Projeto Memória Companhia Vale do Rio Doce
Entrevista de José Carlos da Silva
Entrevistado por Rosana e José Carlos
Rio de Janeiro, 14/04/2000
Realização Museu da Pessoa
Código da entrevista: CVRD_HV017
Transcrito por Neusa Rosa
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Bom, a gente vai começar a e...Continuar leitura
Projeto Memória Companhia Vale do Rio Doce
Entrevista de José Carlos da Silva
Entrevistado por Rosana e José Carlos
Rio de Janeiro, 14/04/2000
Realização Museu da Pessoa
Código da entrevista: CVRD_HV017
Transcrito por Neusa Rosa
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Bom, a gente vai começar a entrevista pedindo pro senhor falar seu nome, o local e data do seu nascimento.
R – Ah, sim. José Carlos da Silva, nascido em Vitória, no dia 29 de julho de 1936. Hoje eu estou com 63 anos, fazendo parte do pessoal do terceiro sexo: é masculino, feminino e sexagenário com muito orgulho de estar vivo e prestando essa entrevista para vocês, porque muito me orgulhou participar desse programa, que acho um projeto sensacional. Porque povo que não tem memória não é povo, tem que existir memória, e quem faz a memória é a história. E estamos aqui para contar um pouco da nossa participação dessa história.
P/1 – Os pais do senhor são de Vitória também?
R – São, são de Vitória, são vivos. Minha mãe tem 86 anos, participa ativamente da vida religiosa, caminha todo dia de manhã, faz ioga; meu pai tem 90 anos, só tem um problema: é surdo. Às vezes eu chego em casa, dou a bênção à ele: “Bênção pai”, e ele diz: “Fluminense perdeu de três a um”. Ele está bem surdo. E mora numa praia, eu acho que é isso que tem conservado a vida dele. Eu inclusive trouxe uma fotografia minha junto com eles.
P/1 – E qual é a atividade dele, o que ele fazia? Em que ele trabalhava, que atividade?
R – Meu pai era funcionário público federal, ele se aposentou como secretário da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Espírito Santo, e minha mãe também era funcionária pública estadual, trabalhando em colégio, era inspetora de alunos. Por sinal, dizem que era uma inspetora brava, e ela até hoje tem jeito de ser brava mesmo. Criou oito filhos – nós somos em seis homens e duas meninas , e graças a Deus todos vivos. Eu sou o segundo da ninhada.
P/1 – E como foi a sua infância em Vitória? Em que bairros o senhor morou?
R – Bom, eu por incrível que pareça eu fui garoto, menino, e assisti a construção do Cais de Capuaba, que foi o primeiro Cais de minério da Vale do Rio Doce. Então eu assisti aquela... Fazendo aquelas obras todas. Quer dizer, os aterros, dinamitando corte... Aquilo tudo passou pela minha infância, e na época foi por causa da guerra que foi feito o Cais. O aterro era feito com carroça e burro, e de vez em quando a minha mãe era chamada para poder atender, porque descia por um aterro carroça, burro e carroceiro; eles se machucavam e ela ia lá ajudar, prestar socorro àqueles trabalhadores da construção da estrada. E qual foi a minha surpresa? Que depois eu vim trabalhar nesta estrada de ferro né, mas minha infância foi em Paú.
P/1 – Paú?
R – Paú, é, pertence ao continente da ilha de Vitória.
P/2 – Quer dizer, o senhor assistiu toda a construção do...
R – Do Cais, assisti. Era uma coisa bonita né, porque era tudo manual. Não tinha máquina não, porque não existia, por exemplo, trator, esses negócios; caminhão também. Tinha racionamento de gasolina porque era época da guerra. E eu passei a guerra... Com oito anos de idade eu vi que o negócio era feio. A gente passava fome, porque não tinha trigo, não tinha manteiga, às vezes não tinha... Você não tinha o que comer, está certo? E de noite era blecaute, tinha que apagar as luzes. Porque Vitória tinha o cais de minério, e minério é que os navios vinham buscar para poder fazer arma, munição, fazer tudo né. Quando vinha o navio buscar minério, vinha um comboio enorme, e Vitória tinha lá um quartel onde tinham canhões para poder proteger os navios de submarino, porque os alemães andaram por aqui né, com submarino. E isso tudo eu vi, e tenho até hoje na memória. Vi funcionar, inaugurar o cais. Vi passar o primeiro trem. É uma obra arquitetônica magnífica, invejada no mundo inteiro, porque para o trem chegar ao cais, ele passava numa ponte muito grande, e aquilo, como obra de arte – pela época –, foi fabulosa. Tudo isso eu tive a oportunidade de ver.
P/1 – E como foi essa infância do senhor nessa cidade?
R – Como a de todo garoto né. Estudando no grupo escolar, jogando futebol e ajudando aos meus pais a criar os irmãos menores, essa foi minha infância.
P/1 – O senhor ajudava os seus pais?
R – Ajudava. Porque de qualquer forma era meio [difícil] de ganhar dinheiro, então minha mãe fazia quitutes para vender em campo de futebol, e eu ia porque era uma ajuda para eles também no orçamento doméstico. E as coisas caseiras, porque não se pagava empregada, a gente que tinha que fazer. Foi ótima a minha infância. Eu tive um bom viver, muito bem educado, porque meus pais sempre trabalharam em colégio e eram educadores. Eles passaram pra gente tudo aquilo que eles passavam para os outros né, e tudo isso foi muito bom para nossa família toda. Hoje estão – a maioria – aposentados, meus irmãos. Mas tivemos uma vida feliz.
P/1 – E o senhor teve, assim... O senhor se lembra das brincadeiras de moleque?
R – Lembro. A brincar de picolê. Picolê é pique, né, [como é] mais conhecido... Hoje a gente não vê mais. Pelada na rua com bola de meia, ninguém arrebentava os pés, e acertava a bola chutando; bola de gude, jogar ferrinho, pular amarelinha. Tudo isso na minha infância eu tive. Futebol eu cheguei a jogar, cheguei a ser profissional de futebol, mas não deu, eu tinha problema de vista, miopia. Quando escurecia eu já não enxergava a bola, e era chamado de ceguinho: “Dá a bola pro ceguinho, tira a bola do ceguinho”. Tudo isso aconteceu comigo. Foi uma infância feliz.
P/2 – E em casa, como é que era? Com os oito filhos, a mãe era brava? Como é que era em casa?
R – Não, bobeou ‘o tapa comia’, não tinha jeito. Não podia fazer arte senão apanhava, e a pancada às vezes resolve... Nem sempre, hoje tem outros métodos, mas resolvia.
P/1 – E vocês tiveram alguma educação religiosa?
R – Eu tive um irmão que até estudou no seminário, mas fugiu, não aguentou a barra não. Eu fui coroinha de igreja, a educação religiosa.
P/1 – Que igreja era?
R – Santa Terezinha de Paú
P/1 – E o senhor se lembra das missas? Como é que era?
R – Ah, tinha que ir lá botar aquela parafernália toda e entrar junto com o padre e cuidar da (féria?) da igreja para entregar ao padre quando acabasse a missa. E o auge da festa da igreja era mês de maio, mês de Maria, onde tinha coroação. Isso tudo era muito bonito, fez parte da minha infância.
P/2 – E Vitória, como é que era Vitória nesse período? A cidade de Vitória...
R – Até hoje Vitória é uma cidade onde todo mundo se conhece. Todo mundo se conhece porque é uma ilha pequena. Então, por exemplo: a maioria ou foi colega de colégio no primário ou no ginásio, ou no científico ou na faculdade, e existe... O capixaba é um povo de coração muito bom, ele protege muito os estrangeiros de outros estados que chegam lá, são pessoas muito bem recebidas pelo capixaba. Porque o capixaba é hospitaleiro, viu. Acho que um problema sério do capixaba é que ele não dá valor à prata da casa: os grandes ídolos, as grandes cabeças culturas. Só vem dar valor quando sai de lá. Não é um povo bairrista, normalmente no estado as pessoas são bairristas, mas lá não é. Então você só tem valor quando sai de lá e se projeta para cá, fora, aí é que eles... De peito aberto é capixaba, é capixaba viu. Esse é o grande defeito do capixaba. Agora, é um lugar bonito, praias maravilhosas; praias maravilhosas e montanhas. Eles estão dando muito valor ao turismo, estão elogiando muitas coisas de lá, porque são realmente climas distintos, mas que você pode receber muita gente para participar disso também. Isso é a minha Vitória.
P/1 – Com quantos anos vocês saíram dessa cidade que o senhor nasceu? Com quantos anos vocês se mudaram da cidade, dessa cidade? Vocês foram para alguma outra ou foram para Vitória, direto?
R – Não, papai fez dezoito mudanças. Eu acho que ele tinha algum sangue cigano, eu nunca vi. Teve mudança que nós fizemos, passamos dez dias num lugar e voltamos, porque mamãe não aguentou o lugar, de tão ruim que era. Aliás, esse lugar só tinha duas coisas boas: a brisa noturna e a passagem de volta, então nós voltamos.
P/2 – Que lugar que era? (Risos)
R – Era perto de Vitória, era na Ilha da Pólvora – fica em Santo Antônio. Isso tudo na época da guerra. Eu me lembro, inclusive, dessa mudança, porque foi interessante: papai resolveu fazer mudança de canoa e botou a gente dentro, aquela garotada. Eram quatro, e botou dentro da canoa um bode e um cachorro. Quando chegou no meio da baía, o cachorro descobriu que o bode estava dentro, e avançou em cima do bode, e quase que a canoa virou com o fogão. Antigamente era fogão à lenha, e o fogão balançando, segura o fogão... Ele preferiu salvar o fogão do que a gente. Ainda bem que, graças a Deus, o cachorro e o bode fizeram as pazes antes de entrar nos finalmentes.
P/1 e P/2 – (Risos).
R – Tudo isso eram as loucuras do velho Paulo. Agora, isso ele conta hoje com o maior prazer. Realmente, para nós foi uma aventura e uma vivência, tivemos que passar por muita coisa.
P/1 – E que outras cidades o senhor morou, que o senhor se lembra? O senhor sabe falar os nomes?
R – Não. Eu vou lhe dizer assim, mais ou menos, alguns locais que nós moramos: Vila Velha...
P/1 – Vila Velha.
R – Vila Velha, onde tem o convento. Alguns bairros de Vila Velha: Jaburuna, Vila Batista... Moramos em Cariacica – que é município, pertence à grande Vitória. É Vitória: Serra, Cariacica, Vila Velha e Viana; desses municípios da grande Vitória nós só não moramos em Viana, mas moramos na Serra, em Manguinhos, na localidade... Uma praia que tem lá perto de Vitória, a 25 quilômetros de Vitória. Vila Velha e na Ilha de Vitória moramos quatro vezes, inclusive quando eu entrei para a Vale do Rio Doce eu já morava em Vitória, na Ilha mesmo. E de lá nós nunca... Para estado nenhum do Brasil, nós nunca mudamos.
P/1 – Mas a família do senhor mudava em virtude do trabalho do seu pai?
R – Não, ele gostava de uma mudança. Eu estou dizendo que na outra encarnação acho que ele foi cigano mesmo.
P/1 – Não é por causa do trabalho?
R – Não, é porque acho que ele se aborrecia do lugar e saía.
P/1 – Mas como é que ele fazia, alugava a casa?
R – Alugava a casa. Nunca ele deixou de possuir uma casa em Paú, tanto que quando a gente se mudava de Paú para outro lugar, quando voltava, a vizinhança gritava: “Lá vem o Paulo Silva, seus capeta”. Então já tirava a tranquilidade do local de onde a gente morava, porque chegava realmente uns capetas; eram seis homens, aí já tinham seis.
P/2 – Por que, aprontavam muito lá? (Risos)
R – Ah, eu gostava de uma briguinha. Quando brigava, um brigava e os seis... E ninguém queria briga com a gente, porque era corriola, e tudo isso na nossa infância.
P/1 – Aí vocês iam trocando de escola?
R – É, trocava. Estudava na... Em Paú no grupo escolar, quando ia pra cidade mudava para o grupo escolar de Vitória. Eu não me dava bem nesses grupos porque eu não era flor que se cheirasse, era levadinho, e normalmente eu criava as confuzõezinhas lá.
P/1 – O senhor tem alguma lembrança da escola, de alguma coisa que tenha ocorrido com o senhor?
R – Tem. A professora uma vez me deu uma flechada nas costas, eu não gostei, tomei a flecha dela e dei uma surra nela. Não precisa dizer que eu fui convidado a sair do colégio, né. Porque doeu a flechada que ele me deu.
P/1 – Como? Uma flechada?
R – Nas costas. Porque eu era muito levado, e antigamente, no colégio, tinha a palmatória nessa época. Ela me deu uma flechada, doeu, e eu tomei dela e meti-lhe a flechada. Dona Raimunda, o nome dessa professora. Depois de grande eu encontrava com ela, ela olhava pra mim e ria, dizia assim: “Foi esse que me bateu”.
P/1 – Dona Raimunda. E aí o senhor começou a trabalhar com quantos anos? Quer dizer, emprego. O senhor já ajudava sua mãe vendendo quitutes...
R – É, depois eu fui trabalhar. Quando eu comecei a trabalhar, trabalhei no estado do Espírito Santo, trabalhei um ano em 1955, e por infelicidade minha, não recebi nem um tostão, porque o governo era horroroso. O governador, um tal de Chiquinho, não me pagou. Aí entrei para a Vale do Rio Doce, no dia dois de março de 1956.
P/1 – O senhor entrou através de concurso, anúncio de jornal...
R – Concurso, fiz concurso. Não [foi] de pé de ouvido, eu fiz concurso e passei.
P/1 – Para qual cargo?
R – Auxiliar de escritório.
P/2 – Não tinha uma... Ainda o porto que o senhor via quando criança, tinha alguma imagem da Vale do Rio Doce? O senhor ouvia falar dela?
R – Não. Eu via os trens subindo com minério para poder descarregar no cais, para o cais embarcar nos navios, e era a noite toda que aquele trem passava ali. Às vezes, quando chovia, era a máquina a vapor, e os vagões pesados, e às vezes o trem não conseguia romper a ladeira, então ficava derrapando, e aquele ruído deixava a gente ficar sem dormir.
P/2 – Porque era a noite toda...
R – Porque era a noite toda. E passava embaixo do meu quarto, porque a minha casa... E embaixo tinha um barranco e a linha, tudo isso era a imagem que eu tinha da Vale do Rio Doce. Um vizinho nosso – que era da Vale do Rio Doce e que depois, por coincidência, fui ser chefe dele – era um homem muito violento, e contava histórias da Vale do Rio Doce. Inclusive, quando ele foi, teve uma época que a Vale do Rio Doce transferiu grande parte dos funcionários deles para Valadares, e ele foi também.
P/2 – _______________________
R – Ele era um sujeito forte, era remador, forte e violento. A gente, quando atentava perto da casa dele, ele vinha e brigava com a gente. Essa é a imagem que eu tinha da Vale do Rio Doce.
P/1 – Mas o senhor pensava ou tinha algum desejo de um dia ir trabalhar na Vale?
R – Não, nunca imaginei isso. O único desejo que eu tinha na minha vida era ser médico, estudante de medicina. Cheguei a fazer vestibular e passei, mas aí eu já trabalhava na Vale e recebi o seguinte aviso: “Olha, a Vale não precisa de médico, não precisa de engenheiro.” Então, para bom entendedor pingo é letra, e caí fora da medicina, porque eu precisava do emprego, esse emprego meu já fazia parte da renda familiar. Porque, como eu disse, o Espírito Santo estava passando por um momento muito crítico, com um governo péssimo. Os funcionários públicos não recebiam em dia, e o meu salário já ajudava na renda familiar, a custear os estudos dos meus irmãos nos colégios: livro, caderno, uniforme, tudo isso. Mas foi a melhor coisa, o melhor passo que eu dei na vida foi entrar na Vale do Rio Doce, porque foi o emprego que... Eu entrei em 1956, e em 1958 nós tivemos um aumento grande de dinheiro. Porque a Vale ficava rica quando havia guerra, porque vendia mais minério. Então foi na época da guerra da Coréia, ela vendia minério a beça, então ela pôde aumentar o nosso salário, que nós chamamos, na época, de ‘tabela cadillac’. O presidente era o Francisco Salessa, e para se ter uma ideia, quase dobrou o salário de todo mundo, e aquilo foi uma maravilha para nós.
P/2 – O senhor lembra o primeiro dia de trabalho?
R – Lembro.
P/1 – Eu queria perguntar uma coisa antes. Como é que foi o teste para entrar? Teve alguma coisa?
R – Fiz prova de português, de matemática e de datilografia, esse foi o teste.
P/1 – Não teve nada especial, assim?
R – Não, não, nada assim de diferente não.
P/1 – E como foi esse primeiro dia de trabalho?
R – Eu cheguei lá de terno e gravata – como estou hoje –, porque não era... Eu não sabia direitinho como é que era, não perguntei, e única coisa que eu me lembro... Eu fumava né, e eu pedi ao chefe para fumar no trabalho, se podia fumar, foi a única coisa que eu me lembro. Chegou lá, era uma secretaria de uma contabilidade, onde tudo o que era para se pagar passava por essa secretaria, e existiam vários processos. O serviço que o caboclo me deu foi fazer revisão nos arquivos para ver se tinha processo arquivado no lugar errado, e eu fiquei dois meses fazendo revisão. Não achei processo errado não, mas achei uma caneta dentro do processo; a pessoa devia estar lendo o processo, deixou a caneta marcando, deve ter ido ao banheiro de tarde, esqueceu e mandou o processo para o arquivo, e aquilo foi cansativo. Eu digo: “Meu Deus, eu entrei para fazer isso...”, depois, com o tempo, fui fazendo outras coisas, fazendo o serviço de datilografia, e cheguei até a ser imediato dessa sessão, porque o chefe tinha um imediato. Daí foi o meu crescimento na Vale do Rio Doce, porque depois eu fiz vestibular.
P/1 – Em que ano o senhor fez vestibular?
R – Eu fiz em 1962. Fiz vestibular para economia, passei. Depois que eu entrei na faculdade as coisas melhoraram, eu comecei a ter um progresso bem maior do que eu esperava, fui mudando de locais de trabalho e sempre me dei bem, porque eu tinha vontade de trabalhar, eu tinha vontade de crescer.
P/1 – E a Vale auxiliou nesse estudo?
R – Não porque era de graça, era na Universidade Federal, não tinha que pagar nada não. Ela auxiliava para os meus filhos, isso ela dava, porque eu me formei casado, já com dois filhos né, me formei em 1966.
P/2 – Esse primeiro trabalho do senhor, o senhor estava trabalhando em Vitória?
R – Ah, eu nunca saí de Vitória.
P/2 – Nunca saiu?
R – Não. Saía, aliás, em serviço, mas de Vitória eu nunca saí, sempre foi minha sede. E eu não tinha vontade de sair, porque Vitória é um lugar bom para se morar, lá é tudo perto. Vitória você não anda a pé, é pequenininho, mais… E você não tinha que se locomover muito para chegar ao lugar. E eu sempre fui acomodado em certas coisas, não gostava muito de aventura desse tipo não.
P/1 – Deixa eu entender um pouco a carreira do senhor na Vale. O senhor entrou como auxiliar de escritório, depois o senhor entrou para?
R – Aí eu fui... Passei a supervisor, também, de escritório. E quando eu me formei, passei a integrar o quadro técnico da Vale, que eram as pessoas que tinham diploma de curso superior.
P/1 – Qual quadro técnico era? Qual é o nome da função?
R – Eu era adjunto técnico em administração, sempre voltado para administração ou de material, ou de pessoal, ou de custos. Sempre tinha... Foram mais as áreas que eu trabalhei. E uma das grandes áreas que eu trabalhei foi na área social. Fui implantar alguns serviços que a Vale não tinha e resolveu colocar através de uma pessoa que deve ter participado, inclusive, dessa história. Chama-se (Valter Faria?). Ele me colocava para ajudá-lo, ele conseguiu implantar na Vale do Rio Doce – que não tinha – um seguro de vida em grupo para os empregados, porque era feito por particulares, por empresas particulares, e a Vale não tinha um domínio sobre aquilo, não controlava, aí criou o próprio seguro de vida em grupo dela. Ela controlando, e eu tive a oportunidade de ajudar a implantar isso e tomar conta, no início, para quando os processos sinistros... Quando tivesse que pagar, seria tudo feito pela Vale. Como dizem os atravessadores, nós conseguimos evitar, e até hoje funciona assim. Depois foi o passo maior, que foi implantar a Fundação Vale do Rio Doce Seguridade Social, que chamam de ‘Valia’, mas o nome certo é ‘Vália’. Também tudo encabeçado por Valter Faria, e eu participei com ele na venda da ideia para os empregados, e hoje eu sou prova disso, porque eu vivo dela, meu salário é suplementado pela Vália. Se eu fosse viver só da aposentadoria do INPS [Instituto Nacional de Previdência Social], estaria passando aperto, mas hoje eu tenho uma suplementação que me ajuda a viver, ou... Não sei se é ‘viver’ com 63 anos; é morrer, né.
P/2 – Como é que se vendia a ideia?
R – Mostrando para as pessoas exatamente isso: que você construir um padrão de vida... Quando aposentar, todo mundo... Você sabe que o INPS não paga exatamente aquilo que você ganhava quando estava na ativa né, paga um percentual; a ideia era exatamente essa, que estava se criando uma fundação para que você, pagando uma mensalidade por mês, quando se aposentasse, tivesse direito a uma suplementação em função de alguns cálculos autuariais, para que você continuasse a viver senão no padrão que você vivia antes, pelo menos muito perto. E isso não foi difícil não, porque eu me lembro que algumas pessoas não quiseram aceitar isso, e o ano retrasado mesmo eu tive com um deles que eu tentei vender a ideia para ele e ele me
disse que não, que ele ia aplicar o dinheiro na poupança. Resultado: ele não aplicou o dinheiro na poupança e queria se aposentar. Para você ter uma ideia, ele estava ganhando na faixa de seis mil reais ou sete, e como não tinha fundação, se aposentou no INPS com 1200 e pouco. Isso é um baque! Quer dizer, ele quase que chorando, dizendo para mim: “Eu fui burro, na época eu não quis.” Então hoje eu tenho orgulho de ter participado disso, porque várias pessoas optaram pela fundação, e hoje, se não estão bem, estão relativamente bem. Tudo isso para mim foi um marco né, eu fui o primeiro agente em Vitória, logo que começou, e foi um problema muito sério, porque uma das coisas que a fundação fazia era emprestar dinheiro, e a maioria, quando ingressou, quis apanhar o dinheiro. Eu enfrentei aquela barra, porque todo mundo queria dinheiro emprestado e não dava para emprestar para todo mundo de uma vez, então tinha que fazer um cronograma de empréstimo, e aquilo a agência ficava cheia, todo dia cinquenta a cem pessoas. Mas graças a Deus emprestou a todo mundo, acredito, até que o dinheiro...
(Fim do lado A)
R – ... arrecadado de uma fundação tem que ser aplicado, porque senão ocorre o risco da fundação falir, e um dos investimentos talvez tenha sido esse empréstimo, porque deu retorno com juros e correção dentro daqueles padrões normais – não de banco, né, mas de fundação –, que deu para aplicar bem o dinheiro recebido. Porque o problema de dinheiro na Vale era sério. Eu me lembro, eu trabalhei... Ajudava no carro pagador, que era um trem que saía de Vitória e viajava a linha toda fazendo o pagamento com risco incalculável. Hoje não teríamos coragem de fazer isso porque na primeira viagem ele seria assaltado e era muito dinheiro dentro do trem, era o pagamento de todos os empregados ao longo da linha e locais como João Neiva, é _______________________, era muito dinheiro, e dinheiro vivo. Eu me lembro que chegava em Valadares, em Governador Valadares, eram três horas seguidas de pagamento.
P/1 – O que era, era dinheiro no saco?
R – Não, eram umas malas com envelope do empregado e o dinheiro dentro. A gente primeiro fazia o trabalho de envelopar aquele dinheiro – em Vitória –, depois botar nas caixas, e cada um, com seu número de matrícula, ia lá, falava o número, tirava seu envelope e dava para ele. E tinha, em Governador Valadares, um agiota chamado Grampão; quando o pagador chegava, ele encostava com os capangas dele e com um saco de aniagem branco e ia apanhando o dinheiro de agiotagem que ele ia emprestando para os empregados. Quando a gente chegava em Nova Era, ele já estava lá com o saco cheinho de dinheiro – pra você ver como é que o pessoal estava endividado. Então não podia ser diferente, quando você cria uma fundação que se falou em emprestar dinheiro que se não outro, se não fosse o ferroviário apanharia o dinheiro emprestado. E até hoje essa carteira de empréstimo funciona com bom sucesso.
P/2 – A diretoria da empresa ajudou?
R – Ah, a empresa é responsável por uma parte dessa fundação, ela contribui com a fundação para aqueles que estavam em processo de aposentadoria e que estão aposentados, ela dá um percentual... Como qualquer outra fundação, a do Banco do Brasil, a Petrobrás, elas dão um percentual. Às vezes dão duas mensalidades por cada uma, não é barato não, mas socialmente a empresa cumpre seu papel. Porque as empresas crescem por causa dos empregados, e se a Vale cresceu foi por causa daqueles empregados, os colonizadores, então nada mais justo do que dar a eles um prêmio de aposentadoria. O interessante é que a Vale sempre foi... Não me lembro de ter atrasado pagamento durante meus tempos de serviço. Nunca atrasou, sempre em dia, direitinho.
P/1 – Teve algum assalto alguma vez?
R – No trem. Que eu me lembre, só um caso: um sujeito que entrava na fila para receber dinheiro no trem pagador. Porque você entrava, dizia seu número, tinha uma pessoa que identificava o indivíduo e você pagava ele. E esse camarada, ele recebeu três meses seguidos pagamento de outro, mas depois nós descobrimos e ele foi preso.
P/2 – Foi preso?
R – Foi preso. Até o nosso tesoureiro, coração magnífico, magnânimo...
A polícia disse: “O que é que faz com ele?”, aí o nosso tesoureiro falou: “Não, não faz nada não.” Aí ele disse: “Então vou tratar ele com flor? Ele vai entrar é na pancada”, aí bateu: “[Em] ladrão se bate!” (risos). Ainda mais polícia de Minas, que não refresca [para] ninguém. Foi o único assalto, que eu me lembre. Inclusive, quando assaltaram o trem pagador no Rio – que foi objeto até de filme –, nós saímos de Vitória com pagamento, uma gratificação, quer dizer, o dobro do salário, o dobro do dinheiro. Para fazer essas coisas eu fui com medo, nós levamos a polícia, metralhadora e tudo, mas eu fui com medo, porque era muito dinheiro mesmo. Mas graças a Deus não houve nada.
P/2 – De Vitória, como é que era essa coisa? O pessoal de ferrovia, pessoal de mina, havia um conhecimento entre os funcionários dos setores da Vale, não?
R – Havia um relacionamento de serviço, porque era um complexo de minas, estradas e porto. Quer dizer, saía de Itabira, entrava na estrada de ferro – que era o transporte de trem – e descarregava o minério no porto. Aí já era a parte de carga de navio né, mas existia um relacionamento de trabalho... Não assim, familiar, nem de amizade, as pessoas se conheciam, mas só em função do trabalho.
P/2 – Nem rivalidade de quem trabalha aqui, quem trabalha ali, também não?
R – Não. Existia, uma época, aí criaram a usina de pelotização. O pessoal que [ia] para a usina ganhava mais do que a gente, aí existia certa animosidade. A pessoa... Por exemplo, o engenheiro da usina ganhava mais do que engenheiro da estrada, do porto e da mina. Isso tudo criou... Mas foi tudo sanado direitinho depois. Era um tipo... Era usina né, usina de pelotização: aproveitar uma coisa que se jogava fora. Era o pó do minério... Antigamente jogava-se fora, depois se aproveitou, e hoje, até hoje dá dinheiro. Esse era o relacionamento que existia.
P/1 – Mas no setor do trabalho, no setor que o senhor trabalhava as pessoas eram amigas? Tinha amizade fora da Vale? Encontros...
R – Todo mundo amigo. Ah, tinha vários encontros.
P/1 – Como é que era?
R – Foram criados vários clubes em função disso, mas eram amigos. Porque veja bem, quando eu entrei na Vale do Rio Doce, eu trabalhei no edifício Henrique Lage. Era um negócio gozado, parecia colégio. Nós entrávamos às onze e meia, e saíamos às cinco e meia. Às onze e meia tocava uma campainha no prédio, a gente sabia que o trabalho no prédio começava. Às duas horas tocava a campainha: das duas às duas e dez era o café que a gente tomava, e às cinco e meia tocava para o horário da saída, isso era todo dia, parecia colégio. Depois o prédio não dava mais, aí foi construído... A Vale mudou uma parte para um edifício alugado – que era o Santa Cecília –, depois fez o prédio da Vale em Vitória, que era o Edifício Fábio Ruschi. Fábio Ruschi era o nome do engenheiro da Vale que morreu num desastre de avião. Ele veio, a serviço, do Rio; quando voltou, o avião caiu em Vitória, então o prédio ficou com o nome dele. Eu cheguei a trabalhar no Fábio Ruschi... Muito pouco, porque eu trabalhei no Henrique Lage, em Vitória, depois mudei. Hoje, onde é o museu da Vale, na estação Pedro Nolasco, depois mudei para Porto Velho, e depois voltei para Vitória outra vez e encerrei minha carreira em Porto Velho, quando eu me aposentei.
P/1 – Quando o senhor se aposentou?
R – Treze de fevereiro de 1989.
P/1 – Mas o senhor se aposentou porque o senhor já tinha tempo de empresa?
R – Eu tinha 32 anos, onze meses e dezessete dias. Eu me aposentei porque eu estava muito doente, a doença brava que me pegou no final da carreira: alcoolismo. Eu já não estava funcionando direito, não queria ajuda... A empresa me ofereceu ajuda e eu não aceitei, e eu me aposentei para aproveitar mais a vida. Eu fui indenizado, uma boa indenização, porque o meu fundo de garantia não era optante. Levei onze anos sem ser optante, recebi tudo dobrado e me aposentei para viajar e beber mais. Viajar eu viajei. Não me lembro dos lugares que eu fui, e a bebida eu resolvi... Procurei ajuda, e exatamente no dia treze de fevereiro de 1990, eu nunca mais bebi, até hoje, não bebo mais. Trabalho para uma irmandade para isso, tem dez anos que eu não faço uso de bebida alcoólica, porque eu sei hoje que é uma doença. Ninguém é sem-vergonha ou safado porque bebe, é doente mesmo. Não sou eu quem digo isso, é a Organização Mundial de Saúde, e hoje a minha vida é feliz porque eu não bebo e posso curtir e ter o prazer de estar aqui com vocês falando um pouco da minha vida viu. Hoje o meu hobby é esse: fazer palestras para colégios, hospitais, presídios sobre o que é o álcool.
P/1 – Deixa eu voltar um pouquinho no trabalho...
R – Volta!
P/1 – É, porque significava trabalhar na Vale, assim como as pessoas fora da Vale, assim a comunidade via a Companhia ______________________?
R – Ah, é uma inveja tremenda, porque era um salário bom, um status bom né. Existia uma inveja que... Às vezes a gente tinha barreira lá fora porque trabalhava na Vale né, porque realmente, o padrão de vida era bom. Tudo o que eu tenho hoje eu agradeço ao meu emprego.
P/2 – Que tipo de barreira?
R – Não, às vezes (tosse) você era discriminado pela própria sociedade, certo? Porque não tinha emprego. Costumava-se dizer que bons empregos eram no Banco do Brasil e na Vale do Rio Doce. Era isso, e a Vale do Rio Doce dentro de Vitória, da capital, ou dentro do estado, tinha uma importância muito grande. O crescimento econômico foi graças à Vale do Rio Doce, porque era... O comércio abria. Dezembro era o mês da gratificação, sabia que ia faturar, porque era quando se comprava muito. Então, em determinado lugar, você tinha certa discriminação que as pessoas tinham inveja, e você não fica livre de invejoso não, invejoso tem em todo lugar. Ninguém... Às vezes não te ajuda a crescer, ajuda a te derrubar.
P/1 – Mas a Vale fornecia algum tipo de subsídio, ajuda, para a comunidade?
R – Sempre ajudou, sempre ajudou. Tinha fundos – que eu me lembro –, fundos e ajudas a vários municípios. Muitas obras foram feitas com ajuda da Vale do Rio doce: à hospitais, na saúde do lugar... Sempre ajudou e ajuda até hoje. Locais onde ela passou com a linha férrea, não deixou só o pó do minério não, deixou ajuda financeira para obras, para o desenvolvimento do município, da cidade. Ninguém pode dizer que a Vale não ajudou a lugar nenhum que tinha a linha férrea passado por perto. O crescimento desses locais... Graças a esses transportes de passageiros, essas partes de mercadoria, muita coisa... Até hoje ela ajuda nisso, porque hoje o transporte da linha férrea é mais barato do que qualquer outro. Infelizmente a gente não é [bem] servido de linha férrea no Brasil, mas é mais barato do que qualquer outro tipo, e leva muito mais coisa.
P/2 – O senhor conheceu sua esposa como? _____________________
R – Ah, eu conheci... Eu já trabalhava na Vale, conheci... Ela era minha vizinha e...
P/2 – Não era filha do violento não? Do homem violento? (risos)
R – Não, não, não. Já eu, eu já morava na cidade, papai não mudou __________________, moramos na cidade. O pai dela era fazendeiro, e era bravo à beça. Eu casei com ela, com um pouquinho de medo né, mas casei. Casei em 1963, vinte de julho. E tive dois filhos, um menino e uma menina, sendo que hoje só sobrou a menina, porque o meu filho morreu em 1998. Também trabalhou na Vale, trabalhou em Tubarão, no porto, e faleceu com 33 anos de idade, teve um infarte. Foi um golpe muito grande pra mim e para ela também, mas faz parte da vida. Eu hoje acredito muito em Deus, tudo o que eu faço eu agradeço a Deus, ou peço a Deus para me iluminar, para não fazer bobagem. Até essa entrevista eu pedi a Deus que me ajudasse, que vocês façam um trabalho bom, que sirva de memória. Porque eu disse: história só se faz com memórias, e hoje, embora minha esposa não aceite isso – mas eu aceito plenamente –, que era o destino dele, é a vontade do Senhor, e não a minha né. E eu criei eles à custa do meu salário da Vale. Dei bons colégios, todos os dois se formaram em faculdade. Quer dizer, tudo isso... Como a gente chamava: a viúva mãe.
P/2 – A viúva mãe.
R – É, a Vale era considerada a viúva mãe para nós, antigos. Hoje eu não sei como é que está a vida desse povo lá, porque hoje... Na minha época era uma estatal, hoje é privatizada. Eu não sei como é que está a coisa lá, o regime autoritário de lá, como é que é. Eu não tenho visto muito funcionário alegre na rua não, eu os vejo com a cara triste.
P/2 – É mesmo?
R – É. Eu não sei, mas é que as coisas têm que mudar né, evidentemente que todo mundo está procurando o melhor, o pior ninguém procura né, isso tudo é muito bom, eu tenho orgulho de ter sido funcionário da Vale, tenho orgulho mesmo, não tenho o mínimo arrependimento.
P/1 – O senhor parece que tem um apelido...
R – Eu?
P/1 – É.
R – É que meu nome é todo em alemão: José Carlos da Silva. Eu tenho, em Vitória, 82 homônimos. Tenho um amigo que teve o trabalho de ir até São Paulo e rasgar as folhas do catálogo de telefone e me entregar; tinha três folhas com ‘José Carlos da Silva’ em São Paulo. E o meu apelido desde criança era ‘Neném Borrado’. Quer dizer, o apelido é sujo, mas o homem é limpo.
P/1 e P/2 – (Risos).
R – E tudo isso... Hoje as pessoas não me conhecem, tem gente que não sabe que meu nome é José Carlos, me chamam de Neném. Tem até uma história na Vale de um amigo meu que foi fazer... Eu vendia material velho para a Vale, eu vendia sucata, e ele foi comprar uns _____________________ que eu vendia________________ reformado ______________________ velho, aí ele chegou e falou: “Neném, quem é o tal de doutor Zé Carlos aqui?” Eu disse: “Sou eu”. Ele disse: “Você está brincando, Neném.” “Sou eu!” Tive que mostrar minha identidade para ele. “Não, porque disseram que era um cara que tinha um mal-humor desgraçado, e eu vim ver um negócio com ele e disse que ele é bravo. Você poderia me ajudar?” Aí eu disse: “Você está falando com ele, rapaz. O que é que você quer?” Pra você ver como é que são as coisas. E até hoje tem gente que não sabe meu nome, só me chamam de Neném.
P/1 – Por que é ‘Neném Borrado’?
R – Ah, isso é coisa de criança, né. Outro dia eu estava até vendo um negócio interessante. Eu estava lendo no jornal que a professora foi processada pelo pai de um aluno porque não deixou o aluno ir ao banheiro. E meu caso foi esse: era porque era levado da breca, pedi à professora para ir no banheiro, ela não deixou, eu fiz nas calças. Aí, daí pra frente é um negócio que ninguém esquece né, pelo cheiro, até, ninguém esquece. E eu fui candidato político...
P/2 – Você foi candidato?
R – ...Registrei meu apelido: Zé Carlos Neném, Neném Borrado. Tinha até meu slogan: “Não vote errado, vote Neném Borrado.” Tudo isso era aproveitando para a mídia.
P/2 – O senhor foi candidato a quê?
R – Fui candidato a vereador em Vitória, fui, fiquei conhecido no Brasil inteiro, porque a minha propaganda era, tava naquela música calcinha ______________________. Aí a minha propaganda era calcinha de mulher, com a minha caricatura no fundo da mulher, escrito: “Não vote errado, vote Neném Borrado”. E estou aí. Isso saiu em toda a imprensa brasileira, até no programa do Silvio Santos, a Praça é Nossa, saiu uma paraibana que tinha lá, dizendo, mostrando que tinha um vereador que dava calcinha e não sei o quê. Agora pergunta se eu ganhei alguma coisa? Não ganhei nada, fui traído pelo voto feminino. Eu mandei fazer calcinha à beça, quase mil, e fui traído pelo voto feminino.
P/2 – O senhor mandou fazer calcinha? (Risos)
R – Mandei.
P/2 – E distribuía em comício, como é?
R – Não, eu distribuía. Porque o voto não é secreto, a propaganda tem que ser oculta. Tudo isso falhou, a mídia falhou comigo. Depois eu insisti sendo candidato outra vez, aí eu desisti de política, não era pra mim, eu tinha que ficar quieto no meu lugar.
P/2 – O senhor se apresentava em programa de rádio, TV?
R – Não, nunca apresentei nada. Meu negócio... A única coisa que eu fiz foi ser cartola de futebol, porque a Vale do Rio Doce tinha, quando resolveu tomar a decisão... A pergunta anterior, que existe várias sociedades dentro dos empregados da Vale, e uma delas tinha o futebol, tinha uns seis ou sete times, aí ela juntou tudo e fez um, a Desportiva Ferroviária, e eu fui presidente dessa desportiva no período de 1987 e 1989. Era um time bom, foi campeão em Vitória várias vezes, representou muito o Espírito Santo na Taça Brasil. Hoje ela entregou tudo, é particular; deu o terreno, deu o estádio, deu tudo para a Desportiva, mas explorado por
particular. Então eu era conhecido através do futebol só, mas sempre tive conotação do folclórico Neném. Tinha história né, eu tinha história...
P/1 – Na Vale todo mundo te chamava de Neném?
R – Neném, só neném. Não chamavam o resto [do apelido] porque era falta de respeito.
P/2 – Era já conhecido, então? (Risos)
R – Sou conhecido, até hoje.
P/2 – Por que o senhor julga...
R – Hein?
P/2 – Por que o senhor julga que era conhecido? De onde vem a popularidade do senhor, que o senhor acha?
R – Sei lá, acho que é meu jeito, minha, minha... No modo que eu levo minha vida né, fazendo sempre uma gracinha, levando a coisa não muito a sério. Você não pode se levar muito a sério, não se leve muito a sério não. Entendeu? Isso tudo. Por exemplo, se eu não sou conhecido, eu não conseguiria comprar fiado, porque o SPC [Serviço de Proteção ao Crédito] de Vitória, o que tem de José Carlos da Silva pendurado… Não está no gibi, eu não conseguiria. Quando eu quis apanhar o financiamento para fazer minha casa pelo BNH [Banco Nacional da Habilitação], esbarrei com um José Carlos da Silva que estava cheio de protesto, e quase que não sai o meu financiamento, só saiu porque o gerente da caixa era meu conhecido: “Bom, esse não é esse, é esse”. E sempre gostei de umas historinhas né, tem sempre uma anedotazinha para a pessoa. Fazer o lado cômico da vida né, isso me faz não ficar velho, ficar idoso, e baseado nisso eu me meti em política né, desde... Perdi, gastei dinheiro e dancei, e nunca mais me meto, nem para ajudar político. Não quero saber disso, quero ficar quieto no meu canto. Acordo às dez e meia todo dia e saio da mesa do almoço com sono; durmo até às quatro da tarde... O que é que é isso, hoje eu tenho um propósito: curtir minha aposentadoria. Não viajo mais porque não posso, não tenho grana, mas curto minha aposentadoria condignamente, e eu acho que eu mereço, mereço bem.
P/1 – Como é que eram, assim, as relações hierárquicas na Vale?
R – Muito respeitosa, a hierarquia funcionava.
P/1 – O senhor tinha funcionários que o senhor... Quando o senhor se aposentou, estava em qual cargo?
R – Ah, eu já era assistente técnico de material. Eu estava em um cargo bem grande, bem alto.
P/1 – Mas aí o senhor tinha alguns funcionários, empregados que trabalhavam subordinados ao senhor?
R – Tinha, tinha, tinha.
P/1 – Como é que era essa relação de comando?
R – Era a mais amistosa possível né, porque eu passava para os meus empregados que: manda quem pode e obedece quem tem juízo, está certo? O sujeito saber até onde ele podia ir... E eu sempre fui assim, obediente e fazendo isso. Se pode mandar, então vão obedecer e acabou. Agora, existia certo respeito, deve existir até hoje; respeito não é medo não, porque quando o empregado tem medo de você, não é bom negócio. Ele tem que ser seu amigo e te respeitar, quando o empregado tem medo de você, ele não vai produzir muita coisa não, ele não vai te ajudar em muitas coisas, porque ele tem que ser primeiro seu amigo, depois seu subordinado, e só quem ganha com isso é a empresa. Qualquer lugar, se você tiver que fazer uma mudança no seu ambiente de trabalho, mude a sua mesa e a posição de se sentar na sala, não mexa com quem está lá, porque ele pode ser o seu futuro, pode ser o elevador para você subir. Se você não o tratar bem, ele pode te arruinar. Esse era o relacionamento que eu procurava passar para os empregados.
P/1 – E os empregados eram comprometidos com a Companhia? Assim , tinha uma...
R – É, eles se sentiam na obrigação de prestar um bom serviço, se sentiam. Isso você podia contar com ele fora de hora, dentro de hora, qualquer jeito; se você precisava dele, ele estava lá: sábado, domingo, feriado. Sem exigir nada, ele vinha.
P/1 – De onde o senhor acha que vem esse comprometimento dos funcionários com a Vale, essa coisa de vestir a camisa?
R – Pelas coisas que recebia em troca. O salário em dia, certo, participação dos lucros, isso tudo contribui para que o empregado seja assim.
P/1 – E tinha participação dos lucros?
R – Tem até hoje.
P/1 – Quando começou isso _______________________ você sabe?
R – Olha, desde 1956 – quando eu entrei –, que nós, em junho e dezembro... Nós [recebemos] uma gratificação, e era um mês de salário. Teve época que ela [a Companhia] dava dois meses de salário, de gratificação em dezembro. O Natal era gordo, para nossa família era gordo.
P/1 – Dava dois salários de gratificação além do décimo terceiro?
R – Não tinha décimo terceiro, décimo terceiro veio depois.
P/1 – Veio depois, é, tem razão.
R – Quando inventou o décimo terceiro, dava um salário, mais o décimo terceiro, mais o mês.
P/2 – Nossa!
R – Era muito dinheiro, para o assalariado era muito dinheiro, isso inclusive causava inveja ao pessoal de fora né, _________________ “Ah, é funcionário da Vale...”, você às vezes era até desprezado em uma festa, porque ninguém queria conversar com você. Achavam que nós éramos orgulhosos e importantes demais, e na verdade não era isso.
P/2 – O sindicato da Vale, como é que funcionava?
R – O sindicato eu vou dizer: com certeza o sindicato funcionava muito na minha época, na época dos aumentos salariais. Mas a Vale ajudava muito ao sindicato, ajudava muito, o que o sindicato pedia, se ela pudesse, ela ajudava. Mas eles não eram inimigos da vale. Não sei se hoje é assim né, mas a Vale prestigiava muito o sindicato.
P/2 – O senhor assistiu desde criancinha a construção do porto e tudo. E Porto de Tubarão ___________________
R – Assisti, eu tive a oportunidade de ler o projeto para criar o Porto de Tubarão, o que é que tinha, o que é que ia ser feito. E conheci o porto virgem, sem ter nada, porque era o final de Camburí, era uma praia pedra, e foi uma obra monumental. Assisti a inauguração, participei das festas... Porque davam churrasco, churrasco? A gente estava lá, boca livre né, ninguém perdia. E assisti a isso tudo. Já assisti a várias solenidades dentro da Vale, e a última que eu participei foi nos 50 anos da Vale. Eu já estava aposentado, a Vale fez um trem sair de _______________ até Belo Horizonte. É para aposentados, viúvas, pensionistas e esposas de empregado. Então nós fomos nesse trem, foi uma viagem, dezesseis horas de viagem.
P/2 – Dezesseis horas, então foi uma farra?
R – Foi uma farra. Beleza, eu até escrevi um artigo, porque eu gosto de escrever alguma coisa sobre esse trem né, e mandei para a comunicação da Vale, mas acho que eles não gostaram não, porque nunca deram bola. Mas eu mandei, porque para mim foi uma aventura, que eu me lembrei muito de quando eu viajava no trem pagador. Porque era uma viagem de trem, e esse trem pagador, como aprendizado, para mim foi uma maravilha, porque eu vim conhecer o que era a linha férrea e para onde eu ia trabalhar na Vale do Rio Doce, coisa interessante.
Eram uns trens enormes, o trem pagador; e o guarda-freio ia no último vagão, porque a função dele era ficar alí né, e como a gente cruzava com o trem de minério descendo, o maquinista parava a máquina perto do trem e recebia. Agora, o pobre do guarda freio tinha que ir a pé lá de trás para poder receber, e se você perdesse... Quando encontrava o trem subindo, se você perdesse de receber o dinheiro, você só ia receber oito dias depois, às vezes, porque o trem ia lá em cima, e quando voltasse, às vezes tinha que coincidir de o maquinista, o guarda- freio e o ajudante do maquinista ter que viajar outra vez. E ficava nesse negócio, e era de noite às vezes, o cara vinha lá de trás, no escuro, para receber o dinheiro dele. Às vezes a gente estava dormindo no trem pagador, às duas horas da manhã o cara encostava lá. A máquina, ainda bem que já era a diesel, não era a besta preta – como a gente chamava a locomotiva a vapor.
P/2 – Besta preta (risos).
R – A besta preta. E às vezes ele parava a máquina perto do trem pagador, aquele barulho de motor dos diabos e ficava de lá: “Bem que o senhor podia pagar a gente, né?”, e ele, de tanto insistir a gente abria o trem para pagar o camarada. Isso tudo foi experiência básica, eu era garoto, 21 anos, 22 anos, doido por aventura, eu era doido para ir à Valadares né, Valadares tinha o maior prostíbulo do Brasil, chamado figueirinha. Era uma coisa de doido. O troço mais gozado que tinha lá é que você não podia entrar de chapéu dentro do prostíbulo: eles colocavam você para fora, era falta de respeito.
P/2 – Entrar de chapéu?
R – Se entrasse de chapéu eles botavam para fora. Mas era uma coisa de louco, era famosa figueirinha, e Valadares se matava _____________________ se bobeasse o nego passava fogo em você.
P/2 – Em Valadares?
R – Em Valadares, perigosíssima a zona.
P/1 – Por quê?
R – Bandido, o tal da tocaia, esse negócio. Apareceu lá um tal de um tenente Pedro, da polícia mineira. Esse camarada impôs um respeito em Valadares, acabou com os crimes; a última notícia que se soube dele... Não sei se está vivo, ele era delegado de captura da polícia de minas. Hoje era coronel Pedro, mas deixou uma história em Valadares. Era um negócio... A gente era doido pra chegar em Valadares. Jovem, moçoilo, dava aqueles passos mirabolantes de dança dentro de um prostíbulo.
P/2 – Onde mais, onde tinha mais parada assim?
R – Tinha em Coronel Fabriciano, onde é a Usiminas. Lá era __________________ coruja também era um prostíbulo.
P/2 – (Risos) O pessoal da Vale se encontrava tudo lá?
R – Ah, no dia do pagamento era cheio _________________. Ferroviário de bonel, ficava cheio.
P/2 – Ficava todo salário lá (risos).
R – Ah, deixava pelo menos os compromissos, alguma dívida antiga.
P/2 – ___________________________.
P/2 – O senhor tem aqueles... Do livro dos causos o senhor mandou dois, né?
R – Mandei dois, mas tem mais... Eu mandei quatro, foram selecionados dois.
P/1 – Ah, conta uns causos aqui para a gente.
R – Ah, tem muito causo. A gente ouvia dos mais antigos né, tem causo assim... Exemplo: repara bem em uma cidade ao longo da linha. Três pessoas mandavam na cidade – para você ver a importância do... Era o padre, o delegado de polícia e o agente da estação. O agente da estação era uma autoridade tremenda, viu. E existe um caso da seguinte forma: o agente da estação – só o agente da estação – podia passar telegrama do (Morse?), e só o agente da estação que podia dar licença para o trem sair. Quando não tinha agente, o trem não saía, era licença pra trafegar né. E em uma estação – dessas do interior –, o agente morreu de noite. Então o que aconteceu? O auxiliar não podia dar partida de trem e precisava, e não podia passar telegrama também não, aí passou um telegrama cá para baixo: “Comunico que faleci hoje à meia noite. Mande substituto”, e assinou o nome do defunto. Foi o único jeito! Tem um outro causo... Tinha umas gaiolas de transporte, e aquilo tudo era feito em despacho – um documento tipo uma nota fiscal. E o carro era chamado ‘VD’. Aí o camarada despachou de Nova Era para Vitória um Burro e um amarrado de feno, e teve que fazer dois despachos. Quando chegava aqui na estação de destino, que o camarada ia conferir o vagão, nesse vagão ele só achou um despacho, o outro não. Então, na conferência do VD114, encontramos a falta do despacho número tal: “favor informar”, daí o agente de lá disse assim despacho número tal comeu despacho número tal. Quer dizer, o burro comeu o feno, né (risos). Depois tem outro também sobre esses despachos, e que o agente de cá comunicou que encontrou a sobra de um porco e a falta de um suíno né... Viu, mas tudo isso são histórias que a gente ia ouvindo por aí.
P/2 – Qual é o lugar de contar histórias? Onde é que isso acontecia?
R – Eu ouvia muitas histórias viajando no trem pagador, muitas histórias assim eu ouvia.
P/1 – Conversando dentro do trem?
R – Dentro do trem, porque o trem pagador era um escritório, menina! Era um vagão... Era um escritório onde ficava o dinheiro, tal. O outro era a cozinha e nosso dormitório. Quando a gente viajava na besta preta, era um calor desgraçado, você não podia abria a janela porque senão a fagulha tomava a boca de cama. E a gente tinha que ficar ali. E você já viu freada de trem? É uma coisa de doido, o trem não freia, não é igual carro, que você vai apertando devagarzinho e ele vai parando. Não é (baaaabuuuuiii?), e o nosso cozinheiro estava fazendo uma feijoada; o maquinista deu uma brecada no trem, caiu tudo da pia, em cima do fogão, e nós fomos comer a feijoada na hora do almoço, nisso o tesoureiro – que era um senhor: “O toucinho é meu”, e furou o toucinho. A feijoada estava com um gosto horroroso. Aí, quando ele pegou o toicinho, que botou no prato, ele cortou. Era um sabão que caiu dentro da feijoada. (Risos) Isso tudo a gente ia levando a vida na brincadeira. Tinha o guarda-freio – o guarda-freio Romero. A gente comia muita galinha. Comprava a galinha viva... Sabe como é que ele matava a galinha? Ele botava o pescoço da galinha no trilho e mandava o maquinista dar marcha ré (risos), aí cortava o pescoço da galinha
P/1 - _______________________ (Risos)
R – (Risos). Isso dava um livro, se pudesse escrever, com o tempo. Quando eu saí da Vale, estava na era do computador. Eu não sei nem mexer no computador, viu. Eu estive na Vale – há uns quinze dias atrás –, e em cada mesa tem um computador. Eu digo: eu estaria mal com isso aí. Eu tomo choque até em rádio a pilha _________ mexer em computador. Mas os causos que eu escrevi... Eu gostava de aprontar, com os novatos então eu aprontava. Uma vez chegou um engenheiro para trabalhar com a gente, ele era até... Não era muito fanático não. E de tarde a gente tomava um cafezinho com biscoito, aí um dia ele virou pra mim: “Não tem jeito de botar um leitinho aqui não?” Aí eu digo: “Tem sim. Eu não sei onde vocês trabalham... O senhor, para pedir um material, você assina um documento...” – era chamado de BG52, requisição de material ou almoxarifado. Eu fiz. Como ele ocupava um cargo relativamente alto, ele tinha poder para assinar aquilo, aí eu fiz, na requisição de material, uma vaca. Fiz um documento e pedi a ele para assinar. Ele disse: “O que é isso?” Eu disse: “Uma vaca. Você não quer um leitinho? Pra poder ter o leitinho tem que requisitar.” Ele assinou o documento.
P/2 – Ele assinou o documento? (Risos)
R – Sim, requisição de uma vaca ao almoxarifado. Mas isso tudo, a gente... Nos momentos de lazer você brincava bem.
(Pausa)
P/2 – O senhor estava contando os causos, e a maior parte dos causos são de ferrovia, né?
R – É.
P/2 – __________________. Por que quê o senhor acha que...
R – Porque foi onde eu trabalhei né, a minha vida toda foi em ferrovia. Trabalhei na estrada, do porto da usina e da mina eu não conheço praticamente nada não, eu só conheço coisa da estrada.
P/2 – Mas não é o lugar que tem mais causo? Nada disso...
R – Ah, é, mais antiga é a estrada né, a estrada é mais antiga.
(Pausa)
R – E __________ em Itabira foi uma tempestade.
P/2 – Tempestade?
R – Coisa horrorosa, porque as montanhas de minério, ferro né, é raio pra tudo quanto é lado, coisa medonha. E eu me assustei... Trovão e raio bravos.
P/1 – O senhor estava no trem?
R – Não, eu estava lá.
P/1 – Lá na cidade?
R – Estava na cidade, me assustei. Não tenho medo de trovoada e tempestade não, mas me assustei.
P/1 – Claro, porque tem a mina que atrai.
R – Atrai, eu acho. E um barulho ensurdecedor, negócio feio.
P/1 – E a esposa do senhor, reclamava muito?_____________________
R – Não, porque o irmão dela também trabalhava na Vale né.
P/1 – Ah é?
R – É, ela não reclamava não. Agora é que ela está mais reclamona, mas antigamente... Eu até falei pra ela um dia: “Olha, eu me casei com você porque você falava pouco, agora você está falando que não acaba mais. Eu vou tirar você da herança, porque desse jeito não dá não.” Até eu gosto muito de... Eu disse, a minha vida eu gosto de levar sorrindo né, e ela andou reclamando muito de doença: “Eu estou com dor aqui...”. Eu digo: “Olha, vou fazer um negócio pra você. Você está tão mal que eu vou fazer um __________ de vida de você pra mim, porque do jeito que está a coisa, você vai morrer, e eu quero ficar no velório já com algum no bolço”, e fiz. Ela diminuiu de reclamar de doença: artifício, né. Mas ela me ajudou muito na minha vida, metade de tudo que nós temos eu devo a ela, porque tem muitas maneiras da esposa ajudar né, dentro de casa, fazendo economia disso e daquilo.
P/1 – E os filhos, eles iam de trem com o senhor? O senhor levava eles para andar de trem?
R – Levei, levei de trem uma vez, nós fomos passear em Governador Valadares. Eu só não consegui levá-los de navio, mas de trem, de avião, de ônibus, eles foram a vários lugares comigo.
P/2 – O senhor mesmo andou de navio, ou não?
R – Não. É o meu desejo ainda, está faltando eu completar minha vida fazendo uma viagem de navio. Mas só pela costa do Brasil, não quero ir a lugares diferentes não, quero pegar um cruzeiro para o nordeste; norte, nordeste. Isso eu ainda vou fazer antes de ir para o andar de cima, pretendo fazer.
P/1 – Nessa...
R – Porque eu sou louco por mar né, eu sou pescador oceânico,_________ e buscar mar lá fora né, eu gosto, pesca assim eu gosto.
P/2 – Tem companheiro de pesca?
R – Tem, tem tudo, e de beira de praia também né. Eu gosto de contar uma mentirinha também. Porque eu acho que em 1949 eu fiz exame para a escola naval, eu ia ser... Eu tinha vontade de seguir carreira marítima, mas era difícil entrar na escola naval na época, e eu não consegui passar. E depois que você passa tem que arranjar prestígio. Naquela época, para entrar pra escola né... Mas eu não consegui passar não, mas adoro o mar.
P/1 – Pensando um pouco nessa trajetória que o senhor teve na Vale do Rio Doce, qual foi o fato que mais marcou o senhor?
R – Na Vale do Rio Doce?
P/1 – É. __________________
R – É que marca você, às vezes... Você perder um colega de empresa a serviço né, em trabalho. E isso aconteceu umas duas vezes, morreu o amigo né. Agora, de alegria...
P/1 – Morreu? Como assim?
R – Desastre. Tem um companheiro meu que morreu no auto de linha. Ele encostado, o auto de linha andando, a porta abriu pra fora e ele caiu e morreu. O Fagundes – o nome dele. E morreu. Outros morreram de câncer... Isso tudo marcou. Agora, a felicidade grande que eu tive foi quando a Vale fez uma olimpíada, isso foi lindo. ‘OliVale’, e eu tive a oportunidade de coordenar a equipe da estrada de Vitória. Aí eu via estampado nos colegas de trabalho a alegria de estar participando daquilo, porque é comum você promover jogo de pelada, solteiro contra casado, ____________________. Mas em uma olimpíada foi um negócio lindo, foi uma ideia maravilhosa da Vale, foi onde eu vi vários funcionários alegres e felizes. E começamos com festa, eu trouxe até um álbum ali que tem a...
P/1 – Legal!
R – Isso, terminamos com churrasco, banda de música, tudo, dança folclórica. Isso tudo foi alegre. E no dia que eu entrei e no dia que eu saí, que me aposentei, foi ótimo, porque quando eu entrei na Vale eu olhava aquelas pessoas mais velhas e dizia: “Eu não vou conseguir chegar lá nunca”, e cheguei né. Cheguei e me aposentei, isso tudo é motivo de alegria. Porque você, na sua vida, tem momentos de felicidade, você não é feliz a vida toda não. Diz que viver é difícil, morrer é fácil; mas viver é muito difícil, e você, se não estiver preparado para enfrentar as dificuldades da vida, você... Se você sair de casa pensando bobagem vai acontecer bobagem com você, então eu procuro tirar da minha vida todos os momento, pequenos momentos de felicidade que eu tenho, e eu vivo com isso, eu tenho orgasmo com isso.
P/1 – Depois que o senhor se aposentou, o que o senhor sente mais falta ou sentiu em relação ao trabalho na Vale?
R – É aquela obrigação de você ir trabalhar e voltar, isso você sente um impacto, você perde até a noção do tempo. E acontecia às vezes de você acordar de manhã e ter que trabalhar, mas você já está aposentado. Mas eu hoje curto a minha aposentadoria como ninguém, é um direito que eu tenho, que eu adquiri, de viver uma aposentadoria. O que passou, passou; foi bom, foi bom; foi ruim eu procuro esquecer, eu só me lembro do que foi bom, viu.
P/1 – Pensando um pouco na sua trajetória de vida: se o senhor tivesse que mudar alguma coisa nela, o senhor mudaria?
R – Não, nada. O que eu tinha que fazer para mudar minha vida eu já mudei porque eu quis mudar. Hoje eu não tenho que mudar nada, tem que ficar assim do jeito que eu estou, tendo o prazer de falar pra vocês. Isso pra mim é ótimo, isso me deu satisfação de chegar até aqui pra contar alguma coisa do que eu passei na Companhia Vale do Rio Doce. Porque enquanto eu trabalhei, vivi momentos de trabalho na Vale, porque eu tinha um ideal, que era crescer, e ela cresceu e cresceu muito, cresceu muito.
P/1 – Você tinha esse ideal de a Companhia crescer?
R – Tinha, tinha. Tinha como tenho, porque isso é Brasil né, minha filha. Por que é que nós temos que ser pior que os outros? Nós podemos ser melhor, então vamos ser. Nós não temos que ficar com inveja de ninguém, nós temos tudo aqui, só não vai pra frente por quê? Eu costumo dizer que o Brasil não deveria comemorar quinhentos anos não, devia comemorar zero ano, porque ele não cresceu até hoje, em quinhentos anos. Não é aquilo que a gente esperava não, o que outros países com menos tempo conseguiram fazer, nós não conseguimos. Por quê? A culpa é nossa, são os homens, nós é que conduzimos ____________, a culpa é nossa. Se cada um cumprisse sua parcela de responsabilidade, dava certo. Eu ainda sou um otimista.
P/1 – O senhor acompanhou o processo de privatização da Companhia?
R – Sofri muito com isso, sofri muito, viu. Costumo dizer que na nossa época nós não éramos empregados da Companhia, nós éramos donos da Companhia, e hoje são empregados, não são mais donos, são empregados. Acho que nós tínhamos mais liberdade de agir, de fazer as coisas sem estar com receio de no outro dia não ter o emprego. Porque na nossa época a gente cumpria nossa obrigação, não tinha a mínima chance de você perder o emprego, não tinha a mínima chance. Na verdade não sei se isso foi um erro ou um acerto, mas ela foi, tanto foi que ela está aí hoje por nossa causa. Nós costumávamos vestir a camisa da Vale do Rio Doce, e vestia mesmo, pra tudo que ela quisesse. Era pra quebrar um recorde de transporte de minério, a gente quebrava esse recorde. De exportação? Quebrava. Fazia força e tal, dava um jeito. Era um descarregamento de trem? Em um instantinho a equipe virava a noite, ficava, às vezes, Natal e Ano Novo. Quando chovia muito, costumava dar os desastres né, acidente de trem. O pessoal ia lá, virava a noite, trabalhava e tal, e botava a linha em ordem, o trem na linha andando novamente. Tudo isso era feito com muito amor, não sei hoje. Porque o empregado, quando tem raiva da empresa num negócio desse, ele torce pra que aconteça mais vezes, e isso... Normalmente é assim né.
P/1 – O senhor tem algum grande sonho?
R – Tenho. Viajar de navio é meu grande sonho, ultimamente. Viajar de navio. E vou fazer, se Deus quiser.
P/1 – O senhor tem alguma coisa que o senhor queira falar? Que a gente não tenha...
R – Não, só tenho a agradecer a oportunidade que me foi dada. Espero que vocês consigam vários depoimentos, para que a Vale do Rio Doce tenha a sua história, porque a Vale do Rio Doce é uma potência mundial, não é estadual nem brasileira não, é mundial. Espero que vocês consigam, com isso, motivar aqueles que estão por aí, ainda nela, a cada vez tratar essa Vale com amor e carinho pra que ela seja sempre lucrativa. Hoje, se tem um dono, que esse dono fique podre de rico, mas que a Vale esteja aí, dando emprego para várias pessoas, várias famílias, para um Brasil melhor, só isso.
P/1 – Eu esqueci de fazer só uma perguntinha (risos). No período que o senhor ficou na empresa, na sua opinião, qual foi o período de maior crescimento da empresa, que o senhor sentiu, assim? Agora essa empresa está crescendo mais ainda?
R – Todas as vezes que um presidente chamado ___________ Batista da Silva foi presidente, a Vale cresceu, porque existia uma credibilidade nesse homem, porque a maior parte de minério vendida pela Vale é para o japonês, e os japoneses têm uma crença nesse homem, fora do comum. É um sujeito inteligentíssimo; ele fez Tubarão, fez tudo o que você imagina na Vale. Ele construiu o cais de Tubarão, esse homem foi ministro, agora é uma pessoa fabulosa. Tem uma história de quando ele foi ministro e chegou à Vitória de trem na estação de Pedro _________. Tinha lá todas as autoridades de Vitória esperando por ele chegar. Ele saltou do trem e saiu pra cumprimentar uma pessoa. Foi o motorista dele quando ele era superintendente de trabalho, foi a primeira pessoa que ele cumprimentou, esqueceu o resto todo, foi. Isso o que quer dizer? Um sentimento dele né. Quer dizer, evidentemente esse motorista deve ter ajudado muito ele. Quer dizer, é uma pessoa responsável, que conduziu sua família, tal, tudo direitinho, então se vê onde estava o amor da empresa: aí, por essas pequenas coisas, e essas pequenas coisas que levam às grandes coisas. Então ela cresceu toda vez que este homem esteve à frente da Vale do Rio Doce, e não é inteligência de ser desprezada não, até hoje ele continua por aí, e ele ainda tem muito para dar pra empresa – pra empresa não, para o Brasil. O que mais?
P/1 – Está ótimo, achei super bonita, a entrevista. Queria agradecer o senhor por ter vindo.
R – Nada a agradecer. Todas as vezes que precisar para contar um pouco de história, estarei à disposição
P/1 – Oh, obrigada. Super obrigada.
R – De nada.Recolher