualidade. Esse módulo de qualidade foi criado pela Nespresso. Aqui no Brasil são 91 critérios que tratam da parte de qualidade do café que vai desde o cuidado de colheita até o cuidado de pós-colheita que você viu lá no terreiro. O pessoal mexendo o café, não deixando que ele fermente. Então tudo isso nós avaliamos em cada uma das propriedades. E o segundo módulo é um módulo de sustentabilidade. Esse módulo de sustentabilidade foi criado em parceria com uma ONG internacional que chama Rainforest Alliance. A Rainforest Alliance nos forneceu em conjunto esse fornecimento de boas práticas agrícolas ambientais e sociais e nós criamos em conjunto um código de conduta que tem 296 critérios. Então as fazendas passam por essa avaliação e por esse crivo, não todas, hoje nós temos mais de 60 mil em todo o mundo, aqui no Brasil umas duas mil. Não tem como você avaliar esse código todo em todas as fazendas porque demanda muito tempo, então você avalia isso em uma amostragem dessas fazendas e toma esse resultado e dá pra replicar nas demais. E trabalha com planos de ações pra justamente melhorar esses pontos. A ideia principal é que o produtor tenha mais eficiência em todos os aspectos da gestão da fazenda dele pra que justamente ele consiga no final de tudo ficar com dinheiro no bolso. E isso é importante, a sustentabilidade econômica é um dos pontos principais e um dos grandes desafios hoje. O custo de produção tem aumentado cada vez mais aqui no Brasil, não só no Brasil, no mundo também, principalmente mão-de-obra, salários, poucas pessoas pra trabalhar nas fazendas também, o êxodo rural é um fenômeno não só brasileiro, mas mundial. A sucessão familiar também é outro desafio. Hoje o produtor de café no mundo tá envelhecendo, nós fizemos uma pesquisa dentro dos nossos fornecedores, a média é de 54 anos. Em muitas fazendas você vai, você não encontra os filhos nem os netos e esse é um grande desafio, uma grande questão de como que nós podemos trabalhar, esse é um dos nossos focos principais, oferecer alguma ferramenta que torne a fazenda de café atrativa pra que a pessoa volte, saia desse foco de que na cidade é tudo maravilhoso, no campo não. Existe até uma questão mesmo de preconceito, de falar do caipira que tá lá, não tem acesso a Internet. Não! Hoje é diferente. Hoje você tem acesso e você tem como trabalhar pra justamente que essa pessoa volte pro campo e sinta que aquilo é uma alternativa de futuro. Esse é o conceito de sustentabilidade, né? Se a pessoa não enxerga a cafeicultura como uma alternativa pro futuro, ele vai mudar pra outra coisa. E aí? Quem é que vai produzir o café? Nós produzimos cafés em cápsulas e não existem plantas de café que produzem cápsulas. Então você precisa ter o cafeicultor trabalhando justamente dentro das nossas exigências que são muito grandes. Eu acho que vocês conversaram lá com o pessoal, nós somos extremamente exigentes em qualidade, esse é um dos pontos principais, é um dos pilares mesmo e nós precisamos deles, então é uma relação de parceria. É uma parceria da Nespresso com o produtor, do produtor com o trader, com a cooperativa. Antes só comprava café. Vinha a amostrinha de café, chegava aqui é a provada vai pra Suíça. Hoje não. Hoje a gente quer conhecer as mãos, conhecer o produtor, entender quais que são as dificuldades deles pra justamente estar ali garantindo que ele vai continuar na produção de café.
P/1 – Qual que é a diferença no processo, esse processo que você recebe, avalia e só envia aquilo que foi aprovado e esse outro que você sabe quem é o produtor? Qual que você acha que é o ganho ou a especificidade desse outro caminho?
R – Primeiro que você personaliza essa figura e você conhece efetivamente de onde que veio. Ou seja, tudo isso é o conceito básico de rastreabilidade, né? De ter rastreabilidade não só do café na parte documental, mas ter rastreabilidade da pessoa e dos processos. Chega ao nível de saber qual produto ele aplicou naquele café, de que forma ele cuidou, de que forma ele processou. Isso te dá segurança como empresa pra comprar, justamente segurança do consumidor no final também pra saber de onde que veio. Hoje cada vez mais não só empresa, mas o consumidor quer saber quem é o produtor e quais que são as condições que esse produtor enfrentou pra justamente consumir o café na cápsula. Antes a gente não tinha isso, a gente não sabia. O café aqui a qualidade tem. Ok. Mas e aí? Qual que foi a dificuldade ou os desafios antes pra chegar nessa amostra? Será que teve algum problema antes? Se você observar uma amostra de café verde dentro do programa com sustentabilidade e outra não, se elas tiverem a mesma especificação de qualidade não existe diferença. E nem em sabor. Não existe um sabor, infelizmente, um sabor de sustentabilidade. Isso você precisa testar por meio de outras formas de controle que é justamente começar com isso, com rastreabilidade, conhecer de onde vem o café, conhecer de onde vem o produtor, conhecer quais são os desafios desse produtor. Isso tem um valor e um ganho que extrapola aí a parte do tangível. Essa parte de relacionamento é um ganho que justamente te dá uma segurança pra justamente saber que o próximo ano vai ter café e os próximos também. Então esse tipo de relacionamento direto com o produtor, que no Brasil a gente tem uma condição única, que é justamente ter origem, ter fazenda de café, e ter Nespresso no final, boutique. A gente pode tanto levar colaborador da Nespresso pra conhecer as fazendas como justamente fazer o contrário, trazer o produtor pra cá pra conhecer as boutiques, pra conhecer as cápsulas, pra ver onde o produto dele tá e não é um produtor que fala, são muitos produtores que falam que eles têm orgulho de fornecer café pra Nestlé, pra Nespresso, e é justamente por eles saberem que o café dele está naquele produto, que é valorizado, é uma cápsula. Isso faz com que haja motivação e haja segurança também dele de saber que tem uma empresa por trás que garante a compra. Então é uma segurança nossa de saber que o fornecedor vai ter café pra nos vender e, em contrapartida, o valor do produtor de justamente saber que nós estamos aqui, no próximo ano nós vamos estar e no próximo também. Ter essa segurança de garantir a venda do café dele. Isso faz toda a diferença.
P/1 – Queria que você desenvolvesse um pouquinho, você já falou disso nessa sua fala agora, mas a relação entre a rastreabilidade, a sustentabilidade e a qualidade do café. São coisas que estão intricadas, em outros termos assim, qual que é a importância da rastreabilidade e como de alguma maneira isso está vinculado também a sustentabilidade e a qualidade do café?
R – Se eu fosse colocar assim como prioritários, eu diria que o pré-requisito pra nós é a parte de qualidade. Como nós não compramos café sem qualidade, se o produtor nos ofertar um café com sustentabilidade ou com rastreabilidade nós não vamos comprar. Então nós temos que partir desse primeiro pilar que é a qualidade. Ele tem que começar a trabalhar e a oferecer um café de qualidade. O segundo ponto que vem é a rastreabilidade. Eu preciso garantir que o café que ele tá me ofertando veio da fazenda dele. E isso começa porteira adentro, na fazenda, eu tenho toda a rastreabilidade do café não só física, que é a rastreabilidade de saber que o café foi colhido no talhão tal, no dia tal, colheita manual ou mecânica, ele passou por um processo de lavagem ou de despolpa, de secagem, ele foi beneficiado no dia tal, ele foi pra cooperativa no dia tal. Isso seria o dentro. Ou até num nível mais além, o que foi aplicado nesse café, qual que foi o produto, no terreiro será que teve chuva no café ou não. Tudo isso é portas adentro e o produtor consegue, se ele tiver um sistema de rastreabilidade, oferecer todas essas informações. Aí quando sai porteiras afora da fazenda, você também tem que ter o que a gente chama de cadeia de custódia, que é justamente dentro do armazém garantir que o armazém não vai misturar o café que veio da fazenda dele. Porque como eu falei, quando chega lá o café verde em si, se ele tiver uma mesma qualidade, você não consegue separar um do outro. Então pra isso eu preciso ter registro e eu preciso ter separação física desse café. E esse armazém tem que me garantir isso. Então eu vou ao armazém e também audito ele pra ver se ele não tá misturando o café de um com o de outro que tem a mesma qualidade e que aí eu preciso ver a rastreabilidade. Por quê? Porque justamente o terceiro, que é a sustentabilidade, ele vai estar também dentro desse lote, mas não fisicamente. Não existe uma classificação física de sustentabilidade. Você não consegue ver o café e também no final, no produto final, provar se ele tem sustentabilidade ou não. Quem te garante isso? A rastreabilidade. Então a rastreabilidade vai exigir documentação desse café e vai te exigir também efetivamente que uma pessoa vá à fazenda e ateste que o produtor está cumprindo requisitos social, ambiental e econômico. Pra isso, eu preciso ter um sistema que me comprove. Esse sistema é a parte de rastreabilidade. Então se eu colocar assim prioridade: primeiro qualidade, segundo ter rastreabilidade e em terceiro vem o pilar da sustentabilidade, porque justamente sem ter esses dois eu não tenho como provar que um lote de café é sustentável ou não, porque fisicamente vendo, olhando pro café não tem como separar um do outro.
P/1 – Queria que você explicasse também em linhas gerais o que o Nespresso, o AAA, o que esse Triple A tem de diferente. Qual é o diferencial dessa cadeia produtiva? Eu não sei se eu posso chamar dessa maneira, mas do café que é produzido dentro dessas normas, dentro desse parâmetro.
R – A primeira diferença do programa Triple A pros demais que existem é justamente considerar essa dimensão de qualidade como realmente um pilar. Você tem outros programas de sustentabilidade no mercado, mas normalmente esses programas estão focados em três pontos, primeiro a parte social, parte ambiental e aí eu vou chamar o econômico, que eles chamam de boas práticas agrícolas. Então as boas práticas agrícolas entram na parte de conservação de solo, na parte de manejo integrado de cultivo, uso de agroquímicos. Normalmente os programas de sustentabilidade que existem são focados nesses três aspectos. O que o programa Triple A tem de diferente é pensar também que a qualidade entra nessa conta. E, além disso, a ideia principal do programa é justamente motivar que as fazendas ajam de maneiras mais eficientes. Como é que faz isso? Você tem que colocar dentro da tua fazenda um sistema de gestão que justamente gerencie esses aspectos e considere custo de produção de um lado e do outro lado considere os ganhos. Dentro do programa Triple A esses ganhos são diferenciados. Por quê? Porque não é só o valor por saca de café, porque normalmente o que o produtor ganha? Ele tem uma produção X, um número, vamos falar, mil sacas, ele consegue vender essas mil sacas por um preço tal. Esse é o ganho do produtor, não existe outro. Do outro lado ele tem as despesas que é mão de obra, insumos, impostos, toda a parte de depreciação, manutenção da fazenda, combustível, energia... Então numa produção convencional, você tem na equação os ganhos que é o número X de sacas que ele produz vezes o valor médio das sacas que ele consegue vender, comercializar o café; e na outra ponta os gastos, que incluem os custos de produção que são mão de obra, insumos, manutenção, combustível, energia, impostos. Então essa equação tem que ser positiva, porque senão o produtor vai quebrar. Dentro do programa Triple A essa equação é um pouquinho diferente. Por quê? Porque eu entro com outra dimensão que se chama eficiência. Essa eficiência vai em primeiro lugar melhorar a produtividade, então é produzir mais sacas por hectare e isso vai aumentar o ganho geral da fazenda, mas também é pensar em como gerenciar todos os custos de produção de forma que ele gaste menos. Por exemplo, se ele usava adubo, mil toneladas de adubo em toda a fazenda, eu implementando um bom programa de fertilização que é baseado em análise de solo, análise de folhas, ele vai conseguir com precisão determinar se aquela uma tonelada por hectare realmente é necessária. Se em algum dos talhões lá essa análise de solo falar que não, ele vai aplicar menos fertilizante e no final isso vai dar, não seria um ganho, mas ele vai ter menos gasto. Além disso, dessa melhor eficiência no custo de produção que acaba estreitando e aí na tua margem no final aumenta, você tem por cima de tudo um prêmio. Esse prêmio vai primeiro ser relacionado a qualidade do café, então quanto mais... Preço de café e qualidade estão diretamente relacionados: quanto melhor a qualidade, mais você vai ganhar pelo café. Então nós pagamos mais pela qualidade e por em cima de tudo um prêmio por sustentabilidade. Por fazer parte do programa tendo a qualidade e assumindo o compromisso conosco de melhoria contínua, cada saca de café que é comercializada pra gente a gente paga um prêmio pro produtor. Então em primeiro momento mais produção, em segundo melhor eficiência de gerenciamento de custos, e terceiro os prêmios. Essa equação no final faz uma diferença significativa entre produtor que faz parte do programa e produtor que tá fora.
P/1 – Você desenvolver justamente assim o que é essa diferença, o que você acha que são os benefícios ou a diferença do produtor que é parceiro hoje da Nestlé.
R – Hoje nós ainda não temos nenhum estudo no Brasil que monitore realmente os impactos, mas nós temos um na Colômbia. Foi feito um estudo por uma organização que justamente comparou fazendas que são partes do programa com fazendas que não fazem parte e quais que seriam os potenciais impactos, positivos ou negativos ou neutros na parte ambiental, econômica e social. Então nesse estudo foi comprovado que efetivamente existe um ganho, tanto na parte social quanto na parte ambiental como na parte econômica. E, finalmente, daí, dessa linha de base você consegue realmente comprovar quais que são os benefícios. Não tendo esse estudo no Brasil eu volto para o que nós encontramos como possíveis motivadores e possíveis pontos que podem melhorar a condição do produtor. Em primeiro momento é uma boa assistência técnica. É ter um consultor que é um agrônomo, mas que não necessariamente vai te fornecer assistência técnica só na parte de agronomia. Então o assistente técnico do programa vai pra fazenda e vai entender qual que é a realidade do produtor e, em qual ponto ele pode auxiliar. Por exemplo, informando o produtor se ele necessita de um apoio na parte ambiental, tanto na elaboração de mapas como na parte de apoio com os órgãos públicos, se ele precisa de um apoio na parte de registro da reserva legal, outras situações na fazenda que ele precisa adequar. Na parte de saúde e segurança, se ele precisa de um técnico ou de um engenheiro que vá lá e analise os riscos da fazenda, que passe treinamento pros trabalhadores e pro produtor a ter comportamentos seguros que vai desde o uso básico do EPI até um treinamento de aplicação de pesticidas ou de armazenagem, de como guardar os pesticidas de maneira correta. Então esse apoio do assistente técnico é um ponto diferente. Ele conta com isso, esse é um ponto principal que o fazendeiro que está dentro do programa tem. O segundo ponto é a parte de treinamentos. Então nós focamos muito em treinamento, fazemos muito treinamento com produtor e são treinamentos que também extrapolam a parte do básico lá, que é aplicação de agroquímico, uso de equipamentos perigosos. Não! Nós queremos fazer treinamento pra que ele gerencie a fazenda de maneira eficaz. Como é que ele pode melhorar o custo de produção, como é que ele pode pensar a fazenda dele, gerenciar a fazenda dele de maneira mais eficaz. Então esses treinamentos também são disponibilizados pro produtor. E por último, nós temos parcerias, então parcerias com ONGs, parcerias com organizações pra justamente desenvolver projetos sócio ambientais que causem impactos nessa região que as fazendas estão. Considerando não só porteiras adentro, mas qual que é a relação da fazenda com a comunidade, do entorno? Será que ele tá usando o recurso da escola? Será que eu posso vir nessa escola e criar um programa em comum que beneficie tanto a fazenda como a escola? Normalmente sim. Nós verificamos que são muito carentes, tanto as entidades como muitas vezes o produtor também não têm essa política de relacionamento com a comunidade. O que nós procuramos incentivar é justamente que ele se relacione com o entorno pra que justamente gere valor não só pro produtor, não só pra Nestlé, mas também para essas sociedades que estão ali e que necessitam de recursos não só financeiros, muitas vezes é físico ou é um treinamento, ou é levar a criança na escola, é ensinar a reciclagem que você faz na fazenda na escola. Então esse conjunto aí de atores que existem nas regiões são importantes pra justamente consolidar essas áreas. Então eu vejo esses três pontos como diferenciais e como realmente você indo a uma fazenda ele tem de diferente de fazendas que não estão no programa.
P/1 – E nesse tempo que você tá aqui na Nespresso, Guilherme, você se lembra de uma história, de um exemplo pensando num produtor específico, num exemplo concreto de tudo isso que você deu pra gente de uma maneira panorâmica? Pensando assim, uma modificação que você tenha percebido em alguma propriedade ou, enfim, alguma história que vá de encontro com isso que você tá contando pra gente assim que seja um caso específico.
R – Ah, tenho diversas histórias. Eu posso te citar, por exemplo, o produtor que você visitou que é o Álvaro. Eu já conhecia a fazenda do Álvaro antes da Nespresso, eu tive lá fazendo auditorias desde 2007. Estive na região de Carmo de Minas, que é uma região fantástica de montanhas que tem muitos desafios ambientais por um lado, mas que tem uma qualidade de café fantástica do outro. Eles ganham todos os concursos de qualidade, Carmo de Minas tá lá. Então o meu relacionamento com os produtores sempre foi bastante difícil, assim, de motivá-los a melhorar a parte de sustentabilidade da fazenda e efetivamente conseguir uma certificação diferenciada, como é o caso na época que eu queria que eles certificassem Rainforest Alliance. É uma certificação socioambiental superexigente. E desde 2006, que eu entrei, comecei a trabalhar com café, eu fui lá em 2007 tentar convencer esse pessoal e antes de entrar na Nespresso estive lá diversas vezes tentando conversar com eles, explicar o que era e o Álvaro foi um deles. Desde o primeiro momento ele sempre abriu as portas da fazenda, mas nesses primeiros momentos todo mundo era muito cético. Quando você trabalha com produtores de café, especialmente produtores de café mineiros, o nível de desconfiança vai lá pro alto. Então mineiro é desconfiado. Finalmente depois que eu entrei na Nespresso, que eu voltei lá nessa posição e eu conversei com ele de novo, eu falei: “Olha, agora nós vamos começar o programa Triple A aqui” e foi em 2011 que começou em Carmo de Minas “E um dos pontos principais nossos aqui que a gente quer modificar vocês é finalmente conseguir certificar um grupo de fazendas”. Com o peso de uma corporação por trás e fazendo pressão com eles e finalmente fornecendo assistência técnica e todos os estímulos, em 2011, 2012, final de 2012, finalmente nós conseguimos certificar quatro fazendas na região. Parece pouco, né, mas foram as primeiras, as pioneiras, e a fazenda do Álvaro foi uma delas. Ele é um produtor médio pra pequeno na região, mas é um produtor que finalmente depois desse tempo todo nos ouviu e entendeu o que ele tinha que fazer e é uma pessoa que faz com as próprias mãos. Então todas as adequações que ele fez na fazenda, desde adequações na parte de infraestrutura, de construção de um depósito de agroquímicos adequado, de modificações na parte de saúde e segurança da fazenda, colocar extintor, colocar sinalização. Ele sempre pensou em soluções baratas, não soluções caras, mas soluções que funcionavam. E nós sempre estivemos do lado dele e conversando, e finalmente em 2012 esse produtor foi certificado. Hoje ele é um produtor que tem a sustentabilidade finalmente, e que a qualidade ele já tinha antes, então nem vou colocar essa sardinha no nosso bolso. Ele tinha qualidade, ele tem, e finalmente ele foi premiado com o campeonato do Cup of Excellence no ano passado. Foi o campeão e realmente é um produtor que nos dá bastante orgulho de ver que ele conseguiu nos ouvir e nós também ouvimos no primeiro momento. E você vê que a mudança que foi na fazenda não foi uma mudança tão drástica na parte de investimento ou de econômico, mas a parte principalmente de gerenciamento da propriedade, de como ele encara o negócio dele mudou. Tanto ele como nos três outros produtores da região que finalmente certificaram e que foram nossos parceiros. Aí nós temos mais três grandes histórias de pessoas pioneiras que acreditaram no trabalho, que acreditaram na sustentabilidade e que implementaram mudanças na fazenda, que efetivamente estão aí, que continuam. E essas mudanças vão do básico, você vê quando você visita uma fazenda, a primeira coisa que te chama atenção é a parte de organização e já é um indicador se a fazenda é boa ou não. Se você encontra muito lixo, coisas fora do lugar, parece que é simples, mas não é, mas isso já te dá como visitante um primeiro impacto. Muitas vezes o que nós fazemos quando eles recebem a visita, hoje eu to na Nespresso, mas antes eu era um auditor, qualquer visitante, a primeira coisa que você vai à fazenda, você olha, é a organização, se tá tudo no seu lugar, se as pessoas estão correndo ou se tá um ambiente calmo de trabalho e isso nós conseguimos fazer, né? Parece pouco, mas não é. Conseguir organizar, conseguir dar destino adequado ao lixo, conseguir cuidar do esgoto, conseguir cuidar do meio ambiente, dos animais, gerenciar esses aspectos dentro de uma propriedade são mudanças visíveis, que você vê de um ano pro outro, realmente trabalhar e ver que essas mudanças aconteceram é bem motivador. Bem motivador. Hoje nós temos com o Álvaro um relacionamento que ultrapassa o profissional. Nós levamos visitantes pra lá, nós temos um programa de hospitalidade, levamos jornalistas e nós somos sempre recebidos pela família dele toda. Ele tem um rancho lá que são eles que cozinham pra nós e esse contato direto com eles e com as famílias é muito legal, muito diferente.
P/1 – Queria saber sobre sua relação com a Nespresso, o que o seu trabalho na Nespresso, de que maneira você acha que isso transformou ou modificou a tua vida na esfera pessoal e profissional, inclusive em termos de perspectiva de carreira.
R – Estar numa grande organização, diferente do que eu estava antes, e ter realmente essa coisa por trás de conseguir buscar informações, de ter um peso, de se eu quiser fazer um treinamento X, eu consigo, essa perspectiva de crescimento o céu é o limite. Tudo depende de mim, eu sei disso. Ter esse perfil de desafios, porque antes eu trabalhava numa empresa pequena, agora os meus desafios aumentaram de maneiras antes inimagináveis. Então profissionalmente ter esse desafio é muito motivador. E realmente o impacto que eu posso causar é muito maior. Hoje o universo de fazendas que eu posso modificar é muito maior do que eu tinha antes. Por outro lado, a responsabilidade também é grande. Hoje eu sou a única pessoa do time de café verde aqui no Brasil. Antes de mim era um colombiano que cuidava da mesma posição, ele fazia Brasil e Colômbia, era uma missão impossível. A partir de 2011 eu entrei e daí pra frente eu comecei a realmente entender o que era pra dizer que hoje finalmente eu conheço a realidade, eu sei qual que é o desafio, mas é muito motivador. Justamente é uma coisa que você vê que você pode impactar as vidas e a realidade de muita gente diferente. Isso te dá uma segurança e uma vontade de trabalhar muito grande, de ter essa possibilidade nas mãos. Aí tudo depende de você, de querer, de estar disposto, de ter boa vontade, de ter determinação e coragem, né? Mas isso é muito bom. Eu tenho o apoio da empresa pra fazer isso, lógico que seguindo as diretrizes, mas eu tenho apoio total pra justamente conseguir fazer o que eu quero. Então tenho a liberdade, tenho desafios, tenho motivação, o que me falta é tempo. Infelizmente eu não tenho tempo pra fazer tudo, então eu tenho que seguir algumas prioridades e infelizmente por vezes acabo não fazendo tudo que eu gostaria. Essa é uma coisa que eu gostaria de ter mais tempo pra justamente conseguir e mais tempo pra pensar também. Muitas vezes você está lá no dia-a-dia no operacional, às vezes é bom você ter um tempo pra pensar, pra ficar atrás, assim, e ver a coisa de fora, é daí que saem as boas ideias, os bons insights.
P/1 – E fazendo um balanço assim o que você acha que você teve de aprendizado pessoal e profissional nessa experiência?
R – Principalmente a parte de qualidade de café e o gosto pela qualidade. Isso é uma coisa que é muito forte na Nespresso. É um pilar que é inabalável, e quando você chega à empresa e que você vê isso, porque eu tinha muito conhecimento na parte de sustentabilidade das fazendas, mas quando eu entrei eu vi que esse pilar era muito forte. E eu comecei a ter contato com a outra ponta também, porque eu tinha contato com as fazendas e agora eu tenho contato com as boutiques, com os baristas, com esse mundo da outra ponta do café. Conhecer isso foi realmente um desafio. E melhorar profissionalmente a parte sensorial, de saber degustar um bom café. Claro que eu não sou o responsável por fazer a classificação, mas depois que eu entrei aqui na Nespresso eu senti a responsabilidade de realmente saber o que eu tou falando, e saber aí nesse caso é ter a experiência, saber diferenciar tecnicamente um bom café de um café não tão bom. Então essa foi a grande mudança, trabalhar profissionalmente nesse lado da qualidade.
P/1 – Tá certo. Eu vou encaminhando agora, Guilherme, pras questões finais. São duas questões que são de fechamento, a gente sempre faz pra todos os depoentes, mas antes eu queria saber se tem alguma coisa que a gente não tenha perguntado e que você gostaria de falar. Pode ser de qualquer esfera, pessoal ou profissional.
R – Deixa-me ver. Eu acredito que não.
P/1 – É isso mesmo, você acha?
R – É.
P/1 – Então a penúltima pergunta é quais são os seus sonhos hoje. Só isso.
R – Bom, o primeiro sonho é conseguir educar os meus filhos de uma maneira adequada e que eles se tornem pessoas exemplares no futuro. Meu segundo sonho é justamente profissionalmente de crescer e conseguir consolidar minha posição aqui e efetivamente conseguir modificar as realidades que eu consegui impactar, dentro do possível. Acho que são os dois grandes sonhos do momento. Eu tenho sempre sonhos de viajar, eu adoro viajar, tou sempre viajando. Tudo que eu tenho de recurso eu guardo para viagens. Então a minha vida é sempre pautada por esses minisonhos que é “qual lugar que eu vou conhecer agora? Qual lugar que eu vou conhecer agora?”, mas esses são os sonhos mais de curto prazo, né? Eu acho que os sonhos maiores de longo prazo são justamente esses, conseguir educar os meus filhos da melhor maneira possível e profissionalmente realmente é justamente ter essa consolidação do posicionamento aqui no Brasil.
P/1 – E por fim, como é que foi contar a sua história, como é que foi dar o depoimento pra gente aqui hoje?
R – Ah, eu vejo que sempre que eu conto a minha história, muitas vezes ela é bastante inspiradora pra algumas pessoas. Justamente por ter tido coragem de ir atrás do que eu achava que era o meu caminho, de não ter ele tão claro desde o início e ter tido coragem de mudar quando foi possível, ter essa atitude. Quando eu conto a história as pessoas realmente não acreditam, porque falam: “Você devia ter escrito um livro”. Não é uma história comum, mas eu acredito que nenhuma história é comum, não. Todas as histórias são boas para serem contadas e que elas podem agregar algo na vida das pessoas. Normalmente quando eu conto a minha história eu acredito que isso acaba tendo um efeito positivo nas pessoas de ter... Acho que um dos pontos principais é ter tido coragem pra mudar, ter acreditado num sonho e principalmente ter realizado um sonho. Acho que quando você realiza, ter um sonho é muito bom, mas realizar um sonho é melhor ainda. Te dá uma visão de vida e de mundo diferente, né? É importante ter sonho, muito importante ter sonho.
P/1 – Tá certo. Muito obrigada então.
R – Obrigado a vocês.
P/1 – A gente encerra aqui. Foi ótimo. Espero que você tenha gostado.
FINAL DA ENTREVISTA
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