Projeto Memória da Literatura Infanto-Juvenil
Entrevistador por Thiago Majolo
Depoimento Bartolomeu Campos Queirós
Local Belo Horizonte, 13/02/2009
Realização Instituto Museu da Pessoa
Depoimento MLIJ_HV035
Transcrito por Maria da Conceição Amaral da Silva
Revisão: Luiza Gallo
2º Revisão: Nataniel Torres
P – Bartolomeu, a gente queria, para começar, que você falasse o nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Bartolomeu Campos de Queirós, nascido em Papagaio no dia 25 de agosto de 1944.
P – Fala o nome dos seus pais, o que eles faziam.
R – O meu pai ele era Geraldo Queirós, e era um transportador de manteiga de Pitangui para o Rio de Janeiro.
Ele era caminhoneiro.
Minha mãe era uma senhora de casa, tomava conta da gente, dos filhos.
E chamava Maria Campos de Queirós.
P – Eles se conheceram como? Sabe a história deles?
R – Pitangui é muito perto de Bom Despacho.
E como meu pai trabalhava com caminhão, com transporte, eles se conheceram nessas idas e vindas dele à Bom Despacho.
P – E seus avós, suas lembranças deles conta um pouquinho, por parte de pai, por parte de mãe.
R – Eu tinha um avô, de parte de pai, Joaquim Queirós, fui criado por ele durante um certo tempo.
Morava com ele.
Eu era o neto preferido dele.
E ele era um cara que ele ganhou a sorte grande na loteria.
Nunca mais trabalhou.
E era um pensador.
Ele vivia na janela da minha casa olhando o povo passar e observando a cidade e escrevia nas paredes da casa tudo o que acontecia.
As notícias que ele recebia de quem viajou, de quem casou, de quem morreu, de quem aconteceu um desastre, uma coisa qualquer.
Então ele escrevia nas paredes da casa.
Foi aí também que eu aprendi a ler com ele.
O meu primeiro livro foi a parede da casa do meu avô.
Lá eu aprendi a ler.
E meu avô por parte de mãe chamava Sebastião Brasileiro Fidelis Campos, era homeopata e tinha um olho de vidro.
Que também era uma coisa que me intrigava muito: como é que ele tinha um olho, para que é que servia um olho de vidro? E era um cara mais sério, mais reflexivo.
Andava só de terno branco de linho com uma bengala.
E minha avó, que chamava Lavínia, mulher dele, a função dela era lavar os ternos brancos, e é por isso que ela chamava Lavínia; lavar os ternos e passar para ele sair.
Ele era mais rigoroso, mas eu me dava bem com ele também.
P – E esse aprendizado da leitura foi instintivo, seu avô foi apontando? Como é que foi esse.
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R – Eu perguntava pro meu avô: "Que palavra é essa? Que palavra é aquela?" E ele ia me contando e eu ia decifrando.
E tinha o muro do quintal, que eu usava o carvão que sobrava do fogão à lenha.
E eu ia escrevendo no muro as coisas que eu ia aprendendo, repetia no muro da casa dele.
E com isso eu aprendi a ler.
E meu avô me ensinava que com as 26 letras do alfabeto eu podia escrever tudo o que eu pensava.
E eu achava muito pouca letra para escrever tudo.
Então eu estava sempre pensando uma palavra que eu não desse conta de escrever.
Era sempre isso.
Então meu exercício de infância com as palavras era esse, de pensar uma palavra que eu não pudesse escrever.
E até hoje eu acho que é isso, que é essa tentativa que eu faço na literatura.
Saber que a palavra não esgota, a palavra nunca escreve tudo que a emoção sente.
P – Bartolomeu, depois dessa primeira leitura da parede, qual era, quais eram os livros que começaram a cair na sua mão, entrar assim.
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R – Minha mãe era uma leitora, lia uns livros que circulavam naquela época.
Era a coleção do Clone, A Cidadela, Mulheres de Bronze.
Naquela época não tinha literatura infantil, a gente não se preocupava com isso.
Tinha o livro da escola que eu recebia, mas não era um livro literário.
E eu ia lendo o que sobrava lá em casa da minha mãe.
Eu já entrei a ler uma literatura dita, para adulto.
Eu não li literatura infantil.
Eu só venho ler Monteiro Lobato depois de muito tarde, depois que eu já estou envolvido com a literatura infanto-juvenil é que eu me detenho na obra do Monteiro e começo a me interessar por isso.
Naquele tempo não tinha literatura infantil.
Tinha os contos de fada que chegavam da Europa.
Que chegavam na escola, que a professora lia.
Que a gente lia também.
Mas eram traduzidos e não era uma literatura brasileira nem nada.
Então era literatura europeia.
P – E você tinha algum apreço especial por alguma, ou conto de fadas, ou obras da sua mãe?
R – Não, eu sempre fui um cara que lia tudo.
Li a Bíblia muito cedo, que tinha lá em casa.
Lia os pedaços de jornal que meu pai trazia da cidade embrulhando alguma coisa.
Eu me interessava muito pela leitura e lia tudo que caía na minha mão.
P – Eu tenho uma curiosidade ao você falar isso porque tem muitos autores que citaram a Bíblia como um livro proibido para eles quando eram pequenos.
Porque os pais achavam que era um pouco pesada demais, assim.
R – Não, lá em casa a gente tinha essa liberdade.
Não havia censura de leitura não.
O que você tivesse gostando você ia lendo.
Tinha uns livros também de história americana, que meu pai, às vezes lia.
Que era do Roosevelt, essas coisas americanas.
P – E consegue descrever um pouco da sua casa fisicamente, como é que ela era?
R – A minha casa era uma casa colonial, que tinha as janelas que davam para a rua.
A porta também entrava para a rua.
Tinha três degraus para subir a escadinha da casa.
E tinha um corredor muito grande.
Que esses corredores de um lado e do outro eram quartos e salas.
E lá no fundo tinha uma copa muito grande; e uma sala de jantar muito grande ligada à cozinha.
Depois tinha uma área externa coberta também.
E ali que eu passava a infância, nessa casa.
Era uma casa grande, de cômodo grande, que a gente tinha espaço para brincar dentro de casa quando chovia.
Era uma casa agradável, com telha colonial.
Hoje ela não existe mais, não tem mais.
P – E seus pais vão para Papagaio, eles vão fazer o que lá?
R – Meu pai ficava mudando de um lado para outro.
Eu nasci em Papagaio, depois eu morei em Pará de Minas, morei um tempo em Pitangui com meu avô.
Depois mudamos para Bom Despacho.
Depois eu fui estudar em Divinópolis, porque em Papagaio não tinha colégio, não tinha curso ginasial.
Estava interno no colégio.
Fico interno cinco anos no colégio São Geraldo, que era um colégio francês que eu estudo interno.
E fiquei vagando por aí.
P – E não causava nenhum problema de relacionamento, de não ter, ter menos amigos? Como é que era a sua vida?
R – Eu tinha muito amigo.
Eu sempre fui um cara sociável e amigo.
No colégio eu era muito estudioso.
Eu tirava sempre as primeiras notas da classe e tudo.
Eu era assim muito bem cercado, rodeado dos meninos, dos colegas.
Toda a vida foi isso.
Nunca tive esse problema.
Eu nunca tive problema de adaptação.
O pessoal fala de colégio interno, eu tenho a maior saudade do tempo que eu passei interno no colégio.
Era um tempo muito feliz.
P – Conta um pouquinho dele para a gente, se você puder contar o ambiente do colégio, desse colégio interno.
R – O ambiente do colégio era rigoroso.
Tinha uma disciplina extremamente francesa.
A gente saía aos domingos depois do almoço para passear na cidade.
Saía de uniforme.
E recebia um dinheiro que o pai da gente autorizava o colégio dar para a gente ir ao matinê, ia tomar sorvete e voltava.
Lá pelas cinco horas da tarde voltava a tempo de jantar no colégio.
Saía uma vez por semana quem tinha nota boa em procedimento.
Todo sábado tinha uma hora cívica que lia as notas da semana sua para você ver se você conversou na sala de estudo, na fila, você no dormitório, no refeitório.
Era um tempo muito rigoroso.
Era uma disciplina braba.
Mas a gente era muito feliz no colégio.
P – E esse cinema o que é que era que vocês iam ver? Você lembra ainda?
R – Ah, era seriados.
Eram uns filmes de brasileiros, umas coisas assim.
Mas era matinê, que a gente chamava matinê.
Então geralmente eram uns filmes de bang-bang, umas coisas assim que a gente ia ao cinema.
Tinha o Cinema Divinópolis e o Cinema Popular.
Popular era um cinema muito grande, e a gente ia mais no Cinema Popular e via esses filmes.
P – E nessa época a literatura já começa a mudar um pouco, começa _______
R – Ah, mas aí quando eu entro no colégio interno eu encontro um professor, o Professor José Dias Lara.
Então com 11 anos de idade eu já começo a ler Machado de Assis.
Ele era muito bom professor.
Eu acho que o que eu sei hoje de literatura eu devo a ele, à introdução que ele fazia com a gente de José Lins do Rego, de José de Alencar.
E ele analisava a obra.
E ele era muito entusiasmado com aquilo.
Era um cara muito rigoroso nas leituras.
E eu já entro lendo esse tipo de literatura.
P – E já tinha alguma coisa de escrever? De querer.
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R – Tinha um jornal no colégio, que a gente fazia naquele tempo.
Eu escrevia de vez em quando.
Mas eu não escrevia muito, escrevia pouco.
Eu nunca pensei em ser escritor.
A minha vida de escritor é uma vida que só aparece mais tarde.
Eu, toda a vida fui um bom leitor, gostava muito de ler.
Até hoje eu digo sempre que eu acho que ler é superior a escrever.
Eu gosto muito mais de ler do que escrever.
E eu só vou escrever um texto literariamente, com a perspectiva literária quando eu estou com 27 anos.
Eu tinha saído do Brasil nessa época, que eu passei por Divinópolis, passei por Juiz de Fora estudando, depois eu fui para Paris.
E em Paris eu estudava no Instituto Pedagógico Nacional.
E no Instituto Pedagógico Nacional, naquele tempo e mesmo em Paris naquele tempo, a gente não tinha aula nem quinta e nem domingo.
Os dois dias de folga da semana.
Não era sábado e domingo, era quinta e domingo.
E eu comecei a ficar muito à toa quinta e domingo.
E comecei a ter saudade do Brasil.
Já tinha um tempo que eu estava na Europa.
Saudade da minha casa.
Naquele tempo o mundo não estava globalizado, a comida era muito diferente.
Os meus amigos.
O conforto do Brasil era maior do que lá.
Então comecei a ter saudade do Brasil.
Então toda quinta-feira e domingo eu pensava a mesma coisa: que eu queria voltar para o Brasil, que eu queria encontrar com meus amigos, eu queria comer feijoada, eu queria não sei o quê.
Aí um dia eu falei comigo assim: "Ô, cara, você está pensando a mesma coisa todo fim de semana.
Por que é que você não pensa uma coisa que você nunca pensou?" Então eu penso o meu primeiro livro, que é: O Peixe e o Pássaro.
Então eu faço meu primeiro trabalho.
E esse trabalho foi feito lá.
E quando eu volto para o Brasil eu entro num concurso literário que tinha aqui em Belo Horizonte pelo primeiro ano, que era o João de Barro.
O João de Barro era um concurso que tem até hoje, prêmio João de Barro de Literatura.
Entrei com esse texto: O Peixe e o Pássaro, e ganhei o primeiro lugar.
E como eu ganhei esse primeiro lugar, do júri fazia parte uma grande poetisa mineira, que era Henriqueta Lisboa.
E a Henriqueta que me telefona para poder me comunicar que eu tinha sido o primeiro do concurso e que ela queria me conhecer.
E aí eu fico amigo da Henriqueta, que foi assim a minha grande mestra na literatura.
Que eu conversava longamente com ela sobre literatura.
E ela morava nesse apartamento.
Eu moro aqui.
Ela depois morre e eu fico com o apartamento dela.
E a Henriqueta foi assim a minha grande mestra, que me dava as dicas do que era escrever para criança, das reflexões necessárias e tudo.
E quando eu fiz O Peixe e o Pássaro, havia um crítico literário do Jornal do Brasil, que chamava Dom Marcos Barbosa, esse livro tinha sido editado e chegou na mão dele.
E ele fez uma crônica no Jornal do Brasil recomendando ao Carlos Drummond de Andrade que lesse o livro, que era um livro que falava muito da clausura.
Era a opinião dele.
E aí as editoras começaram a me pedir texto.
Eu comecei a escrever.
Mas até então eu não pensava em escrever, não.
P – Então qual que era o sonho de infância? Tinha um sonho? Era um sonho, nem que for aquele mais maluco possível, existia algum sonho?
R – Eu pensava que eu ia ser caminhoneiro, que nem meu pai.
Eu gostava muito de caminhão.
Meu pai me ensinou a dirigir muito cedo.
Ele botava almofada, um travesseiro em cima das pernas dele no caminhão, me assentava em cima, me entregava o volante do caminhão.
E eu ia brincando com aquilo.
Eu, a vida inteira dirigi.
Eu nunca soube quando eu aprendi a dirigir.
Porque era aquela coisa do meu pai comigo.
Eu tinha um fascínio muito grande quando o meu pai me levava para viajar com ele.
Eu gostava muito.
No entanto, eu tinha muito medo de escola.
Eu, na minha infância, escola para mim tinha um medo danado.
Porque minha mãe falava comigo que eu tinha que estudar muito, e estudar muito tempo, e frequentar muito aulas, ser muito bom aluno, para eu nunca ser igual ao meu pai.
E o que eu mais que eu queria ser era igual ao meu pai.
Então eu tinha um medo danado da escola roubar de mim a vontade de ser meu pai.
Então a escola para mim foi sempre um lugar meio perigoso.
Mas depois eu mudei de cabeça.
P – Dessas viagens vocês iam longe, Bartolomeu?
R – Ele me levou uma vez para conhecer o Rio de Janeiro, para ver o mar.
Porque ele contava as histórias de viagem.
E aí ele me levou para conhecer o mar, que eu tinha muita curiosidade para ver o mar e ele levava.
E saía às vezes com ele pelas fazendas da redondeza para pegar leite para levar para a fábrica de manteiga, aquelas coisas que fazia.
Só os dois.
P – Mas tinha mais irmãos, né?
R – Tinha.
Nós éramos seis irmãos.
P – Conta um pouquinho como é que era o relacionamento nessa, com seis irmãos ali na casa?
R – Os seis irmãos eram quatro mulheres e dois homens, eu e o José.
O José já morreu, e hoje só eu de homem.
E era um relacionamento muito de criança mesmo.
Muito cheio de briga, muito cheio de brincadeira.
E a gente brigava às vezes na casa do meu avô.
E meu avô era muito engraçado, meu avô por parte de pai.
Às vezes eu brigava com meu irmão, pegava a faca e saía correndo atrás dele, aí meu avô me cercava e falava assim: "Não, faca não é bom.
Vem cá que eu vou te dar um machado, que com o machado você mata ele de uma vez só.
" Aí a gente perdia a graça.
A gente ia jogar pedra um no outro porque brigava, meu avô falava: "Não, essa pedra está pequena, vem cá que eu vou te dar um tijolo.
Aí um tijolo é bom porque você mata ele de uma vez só.
" E aí cortava as brincadeiras nossas.
Meu avô por parte de pai era um cara muito bem humorado.
Então a gente vivia uma vida assim de brincadeira.
Tinha um córrego que passava no fundo do quintal da casa do meu avô e que a gente nadava muito nesse córrego.
E colhia café.
Meu avô tinha uma plantação de café no fundo do quintal.
Era uma casa muito grande, com um grande quintal.
Era quase que uma quinta.
E a gente colhia muito café, ajudava naquilo.
Tudo de brincadeira.
P – E as comidas que você falou que sentia falta.
Quem cozinhava melhor era sua mãe, sua avó? Quem é que tinha essa.
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R – Minha avó cozinhava legal.
Minha avó era uma cozinheira boa.
E fazia essa comida mineira mesmo.
Essa comida mais tradicional nossa de todo dia.
P – Você ajudava, você ficava só de olho, como é que era?
R – Só ficava de olho.
Não tinha esse negócio, não.
Ficava olhando se a carne do meu irmão era maior do que a minha.
Então, quem ganhou o pedaço maior, quem ganhou uma omelete maior do que o outro.
Essas coisas que a gente ficava reparando no prato do outro para saber.
Hoje eu sou um bom cozinheiro.
Eu sou um bom, um expert de cozinha.
Mas isso eu aprendi depois que fui para a Europa.
Comecei a cozinhar lá para mim, fazer pesquisa lá, e tal.
Hoje eu cozinho menos.
Mas, cozinho só quando tem alguém convidado, aí vou para a cozinha.
Mas cozinho, cozinho bem.
Cozinho para o governador de vez em quando.
Então aí vai.
Mas essa coisa da cozinha me fascina um pouco, me fascina.
P – E, Bartolomeu, desses seus muitos amigos que você me falou que você tinha, tinha algum assim, ou alguns muito especiais que essa lembrança ficou muito forte, na época de infância ou adolescência mesmo?
R – Eu tenho amigos hoje que tem 50 anos, que a gente é amigo; 45, 50 anos, que a gente continua encontrando até hoje que a gente é amigo.
Que a gente encontra, conversa, sai.
São amigos assim muito antigos que eu tenho dessa época também.
P – E tinha uma coisa importante para o leitor que era compartilhar leituras, discutir obras, ou então para bater papo sobre isso?
R – Eu tinha um amigo na infância, ele era negro, e ele era filho de uma empregada lá de casa.
Essa empregada era chamada Maria Poderosa.
Porque ela era casada com o João Poderoso, que era o sobrenome dele.
Então ela ficou com o apelido de Maria Poderosa.
E ele era meu amigo.
Ele era da minha idade, ele era negrinho.
E ele me acompanhava para tudo quanto é canto.
A gente passeava muito para matar passarinho no mato, pra fazer arapucas para prender passarinhos.
E ele tinha apelido de Pintassilgo.
E o Pintassilgo foi o meu grande amigo de infância.
Mas ele não ficou bem da cabeça quando ele cresceu.
E hoje ele é um cara meio tido como louco em Papagaio.
Mas continua morando lá.
Está lá ainda.
P – E esse era um parceiro de leituras também?
R – Eu lia para ele.
Ele gostava que eu lesse para ele.
A gente era muito amigo.
P – Tinha muito isso na sua casa de mãe ler para o filho, a sua mãe ler para vocês ou não?
R – Não tinha, não.
Tinha meu avô, esse por parte de pai, que contava muita história, ele adorava.
E tinha a minha avó também que contava história.
Mas a minha vó era uma mulher que não gostava de solidão.
Ela não ficava sozinha nem um minuto.
Ela tinha sempre que estar rodeada de alguém.
Ela então, às vezes, ia fazer as necessidades fisiológicas dela e botava o penico em cima da cama, assentava.
Cobria com aquela saia grande, que elas usavam, e botava a gente em volta e contava história, para ela não ficar sozinha.
Então ela inventava histórias.
Mas eram histórias muito inventadas da cabeça dela.
Muito história de alma do outro mundo, história de santo.
Era assim, era isso.
Mas a gente gostava dela.
E meu avô contava histórias, às vezes algum conto de fada que ele sabia, uma coisa ele contava.
Também de tradição oral; contava caso das pessoas, das pessoas que existiam naquele tempo.
Então ele contava.
P – E essa vizinhança é muito próxima então? Todo mundo se conhecia, todo mundo.
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R – Todo mundo se conhecia.
Era tudo muito perto, um na casa do outro.
A gente estava sempre na casa do outro, sempre.
Almoçando na casa do outro, o outro almoçando na casa da gente.
Era uma troca muito grande de lugares.
Porque Papagaio era uma cidade pequena.
Hoje ela é uma cidade grande, porque Papagaio hoje é a maior produtora de ardósia do Brasil.
Então ela cresceu muito, ela tem muita indústria, muito banco, muita coisa.
Ela cresceu muito.
Mas na minha infância Papagaio tinha três ruas só.
Só a rua de Baixo, a rua de Cima e a rua do Meio.
Eram três ruas.
Não tinha calçamento.
Eram ruas empoeiradas.
E então era todo mundo era junto, todo mundo conhecia todo mundo.
Todo mundo era muito amigo.
Naquele tempo não tinha luz elétrica ainda.
Não havia luz elétrica.
Depois a luz chegou, mas foi uma luz puxada de Pitangui para lá.
E não tinha telefone.
Tinha um posto telefônico que a gente ia lá fazer ligação.
Demorava um dia para falar em Belo Horizonte, era muito demorado.
Tinha telefonista.
Quando alguém chamava a gente, tinha que ir na casa da gente chamar para ir lá no posto atender, aquela coisa toda.
Então tinha uma agenciazinha de Correio, e uma farmácia.
Era muito pequena a cidade.
P – Essa memória, Bartolomeu, de um ambiente interno ainda, a casa, então ainda sem luz.
É muito diferente, né, depois que a luz chega? Porque as cores, as sombras, são muito diferentes.
R – De noite a gente tinha lamparina, que usava mais, o querosene dava a luz.
Se a gente dormia com a lamparina acesa, ficava com o nariz todo preto da respiração do querosene.
Devia fazer muito mal para a gente aquilo.
Então quando morria alguém na cidade, que de noite a gente ficava com medo da alma dele, e que tinha que dormir com a lamparina acesa, era todo mundo no dia seguinte com o nariz preto por causa do querosene.
Então era aquela coisa da luzinha.
Na infância a gente tinha muito medo de alma do outro mundo, essas coisas que acontecia.
E quando não tendo luz também o mundo fica muito cheio de fantasmas.
Até o capote que está pendurado na porta vira uma pessoa.
A sombra de alguém vira uma pessoa, vira um fantasma.
Os barulhos ganham novas dimensões.
Às vezes um gambá que passava pelo forro da casa já virava o demônio.
Então com a falta de luz isso tudo acontecia.
E os horários diferentes.
Dormia-se mais cedo, levantava-se muito cedo.
Era um tempo, era outro tempo.
P – Então a gente vai sair um pouco desse tempo aí, para começar entrar um pouco no tempo da adolescência.
Mais para a frente você vai para Paris, mas com que idade? Com 18, 20?
R – Não, eu vou para Paris com 25 anos.
Eu vou com uma bolsa da ONU para estudar.
Eu fiz Filosofia aqui.
E fui fazer o Instituto Pedagógico de Paris.
Também não fiquei ligado a nada: nem à Filosofia, que eu não sou filósofo porque não pratico isso.
Eu gosto de ler Filosofia ainda, às vezes.
Alguns autores: Bergson, Camus, gosto muito.
Alguns filósofos gosto de ler, mas não pratico e nem tampouco a Pedagogia.
Eu virei escritor mesmo.
Hoje eu passo o tempo envolvido com a Literatura.
É só isso.
P – E, mas como é que foi essa decisão de fazer Filosofia, você lembra disso? Essa escolha da onde surgiu?
R – Eu gostava.
Eu sempre fui um cara mais reflexivo, mais indagativo, mais questionador.
Eu nunca ri à toa.
Eu nunca achei muita graça no mundo, não.
O mundo para mim sempre foi uma coisa meio pesada.
Eu acho que a lucidez sempre foi uma coisa que me acompanhou muito.
E a lucidez é uma droga violenta.
Você estar lúcido o tempo inteiro, encarando tudo.
Então isso me dificultou um pouco a procurar uma coisa para fazer, que fosse reflexiva mesmo.
E a Filosofia me parecia uma coisa reflexiva.
Então foi aí que eu decido pela Filosofia.
P – E aí muda, sai da casa dos pais, sai, vai morar em campus, como é que foi essa.
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R – Eu já tinha passado um tempo em Juiz de Fora.
Eu saio do curso ginasial em Divinópolis e vou para o convento dos dominicanos em Juiz de Fora.
Lá estudo um tempo com os dominicanos e depois eu venho para Belo Horizonte.
E aí eu começo a estudar e trabalhar.
Já começo a trabalhar também no Centro de Recursos Humanos, que era uma escola de experiências pedagógicas do Ministério da Educação.
Eu tinha um chefe que era um grande poeta, era o Abgar Renault, que era o meu chefe.
E a gente tinha uma relação muito boa.
E ele me aproximava muito da poesia.
Ele conversava comigo de vez em quando sobre poesia.
Ele, um cara que me marcou muito também.
E ele representava o Brasil na UNICEF naquele tempo.
E aí ele me consegue uma bolsa para Paris para, aí eu vou embora para Paris.
P – Bartolomeu, você citou uma coisa que é importante na sua obra.
Eu queria que você retomasse a poesia, né? Essa coisa do sentido poético que tem muito na sua obra, da palavra.
Quais as suas leituras de poesia de primeiras, a época que você está descobrindo.
Conta um pouco a trajetória de leituras poéticas suas.
R – Eu sou muito ligado à leitura da poesia.
Até hoje leio.
Mas o início da minha poesia foi aquele mesmo de todo mundo: Cloc, Cloc, Cloc Tamanquinho, da Cecília Meirelles.
Foi A Andorinha, da Henrique Lisboa.
Foram aquelas coisas que vinham no livro didático.
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naquele tempo não tinha livro didático, tinha as antologias.
E eu sempre gostei da poesia.
A poesia para mim é uma escrita extremamente sofisticada, é a linguagem mais sofisticada que tem porque não define nada.
A poesia é mais ou menos um crepúsculo, não clareia e nem escurece, deixa tudo em suspense.
A poesia para mim tem muito do sonho.
Quando você estuda o sonho dentro da obra de Freud e sabe que é um deslocamento e uma condensação, a poesia também para mim é um deslocamento e uma condensação.
Ela condensa tudo.
Ela é densa.
Ela reduz tudo e desloca tudo.
Então eu acho que a poesia está na linha do sonho.
E gosto muito da poesia.
Leio muita poesia hoje.
Leio, sigo a poesia, gosto dela.
P – E desse seu começo com a poesia mais adulta aí, foi o quê? Lembra quais foram os autores?
R – Eu leio e gosto muito da poesia do Garcia Lorca.
Leio muito o Paul Éluard, Fernando Pessoa, um pouco, Bandeira, João Cabral, Manoel de Barros, Cecília Meirelles, Henriqueta Lisboa.
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Ah, e muita poesia.
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Carlos Drummond, evidentemente, Ascenso Ferreira, que gosto muito também.
P – E quando você vai escrever o primeiro livro, O Peixe e o Pássaro, esse trabalho de linguagem já surge na sua cabeça como um trabalho de linguagem, uma prosa mais voltada para a poética, como é que surge na cabeça isso?
R – Eu acho que a minha literatura, tem um pouco a ver com a prosa.
Ela pode ser chamada como alguns críticos chamam de prosa poética porque também eu faço muito exercício da contenção.
Eu não digo muito.
Porque se eu disser muito eu esgoto a fantasia do leitor.
E eu prefiro deixar também que o leitor fantasie.
Então eu sempre reduzo o texto o máximo que eu posso para deixar o leitor entrar no texto comigo.
E aí já é uma coisa ligada muito à filosofia.
Porque na filosofia quando você trabalha uma linguagem, a fenomenologia da linguagem você tem o Foucault, que vai dizer que o que sujeito lê não é a frase que eu escrevo, o que o sujeito lê é o silêncio que eu deixo entre as palavras.
Ali é que a literatura se configura.
Então esse silêncio eu deixo ele bem tenso, bem pouco explicativo, para o leitor encontrar o espaço dele.
O leitor participar da obra.
Acho até que o fenômeno literário é esse, esse encontro do leitor com o escritor, e que constroem junto uma terceira obra que nunca vai ser editada.
Aí que ela está a literatura para mim, é nessa obra não editada.
P – E essa preocupação então já surge no primeiro momento quando você fala.
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R – Surge, nesse primeiro momento.
E também o seguinte, é uma coisa antiga que eu falo sempre, mas a Henriqueta Lisboa me disse logo no início do meu trabalho: ela falava que gostava do meu trabalho muito porque a natureza era muito sábia, a natureza dada; a natureza sabia a hora de florir, de dar o fruto, da colheita, de amadurecer, de chover, a hora das enchentes.
A natureza sabe tudo.
A natureza divide o tempo em estações e é muito sábia.
E com essa sabedoria toda exerce e faz, pratica independente da gente.
A natureza nunca fez um sol para adulto e um para criança, rio para adulto e rio para criança, árvore para adulto e uma para criança.
Então não é inteligente fazer uma literatura para adulto e uma para criança.
Ou é literatura, ou não é literatura.
Isso é uma coisa que ela dizia sempre.
E é também uma coisa até que Cecília Meirelles mais tarde aborda, quando ela faz uma série de conferências sobre a literatura infantil - ela tem um livro publicado até pelo governo de Minas Gerais, que é A História da Literatura Infantil, - ela fala isso: que literatura para criança é aquele livro que a criança encontra na estante, lê e gosta.
E esse livro é para ela.
Então eu procuro muito uma literatura sem fronteira.
Às vezes estou sendo lido na escola pelas crianças e o mesmo livro está sendo trabalhado na universidade, e o mesmo livro é lido por um grupo de terceira idade.
E eu persigo também uma literatura sem fronteira.
Uma literatura que sirva para todo mundo.
Eu não quero uma literatura com destinatário.
Porque literatura, se ela for com destinatário, ela está tendo serventia.
E a literatura não serve para nada.
Então eu acho que para mim é isso.
Então a prosa poética para mim tem essa vantagem, de eu fazer o exercício da contenção.
P – Então, Bartolomeu, continuando.
Vou contar assim, você lança o primeiro livro, O Peixe e o Pássaro, volta para o Brasil e diz que agora começam a te ligar, pedir texto.
Era o momento do boom mesmo.
R – E aí eu faço o segundo livro chamado Pedro, que ganha o Selo Nacional, o Selo de Ouro da Fundação.
Aí os editores querem mais texto meu.
Aí eu escrevo um livro que chama - eu não sei a ordem não, mas esses eu sei - um livro que chama Onde Tem Bruxa Tem Fada.
Que esse livro é até muito interessante, porque é a hora que eu descubro que eu faço uma literatura sem fronteira.
Porque quando eu escrevo Onde Tem Bruxa Tem Fada, foi na época da ditadura.
E ele ganhou um prêmio Melhor Para Jovem, da Fundação Nacional do Livro, e eles resolveram montar um espetáculo de teatro.
E esse espetáculo de teatro até foi muito bom, que era um grupo de dança que resolveu fazer um teatro, um espetáculo de balé, que era também um espetáculo de teatro que tinha texto.
Que era uma direção do Paulo Afonso Grisolli, com trabalho de corpo do Klaus Vianna, com música da Cecília Conde.
E, naquela época, a censura deu 18 anos.
Então era um livro que as crianças liam, mas o espetáculo era de 18 anos.
Então aí eu faço isso e com isso eu começo a escrever.
Vou fazendo, vou escrevendo e continuo trabalhando na educação, no Laboratório de Pesquisas Educacionais com as crianças.
Mas aos poucos a gente vai acumulando coisas e não vai tendo tempo.
Faz uma coisa ou outra.
Aí eu escolhi mesmo a literatura para fazer.
P – Agora, Bartolomeu, esse momento da sua volta, que coincide com seu primeiro livro, é o momento de um grande acontecimento da literatura chamada infanto-juvenil brasileira?
R – É a década de 1970, que tem o boom da literatura do Brasil.
Que vem a Ana Maria Machado, que vem a Ruth Rocha, que vai surgir essa turma toda.
Eu era mineiro e escrevia pelo prazer de escrever.
Não sabia de nada de outros escritores que faziam a mesma coisa.
A minha relação com eles é uma relação que vai acontecendo aos poucos, devagarinho, uma coisa ou outra.
Os prêmios que vou ganhando e eu tenho que ir receber.
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Então fico conhecendo as pessoas.
Mas não é uma chegada assim.
Eu não me considerava escritor, não.
O Monteiro eu já tinha lido antes.
Mas aí eu começo a me interessar e ler um pouco da literatura infantil, dita infantil, brasileira.
E já entro na Ruth, na Ana Maria, na Marina Colasanti, também dessa época.
E vou trabalhando nisso.
P – E essa, quer dizer, essa leitura que é muito feita, você mesmo disse, quer dizer, a ditadura, _____ é um caso que muitas vezes deixou passar isso.
Como é que é essa.
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R – A política brasileira nesse período dos anos 1970 está tão preocupada com prisões, com os adultos, com os teatros, com os espetáculos, que a literatura foi passando alguma coisa.
O Reizinho Mandão, da Ruth Rocha, que era uma crítica severa da ditadura, rodava o Brasil inteiro.
Era um livro ousadíssimo.
Quer dizer, então passava-se alguma coisa.
Entrou o Onde Tem Bruxa Tem Fada, eles não percebiam isso, não.
A literatura ganha mais uma função.
P – E você muito ligado à Educação tinha essa renovação do pensamento da criança, que hoje em dia começa a ser revisto de novo, dela construir o conhecimento, dela ir atrás, poder ler sem intermediação.
Como você via isso, você pensava nisso?
R – Nós éramos um grupo de trabalho de professores que pensávamos a educação.
Nós éramos do Ministério da Educação e nós podíamos inventar o que a gente quisesse fazer com as crianças em todas as áreas.
Se desse certo, o Ministério distribuía no Brasil inteiro a experiência.
Então eu experimentava o tempo inteiro também.
Então tudo o que eu pensava era possível fazer.
Tudo que eu pensava essa escola me dava condições da fazer.
Então eu fui alfabetizador, eu trabalhei com alfabetização, eu trabalhei muitos métodos.
E sempre nesse contato direto com a criança.
Mas eu sinto que a criança hoje, para mim, eu escrevo e penso na criança como minha leitora, mas ela me amedronta muito.
Porque quando eu vejo uma criança hoje eu sei que ela está num lugar que eu nunca mais vou poder estar.
A criança me traz muita nostalgia.
A criança sempre me interroga muito.
Sobre o tempo.
E isso me inquieta um pouco a relação com a criança hoje.
Esse saber que ela está num lugar que eu irremediavelmente já perdi.
Então eu tenho muito medo dessa literatura, ou dessa educação que tenta tirar a criança desse lugar que ela está.
Que tenta amadurecer essa criança à força.
Então eu acho que eu escrevo pela minha infância.
Não escrevo para a criança, mas eu escrevo pela infância que eu gostaria de reviver.
Eu só posso reinventar a infância hoje, eu não posso vivê-la mais.
Então, na literatura eu posso ser capaz de reinventar a infância.
Isso me acalenta um pouco com o problema do tempo.
No entanto agora o último livro que eu lancei, que chama: Tiempo de Vuelo e não está no Brasil ainda, lancei no México só, isso deve sair agora no Brasil.
É sobre um diálogo de um velho com uma criança sobre o tempo.
Os dois conversando sobre o tempo.
Então é uma coisa que me persegue muito isso.
Então a criança para mim é sempre um objeto de, de precaução, de medo, de nostalgia, de inveja.
A criança para mim é isso aí.
P – E como que é revisitar o passado para você quando você vai escrever?
R – Você revisitar o passado é muito difícil, porque ele vai ser sempre uma visita ficcional.
Porque, por exemplo, o que me fez chorar naquele tempo, hoje me faz rir.
Coisas que naquele tempo eu me via chorando, hoje eu me vejo sorrindo daquilo.
O tempo muda a gente.
O tempo troca a roupa.
O tempo troca a roupa do mundo.
O tempo é muito cruel.
Ele vai trocando tudo.
O tempo não respeita absolutamente nada.
Não existe nada tão democrático quanto o tempo.
O tempo é democrático, age sobre todas as coisas de maneira igual.
Então o tempo é isso.
E quando você revisita a infância você já é de uma maneira ficcional.
Entre o que eu vivi lá e o que eu cheguei até hoje já passaram 50 e tantos anos, já é outra a minha visão, outra coisa.
A dor já não é a mesma.
Eu já não tenho medo mais.
Eu posso lembrar da infância, mas sem o medo desse capote pendurado.
Ele não transforma mais em fantasma, que naquele tempo ele transformava.
Então hoje quando você revisita isso, você de uma maneira ficcional.
Não dá para, reconstituir o fato.
Você cria outras situações novas em cima daquilo.
Por exemplo, tem um exemplo que eu dei esses dias, vou repetir para você.
Foi até no Estado de Minas, no jornal, numa entrevista que eu estava dando.
A minha mãe morreu muito cedo.
Minha mãe morreu eu estava com seis para sete anos.
Minha mãe morreu de câncer.
Ela teve um câncer e minha mãe morreu muito, com 33 anos.
E, naquele tempo, minha mãe tinha uma voz muito bonita, ela cantava muito.
Cantava umas músicas muito bonitas de Carlos Gomes, umas modinhas antigas.
Umas modinhas imperiais, umas canções de amigo portuguesas.
E ela era uma pessoa que tinha uma voz muito bonita.
Mas quando a dor do câncer era muito grande ela, que ela não estava suportando, ela sentava na cama e cantava maravilhosamente bem.
Então a gente sabia que a dor era muita.
Então era aquela voz muito bonita de soprano, que atravessava a casa inteira, atravessava o quintal.
A gente sabia que estava doendo muito.
Então eu acho que hoje, inclusive, há uma presença da minha mãe na minha literatura, porque quando a dor é muita eu escrevo.
É a mesma coisa.
Quer dizer, naquele tempo eu via de uma maneira, hoje eu já me vejo fazendo a mesma coisa numa outra dimensão.
P – E como você visita muito o seu passado na sua literatura você se sente completamente livre para poder inventar, desinventar a sua vida?
R – Eu invento, refaço outras relações.
Depois, eu fiz análise muitos anos, então você começa a aprender a abrir chaves na análise.
Análise é abrir chaves.
Você fala uma frase, abre chave, fala um montão de coisas, abre chave.
Passa a vida abrindo chave.
Então a literatura para mim também tem muito isso.
Você vai abrindo chaves, você vai fazendo as relações que você vai percebendo.
P – Então voltando um pouquinho para a parte mais concreta que você citou, que você ganhou o Selo da Fundação.
A Fundação nessa época é uma coisa que surge para, qual a importância dela para vocês que eram autores surgir a Fundação Nacional do Livro? Como é que foi isso?
R – A Fundação nasce porque ela trás um conceito de literatura infantil novo para o Brasil.
Porque nós tínhamos saído de uma fase do ufanismo do Getúlio Vargas.
E a gente tinha uma poesia de heróis, de falar: "Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! Criança, não verás país nenhum como este!" Quer dizer, a poesia era sempre para falar das glórias, dos heróis e tudo.
Que é uma época bem do Getúlio Vargas que acontece.
E tinha até aquele caderno chamado Avante, que era uma criança carregando uma bandeira na capa, a Bandeira do Brasil.
Era uma coisa disso.
De repente surge e Fundação Nacional do Livro e ela repensa a função literária.
O compromisso da literatura com a beleza, o não compromisso dela com os conceitos políticos, com nada disso.
Mas com a beleza, com a metáfora.
E aí ela começa a pensar.
E ela nos ajuda muito nisso.
Ajuda porque ela começa a criar as atividades dela em cima disso, dos melhores livros, das melhores coisas que eram publicadas.
Ela começa a divulgar isso.
E a gente começa a pensar nesse valor da literatura como o valor do prazer.
Então a literatura não é só mais para cantar o amor e a glória, mas é para cantar também o medo, a dúvida, a insegurança, a morte.
A Fundação deixa vir isso à tona.
E nós começamos a refletir junto sobre isso, sobre nossa produção.
P – E, Bartolomeu, você tem uma, talvez sua obra tem uma importância grande nesse aspecto de trazer um pouco da linguagem menos, talvez menos formal, menos acadêmica para uma linguagem mais próxima da pessoa que fala, que, não só da criança, mas de qualquer pessoa que está lendo aquilo com uma um pouco mais próximo do oral, da discussão.
Como que é essa.
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?
R – Eu acho que o simples ultrapassa tudo.
A beleza é o essencial.
A beleza, para mim, é o que é essencial.
Todo supérfluo não é bonito.
Então eu acho que a beleza para mim é o mínimo.
Como diz o Manoel de Barros, a beleza está no ínfimo, nas pequenas coisas.
Então o texto também, para mim, tem essa coisa de ser um texto pequeno.
Porque a literatura é feita de duas coisas: palavra e fantasia.
Se alguém perguntar de que é que a literatura é feita.
Para essa fantasia vir à tona você precisa da palavra na literatura, na escrita literária.
E a palavra é uma coisa extremamente bonita.
A palavra é que organiza o mundo.
Por exemplo, desde o Gênesis da Bíblia, no princípio era o caos.
Então Ele chegou, que era Deus, seja quem for, primeiro Ele falou: "Faça-se a luz.
" E a luz se fez.
Quer dizer, é a palavra que abre o caminho para o mundo.
"Façam-se as águas.
" E as águas se fizeram.
Quer dizer, sempre essa coisa, a palavra que abre o caminho.
O tamanho do homem é do tamanho da palavra que ele diz.
Então até hoje o que é a psicanálise? É uma repetição do Gênesis.
Você está vivendo um caos e você vai num psicanalista e você se cura por meio da palavra.
A palavra cura.
Então a palavra é alguma coisa muito inteligente.
A linguagem é uma coisa extremamente inteligente.
Então a busca dessa palavra exata para deixar vir à tona a fantasia é um trabalho muito pesado.
Porque não é qualquer palavra que serve.
As palavras conversam entre elas.
Uma palavra tem a ver com a outra.
Então você tem que procurar esse equilíbrio da linguagem, que é o que eu faço muito.
E nessa busca do equilíbrio você cria a unidade do texto.
O texto é unido.
Tem uma palavra que você sabe: essa palavra não fica bem dentro desse texto.
Você tira ela fora, você conserta, você dá um jeito.
E toda a vida foi isso, essa coisa muito bonita e muito séria.
Muito séria porque mesmo depois, pegando o Gênesis que é a palavra que organiza o caos, o mundo, que introduz a ordem no caos, você depois encontra no Evangelho de São João, e a primeira frase do Evangelho de São João é que no princípio era o verbo, e o verbo se fez carne.
Quer dizer, ele diz para o homem que o homem é a palavra encarnada.
A palavra é carne.
Mas não é uma palavra qualquer, é a palavra verbo.
E verbo é uma palavra que tem movimento, é a única palavra que tem movimento.
Quer dizer, eu falo, eu falei, eu falarei, eu falaria.
A palavra, o verbo é uma palavra em movimento, como a vida é um movimento.
E todo verbo tem três tempos, como a vida também tem três tempos.
A vida tem passado, presente e futuro, que são os três tempos do verbo.
E o mais interessante é que todo verbo tem um sujeito.
Então quando ele fala que eu sou o verbo encarnado, ele fala que eu sou sujeito também.
Eu penso, eu digo, eu falarei, eu cantarei.
Então essa palavra é uma coisa muito séria.
Então por isso que a gente faz uma diferença hoje grande entre os livros de brinquedo e os livros literários.
Tem livros que são de brinquedo, pra criança brincar com eles.
E tem livros que são literários.
É aonde essas observações à respeito da palavra, da construção da palavra, são verificadas, são perseguidas, são construídas.
Pode ser que o leitor não perceba isso num primeiro momento, mas é nesse ponto que a coisa acontece, nesse ponto.
E tem um estudo também que é muito interessante que é: toda palavra tem um propósito.
A palavra é dita com um propósito.
Quando eu falo os pronomes pessoais: eu, tu, ele, nós, vós, eles.
Quando eu falo em inglês: I, you.
Quando eu falo em francês: je, vous.
Quando eu digo em espanhol: yo, usted.
Todas as vezes que eu digo “eu” em qualquer língua é uma sílaba que eu engulo.
É I, é yo.
E todas as vezes que eu digo outro é uma sílaba que eu sopro: é você, é usted, é you, é vous.
A palavra tem essa coisa, mistério em torno dela, que é muito bonito.
Então trabalhar com a palavra é um exercício muito bom para quem faz.
Eu me sinto extremamente feliz ao escrever.
Pode ser que o texto não seja lá grandes coisas, que seja uma porcaria muito grande depois, mas o ato de perseguir essa palavra, de tentar encontrar a palavra é muito bom.
Às vezes eu escrevo As Patas da Vaca.
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que eu tenho vontade também - como fui educador muito tempo - quando eu escrevo para criança muito pequena eu quero que ela fique encantada com a palavra.
Porque para a gente aprender a ler e escrever é preciso se encantar com a palavra.
Você não gosta da palavra, por que é que você quer aprender a escrever? Você tem que encantar a criança com esse jogo, com essa pata, que é a pata da vaca, que é a pata mulher do pato.
Você tem que fazer esse jogo, que você encanta.
A literatura está presente por causa do lúdico que está ali dentro, mas ali há uma preocupação minha de encantar a criança com a palavra.
De torná-la observadora da palavra.
E quando você diz, por exemplo, a palavra paciência, é uma palavra linda.
Ela vem da palavra paz e ciência.
Ter paciência é estar em paz com a ciência das coisas.
A palavra tem essas amarras.
Quando você diz uma palavra, você diz outras coisas que estão dentro dela.
Então é bom você ficar amigo das palavras na medida em que você descobre esses encantos que ela tem.
Essas possibilidades que ela tem de, essa maleabilidade que ela existe.
A linguagem é tão dinâmica quanto a vida.
A vida é dinâmica, e o homem é uma palavra, o homem é a palavra.
Então a palavra é tão dinâmica quanto a vida.
Ela muda sempre.
Então é claro que às vezes há desgastes no texto, há incompreensão do texto, há textos com níveis diferentes de entendimento, de compreensão.
Tudo isso existe e vai existir sempre.
P – Perguntar uma coisa que é muito importante na literatura infanto-juvenil, que é um pouco esse diálogo da palavra com a imagem, da ilustração.
Como que é para você, como foi, como é esse relacionamento com as pessoas e com a obra delas, os ilustradores?
R – Eu gosto do ilustrador que não repete o texto.
Eu gosto do ilustrador que pega o texto, faz uma leitura dele e faz outra coisa.
Isso não é ilustração.
Isso, pra mim, é uma ilustração com legenda.
Então eu não gosto.
Eu gosto do ilustrador que não repete o texto.
Que ele faz outra leitura do texto.
Eu gosto bem disso.
Eu gosto de pensar o seguinte: o texto para mim, literário, ele tem que ficar em pé sozinho.
Se ele depender da ilustração ele não é literário.
Porque literatura é palavra, literatura é letra.
Então eu faço um texto e vejo se ele fica em pé sozinho.
Agora, quando você dá para o ilustrador, você quer tornar o livro mais sedutor para o pequeno leitor.
Você quer que a criança pequena se interesse.
Porque toda criança gosta muito do livro.
Uma criança com um ano de idade ela já lê.
Ela pega o livro de cabeça para baixo, inventa história, conta de trás pra frente.
Carrega aquilo para lá e para cá.
E conversa com aquilo.
Ela está lendo aquilo, está fazendo isso.
Então esse livro com a ilustração pra criança pequena é muito bom.
Torna sedutor.
Aproxima muito a criança do livro.
Mas eu acho que há um determinado momento em que a ilustração tem que sair do texto.
Literatura para mim é texto, não é ilustração.
Ilustração é uma coisa e literatura é outra.
P – Você falou um pouco do contato com as crianças, que é mais temeroso.
E com os adultos leitores, como que é pra você? Você tem muito contato com eles?
R – É uma loucura.
Eu vendo pra adulto constantemente.
Talvez seja por isso que eu vendo tanto.
Eu vendo muito.
Eu sou um cara muito lido, por causa dessa literatura sem fronteira que eu tento, que até tem uma tese de doutorado de uma professora de Goiás, que trabalha a minha literatura sem fronteira.
Um livro que até já foi publicado sobre a tese dela.
É porque a beleza, pra mim, essa é uma coisa que eu falo: "A beleza é tudo aquilo que você não dá conta de ver sozinho.
" quando você encontra uma coisa muito bonita você fala assim: "Ih, Fulano devia ver isso.
" Você vê um por de sol muito bonito aqui na janela, você fala assim: "Fulano podia estar aqui comigo.
" Você vai num museu e vê um quadro, fala assim: "Mas era Fulano que devia ver isso.
" Você vai num filme, sai e fala assim: "Não, mas não era eu que devia ver esse filme, era Fulano de Tal.
" A beleza não cabe em você.
E então pra criança também, eu acho que o livro pra criança é aquele livro também que o professor, o adulto, o pai, a mãe lê e fala assim: "Ah, isso era meu filho que devia ler.
" Sabe, ele não dá conta e passa.
Então eu acho que é por isso que eu vendo tanto para pais, para professores, para tudo isso.
Porque eles me leem muito, e eles me levam pras crianças.
Eles me jogam pra lá.
Mas eu acho que a beleza é profundamente triste quando você está sozinho.
Você não dá conta dela.
Ela pesa muito.
Então você tem que passar para alguém.
P – Você viaja muito, né, Bartolomeu? Dizem que você viaja muito.
(riso)
R – Viajo, demais da conta.
Agora, ano passado o pessoal ficou impressionado, eu tive um problema de saúde seríssimo e fiquei 69 dias em UTI, saí e peguei um avião para o México, porque eu tinha que fazer um negócio lá.
Voltei do México fui para o CTI.
Então eu viajo assim para lá e para cá.
Eu tenho muito contato com o leitor.
E hoje leitores de várias partes do mundo.
Eu tenho uma tradução também que já é feita na Dinamarca, no Canadá, na Colômbia, no México, na Espanha, na França.
Quer dizer, já tem muita coisa traduzida.
Então eu vou muito, eu transo aí essa coisa toda.
Mas eu não gosto muito de falar do meu trabalho.
Como eu trabalho com literatura geralmente eu vou nesses congressos, nessas coisas todas, mas sempre para falar sobre as funções da literatura, sobre a importância da leitura.
Mas eu nunca carrego um livro meu.
Você nem vai encontrar na minha pasta de viagem um livro meu.
Eu não carrego, não faço divulgação.
Esse é um trabalho dos divulgadores, eu faço outra coisa.
P – Então conta um pouco, se puder, assim, você acha que existe uma, é uma disciplina pra você escrever? Você escreve todo dia? Você, como é que é o processo de trabalho seu? Tem alguma, existe alguma regra ou regra nenhuma?
R – Essas filas todas nessa estante aqui de cima são só dicionários.
Eu tenho coleção imensa de dicionários.
Então eu vou escrever, por exemplo, a palavra “maçã”.
Então eu estou precisando escrever um texto com uma fruta, eu preciso de uma fruta.
Então eu falo assim: "Eu vou fazer maçã.
" mas aí eu vou consultar o Dicionário de Psicanálise, o que é que é maçã em psicanálise.
Eu vou no Dicionário de Sonhos, o que é que é maçã.
Eu vou no Dicionário da Bíblia, o que é que é a maçã.
E nisso eu paro de escrever e fico encantado com a maçã e fico dias pesquisando a palavra maçã.
Então eu largo uma ideia assim no meio do caminho para poder consultar um dicionário em cima daquilo.
Eu estou escrevendo a palavra “casa”, eu falo assim: "Será que nessa frase fica bom é a palavra casa? Ou fica bom a palavra “mansão”? Ou fica boa a palavra “palácio”? Fica boa a palavra “barraco”?" Então eu vou para os dicionários e começo a mexer.
Eu adoro dicionário.
Então eu tenho essa coisa de não ter uma disciplina de escrever, e ao mesmo tempo uma indisciplina total de lidar com a palavra.
Eu largo tudo e vou consultar a palavra.
A palavra pra mim é uma coisa que me encanta muito.
Então eu fico encantado com elas.
Agora mesmo eu fiz um trabalho para a Editora Larousse, lá de São Paulo que eles me pediram, que é, chama De ABC até Z.
Então são as 26 letras do alfabeto, que agora entraram as outras três.
Que cada história, cada conto pequenininho, com a letra “a”, só tem a letra “a”.
No “b”, só tem a letra “b”.
No “c” só tem a “c”.
Então isso me dá um trabalho! Eu fico pesquisando.
É um prazer muito grande.
Agora, pode ser que para o leitor passe completamente despercebido.
Para o leitor isso não choca, ele gosta por outras coisas.
Gosta pelo ritmo, gosta pela sonoridade, gosta por outras coisas.
Você tem que fazer isso pelo seu prazer.
P – Você disse que não tem muito, não gosta de você falar da sua obra.
Mas ouvir sobre ela, como essa tese dessa menina, por exemplo, essa professora que.
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.
R – Tem muita tese a respeito do meu trabalho, eu gosto porque eu acho que cada leitor é um leitor e entende a obra da maneira que ele pode.
Da maneira que é possível.
Da maneira da experiência de vida que ele tem.
E cada pessoa é única.
Não tem pessoas iguais.
Então cada um tem a sua interpretação daquilo.
Então eu acho que é ótimo.
Eu gosto muito de tese.
Tem várias e várias que fazem a meu respeito.
E eu acho interessante, gosto, não tenho problema quanto a isso, não.
P – Então, Bartolomeu, a gente estava falando do Amar, que é um projeto que surge da Quinteto, que é aquela editora do Valter, da Ruth Rocha.
Como é que é esse contato com os editores? Você com eles é difícil, é fácil, é mais próximo? Como que é isso? Ele é um leitor no fim das contas, né?
R – A relação com o editor, pra mim, não é uma relação muito difícil, não.
Eles sempre estão esperando um texto meu.
Tem muita gente que me pede texto, muita editora.
Eu nunca dou conta de atender todo mundo.
Então eu atendo assim: quando eu gosto do editor, dou o texto para ele.
Sempre faço isso.
A minha relação com o editor é sempre uma relação mais afetiva.
Todos são meus amigos, e eu dou o texto pela amizade que eu tenho.
Porque é muito texto que pedem, o tempo inteiro.
É uma insistência, às vezes, de querer um texto.
Nunca tenho, escrevo pouco.
Escrevo quando eu tenho vontade.
Então isso para mim é uma relação fácil, não é uma relação complicada.
Às vezes você entra no cano, porque o editor sai daquela editora e entra outro no lugar.
Aí a relação complica um pouco, mas a gente supera isso.
P – E as críticas? Isso é uma coisa que é de mão dupla? Hoje em dia talvez seja um pouco mais fácil até pelo seu reconhecimento da obra.
Mas talvez no começo era um pouco mais difícil, ou não?
R – Eu sempre tive uma crítica muito favorável ao meu trabalho, sempre.
Eu nunca tive uma crítica muito negativa.
Sempre fui muito elogiado pelo meu trabalho.
Então talvez seja isso também que leve os editores a querer texto da gente.
P – Bartolomeu, e quanto à essa face - que até você citou algumas coisas - dos prêmios? Pra você qual é a função, qual é a importância dos prêmios na literatura? Para que é que eles servem?
R – Olha, o prêmio, geralmente, a gente é escolhido por um júri especializado.
Sempre as pessoas que escolhem você pra ser um premiado são pessoas mais especializadas.
Então você sente que o seu trabalho tem um valor.
É sempre um reconhecimento do valor da obra.
Que a obra foi boa, que valeu a pena ter feito e tudo.
Mas também é uma faca de dois gumes, eu digo sempre.
Porque você, na medida que você ganha um prêmio, você se torna mais exigente pra escrever.
Então você se torna mais rigoroso na confecção de um texto.
Mas é bom receber um prêmio, é bom receber.
P – E tem essa, eu queria que você pudesse pontuar talvez só por nome, rapidamente, alguns livros seus que pra você foram marcantes.
Não interessa se foi pra prêmio, se foram para pessoal, se foram coisas que você tinha que escrever naquele momento, sentiu.
Alguns deles que pudessem pontuar a sua carreira.
Do primeiro você falou, você falou dos três primeiros.
A gente falou um pouco do Amar, falou um pouco do Por Parte de Pai.
R – Tem algumas coisas que eu vou por uma ficção, mas que é uma coisa extremamente ficcional.
Tem outros livros que eu parto de aspectos da infância.
Tem, por exemplo, o Indez.
Tem uma trilogia que é Indez, Ler e Escrever e Fazer Conta de Cabeça e Por Parte de Pai.
E agora O Olho de Vidro do Meu Avô.
São quatro livros, né, que eu trabalho com a minha infância.
Que eu trago pra tona minha relação infantil com família, com os avós, com tudo isso.
Então trago isso.
Tem outros momentos que eu trabalho em Cavaleiro das Sete Luas, que já são coisas extremamente ficcionais e que não tem nenhum dado com a realidade.
Tem outros livros que eu trabalho tentando encantar a criança pela literatura, pela palavra, pela coisa em si e tudo.
Tem um livro só que eu não gosto dele porque ele é muito difícil para mim.
Até ganhei o primeiro Jabuti com esse livro, que é o Ciganos.
É um livro que foi muito difícil escrever, porque ele é muito verdadeiro.
É um que eu entro muito de cabeça na minha infância, no que havia de trágico nela.
Então aí eu entro violentamente.
É o livro que foi mais difícil escrever.
Mas veio a vontade e eu fiz.
P – Esse trágico que você diz, temas talvez mais trágicos que na sua obra eles são colocados de maneira que muitas vezes os autores fogem de colocar isso para criança, de colocar isso para o adolescente.
Essa escolha sua é.
.
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R – Eu não tenho preconceito com infância.
Não sei se em minha infância eu era muito perceptivo.
Eu sempre fui muito atencioso, muito observador.
E eu acredito que a criança não é tão boba mais.
A criança sabe dessas coisas.
Quando você escreve pra criança você tem uma perspectiva.
Quando você ensina Matemática pra criança é porque você quer que ela chegue ao pensamento matemático maior.
Você quer que ela chegue a Einstein, que ela compreenda.
Você ensina Ciência pra criança você quer que ela chegue nos grandes descobrimentos científicos.
Você ensina História você quer que ela aprofunde, que ela chegue a compreender a grande história contemporânea.
Você sempre tem uma perspectiva.
Eu acho que quando a gente escreve pra criança eu tenho também uma perspectiva de querer que essa criança que me lê hoje depois me abandone e vá ler a grande obra universal.
Que vá ler Cervantes, que vá ler Thomas Mann, que vá ler Clarice Lispector, que vá ler esse povo todo.
Então, e ela vai encontrar isso nessas obras.
Eu não estou querendo fazer leitor de revista em quadrinho.
Eu não tenho esse interesse.
O meu interesse é que a criança, de repente, entre na obra universal da Literatura, na grande obra.
Num Ulisses, num Proust.
Eu quero que ela chegue lá.
Eu não estou querendo que ela vire uma leitora só de revista em quadrinhos, só de mini contos.
Isso é uma perspectiva que eu tenho.
E o que esses livros tratam de quê? Tratam da morte, do abandono, dos medos, das inseguranças, das viagens.
Eles tratam disso.
Dos lutos.
Então é por aí.
P – E você tem alguns leitores que te acompanham assim, sei lá, desde que tinham 10 anos e agora estão com.
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R – Tenho.
Gente que tem minha obra toda.
Que coleciona esperando que saia mais um.
Tem a turma toda.
Tem muita carta, muita manifestação.
Tem um desembargador aqui em Minas Gerais, presidente do Tribunal de Justiça.
Ele me acompanha rigorosamente, me telefona perguntando se saiu alguma coisa depois de tal coisa.
P – Que ótimo.
Então a gente vai terminando.
Tem uma pergunta de praxe que a gente faz no Museu, que é a gente tentar reconstruir um pedacinho da história.
É claro que é um pedacinho e é uma narrativa das possíveis escolhidas aqui, né? Mas como que foi contar um pouco dessa narrativa, um pedacinho pra gente.
O que você achou desse momento, dessa conversa nossa aqui?
R – Falar da gente não é muito agradável.
Nunca é muito agradável falar da gente.
Porque a gente acaba falando é do outro.
Não tem como.
Quando você está no divã do psicanalista e que você fala assim: "Agora eu vou falar de mim.
" é pura mentira.
Você fala do pai que não foi bom, do amor que você perdeu, da mãe que foi embora, do tio que morreu.
Você sempre só fala do outro.
O eu é feito de pedaços dos outros.
Então falar da gente é muito difícil, você acaba falando dos outros.
É muito difícil.
Mas é bom falar porque às vezes os leitores são curiosos.
Os leitores querem saber da vida da gente.
Como é que a gente vive, como ama.
E isso é bom.
Torna claras as coisas.
Não tenho nada a esconder também.
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