Entrevista de Roberto Carlos Dias dos Anjos
Entrevistado por Lucas Torigoe
Barcarena, 26 de setembro de 2020
Projeto Memória de Barcarena
Entrevista número HYD_HV0014
Transcrito por Selma Paiva
P/1- O senhor sempre fala olhando pra mim, não precisa olhar pra câmera.
R- Certo.
Tá.
P/1- Senhor Roberto, qual é o nome inteiro do senhor? Onde o senhor nasceu? Que dia que foi?
R- O meu nome é Roberto Carlos Dias dos Anjos.
Eu sou natural de Barcarena.
Nasci na Vila do Conde, no dia primeiro de dezembro de mil novecentos e sessenta e seis.
P/1- E qual é o nome da sua mãe, senhor Roberto?
R- O nome da minha mãe é Aida Dias Moreira dos Anjos.
E do meu pai é Alfredo Miranda dos Anjos.
P/1- Qual é o nome dos seus avós, parte de mãe?
R- Parte de mãe.
.
.
P/1- Não tem problema não, se você não lembrar.
Você os conheceu?
R- Conheci só a minha avó.
Era Juvência, o nome dela.
Juvência Moreira, né e o meu avô eu não conheci, na verdade.
Nem lembro o nome dele, no momento.
P/1- Entendi.
Mas a sua avó você se lembra como ela era?
R- Lembro.
Uma pessoa.
.
.
na verdade, ela era descendente dos indígenas Mortiguras.
Ela era bem.
.
.
a feição dela mesmo era bem de indígena mesmo, né? E os costumes também.
Era uma pessoa assim, que ela não teve oportunidade de conhecer uma cidade.
Pelo que eu observava nela, ela nunca tinha ido numa cidade grande.
E ela sempre viveu nessa região da Vila do Conde.
Mais propriamente numa localidade chamada Curuperé, né, onde eu ainda resido até hoje.
E ela tinha todos os traços de indígenas e os costumes, a fala era muito, assim, própria dos indígenas, né? Senhora Juvência, eu me lembro muito dela.
E era uma pessoa muito carinhosa também, uma pessoa que cuidava muito bem de nós.
P/1- E que costumes que ela tinha, que você falou que eram bastante indígenas? O que ela fazia?
R- Assim, por exemplo, quando ela era mais nova, inclusive, apanhava açaí.
Por exemplo, subia no açaizeiro.
Que era uma coisa muito típica, assim, da nossa região, tantos os homens, quanto as mulheres, apanharem açaí.
Eu lembro que ela fazia isso.
Até o momento que ela ficou cega, que ela não pôde mais fazer isso, já, uma doença e ela ficou cega.
E fazia farinha também.
Lembro que a farinha de mandioca, era uma prática comum, todo mundo sabia fazer isso.
E a minha avó também.
Eu lembro muito bem que ela gostava muito de fazer farinha.
Não só gostava, como precisava também, para a sobrevivência.
P/1- E pescava também, ela?
R- Pescava também.
Sempre pescou.
P/1- Você falou que ela era muito carinhosa.
Como era o jeito dela se vestir, de andar, de fazer as coisas?
R- O jeito de se vestir, assim, esse jeito muito caboclo mesmo da nossa região.
É uma roupa simples, porque assim de pessoas pobres mesmo, dessas caboclas, entendeu? Assim, uma maneira muito simples.
E não sabia ler, nem escrever, né? E assim, na verdade, se preocupou muito em cuidar dos filhos, aquela coisa assim de tradição mesmo de uma mãe de família, né, que um dos aspectos mais forte mesmo, era cuidar dos filhos mesmo, que não tinha condição de dar, tipo assim, um presente caro, brinquedos pros filhos, essa coisa toda, mas se preocupou em dar o sustento, cuidar e dar carinho, né? Eu penso assim que teve os filhos, que sempre foram pessoas de bem, né, pessoas que foram úteis à sociedade e à comunidade.
E eu penso que isso se deveu muito à criação dela que, como eu disse, mesmo sem saber ler nem escrever, mas se preocupava muito, assim, com uma boa criação dos filhos.
E eu penso que isso, a minha mãe conseguiu repassar pra nós também, esse modo de criar, de cuidar dos filhos.
Eu penso que essa é a maior dádiva, o maior atributo, na verdade.
Nós nos sentimos, assim, cuidados, amparados, porque a minha mãe teve a oportunidade de aprender a cuidar dos filhos e repassou pra nós isso.
E isso vai passando, de geração em geração.
Eu penso que é o que mais destaca na criação da minha avó.
P/1- E ela cresceu ali nessa região Curuperé.
Tinha outras famílias também descendentes de indígenas ali?
R- Sim, porque, na verdade.
.
.
depois eu creio que você vai me perguntar um pouco mais sobre os indígenas, sobre essa coisa, que eu quero contar com mais cuidado.
Assim, nós moramos nessa localidade do Curuperé.
Na verdade, assim, são casas.
.
.
sempre foram casas espaçadas na época em que, vamos dizer assim, os meus avôs tinham um terreno muito grande, o vizinho tinha um outro terreno muito grande.
Então, tinha uma casa aqui, outra a alguns metros, muitos metros de distância, até quilômetros de distância, né, os terrenos eram muito grandes.
E ali nós vivemos.
Se tratavam muito assim como compadre, a comadre.
E os terrenos não tinham.
.
.
eu lembro muito bem assim, que não tinham cerca, né, na época.
Porque as pessoas tinham aquele respeito, vamos dizer assim: “O sítio do compadre começa em tal lugar.
Então, o meu vai até esse local, até a árvore tal”.
Não tinha nenhum pico, alguma coisa delimitando, mas era uma seringueira, uma açaizeira, uma castanheira.
Então, ele dizia assim: “Até naquela castanheira é nosso.
Nós podemos pegar o cupuaçu.
Nós podemos apanhar o açaí.
Nós podemos pegar a castanha.
Agora, daquela castanheira pra lá, já é do compadre fulano de tal, então ninguém pode pegar”.
Então, existia esse respeito, né? Isso, os nossos avôs, os nossos pais, nos repassaram.
Quer dizer: só pode pegar o que está dentro do nosso quintal.
E nunca precisou de cerca, entendeu? Então, a delimitação era uma árvore, era alguma coisa assim que.
.
.
uma pedra, alguma coisa assim.
Era: “Até aqui é nosso.
Daqui pra lá é do compadre e que vai até determinado ponto, que já é do outro compadre”.
Então, na verdade, assim, eram residências espaçadas e que a gente tinha que caminhar um pouco pra poder chegar na casa mais próxima, entendeu? Então, essa região do Curuperé e todas as pessoas que viviam nessa região, eram descendentes dos indígenas Mortiguras.
P/1- E o seu pai? Qual é o nome do pai do seu pai e da mãe do seu pai?
R- Do meu pai, o nome do pai do meu pai é Romualdo, tá? E da mãe do meu pai era Júlia.
E eu só conheci o meu avô paterno, o ‘seu’ Romualdo, tá? Quando eu nasci a minha avó já havia falecido, por parte de pai.
P/1- E como era o teu avô?
R- O meu avô Romualdo também era muito assim, uma pessoa simples, né? E uma pessoa que, enfim, pescava, também que cuidava da agricultura, fazendo farinha, plantio de roça.
Também essa coleta de frutos na mata.
E caça também, né, porque tinha muita caça na nossa região.
E era um homem também, assim, eu lembro bem dele, muito atencioso.
Falava pouco, mas sempre o necessário e com palavras, eu diria, palavras inteligentes, também.
Mesmo com pouco conhecimento da leitura, da escrita, mas alguém assim que tinha muito conhecimento.
E conseguia, mesmo falando pouco, trazer alguns ensinamentos pra nós, né, sobre a importância, assim, de cuidar da natureza, cuidar dos sítios, né, que isso sempre se dizia ser importante pra nossa sobrevivência, que as árvores frutíferas possam sempre dar fruta.
Então, por isso, a gente precisa cuidar da natureza, precisa cuidar das plantas, pra que a gente possa sempre ter, entendeu? Então, eu lembro muito isso do meu avô, muito nesse sentido.
P/1- E ele também era dos Mortiguras?
R- Também descendente dos Mortiguras, né? Todas as pessoas da minha região eram descendentes dos Mortiguras.
P/1- Mas ele era da mesma rua, da mesma região?
R- Sim.
Da mesma região.
Todas do Curuperé.
P/1- Entendi.
R- São da mesma região.
P/1- Você nasceu nessa região também?
R- Eu nasci também no Curuperé.
P/1- O seu pai e a sua mãe, você acha que se conheceram como?
R- O meu pai e a minha mãe, assim, na verdade, eu não posso dizer detalhe.
Eu sei que eles se conheceram no Curuperé mesmo, nessa convivência.
São pessoas que desde criança se conheciam, né? Viviam na comunidade, se conheciam.
E depois se tornam jovens e acabam se unindo, né, na própria comunidade.
P/1- Agora, eles tinham que fazer essas coisas, toda essa atividade de caça, pesca, plantação, pra eles mesmos ou eles vendiam também essa produção?
R- Tá.
Na época em que eu lembro que o meu pai e a minha mãe ainda estavam vivos, assim, trabalhavam muito, muito mesmo na agricultura, fazendo roça, né? Eu cheguei a ajudar muito o meu pai nessa questão de fazer roça.
E nós fazíamos mais, na verdade, assim, pra nossa própria sobrevivência.
Porque na época que eu era adolescente e jovem, na verdade, na minha região todo mundo fazia farinha, então era complicado vender pra alguém, porque todo mundo tinha farinha.
Pescar, na família todo mundo tinha alguém que pescava e todo mundo tinha peixe; era complicado pra vender o peixe, né? Inclusive, além da produção que eles faziam, tinham os sítios que produziam, por exemplo, muita pupunha, bacuri, cupuaçu, açaí.
E esses frutos, pra serem vendidos, tinham que ser levados pra Belém, né? Ele, normalmente, na Vila do Conde, que é bem, nós fazemos parte da Vila do Conde, mas na época existia muito essa separação: a vila, propriamente, do Conde e o sítios onde nós morávamos, na região do Curuperé.
Então, a Vila do Conde absorvia pouco desse fruto, desse alimento que era produzido.
Então, tudo o que era colhido, era pra própria subsistência da família.
E, normalmente, assim, vamos dizer uma vez no mês, os meus pais conseguiam ir até Belém, pra vender alguns produtos.
Então, o produto, por exemplo, farinha, dava pra fazer mais farinha e era reservada, porque uma vez no mês eles poderiam ir até Belém, pra fazer a venda desses produtos.
Farinha, cupuaçu, pupunha.
Então, os produtos que não eram perecíveis, davam pra serem guardados, pra serem vendidos em Belém.
Só que, assim, era muito complicado porque, na verdade, nessa época a minha família não tinha acesso a barco a motor, por exemplo.
Então, só tinha duas opções: ou era canoa à vela pra ir pra Belém ou, então, a remo, que chamava de batelão, que eram os cascos muito grandes, pra levar produtos.
E tinha que ser a remo, que chamava remo de faia, que era aqueles remos comprido que se utilizava.
Então, tinha que ir remando até Belém.
E existia muito aquela questão assim: você sabia o dia de ir, mas não sabia o dia de voltar, entendeu? Porque dependia de maré, dependia do vento e tanta coisa assim.
Mas se fosse canoa à vela, então, se dizia assim: “Eu estou saindo hoje, mas não sei quando volto, né, de Belém”.
Então, pra levar um produto se pensava muito, porque Belém é longe.
E ainda tinha que sair na baía do Marajó, aqui no Rio Pará, pra poder chegar no Carnapijó ou então, aqui no Arrozal, pra poder chegar até em Belém, entendeu? Então, era muito sacrifício.
Mas era uma das poucas maneiras que tinha de escoar esse produto, entendeu? Então, nós tínhamos muitos frutos, mas não tinha praticamente, pra quem vender esses produtos, entendeu? Mas a gente tinha, assim, isso com fartura.
Então, quando a farinha era feita uma grande quantidade, se reservava uma parte pra levar pra Belém.
Carvão também era feito pra levar pra Belém.
Esses produtos agrícolas.
E o meu pai, a minha mãe, sempre viveram assim, dessa forma.
Mas era muito mesmo pro sustendo dos filhos, que nós somos - a minha família, além do meu pai e da minha mãe - oito irmãos.
Nós éramos oito irmãos, na verdade.
Eram seis homens e duas mulheres.
Então, o meu pai e a minha mãe nos criaram dessa forma, coletando fruto, pescando, né? O meu pai pescava também.
O meu pai também fazia muito material de tala, ele sabia fazer, né: paneiros cestos, peneira, tipiti, fazia matapi.
Você imagina assim, tudo o que alguém possa fazer de tala, na nossa região, o meu pai sabia fazer, entendeu? Então, ele fazia coisas assim que as pessoas, mesmo da região, que tinham outras pessoas que faziam, mas que costumavam adquirir, porque eram muito bem feitos os produtos que ele fazia.
Então, eu penso assim que um dos poucos produtos que tinha, que ele alcançava alguma importância financeira, era esse produto de tala que ele confeccionava, que ele fazia, né? Ele era muito bom nisso, por sinal.
P/1- Hoje você diria, assim, que, em média, era quanto tempo até.
.
.
você só falou que não sabia exatamente quando chegava, nem quando voltava.
R- Sim.
P/1- Mas, em média, quanto tempo para ir e voltar de Belém, assim?
R- Olha, na verdade, assim, teria que ser pelo menos uma semana, entendeu? Nunca menos de uma semana.
Porque, vamos dizer assim, é muito, é longe, esse trajeto.
E, mesmo em Belém, não tinha essa facilidade tão grande de vender esse produto, entendeu? Você chega em Belém, dependia do dia que você chegava, se tivesse muito cupuaçu, né, eles não queriam comprar o seu cupuaçu.
Então, tinha que esperar até o dia que tivesse menos, que eles pudessem vender.
Então, esse produto não era vendido de uma vez, ele ficava durante a semana, só podia retornar quando vendesse todo o produto, entendeu? Então, isso é o que eu digo pra você, a pessoa diz assim: “Olha, nós estamos indo pra Belém hoje, mas não sabe quando nós retornamos”.
A gente vai naquela esperança, tipo assim: “Papai vai voltar tal dia e vai trazer comida, vai trazer roupa, vai trazer.
.
.
”.
O dinheiro não sobrava muito pra comprar brinquedo, não.
Na verdade, eu não lembro, assim, de nenhuma vez o meu pai ter comparado um brinquedo pra mim, entendeu? O meu pai, a minha mãe.
Porque o dinheiro não dava pra comprar brinquedo.
Isso seria um luxo, na verdade, entendeu? Então, nossos brinquedos eram outros, que depois a gente pode falar num outro momento, você pode perguntar isso aí.
Dinheiro era pra comprar comida, né? Aí vende esses produtos, pra poder comprar o alimento e alguma roupa, né? Porque, na verdade, também essa questão da roupa era uma outra situação assim: que a roupa passava do irmão mais velho até o mais novo, né? Aí, normalmente, quem tinha uma roupa nova era o mais velho, porque aí depois dele vai passando pro outro, até chegar no último, né? E não sobrava muito dinheiro pra comprar essas coisas, não.
Era mais, mesmo, pra comprar o alimento pra nós.
Era mais desse jeito.
P/1- Vocês, então, oito irmãos?
R- Sim.
P/1- Como é que é você, nessa linha aí de irmãos?
R- Eu sou o caçula.
P/1- Você é o caçula?
R- É.
Eu sou o caçula.
Então, assim, meus irmãos, eu lembro assim, nós tivemos uma criação, eu penso assim, muito boa.
Meu pai só estudou, eu acho, que até a segunda série, minha mãe também não passou disso.
Mas, assim, eles deram, penso que deram uma boa criação pra nós.
Eu lembro que a gente sempre aprendeu a se respeitar muito, né, nós como irmãos.
Nunca, eu não lembro assim de ter desavença, de briga, de briga de violência mesmo, assim.
Alguma coisa só no campo das ideias mesmo, alguma discordância.
Mas a gente sempre se respeitou muito, desde criança.
E, na minha comunidade, lá próximo à praia, existia uma igreja.
E meus pais se converteram, eles se tornaram evangélicos, na verdade.
E nós.
.
.
eu, desde criança, pertencia a essa igreja.
Nós convivíamos ali nessa Igreja, né? Ele ia pra igreja e levava todos os filhos pra igreja.
Então, nós íamos, crescemos ali.
E a convivência entre nós sempre, assim, foi muito harmoniosa, entendeu? A gente, meus irmãos, a maioria deles eram pescadores, eles não se envolveram.
.
.
assim, o mínimo se envolveu com a agricultura, essa coisa.
A maioria se envolveu com pescaria, foram pescadores.
E estudaram pouco, né? Quem estudou mais foi, eu penso assim, do quarto irmão já pro final, que já tiveram mais oportunidade de estudar.
Os meus irmãos mais velhos não tiveram toda essa oportunidade.
Na época, era muito complicada a questão de escola na nossa região.
Não tinha, na verdade.
Quando os meus irmãos eram crianças, nessa região da Vila do Conde, não tinha escola pra que eles pudessem estudar.
Eu diria, isso há sessenta anos, tipo, há cinquenta anos, não tinha escola pra que eles pudessem estudar, entendeu? Então, posteriormente eu tive que sair da minha localidade, pra ir pra outro lugar pra estudar.
Isso aí é um capítulo à parte que eu gostaria, depois, de contar um pouco a respeito disso, entendeu? Então, eles não tiveram oportunidade de estudar.
Mas pescavam.
Alguns trabalhavam na agricultura.
E, de alguma forma, ajudaram também a criar os últimos, né? Então, uma vida, assim, melhor pros últimos, porque já puderam ajudar os meus pais, pra que pudesse cuidar de nós.
Mas sempre, assim, eu lembro com muito carinho dos meus irmãos.
Hoje em dia, já tive dois irmãos que faleceram.
E assim, mas lembro de muito carinho de todos eles.
E hoje, até hoje cada um tem a sua família, mas a gente, assim, tem muito respeito um pelo outro, né? E a gente.
.
.
eu sinto saudade.
A gente não mora próximo mais.
Todo mundo mora espalhado, mas a gente sempre teve uma boa convivência.
P/1- E quanto é a diferença entre o seu irmão mais velho, de idade e você?
R- O meu irmão mais velho hoje tem setenta anos de idade, eu tenho cinquenta e três: vinte e três anos de idade, né? Então, é uma pessoa assim, ele já está bem idoso.
E eu, assim, como irmão mais novo, eles sempre tiveram muito carinho por mim, né? Inclusive, o meu nome é Roberto Carlos, porque o meu irmão mais velho era fã do Roberto Carlos, né, na época que ele estava no auge, né, que ainda hoje continua, né? Mas, na verdade, assim, então, o meu irmão pediu pro meu pai colocar o meu nome de Roberto Carlos, por conta dele, entendeu? Se pedisse a minha opinião hoje, eu não seria Roberto Carlos.
Mas ele quis e eu sem problema.
(risos) Não tinha muito como eu opinar na época! Eu tinha que aceitar, que nem sabia, na verdade.
Mas foi muito por conta dele, entendeu? Esse meu irmão que até hoje é um exemplo pra mim, de vida, de amigo, de parceiro, uma pessoa por quem eu tenho muito respeito.
Hoje em dia ele é pastor da Assembleia de Deus.
Mas, independente disso, eu sempre fui uma pessoa assim, porque eu tive um.
.
.
olhei pra ele, assim, com muito respeito, por ser um homem trabalhador, acima de tudo e responsável.
P/1- E como era um dia na sua vida, na sua infância? Como era, de acordar até dormir? Conta pra gente.
R- Assim, nós.
.
.
eu morava no Curuperé, como moro até hoje, eu moro lá.
Nasci lá no Curuperé.
Existiam duas localidades muito próximas: uma é o Curuperé e a outra é a Montanha.
A Montanha é na beira-mar, onde hoje estão instaladas algumas empresas.
As pessoas dessa comunidade foram remanejadas pra uma outra localidade.
Então, nós éramos muito ligados, o Curuperé, à Montanha.
São dois quilômetros de distância.
Então, tipo assim, nós morávamos numa localidade que era mais afastada.
E, na Montanha, na beira da praia, tinha uma comunidade de casas mais próximas, era um povoado na beira da praia.
E lá existia a Assembleia de Deus, nessa comunidade.
Então, nós éramos, tipo assim: você viver no Curuperé era como viver na Montanha.
A Montanha era uma extensão do Curuperé e vice-versa.
Então, nós íamos muito pra Montanha.
Inclusive, nós éramos parentes de sangue já há muito tempo.
Aí hoje, inclusive, a minha esposa é da Montanha, eu sou do Curuperé.
Ela era da Montanha.
Hoje nós moramos no Curuperé.
Então, assim, a minha vida, criança, a primeira coisa: eu não fui pra escola, porque não tinha escola, né? Quando eu nasci, assim, você dizer assim: “Tinha uma escola na comunidade?”, não tinha na comunidade.
Mesmo na Vila do Conde não existia uma escola pra que.
.
.
na verdade, no Conde tinha escola, mas assim, o acesso pra nós irmos, da minha comunidade até a Vila do Conde, não era.
.
.
e também tinha aquela coisa dos meus pais, ainda não notavam, assim, a importância do estudo pra vida de alguém, na época.
Era há cinquenta anos atrás.
Então, o meu pai, a minha mãe, tipo assim, a minha mãe queria que nós estudássemos; o meu pai queria mais que a gente trabalhasse na agricultura, que a gente trabalhasse, entendeu? “Ensinar os meus filhos a trabalhar, pra poder sobreviver”.
A minha mãe queria que nós estudássemos, mas era muito complicado pra nós irmos pra Vila do Conde, o acesso era difícil.
Enfim, eu acabei não estudando desde criança.
Eu comecei a estudar com dez anos de idade, né? Eu tive que ir pra uma cidade por um tempo, pra poder estudar.
Porque até dez anos de idade eu não tinha ido pra escola.
Então, assim, vivia no Curuperé, podia dizer assim que ia pra roça, ajudava os meus pais em algumas coisas.
E não ia pra escola.
P/1- Acordava cedo?
R- Exatamente.
Acordava cedo.
Sempre acordamos cedo, nesse sentido, né? Hoje bem menos, a gente fica mais velho, dorme um pouco mais.
(risos) Mas na época, a gente acordava muito cedo.
E a nossa dinâmica era ir pra igreja à noite, quando tinha culto.
E quando não tinha, ou a gente ficava no Curuperé, brincando mesmo ali com as coisas da natureza, ou ia pra praia.
Uma das coisas mais deliciosas era ir pra praia, brincar na praia.
Então, o que nós fazíamos? Nós fazíamos muito, assim, canoa de miriti ou buriti, né, que era um material muito fácil pra gente fazer as canoas.
Então, nós fazíamos as canoas desde as mais simples, às mais sofisticadas, com velas, essa coisa toda.
Os meus irmãos mais velhos faziam as canoas muito bonitas.
E nós íamos pra praia, pra brincar na praia.
Quer dizer, nós próprios confeccionávamos os nossos brinquedos, né? E fazia muita canoa pra disputar, pra fazer disputa de canoa, corrida de canoa, na praia.
Quando a maré estava seca, a gente brincava num.
.
.
algo que a gente chama de mupéua.
Mupéua são as piscinas naturais.
Quando a água seca, aí fica umas piscinas.
A gente brincava muito nas mupéuas, né, assim.
Só que, às vezes, os pais da gente não gostavam muito que a gente brincasse.
Isso faz parte da nossa realidade, entendeu? Eles não gostavam muito que a gente brincasse.
Eles queriam assim, que a gente estivesse os ajudando em algum afazer, em alguma coisa.
E, às vezes, a gente até apanhava, porque a gente estava brincando.
Então, tipo assim: quando um pai descia na praia e via aquele monte de criança, aí o filho olhava: “É meu pai que está vindo”, dava um jeito de correr logo, porque senão ia apanhar, porque o pai não queria que ficasse naquela atividade.
Mais se a gente demorasse muito, entendeu? Então, uma vez ou outra a gente pegava uma surra, porque estava brincando muito e tinha que ajudar em alguma coisa, enfim.
Então, nós brincávamos muito na praia.
Nossa vida era essa.
Tipo assim: se tiver oportunidade, a gente poder, a gente passava o dia inteiro brincando na praia, principalmente de canoas, né? Fazíamos também muitos boizinhos de um material que a gente chama de fava, é um produto que a gente tem, a gente colocava os pezinhos nos bois.
Coloca o pé, coloca o rabo, coloca o chifre.
E aquilo se tornava uma fazenda pra nós, na praia, né? Todos os meninos, todo mundo queria fazer, uma mais bonita do que o outro.
Então, assim, nós usávamos muito esses produtos assim da natureza, pra que a gente pudesse brincar, né? E a outra atividade era: a gente gostava muito de jogar bola na praia também.
Mas, detalhe: na nossa comunidade, a maioria das pessoas se tornou evangélica.
Então, nós éramos proibidos pelos nossos pais de jogar bola.
Porque “jogar bola é coisa do capeta”, coisa assim, ia pro inferno se jogasse bola.
Mas a gente sempre dava um jeito de brincar escondido, né? E volta e meia custava uma surra também, (risos) porque não permitiam que a gente jogasse bola.
E, à medida que a gente foi crescendo, mais foi ficando mais delicioso o ato de jogar bola, entendeu? Então, a gente passava uma parte brincando de canoa, outra parte jogando bola na praia.
Uma delícia jogar bola na praia, mas volta e meia, como eu disse, custava uma surra, alguma coisa.
Mas isso não deixava que nós pudéssemos ir brincar.
(risos) Todo mundo brincava bola.
Na verdade, com o tempo, a igreja mesmo foi se tornando mais maleável em relação à gente.
E, quando a gente se tornou jovem, a gente já podia jogar mais à vontade.
O próprio pastor já liberava a gente pra brincar, já não ia mais pro inferno, entendeu, (risos) como ia anteriormente.
Então, a nossa vida, eu lembro assim, que era muito nessas coisas.
As nossas brincadeiras eram essas.
E, como eu não ia pra escola, a maioria das pessoas não ia pra escola, os meus irmãos mais velhos não foram pra escola, a gente ficava assim: ou trabalhando, ou brincando.
A escola não era muito a nossa realidade.
P/1- E o teu pai e a tua mãe contavam histórias pra vocês? De lendas, de alguma coisa assim, de causos da comunidade?
R- O papai contava bem pouco, mas a mamãe contava muito, né? A mamãe, eu penso assim, se ela tivesse tido a oportunidade na vida de estudar, ela seria uma excelente professora, entendeu? Porque eu observo assim que ela tinha muita didática no que ela fazia.
Eu lembro, assim, no interior sempre que.
.
.
as casas são feitas, eram feitas de tábua, de madeira o assoalho.
Então, as histórias, assim, que a mamãe contava, que atraia muito a atenção nossa, era “história de visagem”, conto de assombração, né? Na época era só “história de visagem”.
Hoje em dia a gente sabe que é um gênero textual chamado “conto de assombração”, que hoje eu trabalho muito na formação com as professoras, nessa área, dos contos de assombração.
Hoje eu sei a importância técnica disso, porque isso é interessante.
A minha mãe não sabia disso.
Ela sabia assim, que era uma história deliciosa, né, que alguém inventou, alguém criou.
Porque hoje nós sabemos que a Amazônia é um berço dessas histórias.
E a minha mãe achava assim: contava por contar, porque era delicioso pra ela.
Então achava, assim, que era prazeroso pra nós.
Então, tinha aquela noite, nós ficávamos perturbando, pra ela contar histórias pra nós.
Ela dizia que não sabia uma outra: “Mas pode ser repetida mesmo.
Pode repetir duzentas vezes, não tem problema, surte o mesmo efeito”.
(riso) Duzentas vezes, entendeu? Então, ela reunia a gente assim: “Ah vou contar história pra vocês”.
Aí um deitava na rede, outro deitava na esteira, outro deitava no assoalho, todo mundo por ali.
E ela começava a contar as histórias pra nós.
E, quando a história, assim, era de muito medo, eu lembro assim que nós olhávamos a fresta, assim, do assoalho, ninguém pisava na fresta, com medo, achando que a visagem ia puxar o pé, ia meter uma tala, alguma coisa.
Então, a gente procurava um lugar pra pisar ou então pra se deitar, porque se deitasse na fresta, tinha medo do que tivesse debaixo do assoalho, né? Eu lembro muito disso.
Então, assim, como era à luz de lamparina, era só o que existia, o que tinha de mais atual era lamparina, pra gerar luz.
Então, assim, o ambiente era propício pra isso, né? E aí, a gente vivia aquilo naquele momento, como se estivesse acontecendo.
Então, a minha mãe, eu observo assim, que ela tinha muito esse poder da sedução no ato do contar, entendeu, de nos atrair.
E eu penso assim: hoje eu sou muito contratado, assim, pra contar histórias pras pessoas, entendeu? Onde eu chego, as pessoas querem que eu conte ou que eu leia um texto.
E isso aonde eu vou no Brasil, um lugar que eu tenha oportunidade de ir, é a coisa que as pessoas dizem assim: “Não pode faltar um bom conto e uma boa leitura”.
E eu penso que isso, de início, eu herdei muito isso da minha mãe, né? O meu pai contava bem pouco.
Mas a minha mãe contava.
Então, na verdade, quando eu comecei dar aula, eu contava história pros meus alunos e lia.
Mas eu não sabia, didaticamente, que isso era importante.
É porque foi algo que a minha mãe fez comigo e com meus irmãos, com meus parentes, que era uma delícia pra mim.
Então, quando eu vou pra escola, não tinha formação de professor.
Quando eu fui trabalhar, esse é um capítulo também que a gente pode falar depois, eu não tinha uma formação ainda, de professor.
Eu era aquela pessoa na comunidade que tinha mais estudo.
Então, mesmo sem ser formado, mas eu fui convidado pra assumir a escola, enfim, na minha comunidade, lá na Montanha.
Então, quando eu vou pra escola, eu não tinha uma orientação pedagógica de como fazer, de como dar aula, de como ensinar.
Eu pensei assim: preencher as minhas aulas, uma das coisas que eu deveria fazer era contar história pros alunos, era ler pros alunos.
Porque depois eu vou contar um capítulo também da importância do meu irmão, de um dos meus irmãos, na minha vida, na minha formação em relação a ler, escrever e diria assim, contar, porque quem me ensinou a ler e escrever foi o meu irmão, né? Eu não fui pra escola, mas como criança, eu fui quando com dez anos.
Quando eu fui pra escola, eu já sabia ler e escrever, entendeu? E muito bem, por sinal, na época.
Então, isso, a responsabilidade foi do meu irmão.
E então, assim, eu decidi contar pros meus alunos algo que eu achava que era uma delícia pra mim.
Eu não sabia a importância didática, a importância pedagógica que isso tinha, que hoje eu sei, entendeu? Hoje eu posso fazer uma lista e dizer pra vocês por que é importante contar e porque é importante ler? Por causa disso, disso, disso, disso e disso.
Eu trabalho muito isso na formação, que hoje eu trabalho na formação dos professores do município.
Mas na época, assim, era a delícia de ouvir uma boa história, de contar uma boa história.
E isso, quem foi responsável na minha vida, de início, foi a minha mãe, entendeu, de ela chegar e contar essas histórias maravilhosas.
Até próximo de ela falecer, nós já adultos, mas volta e meia ela contava histórias pra nós, né? Então, eu penso que isso, todo pai, toda mãe, deveriam investir nessa área de contar, de ler pros seus filhos.
Porque as pessoas não sabem o quanto que uma criança, um ser humano pode aprender por meio das histórias, né? Então, eu tive assim, de alguma forma, o privilégio de ouvir muitas histórias na minha infância e principalmente histórias da Amazônia.
Porque a Amazônia é um celeiro.
Se você chegar numa praia, você perguntar pras pessoas que moram ali próximo, ali na Montanha: “Vocês sabem alguma história de visagem? Uma história”, eles vão dizer assim: “A gente sabe muito do Boto”, né? Eles vão te contar quinhentas histórias do Boto.
Se você quiser contar, quiser escrever um livro, você passa um dia com as pessoas, na beira de uma praia dessas, você sai com quinhentas histórias, dá pra você escrever dez livros, entendeu? Porque é um berço de produção de textos, a Amazônia.
Então, onde você chega, num rio, numa praia, onde que você chegar, isso existe.
E isso, eu pude ver isso.
Não somente da minha mãe, mas de muitas pessoas da minha comunidade, que sempre foram excelentes contadores de história, mesmo sem ter estudado.
Mas eles adquiriram isso, passando, ouvindo de outra pessoa, tudo oralmente, né? Eles se apropriam disso e repassam pra nós, de gerações em gerações.
E aí hoje, se você me perguntar: “Você sabe contar uma história que a tua mãe te contou?”, eu sei contar história que a minha mãe me contou, né? Isso há cinquenta anos.
P/1- E é claro que eu vou pedir pra você contar uma pra gente.
R- Sim.
P/1- Ou mais de uma, se você quiser.
R- Sim.
Com certeza
P/1- Que te marcou.
R- Tá.
P/1- O que você pode contar?
R- Posso contar agora?
P/1- Pode.
R- Tá.
Uma das histórias que a minha mãe contava muito pra nós, era de um personagem chamado Mapinguari, né? O Mapinguari é, hoje, nós que fizemos um estudo, sabemos que é um ser mitológico do Amazônia, né, que sempre se disse que existiu aqui na Amazônia ou que ainda existe em lugares da Amazônia.
É um ser, uma espécie de um macaco muito grande, né? E que existem duas versões.
Uma que diz que ele tem uma boca muito grande na barriga.
Outros dizem que ele tem uma boca muito grande na costa, né? E esse ser mitológico come pessoas, né? Então, uma pessoa que vá em qualquer uma das nossas florestas aqui da Amazônia e se deparar com o Mapinguari, é difícil de escapar.
Porque o Mapinguari, inclusive, não vive sozinho.
Ele não mora sozinho.
Ele tem uma família de Mapinguari.
E a pessoa tenta correr, é cercado pela família e eles acabam comendo a pessoa, né? E colocam lá, eles têm uma boca normal e têm uma boca na barriga.
Ele come as pessoas com a boca que ele tem na barriga, né? Então, as pessoas, antigamente, a minha mãe contava muitas histórias do Mapinguari.
Uma das histórias que eu lembro que ela contava, era assim: um determinado senhor ia de uma comunidade pra outra.
As localidades, na Amazônia, dependendo do local, são muito distantes, né, uma casa de outra.
Então, existem lugares na Amazônia que, pra você ir de uma casa até outra, você precisa passar um, dois dias andando, pra poder chegar na casa de um conhecido.
E esse homem saiu de uma casa pra ir pra outra que ele precisava passar dois dias.
E ele passa o dia todo caminhando, com sede e com fome.
Lá por volta de três horas da tarde, ele chegou, encontrou um barracão no meio da floresta.
“Poxa, mas quem é que mora nesse barracão? Nunca vi ninguém.
Nunca soube que alguém morasse aqui.
Mas eu estou muito cansado” - ele diz - “vou me deitar aqui”.
Era um barracão todo aberto, não tinha parede.
E ele vai e se deita no barracão.
Com muita sede, com muita fome.
E quando ele olha pra cima, no meio da palha, tinha um espeto.
E tinha um churrasco atrativo ao olhar e ao olfato.
Era um fígado grande assado, chega ele estava assim bem tostado.
E ele sentiu o cheiro.
E ele disse: “Poxa, de quem poderia ser isso aqui?”.
E chama, grita, chama, procura alguém e ninguém aparece.
E ele espera umas duas horas de tempo.
E ninguém aparece.
E o que ele faz? Ele diz: “Eu vou comer esse fígado.
Não tem ninguém.
Não aparece ninguém aqui.
Eu não sei quem deixou”.
E ele pegou, subiu pelo esteio, pegou o espeto e comeu o fígado.
Estava uma delícia o fígado.
E, depois de ele terminar, deu um sono profundo nele.
E ele adormeceu.
Quando ele se acordou, era umas dez horas da noite.
Estava uma escuridão imensa.
E ele ia dormir só uns trinta minutos, ia levantar e continuar a caminhada.
Mas ele acorda lá pras dez horas da noite.
Ele tinha dormido desde a tarde.
Ele só acordou porque ele ouviu um grito vindo do meio da floresta.
E ele ouvia a voz de alguém gritando muito forte: “Eu quero o meu fígado”.
Aquele ser gritava: “Eu quero o meu fígado”.
E vem se aproximando, se aproximando.
E ele querendo se levantar, mas ficou anestesiado, não conseguia levantar.
E aquele ser vem se aproximando, vem se aproximando, vem chegando.
E ele querendo levantar e nada de conseguir.
E até quando ele vê assim, surge na escuridão, ali num espaço que estava um pouco mais claro, ele viu o Mapinguari que surgiu ali.
Aí o Mapinguari olhou pra ele e disse assim: “Tu comestes o meu fígado?”.
Ele disse: “Eu comi.
Eu não sabia de quem era” “Pois esse fígado era do último viajante que passou por aqui.
Eu o comi, tirei o fígado dele e assei e coloquei aí.
E tu te atrevestes a comer algo que tu não sabia o que era e de quem era.
Então, por conta disso, eu vou te comer.
E vou assar o teu fígado e vou deixar aqui pra atrair outra pessoa”.
E ele agarrou o homem e comeu o homem.
Tirou o fígado dele e assou e colocou novamente lá.
E seguiu.
E volta pra floresta, esperando um novo viajante que passasse e caísse na armadilha também.
Essa foi uma história que ela me contou, Mapinguari.
Na verdade, hoje em dia eu tenho quase trinta histórias do Mapinguari escritas, pra eu lançar um livro, entendeu? Futuramente, eu espero lançar um livro em homenagem à minha mãe, assim, pelas histórias do Mapinguari que ela contava, né? E eu fui coletando de outras pessoas também.
Uma das preferidas dela era o Mapinguari.
P/1- O que mais que ela gostava de contar pra você?
R- Muitas histórias de visagem, né? Muitas histórias de visagem.
As histórias preferidas, na verdade, dela, eram visagens.
Era difícil contar uma história que não fosse da visagem.
Histórias de onça também.
Assim, eu tenho que parar um pouquinho pra poder, tipo assim, eu vou lembrando as histórias que contava, eu conto uma, lembro de outras, enfim.
Mas sei de muitas histórias que ela contava, principalmente de onça e de visagem.
P/1- O Mapinguari é visagem? Não?
R- É.
Porque, na verdade, assim, hoje ele é tratado como o mito da Amazônia, como o Curupira, como a Matinta Pereira, como o Saci Pererê.
Porque, assim, a Amazônia é povoada desses mitos.
Todas têm uma explicação.
Por exemplo, o Boto.
O Boto, vocês conhecem, creio que todos conhecem a história do Boto.
O Boto é um ser que aparece todo vestido de branco, principalmente nas noites de festa.
As pessoas estão fazendo festa à beira-mar, à beira do rio, desculpa, e ele aparece, todo vestido de branco, chapéu.
Branco por completo, né? E ele encanta as moças da festa.
E normalmente ele fica com a mais bonita e engravida a mais bonita, né? E depois, quando alguém descobre que é o Boto, ele corre, se joga na água e desaparece e se torna no Boto novamente.
E a moça fica grávida, pra posteriormente.
.
.
nós sabemos, na verdade, assim: os indígenas aqui na Amazônia, a mente deles era muito fértil.
Vocês sabem que a mitologia fala disso, que os indígenas, assim como qualquer ser humano, eram muito curiosos: “Por que surgiu tal coisa?” Eles sempre se fizeram essa pergunta, porque é a filosofia, que move a ciência: “Como foi pra surgir? Como foi que se originou isso aqui?” Então, os índios muito inteligentes, a maioria deles era.
Eles não sabiam ler, nem escrever convencionalmente.
Mas eles eram grandes produtores de texto, que eles conseguiam produzir uma história pra cada situação da vida, né? Aí você vê: “Como foi que surgiu a mandioca?”.
É algo necessário pra alimentação indígena.
Como foi? Eles fizeram uma lenda chamada “a lenda da mandioca”, explicando como surgiu a mandioca.
O açaí, que é a base da nossa alimentação, como surgiu? Aí criaram uma lenda para explicar como surgiu o açaí.
Sempre ligado muito à mitologia, essa coisa assim dos deuses da Amazônia, do Tupã, né, essa coisa toda, da Iara.
Enfim, se criava uma história pra cada situação.
A questão do Boto, porque as moças engravidavam, como engravidam hoje, na época engravidavam.
Então, existia, tipo assim, aquela coisa de uma moça engravidou, vai pegar uma surra do pai, né? E normalmente diz assim: “engravida acobertada pela mãe”.
A mãe, coitada, que sofria.
A filha ia, arranjava um filho, ficava grávida e a mãe sofria as consequências também, porque o pai ficava aborrecido com essa coisa.
Então, com o tempo se criou uma história de que aquela moça foi engravidada, mas não foi de um rapaz, foi de um personagem chamado, que era o Boto.
Então, se cria essa história.
“Ah, fulana surgiu grávida”.
E alguém dizia assim: “Mas não foi nenhum rapaz que a engravidou.
Foi o Boto.
É filho do Boto”.
E isso era tão forte aqui na Amazônia, era, hoje já mudou muito isso, que as pessoas da comunidade acreditavam que era filho do Boto, entendeu? E quando nascia, as pessoas diziam: “Não te mete com ele, porque é filho do Boto”, entendeu? Então, isso era muito respeitado, culturalmente falando.
De início as pessoas não ligavam muito, mas com o tempo as pessoas dão importância a isso.
Dizem assim: “É o filho do Boto”.
Então, se cinco moças engravidavam na comunidade, foram engravidadas pelo mesmo Boto.
Esse Boto faz um estrago aqui na comunidade, engravida tudo o que é moça que tem.
Quer dizer, então era uma boa saída pra moça e pra mãe dela também.
E porque as pessoas acreditavam, entendeu? Então, isso, durante gerações e gerações, foi se tornando muito forte, né? Então, pra tudo se tem uma explicação.
Minha mãe ensinava, dizia algumas dessas coisas pra gente.
Mas ele contava mais, às vezes, ele não sabia esse contexto, né, o porquê de surgir aquilo.
Mas ela contava as histórias do Boto, né? A Matinta Pereira, hoje a gente sabe e fala pras pessoas, que eu acho que, depois do Boto, o ser mais encantador da Amazônia é a Matinta Pereira, né? Porque o Boto, você sabe que é tipicamente da Amazônia e a Matinta Pereira também.
O Saci Pererê, não, é nacional, né? E o lobisomem é universal, né? Mas na Amazônia, talvez, os dois mais encantadores sejam o Boto e a Matinta Pereira.
A Matinta Pereira, que nós sabemos, na mitologia amazônica, quando ela é nova, quando ela é uma moça, na verdade, ela recebe uma coisa que chama assim, que é o fardo, a sina de se tornar Matinta Pereira, ela recebeu aquilo de alguém.
Então, quando ela recebe, que ela é jovem, ela tem o poder de se transformar num pássaro.
Nós que moramos aqui na Amazônia, nós ouvimos o assobio da Matinta Pereira, entendeu? Porque pras pessoas é um mito.
Pra nós existe o assobio da Matinta Pereira.
Eu digo porque aonde eu moro, hoje menos, mas no passado era a coisa mais comum a Matinta Pereira assobiar, entendeu? Então, quando a gente ouve o assobio da Matinta Pereira, todo mundo fecha a casa, se entoca, ninguém vai olhar nem pela brecha.
Não pode olhar porque, se olhar, dá uma dor de cabeça, dá aquela coisa, é arriscado a pessoa a morrer pelo encantamento lá da Matinta Pereira.
Então, deixa ela pra lá.
Mas nós sempre ouvimos o assobio.
Na cidade grande não tem isso.
Mas no interior tem o assobio da Matinta Pereira.
Na verdade, assim, uma explicação científica não se tem pra isso.
Mas isso é muito forte.
Então, o que diz a mitologia da Amazônia? Quando ela é jovem, a Matinta Pereira consegue se transformar num pássaro.
Quando ela se transforma num pássaro, ela vai e arruma alimento muito fácil.
Então, durante toda a juventude dela, ela consegue se alimentar naturalmente.
E aí você vê um pássaro que pousa num galho de uma árvore e ele assobia como o Matinta Pereira, que assobia a noite, ele assobia naturalmente.
Essa pessoa vive, enquanto ela tem a sina, ela não morre.
Enquanto ela tem o fardo, ela não morre.
Pra ela morrer, ela tem que passar pra outra pessoa a sina de virar Matinta Pereira.
Então, vamos imaginar.
O que diz a lenda na Amazônia? Em todos os povoados da Amazônia, existia uma Matinta Pereira.
Em todos.
Se existiam trezentos povoados, tinham trezentas Matintas Pereiras.
E, normalmente, a Matinta Pereira é a mulher mais velha da comunidade, a velhinha da comunidade.
E, normalmente, ela morava na última casa da comunidade.
E ela se transforma.
Quando ela se torna velha, que ela não consegue virar no pássaro, ela vira uma bruxa, né? Então, o que é a Matinta Pereira? É uma bruxa da Amazônia, né? E ela se transforma na bruxa e ela anda pela noite, ela voa durante a noite também.
E ela anda à procura de comida.
Ela não quer mexer com ninguém.
Mas, se alguém mexer com ela, ela pode jogar, nós dizemos aqui na Amazônia, uma malinesa nas pessoas, um feitiço nas pessoas.
E tem uma outra coisa: como ela está velha, ela não tem condição de arrumar alimento.
Quando ela era jovem, se transformava no pássaro, agora se transforma numa bruxa, não consegue arrumar alimento.
Então, se você diz assim: “Matinta Pereira, vem buscar tabaco”, aí, quando é de manhã, a primeira pessoa que bate na sua casa pedindo tabaco, evidente, é a Matinta Pereira.
Se você disser: “Vem buscar café”, ela vem buscar café.
Se você diz: “Vem buscar pimenta”, ela vem buscar pimenta.
O que você oferecer, pela manhã ela vem.
E normalmente é aquela pessoa de mais idade na comunidade, aquela mulher idosa.
Então, tem velhinha que você nasce, você cresce, você morre e a velhinha continua lá.
O seu filho nasce, cresce, morre, a velhinha continua lá.
O seu bisneto cresce, morre, a velhinha continua lá.
Por quê? Porque ela está com a sina de virar Matinta Pereira.
Enquanto ela não passar a sina pra outra pessoa, ela não vai morrer.
Ela jê tem duzentos anos.
Ela já tem trezentos anos.
Ninguém sabe que ela tem trezentos anos.
Mas ela ______ (47:47) assim.
Então, tem um dia que ela cansa daquela vida.
E ela diz: “Eu vou passar pra outra pessoa”.
Aí, nas noites escuras, ela se transforma na bruxa e anda.
E ela pergunta: “Quem quer, quem quer? Quem quer, quem quer?”.
Aí, alguém ouve e diz assim: “Visagem”.
Ela gosta de dar tesouro, o baú do tesouro, dar algo que foi enterrado em algum lugar.
Se uma pessoa desavisada, falar assim: “Eu quero”, ela diz: “Então, toma a sina de virar Matinta Pereira”.
E a partir daquele momento, ela abandonou o fardo que ela tinha, amanhã ela amanhece morta.
E aquela pessoa assumiu a sina que ela tinha, pra carregar por toda a vida, entendeu? Então, diz assim que, na Amazônia, você tem que tomar muito cuidado, quando a pessoa perguntar pra você: “Você quer?” “Quem quer?”.
Porque pode ser o fardo de virar a Matinta Pereira, entendeu? Então, a partir de agora, principalmente mulher, é mais mulher, as jovens.
Elas recebem a sina, ela vai viver duzentos, trezentos anos, até que ela passe pra uma outra pessoa, tá? E a partir daí, então, uma pessoa mexe com a Matinta Pereira, a Matinta Pereira coloca uma dor de cabeça tão grande, que a pessoa morre de dor de cabeça e de febre.
A não ser que tenha um pajé, que esse pajé faz um trabalho pra tirar a malinesa que a Matinta Pereira colocou, pra pessoa ficar curada.
Então, diz assim que na Amazônia, é melhor não mexer com Matinta Pereira, deixa ela fazer o trabalho dela por aí, cada um viver a sua vida, tá? Esse é o mito da Matinta Pereira.
Então, pra cada mito da Amazônia que você queira saber, existe uma história por trás, existe uma contextualização.
E o nosso povo, na Amazônia, normalmente, não se importava muito com a contextualização, o porquê, a origem daquilo.
Ele se importava em contar as histórias, simplesmente isso, entendeu? Porque são histórias deliciosas de se ouvir, né e que a gente pode passar semanas contando, ouvindo e falando de cada mito, contando essas histórias.
E hoje em dia, quando a gente trabalha na formação dos professores, a gente precisa ir em busca dessa contextualização, pra explicar o porquê daquele surgimento, porque existe isso, né, tentar dar alguma explicação.
Aí você pergunta assim: “Mas isso é verdade? Ou é mentira?”.
Assim, o maravilhoso no mundo da mitologia é essa dúvida, né? Em que você pode chegar e dizer assim: “Não é verdade isso”.
E o outro diz assim: “É verdade.
Porque eu não vi.
Mas o meu pai viu, o meu tio viu, o meu avô viu, o meu irmão viu”.
O dia em que nós descobrirmos a verdade, vai perder a graça, entendeu? Então, é melhor deixar como mito, como lenda e uns acreditando que seja verdade e outros achando que não seja verdade.
Mas que sempre, essa questão da ficção, a questão do maravilhoso, do encantamento, possa existir.
As histórias da Amazônia sempre vão existir, com certeza.
P/1- O que eu queria te perguntar não era nem se é verdade, se é mentira, exatamente.
Mas é mais assim: da vida que você viveu, teve alguma coisa que aconteceu na comunidade, que foi explicada, assim?
R- Muito essa questão de filho do Boto.
Isso aí a gente chegou a conviver.
Hoje em dia já não, as pessoas já tiraram da mente essa crença.
Hoje em dia, já não existe, não cola mais, na verdade, né? Mas eu lembro assim, de quando eu era criança, isso era muito forte.
E existem pessoas na comunidade que se diz isso, que era o filho do Boto, enfim.
Eu vou contar um fato pra você, não vou citar nome, porque a pessoa ainda é viva.
Mas assim, na Vila do Conde tem - talvez você nem precise colocar isso na entrevista, você vê o que você faz, assim - um senhor que dizem que ele.
.
.
isso é muito forte na Vila do Conde até hoje, mas na época em que eu era adolescente, isso era mais forte ainda.
Que esse senhor, ele tinha um caso bom uma “bota”, né? E que ele é um comerciante.
Ele era um comerciante muito rico, o comerciante mais rico da Vila do Conde.
E que essa riqueza ele adquiriu, foi a “bota” que deu pra ele essa riqueza.
Porque toda a noite, ele descia à meia noite pra praia.
Ele descia mesmo, religiosamente, meia noite, com uma lamparina.
Então, ele ia tomar banho na praia e as pessoas dizem que, quando iam olhar onde ele estava, ele não estava, tinha desaparecido.
Só estava a lamparina na beira da praia e ele tinha desaparecido.
Diziam que “a bota” vinha, pegava ele, levava ele lá pro meio do Rio Pará, lá tem umas pedras grandes e ele ficava namorando com “a bota”, lá naquelas pedras, entendeu? (risos).
Então, ele.
.
.
aconteceu depois.
.
.
desde que ele era jovem, até uma pessoa de idade, isso sempre aconteceu.
As pessoas desciam.
Isso eu sei por que eu cheguei a descer na praia, pra segui-lo.
E a gente tem essa ilusão, essa ideia de que ele não estava lá, tá, ele tinha desaparecido.
Então, essa história se tornou e se diz assim, se fala pra ele assim: “o namorado da bota”, né? Todas as pessoas no Conde conheciam essa história e a maioria, hoje, ainda conhece.
Diziam que ela nunca permitia que ele arranjasse mulher.
Ele chegou a arrumar uma mulher, uma moça da comunidade.
E, passado pouco tempo, ela foi pra uma festa e deram um tiro lá, acertaram um tiro nela, que ela ficou deficiente.
Aí levou as pessoas mais a acreditarem nisso ainda, entendeu? De que era “a bota” que tinha feito isso pra ela e depois, posteriormente, eles se separaram e até hoje ele está só.
Tipo assim, ele vive só.
E dizem, tipo assim, hoje em dia ele tem um comércio, mas um comércio pequeno.
Mas aí diz que quando ele casou, “a Bota” acabou o compromisso que ela tinha com ele e ele empobreceu por conta disso, porque ele a traiu com uma outra pessoa, né? Inclusive, assim, não sei como a gente pode ______ (53:35) disso, mas tipo assim, existem livros, assim, que as pessoas fazem e colocam lá “o namorado da bota”, eles não citam o nome, mas tem lá “o namorado da bota”, da Vila do Conde.
Então, isso é uma lenda muito forte no Conde com personagens reais, entendeu, que estão ali.
E eu nunca soube se alguém perguntou pra ele a versão dele.
Mas que isso era muito forte e as pessoas sempre tiveram como verdade.
Tem pessoas na Vila do Conde hoje, se você chegar e perguntar, vai dizer: “É verdade.
É verdade porque eu o vi desaparecer de lá, de não estar lá”.
E assim como ele, tem algum ou outro que é o filho do Boto, que está lá, entendeu? Isso a gente vê.
(riso)
P/1- E você e seus irmãos, vocês viram alguma coisa? Pode dizer que vocês viram alguma coisa?
R- Olha, a gente via muita coisa assim relacionado ao Boto, como eu disse assim, Matinta Pereira também.
Eu, morando no Curuperé, quando eu vinha da Montanha, da igreja, às vezes eu vinha sozinho, de noite, pelo caminho.
É lugar igual esse aqui, é como você entrar no mato desse aqui.
Tem só um caminhozinho e a gente vai embora.
Então, eu vinha só com uma lamparina.
A gente fazia uma lamparina.
Pega uma lata, aí coloca um palito dentro da lata, faz uns furos na lata, que é pro vento não apagar, chamada de poronga isso.
Aí vem pelo caminho com o poronga.
Então, assim, acontecia, às vezes, da Matinta Pereira me seguir desde a Montanha até na minha casa, pelo meio do mato.
Tipo assim, eu venho andando e a Matinta Pereira vem pra dentro do mato, assobiando.
Parece que ela vai varar na frente da gente, assim, no mato.
Isso eu digo por que eu ouvi.
Eu nunca vi a Matinta Pereira, mas eu ouvi o assobio dela.
Então, parece assim que ela vem te perseguindo, abeirando a estrada.
Você vem pela estrada, quando você para, ela para também.
Você anda, ela anda.
Você parou, ela para novamente, entendeu? Então, isso aconteceu muito comigo, com os meus irmãos.
Isso era costumeiro.
Mas qual o conselho que as pessoas davam? “Não te importa, não liga, não joga pedra.
Não faz nada disso.
Segue o teu caminho, que ela não vai fazer nada”.
Então, muitas das vezes, a Matinta Pereira nos seguia, todos nós, desde a Montanha, dois quilômetros até a minha casa, ela seguia.
Quando chegava próximo da casa, ela se desvia e vai embora pra mata e fica ali.
Não sei se ela está querendo malinar da gente, ou é proteger, é companhia, de repente, podia até ser algo nesse sentido.
Em relação ao Boto, isso é uma coisa mais comum de você ver alguém andando na praia, entendeu? Na Montanha a gente tinha a praia e tem a casa dos nossos parentes lá e, às vezes, a gente dormia lá.
E muitas das pessoas vendo o Boto subir pela escada.
Alguém, tipo assim, alguém todo de branco descendo as escadas.
Chega na ribanceira, você olhar na praia, aquela pessoa toda de branco andando pela praia.
E a pessoa descer aquele cerco, correr e pular na água, entendeu? Aí vai dizer assim: “Era o Boto mesmo.
Porque eu corri atrás dele até lá na ponta.
Que chegou lá na ponta, ele pulou na água”, entendeu? Então, isso era algo quase que costumeiro ali, que as pessoas já nem se importavam muito com isso.
As pessoas que jogavam tarrafas, que pescavam na praia, de ver muito essas coisas acontecerem.
Então, tipo assim, nós vivemos hoje em dia, devido teve muitos moradores, isso vai desaparecendo.
Mas na minha juventude, assim, eu diria, na minha infância, adolescência, em que as matas, em que as florestas eram praticamente intocadas, isso era muito comum de acontecer, né? É algo assim que eu diria que era o nosso do dia-a-dia mesmo aqui da Amazônia, no nosso local.
Hoje em dia acontece menos, mas nós já vimos muito acontecer essas coisas.
P/1- A Matinta, como é o assobio dela?
R- (risos) Eu não sei imitar um assobio da Matinta Pereira.
Isso eu não sei.
Mas é de um pássaro, mesmo.
É um assobio de um pássaro bem forte, né?
P/1- É alto, assim?
R- É alto.
Bem alto.
Estridente.
Que é como um apito de um juiz, né? Você ouve assim, vamos dizer assim, ela apitar quinhentos metros de distância, você ouve nitidamente.
Aí, quando você está com medo, dá uma ideia de que está dentro da sua cabeça, entendeu? Quanto mais medo mais é.
.
.
eu escrevi um texto sobre Matinta Pereira, num livro aí que o MEC produziu e me pediram pra eu escrever um texto da Matinta Pereira.
Posteriormente eu vou mandar aqui pra vocês, eu tenho em mídia, eu vou mandar.
Aí tem uma versão que eu fiz da Matinta Pereira, uma matéria que foi distribuída aí pela empresa Votorantim, mas que vocês podem usar esse material aí no Museu, tá? E mandar mais alguns materiais que a gente publicou em parceria com alguém aí, algumas histórias dessas aí.
Eu posso escrever tantas outras pra vocês, se vocês quiserem, eu posso escrever lá pra abastecer lá no Museu, com certeza.
Em primeira mão, tipo assim, que eu ainda não lancei, eu posso escrever, passar pra vocês, histórias inéditas.
P/1- E história de pescador, específica? Ela contava também? Você já ouviu?
R- História de pescador, a mais forte que ela contava e que as pessoas contam, é a história da Boiúna, né? Da Boiúna, que essa é uma história muito tradicional.
Que a Boiúna é uma cobra.
Se você andar na Amazônia, em todos os lugares tem a Boiúna.
Você tem cento e quarenta e três municípios, tem uma Boiúna pra cada Município.
E, se duvidar, tem uma pra cada distrito, dentro de um próprio município.
Cada um tem a versão dessa Boiúna.
E a Boiúna, normalmente, é uma pessoa da comunidade que foi encantada.
Essa pessoa foi encantada e ela se transforma, à medida que o tempo vai passando, ela se torna uma cobra muito grande, que ela não pode viver dentro do rio.
Ela precisa sair do rio e ir pra baía, pra um lugar maior.
Então, ela persegue pescadores, que ela não goste de determinado pescador, ela persegue, ela é capaz de meter aquela canoa no fundo, afundar.
Ela é capaz de proteger um pescador que ela vá com a cara, ela é capaz de proteger e levar em segurança até determinado lugar.
E a coisa mais assombrosa da Boiúna é que ela tem o poder de se transformar num navio todo iluminado, entendeu? Que são chamadas “gaiolas”, que são esses navios aqui da região amazônica, que transporta passageiro pra Manaus, pra Santarém.
Então, às vezes, os pescadores estão pescando, isso aconteceu muito, de estarem na baía e vem um navio todo iluminado.
À noite, é bem iluminado aquele navio, na direção deles.
Eles ficam desesperados, aí, começam a remar com medo, pra fugir, porque vão ser atropelados pelo navio.
E, de repente, o navio desaparece.
Entendeu? Isso é uma coisa muito comum de acontecer.
Hoje acontece bem menos.
Mas no passado aconteceu muito.
Então, isso é chamado a Boiúna.
A Boiúna tem o poder de se transformar num navio.
Aqui em Barcarena, a história mais famosa é da filha do senhor Raimundo Álvares, chamado de Cão, que ele foi o prefeito de Barcarena.
Ele foi prefeito de Barcarena.
E eles moravam aqui na margem - nem sei se o Lenon contou essa história pra vocês- do Rio São Francisco.
E eles moravam.
.
.
tinha uma ponte que eles desciam lá no rio.
Eles eram comerciantes.
Aí a mãe deu banho na menina, era uma menina de três anos de idade, se eu não me engano e deixou a menina em cima do balcão, embrulhada com a toalha e foi lá dentro.
Quando ela voltou, a menina tinha sumido.
Isso foi uma história verídica, a menina sumiu mesmo, desapareceu de cima do balcão, tipo assim, rápido.
Ela foi lá na cozinha.
Quando ela voltou, a menina tinha desaparecido.
E ela procurou a menina.
Desceu lá, procurou em todo lugar.
Aciona as pessoas, as pessoas vão e procuram.
Não encontraram o corpo da menina.
Esperaram o corpo boiar, porque normalmente, quando morre afogado, caiu na água, boia, mas não boiou.
Nunca encontraram a menina.
Nunca.
Desapareceu a criança, entendeu? E ela era a filha do prefeito.
E dizem que ela se transformou numa Boiúna, entendeu? E que ela foi encantada.
E que, inclusive, ela apareceu em um sonho pra mãe e disse que, ela conversando com a mãe, que ela estava encantada, que era uma moça agora.
E que determinada noite, eles iam ter a oportunidade de desencantá-la.
Que ela viria.
Ela iria subir no miritizeiro, que era a ponte lá em cima do rio, ela ia se colocar com a cabeça em cima da ponte e eles tinham que dar uma machadada na cabeça dela e pingar uma gota de sangue deles na cabeça dela.
E naquela noite ela veio, ela apareceu.
Mas eles, sabendo que era a filha, ficaram com pena de bater nela com o machado.
E ela voltou pra baía e continua encantada até hoje, entendeu? E então, essa história é a história mais, eu diria assim, verídica do município de Barcarena.
Porque a menina desapareceu e é criada essa história.
E essa história se manteve durante muito tempo.
Muitas pessoas que escreveram livro registraram esse fato num livro.
E até hoje muita gente acredita que realmente foi isso que aconteceu, entendeu? Então, o mito mais importante, o mais famoso do mar, da baía, eu diria que é exatamente a Boiúna, né? Não é apenas uma cobra encantada, mas uma cobra que se transforma em navio.
E a outra, também a minha mãe contava e hoje nós temos centenas de histórias dela, é da Iara, né? A Iara é um mito também mais nacional, né, acontece em muitos lugares.
Mas aqui acontecia muito isso, de os pescadores saírem pra pescar e desapareciam, né? Mas acontecia uma das duas coisas: ou desaparecia ou, quando apareciam, eles apareciam loucos em casa.
Chegavam quebrando tudo, doido e corriam pro mato, aquela coisa.
E muitos deles morriam.
Acontecia isso, da pessoa morrer.
O que tinha acontecido? Aí dizem que ele foi pro mato e a.
.
.
existem vários nomes: uma é Oiara, chamam de Oiara, ou Uiara, ou Iara, né, ou Mãe D’água, né, que é uma outra versão também.
E ela ocorre tanto no rio grande, como nos igarapés, nas lagoas, naquelas fontes de água.
Onde tiver água, a presença da Iara está por ali.
E diz assim que ela aparece pro homem, ela canta.
Ela é uma versão, na verdade, da sereia, né? É uma sereia que nós temos da Amazônia, que ela é morena, ela é uma índia.
Então, ela canta e encanta os homens e leva.
E consegue atraí-los pra água, eles vão e morrem afogados.
Ela promete levá-los pro palácio dela lá no fundo do rio e os leva.
Na verdade, eles morrem afogados.
Ou, quando ela permite que eles retornem, eles retornam, mas eles enlouquecem.
E quem pode libertá-los dessa escravidão é um pajé, fazendo um trabalho longo, de longo prazo, pra poder libertar daquela escravidão.
Ou senão ele morre.
Ou fica louco pro resto da vida, né? A Iara tem esse poder de fazer isso.
E eu lembro assim: quando eu era criança ou adolescente, até os meus pais mesmo, mas as pessoas da comunidade, até hoje ainda tem muito isso nos interiores, as pessoas dizerem: “Não vai sozinho pro igarapé.
Não vai sozinho pro igarapé, porque a Mãe D’Água pode te flechar”.
Eles falam isso: “Flechar, ela pode te flechar”.
Aí as pessoas, muita gente ainda faz isso: não vai sozinho pro igarapé, só vai se for acompanhado, porque tem medo da Oiara, ou da Mãe D’água flechar, da Iara flechar a pessoa e a pessoa ficar louca, na verdade, entendeu? Então, isso são coisas, eu volto a repetir, são coisas assim fortes do dia-a-dia, do cotidiano da nossa região.
Aqui mesmo, Barcarena, como parte da Amazônia, isso já foi muito forte, né? Mas mesmo hoje ainda tem muitas pessoas que creem nisso, né? Na mata, uma das maiores crendices que nós tínhamos aqui na Amazônia era o Chincoã, um pássaro, né? Um pássaro chamado Chincoã.
Se você é caçador, você só vai pro mato dependendo do canto do chincoã.
Ele tem dois cantos diferentes.
Eles têm um canto de sorte e um canto de agouro, entendeu? E, quando você ouve o canto de boa sorte, você pode ir, que você vai pegar a caça.
Mas se for no dia em que ele entoar o cântico de agouro, você não vai, porque, se você for, vai acontecer alguma coisa ruim com você no mato, entendeu? Então, isso até hoje, caçadores, os poucos que ainda restam na Amazônia, se guiam por isso.
Aqui no nosso município, lá na nossa comunidade do Curuperé, acontecia muito isso, eles dizem: “Eu ia caçar hoje, mas o chincoã avisou que não é pra ir”.
Isso determinava a vida das pessoas, entendeu? Muito forte.
E as pessoas acreditavam piamente nisso.
E assim, tem o chincoã, tem a coruja também, isso ocorre em mais lugares do Brasil, né? E a coruja, se de madrugada, ela começar a fazer um canto, que é como alguém batendo num caixão, é muito parecido com aquela questão do rasga mortalha, né, as pessoas se preparam, porque vai morrer alguém na comunidade.
E assim, normalmente morria, né? Hoje, a minha mulher fala isso, a minha mulher diz assim, não é uma pessoa de muita idade, mas ela diz, ela acredita nisso: “Olha, essa noite a coruja estava batendo aí.
Então, toma cuidado, que vai morrer alguém aqui da comunidade”, entendeu? Então, isso que em outros locais não passa de mito, pra nossa região ainda é muito verdadeiro, é verdade.
P/1- E essas histórias de onça? Como é isso?
R- História de onça, na verdade, é muito assim, não onça de realidade, essa onça de comer as pessoas, essa coisa toda.
Mas muito mais uma questão de ficção, mesmo.
De onça que é lograda, onça que é enganada, onça que é.
.
.
entendeu? É uma história de onça que ocorre mais pelo Brasil afora, né? É uma história mais de fora do que daqui porque, na verdade, aqui na nossa região nós não temos onça, né? O máximo que tem é gato maracajá, eu diria que são onças pequenas.
São as histórias assim, normalmente, que hoje, se você quiser, você compra o livro, que são histórias da Onça Lograda, foram enganadas, né? Então, não sei como, mas no passado, as pessoas sabiam muitas histórias desse tipo, da onça com o bode, né, constrói a casa ali.
Você deve ter lido em algum momento, que a onça estava construindo uma casa.
Mas a onça não sabia, a onça veio e limpou a área.
Aí, quando é daqui a pouco, o bode chega, ele queria fazer a casa e chegou e já encontrou a área limpa, aí ele já coloca o esteio.
Um acha que é um deus, que é alguém que está ajudando ali, uma obra espiritual.
Aí, quando o outro vem, o esteio já está colocado, já coloca a cobertura.
Aí o outro vem.
.
.
no final ele gera uma intriga, né e normalmente a onça se dá mal no final.
Normalmente, é o outro animal que se dá bem.
É igual à história do macaco, essa coisa toda.
Essas histórias da onça eram muito contadas também, né, no passado.
Mas muito, as histórias que eu conheci do passado, normalmente, a maioria, eu penso que noventa e cinco por cento, foram contadas por pessoas, assim, que passou de pessoas pra pessoa, de geração em geração.
E muitas dessas histórias se perderam.
Porque existem pessoas da nossa comunidade que são grandes contadores de histórias e que morrem.
Quando morrem levam uma quantidade de histórias com eles, porque ninguém lembrou de registrar, entendeu? E isso tem sido uma falha da gente ao longo do tempo.
Se você pode ter um projeto e ser um escritor, de você vir e coletar histórias na nossa comunidade, as pessoas de idade da nossa comunidade, você escreve duzentos livros, né? Nós temos só, pra dar uma ideia, um escritor inglês chamado, é o Sean Taylor.
Ele veio aqui na Amazônia e andou pela Amazônia, coletando histórias nas comunidades.
E quando ele voltou pra Inglaterra, ele tinha lá mais de cinco mil histórias registradas, passando assim um dia num lugar, outro dia em outro, coletando histórias.
E aí ele escreveu um livro, Histórias da Amazônia, ele colocou assim, umas trinta histórias, de cada comunidade ele colocou uma história e com o nome de quem contou a história pra ele.
E depois ele vendeu esse livro pro Ministério da Educação, aqui no Brasil, entendeu? E esse livro foi distribuído pra todas as escolas do Brasil.
Quer dizer, alguém que veio lá do exterior, pegou a nossa história, escreveu o livro, vendeu, ganhou muito dinheiro, né, com a venda desse livro e devolveu pra nós a história num papel, que nós não tínhamos, entendeu? Ganhou dinheiro com as nossas histórias.
Eu não acho isso ruim, não.
Eu não critico ele não, eu acho legal.
Eu acho que nós temos que fazer isso, entendeu? Por que ele fez isso? Porque nós permitimos, porque nós não fazemos.
Então, eu sempre falo pros professores: nós precisamos investir nisso, crer que nós podemos ser produtores.
Produtor, não.
Na verdade, o texto resiste.
É transpor do oral pro escrito.
Registrar.
E lançar esses livros, pra que a gente possa ter.
.
.
histórias, nós temos.
Nós precisamos de investir nisso e colocar no papel.
Temos muito.
P/1- Eu queria fazer uma pergunta, mas antes disso, as histórias sobre o lugar, ou a chuva, ou o sol, também existia isso?
R- Sim.
Porque na verdade, eu digo pra você assim, a questão da tradição, como eu te disse, assim, do nosso povo, o nosso povo ele pode não ter estudo.
.
.
eu digo assim, o nosso povo, culturalmente falando.
Porque hoje já se modificou, hoje em dia todo mundo tem acesso à escola, só não estuda quem não quiser, né? Hoje tem a facilidade.
Mas eu digo assim: tradicionalmente, lá dos nossos avós, antes ainda, os indígenas sempre foram muito sábios, né? Eu volto a dizer pra você: pra cada coisa eles tinham uma explicação.
E a história deles, hoje, tem lógica.
Você escreve um livro de lenda, lendas é a explicação de como surgiu cada coisa.
Isso foi criado por pessoas que não sabiam ler, nem escrever convencionalmente.
Mas eram pessoas altamente inteligentes, que conseguiram criar a trama, o enredo de uma história tão bem construída, que hoje é usada em meios acadêmicos, né, é usada na universidade, enfim.
Tem pessoas que são levadas daqui lá pro exterior, só pra contar histórias, né? E essa história foi criada, não foi por ele.
Essa história ele ouviu de alguém que criou e foi alguém, novamente, analfabeto, que eu poderia dizer, né? Então, essa questão ligada à chuva, ao fogo, né, isso sempre existiu, né? Existiu.
Você vê, por exemplo, assim, as pessoas dizerem assim, isso fatos mesmo, a pessoa olhar e dizer assim: “Olha, hoje vai chover.
Hoje vai chover”.
Porque, além de eles conhecerem, eu digo assim intuitivamente, a questão da lua, que é algo que no passado nós tínhamos como mitologia, hoje em dia a ciência explica, né, que a lua interfere na maré, na enchente, na maré lançante.
Os nossos pais, os indígenas, sempre tiveram convicção disso, certeza disso, sem ter nenhuma explicação científica, né? Eu já vi histórias, por exemplo, as pessoas contarem aqui, que tem, por exemplo, um animal chamado uruá, que nós chamamos.
Lá na França é o escargot.
Esse animal, o nosso aqui, vive na água.
Ele vive no rio.
E as pessoas, o pessoal vai fazer uma construção aqui na região e trouxeram engenheiro aqui do sul do país.
Eles estavam montando toda a engenharia pra construção de umas casas, de um projeto.
E eles já tinham feito todas as medições deles.
Aí chegou um senhor numa canoa, numa montariazinha, remando.
Aí parou lá, ficou olhando, depois ele disse pra eles assim: “Vocês querem que a água alcance o chão da casa de vocês, o assoalho?” “Não, jamais.
Nós estamos projetando”.
Ele disse assim: “Mas vocês já viram onde o uruá botou o ovo dele?” Aí: “Não.
Mas o que isso tem a ver?” “Não.
Porque o uruá sobe na árvore, num galho, o que quer que seja e ele bota o ovo onde a maré não vai chegar, aonde a água não vai chegar.
Aí, pra vocês terem uma ideia onde é que a maré de lanço, a maré grande de março vai chegar, vocês têm que olhar onde o uruá bota o ovo.
Porque o uruá sabe”.
Entendeu? “Será que é verdade?” Ele disse: “É.
Vamos olhar, eu vou lá, no.
.
.
” - tem umas plantas chamadas aningas - “lá no aningal, tem lá.
Está aqui o ovo do uruá.
Vocês podem olhar que está na mesma altura.
É aqui que vai chegar a água”.
E a água, pelos cálculos do engenheiro, ia chegar lá no assoalho dele.
Mas só que eles decidiram seguir a ideia do caboclo: “Bora seguir, porque ele conhece.
Ele está falando, ele entende isso” “Não.
Não tenho muito coisa a perder, não”.
E eles fizeram.
E quando veio a água de março, a água chegou lá onde o caboclo tinha.
.
.
lá onde o uruá colocava o ovo, entendeu? Então, coisa desse tipo, aí quer dizer, não invadiu a casa deles, a água.
Coisa desse tipo as pessoas da nossa região desconhecem e que parece bobagem, mas não é.
Isso, como eu dizia, intuitivamente, que a ciência, de alguma forma, vai fazer isso, ele vai explicar, né? Mas eles, sem precisar disso, vão dizer pra você, por exemplo: “Está escuro”.
Nós.
.
.
eu digo nós porque eu também conheço um pouco disso, eles conheceram mais do que eu.
Eu digo assim: “Eu não sei se vai chover”.
Mas eu duvido se o meu irmão, o meu pai, ele diz pra você: “Vai chover” ou “Não vai chover”.
Ele diz isso.
E ele diz: agora está mais fácil, que a nuvem mais próxima, mas se a nuvem está distante, ele diz.
Ele diz assim, porque o vento é terral: “O vento está terral”, né? Ou: “O vento está geral.
Ah, está se formando, vem muita chuva”.
Você pode dizer, eu posso dizer: “Vem muita chuva”.
O meu irmão diz pra você assim: “Não vai chover.
Porque o evento está tal tipo de vento”.
É pescador, entendeu? Aí não vai chover.
Você pode se planejar em cima do que ele te disse, que não vai chover.
Mas se ele falar assim, você dizer assim: “Mas não vai chover”, ele diz assim: “Vai chover.
Por causa disso aqui”, entendeu? Então, guia a plantação, entendeu, guia a viagem, guia a caça.
Porque o elemento não vai caçar à noite se chuviscar um pouco, porque o chuvisco na folha espanta a caça.
A caça, qualquer barulhinho que ela ouve, ela foge, entendeu? Então, se guia por essas coisas, a chuva, enfim, toda essa questão.
São profundos conhecedores disso.
Eles derrubam um roçado, pra fazer a roça.
E ele diz assim: “Nós vamos ter que tacar fogo nesse roçado”.
Porque o roçado, vamos pensar, se ele derrubar, eu diria, cinco hectares, três hectares, não derruba tanto, porque ele nunca teve maquinário pra derrubar, tudo era com terçado, com machado, essas coisas.
Nem motosserra não tinha.
Mas ele diz assim: “Olha, nós vamos fazer o roçado.
A gente tem que fazer.
E nós vamos ter que derrubar tal dia, pra queimar até tal dia”.
Aqui, a região norte não existe inverno e verão, você sabe disso, né? Existe um tempo que chove mais, um tempo que chove menos.
Mas, normalmente, à tardezinha cai chuva.
Mas ele diz assim: “Nós vamos ter que queimar o roçado até tal dia, porque se não queimar, no dia trinta de setembro vai cair um temporal muito grande”, entendeu? “Aí vai molhar as folhas.
Quando a gente for tacar fogo, não vai queimar direito”.
E isso dá muito trabalho pra eles.
Porque, como não queima direito, depois eles vão ter que tirar no braço.
Porque quando eles tacavam fogo, tacam pra queimar tudo, pra ficar limpo pro plantio, entendeu? Então, a maior tristeza de uma pessoa dessa que faz roça, dos meus pais, das pessoas, era quando eles tacavam fogo e não queimava direito, porque dá muito trabalho pra varar, pra cortar, pra tirar esse material daí.
Então, ele diz assim: “Ah, o fulano chegou.
Vai começar a roçar agora”.
Ele diz assim: “Trabalho perdido o dele, porque não vai dar pra tacar fogo antes da chuva cair”, entendeu? Então, se faz a roça pensando na chuva.
Se faz a roça, se caça, se pesca, tudo baseado em isso.
Então, são pessoas que têm um domínio desse conhecimento: da água, do fogo, do ar, do vento.
O vento está geral, o vento está terral, o vento está de fora, o vento está.
.
.
na praia, por exemplo, existe o fruto do buriti, né? O fruto do buriti, hoje em dia, as pessoas o pegam logo porque vende.
Hoje em dia vende tudo.
Mas quando nós éramos adolescentes, crianças, as pessoas não pegavam, isso ficava solto na água.
Vinha lá de Abaetetuba, vinha daqui e aí na baía estava cheio de buriti.
O fruto amolecia.
Aí os nossos pais diziam assim: “Olha, dia vinte de janeiro, é pra vocês estarem preparados, que vai encostar muito buriti na praia nesse dia.
Porque o vento vai estar de fora” - que a gente falava, que é da baía pra terra - “então, esse vento vai trazer muito buriti pra cá, pra praia”.
Aí cada um preparava a sua cuia de farinha de mandioca.
Aí a gente descia pra praia naquele dia.
A gente já sabia.
Quando amanhecia o dia, a gente ia.
A gente olhava, era aquela semana que caía chuva a semana todinha e o vento estava de fora.
E a gente descia na praia com a cuia de farinha, tinha buriti pra toda parte da praia, né? Que nós sempre chamamos de miriti, na verdade.
A gente aprendeu mais essa linguagem das pessoas, o buriti, mas na época a gente falava muito de miriti.
Então, a gente descia na praia, o lanche do dia era o buriti, na praia.
O nosso pai alertava e dizia pra gente levar uma cuia de farinha, pra comer o buriti com farinha na praia, entendeu? Então, sabedoria de pessoas que nunca tiveram a oportunidade de ir numa escola pra estudar, mas eles tinham o domínio da natureza, em relação a esse conhecimento, né? Então, tudo era calculado em cima do conhecimento que eles tinham da natureza, tá? Ninguém duvida disso.
Ninguém duvida de chegar e dizer assim: “Ah, porque ele não é meteorologista.
Ele não é.
.
.
”.
Não.
Não duvide de uma pessoa da nossa região, porque eles conhecem.
Então, isso eu digo, aquilo quando nós falamos pra alguém: “Você é doutor, você é mestre”.
Mas não use isso em nenhum lugar, onde quer que seja, pra você dizer assim: “Eu sou melhor.
Sou mais importante”.
Não.
Se você chegar na nossa região, respeite o caboclo, aquele que nunca estudou, porque ele tem muita coisa pra te ensinar, né? Ele tem muita coisa pra te ensinar.
Eles nos dão lições todos os dias.
Então, mesmo que você não acredite no que ele fala, mas fica calado e observa.
Tem muita coisa que você vai comprovar que é verdade o que eles estão dizendo.
Mesmo que você não tenha uma explicação científica, mas é verdade.
Porque o nosso povo é um povo sábio.
Eles nos deram lições muito importantes e continuam nos dando lição até hoje.
Adoro conversar com uma pessoa de idade daqui da nossa região, sentar com ele.
Eu perco o meu tempo, entendeu, com eles, quando eu sento, que eles vão me contar coisas do tempo do passado, coisa assim.
E isso me enriquece muito.
E digo assim: muito do que eu faço nas minhas palestras por aí afora, é que eu aprendi com eles, entendeu? E não precisou ter.
.
.
não desconsidero não, acho que todo mundo tem que estudar muito hoje, a concorrência é grande, essa coisa toda.
As pessoas precisam ter mais, muito conhecimento que tem aí.
Mas nunca desconsidero.
Eu os considero também mestres e doutores nessa arte de historiar, de cultura e do que quer que seja, entendeu? São pessoas que trazem grandes ensinamentos pra nós.
P/1- Agora, essas mesmas pessoas, você acredita que elas estão captando as mudanças de clima também? Como está isso pra essas pessoas que você tem conversado?
R- Conseguem perceber claramente.
Na verdade, é assim: percebem o desastre que tem acontecido.
Porque a nossa região, é uma região assim: o Pará é quente, sempre foi muito quente, mas nunca como hoje, né? Nunca como hoje.
E você ouve as pessoas dizerem assim, você vê as pessoas de mais idade dizer assim: “Poxa, eu já não durmo mais sossegado, como eu dormia antigamente, né, mesmo que eu tenha um ventilador, mas não é a mesma coisa” ou “Até o ventilador, o ar é quente”.
Eu ouço as pessoas falarem muito isso e dizerem assim: “Poxa”.
E até porque, antigamente podia dormir com a porta aberta, a janela aberta.
Então, as casas nem tinham parede.
Acontecia muito isso.
Hoje em dia, devido a essa questão da violência, mesmo onde nós moramos, não tem como dormir com a janela aberta, né? E isso se tornou, assim, muito complicado.
E a gente observa, assim, eles se ressentirem disso.
E digo pra você, assim, que a maioria tem a consciência assim de que, por exemplo, a derrubada de muitas árvores, a nossa região que era floresta, começa que você vê aqui um clima gostoso desse.
E hoje já se perdeu muito disso, né? Hoje, o Curuperé, a área em que eu moro, o Curuperé é dividido em duas partes.
Tem uma área que ainda é assim, floresta.
Mas tem uma parte que já é mesmo uma comunidade grande, com muitas famílias morando ali.
Onde eu moro, já moram trezentas famílias.
Aquele local que, como eu te disse, era uma casa aqui e outra a dois quilômetros depois, hoje em dia já está tudo vizinho, ali.
Enfim, já é uma comunidade grande.
E você observa, assim, que já é muito calor, já é muito quente, que isso, no passado, nós nunca tivemos.
E as pessoas de idade, que viveram esse outro tempo, eles conseguem notar essas mudanças, né, essa coisa.
Assistem televisão.
E essa coisa toda aí.
E concordam.
Eu observo, assim, que a sabedoria está nisso, de concordar.
E eu fico feliz quando eu vejo assim, uma pessoa de idade dizer pra um menino, assim: “Não corta essa árvore aí, porque vai ficar muito quente”, né? Não consegue controlar outras coisas, mas ele consegue dizer pro neto dele, consegue dizer por bisneto e muitas das vezes ele é ouvido, né? E, de qualquer forma, é alguém que divulga essa mensagem, porque eles têm essa eles percepção de que, mesmo sem ter o estudo, mas eles têm essa concepção, essa sabedoria de saber o que está afetando o mundo, o que foi mudado pra que ficasse tão quente dessa forma.
E penso que é isso que tem mais atacado a nossa comunidade, a nossa região, é o calor mesmo, por conta dessas situações.
P/1- Então, eles percebem esse desequilíbrio?
R- Sim.
Com certeza percebem claramente, sim.
Com certeza.
Depois, se você quiser, eu vou voltar lá na minha história de infância.
.
.
P/1- Eu queria te perguntar ainda nessa linha, então, as pessoas sentem esse desequilíbrio, relatam isso, né?
R- Sim.
P/1- E como é que está essa passagem, de pessoa pra pessoa, pros mais novos? Como é que tem sido isso hoje?
R- Tá.
Eu penso assim, na verdade, assim: uma boa parte dos jovens, eu observo assim que eles não se importam muito com essa coisa.
Eu acho que existe um descaso com muita coisa.
Eu penso que as gerações foram piorando nesse sentido.
As pessoas olham muito assim o lucro, a finança, muito o lado assim, do dinheiro, como algo primordial.
E não importa que a gente derrube essa floresta aqui, desde que se produza emprego e dinheiro, entendeu? Eu acho que isso é o que existe de mais forte nos nossos jovens.
E o complicado é assim: não conseguir se colocar muito essa questão do desenvolver, mas tendo esse cuidado, principalmente com a natureza, né, essa coisa autossustentável.
Eu penso assim que, com os jovens, a mensagem que tem ficado assim um pouco mais forte, uma boa porcentagem, porque na realidade tem aquelas pessoas que sempre atentaram pra isso, a questão do cuidado com a natureza, a preservação, essa coisa toda, mas eu penso que a maioria, o que eu tenho observado, eu tenho visto, assim, vai muito por isso, pelo capital, pelo emprego que é gerado, pelo desenvolvimento.
E isso tem, de alguma forma, eu não acho isso a coisa mais saudável, também não, que eu acho que.
.
.
eu tenho, eu acredito nisso, do desenvolvimento com responsabilidade, entendeu? Mas que isso tem que ser de todo mundo, a consciência.
Não adianta, assim, se coloca na cabeça do jovem aquela coisa de que é culpa do prefeito, que o prefeito não faz nada, porque não sei quem não faz nada.
E, na verdade, se ele não assumir esse papel também, essa responsabilidade, dizer assim: “Esse prefeito não faz, mas eu posso cobrar, até porque eu o elegi e tal”.
Porque, normalmente, não se vai atrás, não se busca, não.
Só se elege e não se busca.
Depois fala mal do prefeito, fala mal do vereador.
Eu acho que precisa ter mais essa consciência.
E isso, eu penso que as pessoas não têm conseguido construir isso, nos jovens, sabe? Eu penso assim, que as pessoas de mais idade perderam isso.
Quer dizer, na verdade, isso não existiu muito bem resolvido.
E quem tenta trazer isso pras pessoas, não está conseguindo muito fazer isso.
Eu penso que isso é independente de ter empresa, de não ter empresa, de ter o que quer que seja.
Eu penso que é mesmo assim essa questão de a gente saber fazer isso bem feito.
Eu penso que a escola fazer isso bem feito.
A família fazer isso.
Todo mundo.
Cada um tem uma parcela nisso.
Por quê? Chega lá e diz assim: “Essa ponte aqui não presta.
Ela está quebrando, porque o prefeito não se importa, porque o vereador não se importa”.
Talvez ele nunca se importe mesmo, se eu não fazê-lo se importar, né? Se eu não for lá pra dizer pra ele se importar.
Porque a comunidade elegeu esse vereador, mas nós nunca, como sociedade, nunca, nos mobilizamos pra ir fazer uma cobrança em prol de todo mundo.
O que se vê muito é o pedido de um pagamento de uma conta de luz, sempre benefícios individuais.
E temos visto muito isso.
Quer dizer: isso se reforça cada vez mais, né? A consciência da coletividade, que é o mais importante.
E eu penso assim, que eu vejo pessoas tentando ajudar, tentando construir isso, aos poucos, ajudando na formação das pessoas.
E eu penso que a gente não tem conseguido fazer muito isso, entendeu? E nós vivemos, assim como em muitos lugares, aqui a gente ainda vive muito isso: é cada um por si, o que ele puder se beneficiar individualmente, se beneficia.
E isso não é bom.
Porque eu penso que nós poderíamos conseguir muita coisa pra nossa comunidade, que fizesse bem pra todos, mesmo que não fosse muito, mas que fosse algo que desse um pouquinho pra cada um, eu acho que seria o mais importante, isso.
Eu penso que o maior empecilho, a gente não tem conseguido fazer isso bem feito.
Eu penso que nós temos feito e conseguido conquistar, tipo assim, não sei a porcentagem, mas eu penso que a gente tem conseguido influenciar vinte por cento.
Mas a gente tem um oitenta por cento aí que, às vezes, bota tudo a perder, entendeu? Vinte por cento é pouco diante da força de oitenta, entendeu? Eu fico feliz quando eu vejo assim, na própria comunidade, um ou dois jovens, que são aqueles que tentam mobilizar um ou outro.
Na nossa comunidade, nós temos essas pessoas que tentam mobilizar: “Vamos lá, vamos ajudar, aqui”, que vai e faz alguma coisa.
O pouco que a gente tem, essas pessoas.
Mas, às vezes, as próprias pessoas da comunidade acham que aqueles dois que têm a obrigação de fazer, né? E, na verdade, ele está tentando mobilizar todo mundo pra fazer.
Mas as pessoas acham: “Não.
Porque quem tem que fazer são eles dois.
Porque eles que estão à frente.
Porque eles estão.
.
.
”.
E a gente tem, eu acho, que tem falhado nesse sentido, não tem conseguido fazer isso bem feito.
E volto a te dizer que isso tem que ser papel da escola, da prefeitura, da empresa, da família e da igreja, entendeu? Mas a gente não tem conseguido fazer bem feito isso.
P/1- A gente vai voltar ainda nisso já, mas me conta uma coisa: como era e é essa relação entre a igreja evangélica e essas lendas, essas mitologias, essas histórias? Não dava um nó, não?
R- Isso.
Sim.
Eu vou te dizer.
Porque quando.
.
.
nós tivemos um projeto aqui em Barcarena, há tempos atrás, chamado, que era o Programa Escola que Vale, né? O Programa Escola que Vale é uma parceria da empresa, da Vale, com a prefeitura de Barcarena.
E foi o primeiro processo de - eu diria assim - formação de professores em Barcarena, assim, com mais qualidade.
A partir de 2001, eu poderia dizer assim que eles trouxeram um processo de formação que eu diria, eu como professor, fez muita diferença na minha vida, entendeu? Assim, injetou uma formação em nós, quarenta professores na época e eu fui um desses professores.
Na época eu era professor lá da escola da Montanha.
E depois dessa formação, eu saí pra trabalhar na Secretaria de Educação, pra trabalhar na formação dos professores, né? Eu dava aula lá pros meninos lá na escola, do campo.
Aí de lá eu saí pra trabalhar já na formação dos professores.
E isso, muito do que me deu esse suporte, foi o Programa Escola que Vale, esse programa que veio em 2001.
Então, dentre tudo o que o programa trouxe pra nós, professores, ele trouxe esse trabalho com projetos didáticos e, assim, uma contextualização maior do que a gente, das coisas que a gente ensinava.
Porque nós ensinávamos muita coisa, mas faltava uma contextualização maior.
Eu digo assim, em nível dos novos conhecimentos na área da Educação, dos novos paradigmas educacionais e nós vamos aprendendo novas coisas.
Então, uma das propostas do Programa Escola que Vale, foi valorizar essa questão da cultura local, né? Isso era um dos pontos principais.
Tipo assim: ver a importância do trabalho com a mitologia, com as lendas da região.
Dizer assim: “Você tem um arcabouço de material, que você precisa resgatar isso da tua comunidade e levar pra dentro da escola”, entendeu? Isso a gente foi estudar, aprender.
E ver que, tipo assim, se eu vou propor pro aluno uma produção de texto, ao invés de eu começar uma produção de texto: “Ah, bora fazer um texto baseado lá no Machado de Assis, lá no Christian Andersen lá da Dinamarca, ou lá num escritor de.
.
.
num Miguel de Cervantes, alguém.
.
.
por que não começa uma produção de texto com a história lá do Mapinguari? Né? Por que tu não pode pegar o texto do Mapinguari que, de início, talvez, ele vai te interessar mais do que A Gata Borralheira lá do Charles Perrault, da França, né?” Francês, ele trouxe, tal, mas é de uma outra cultura.
Lá na frente ele vai precisar dessa história, o aluno precisa, porque ele precisa ter esse conhecimento universal, que não pode ser só o conhecimento local.
Mas, às vezes, a gente está esquecendo esse conhecimento local e valorizando só o que é de fora.
Não vê a história? A história que nós estudávamos é a história geral, a história da Grécia, de Roma.
A gente sabe tudo sobre Roma e sobre a Grécia.
E ninguém aqui em Barcarena sabe quem foram os indígenas que deram origem ao município de Barcarena, tá? Aí as pessoas, lá na minha comunidade, não sabem que nós somos descendentes dos indígenas Mortiguras.
E que esses indígenas fazem parte do grupo Tupinambá, né, faz parte desse tronco Tupinambá.
Não sabia disso.
Nunca foi ensinado, né? Foi ensinado as coisas lá de fora, esquece as daqui.
Será que não seria mais interessante pegar, contar a história lá do fígado do Mapinguari e depois propor pros alunos uma produção de texto: agora é reescrever esse texto, porque eu contei.
Agora, pra colocar no papel, né, tem todo uma história, não é fácil.
Talvez seja mais fácil contar, porque quando eu conto, você não precisa colocar a vírgula, o ponto, o travessão, o ponto de interrogação, exclamação.
Você coloca isso naturalmente na voz.
Mas quando vai colocar no papel, precisa ter a vírgula, os dois pontos, o ponto e vírgula, o ponto de exclamação.
E isso não é fácil.
Isso é muito difícil.
Isso é uma técnica que é ensinada no dia-a-dia durante anos, pra você aprender: “Onde é que eu uso?”, pra você: “Onde é que acaba um parágrafo e começa o outro parágrafo?” Então, eu posso fazer isso com um texto delicioso que é o texto do Mapinguari.
Os meninos escrevem.
Depois nós vamos olhar a vírgula, o ponto, a ortografia, essa coisa toda.
Então, por que não trabalhar de início com o que é nosso e depois a gente expande? Aí, pra nós tratarmos dos mitos, tem que levar isso lá pra escola.
Aí imagina.
A minha comunidade da Montanha, que era onde tinha a escola que eu dava aula, as pessoas são noventa e nove por cento evangélicas da Assembleia de Deus, uma das Igrejas mais tradicionais do Brasil, né? Porque a Assembleia de Deus é uma igreja assim, que as mulheres não podem usar calça comprida, né, não podem usar pintura, não podem usar brinco.
Quer dizer: é uma igreja muito tradicional.
Ela foi sempre assim.
Aí eu chego, agora, pra falar pra eles da Matinta Pereira, pra falar do Curupira, pra falar do Boto.
Aí começo a fazer o trabalho com os alunos lá no projeto.
Aí alguém chega e diz pra mim assim.
.
.
as pessoas tinham respeito pelo meu trabalho, aquela coisa, ninguém me afrontava pra chegar e dizer de frente, mas alguém chega e diz assim: “Olha, o fulano de tal, o irmão lá.
.
.
” - que eu fazia, faço parte da Assembleia de Deus também - “falou que ele não está gostando mais dessa coisas aqui, porque até hoje tinha sido muito boa, as aulas.
Mas agora não está gostando, porque você está ensinado coisa do diabo pros meninos” - que é bem isso que você perguntou, né? - “ensinando negócio de Curupira, de Matinta Pereira, de Boto”.
E daqui a pouco chegava uma outra pessoa e dizia pra mim: “Fulano de tal falou isso.
Já não quer deixar mais o filho vir pra escola, porque está ensinando isso”.
Aí eu fiquei pensando, eu disse assim: “Eu vou fazer uma reunião com eles, pra gente conversar sobre isso.
Porque a proposta que o projeto trazia pra nós, a formação que, naquele momento, era o Programa A Escola que Vale, posteriormente, a gente vai ver que a universidade ensinar isso, que, enfim, uma série de coisas dão o suporte pra nós fazermos.
Tipo assim, a educação brasileira é regida por instrumentos, que dizem assim: “A cultura local precisa ser valorizada, ela precisa receber investimento disso”.
Então, nós temos o respaldo dos documentos nacionais, pra que nós possamos fazer isso.
Eu não estou errado.
Eu tenho respaldo, eu tenho referencial pra isso.
Mas também eu não posso desconsiderar a fala do pai, porque é o filho dele que está na escola.
E, se eu não resolver isso, vai ser um empecilho pra mim e eu vou ser um empecilho pra ele.
Ele vai acabar tirando o filho dele da escola e colocando lá pra outro lugar, porque ele não concorda com o que o professor faz.
E esse menino é da minha comunidade, eu não posso afastá-lo da comunidade pra estudar em outro local.
Então, eu tenho que ter o conhecimento, pra lidar com essa coisa.
Eu fiz uma reunião.
Convoquei os pais e graças a Deus, eles vieram pra reunião.
Aí eu usei uma metodologia, eu disse assim: “Olha, eu vou.
.
.
”, peguei um livro didático daqueles tradicionais, que alguns deles conheciam e pego uma história chata daquele livro didático antigo que vocês lembram, que, às vezes, a história não tinha o começo e não tinha o fim, já começava com reticência e termina com reticência, só tem o meio da história.
“Ah, a Rapunzel.
.
.
”, aí não tinha o começo.
“Era uma vez e tal” porque a história é muito grande e não tinha dinheiro pra fazer livro didático com muitas páginas, então só conta a metade da história e não conta o começo nem o fim.
Aí o aluno lê ou ouve, mas cadê o começo e cadê o fim da história, né? Aí levei uns textos desse tipo.
E levei umas histórias: um texto lá do Boto, um da Matinta Pereira e um do Curupira.
E levei esses textos pra lá.
E começamos a reunião.
Mas sempre me trataram com muito respeito, sabe? Nunca tivemos problema, não.
Eu tinha que resolver aquele problema, pra gente continuar se respeitando, eles me respeitando, eu os respeitando, enfim.
Aí eu disse: “Olha, nós vamos conversar umas coisas, mas antes eu queria ler um texto pra vocês”, né? Eu digo assim que eu conto, mas o meu forte mais é.
.
.
eu gosto de mim mais lendo do que contando, (riso) entendeu? Eu me preparo, assim, melhor, lendo.
Então, eu li pra eles.
Eu li um texto lá do livro didático, eu escolhi um texto meio chato lá do livro didático e li pra eles.
Aí depois eu peguei e li um texto do Boto e eles moram tudo, moravam todos na beira da praia, na época.
Aí eu li a história do Boto.
Mas eu procurei ler aquela história, assim, que você vivencia, que você entra na história, pra que os atraísse.
Como eu fazia com os alunos, eu fiz com eles.
Aí eu fui lendo a história, aí parava em ponto estratégico: “Aí o Boto chegou no lugar.
.
.
” e pergunto pra eles: “O que vai acontecer? O que vocês acham que vai acontecer? Porque o Boto chegou lá na cabeça da ponte e as pessoas vinham perseguindo o Boto, o que vocês acham que ele vai fazer?” “Ah, eu acho que ele vai pular na água” “Por que você acha isso?” “Porque eu sempre ouvi isso e os meus parentes contam isso, que normalmente ele corre das pessoas e pula na água”.
Eu os envolvo na história do Boto.
Aí quer dizer: eu faço uma história que nós estamos contando a história junto, eu e eles.
Então, eu paro num ponto estratégico e pergunto: “O que vocês acham que vai acontecer?” E todo mundo se envolve.
Aí, quando terminou, aí eu perguntei assim: “Qual o texto que vocês mais gostam, mais gostaram?”, eles falaram: “Gostamos desse do Boto.
Esse segundo foi melhor.
Mais delicioso” “Mas, por quê?” “Não.
Porque é algo assim: a gente já ouviu muito os nossos pais, os nossos avós contando”.
E eles vão dizendo tudo, cai na armadilha, entendeu? (riso) Uma armadilha do bem, né? Isso é metodologia, né? E eles dizem assim: “Porque o meu pai contava.
Quando você contou, eu comecei a me lembrar de um monte de história que o papai contava”.
Eu dizia assim, igual como você fez: “Você sabe contar uma dessas histórias?” Aí, já ia ele contar.
Quando ele contava, o outro já quer também mostrar que sabe: “Ah.
Eu também sei uma”.
E começaram a contar história e foi um negócio, foi um festival de história do Boto.
Eu já nem li mais do Curupira, só ali já serviu.
Aí, depois que todo mundo contou, foi aquele ambiente muito delicioso.
Eu falei pra eles assim: “Na verdade, essa reunião aqui é só pra gente falar disso aqui.
Não tem, eu não vou falar dos alunos, não vou.
É pra gente tratar de uma situação”.
Aí eu falei pra eles: “Porque aconteceu uma situação assim e eu sei que vocês estão.
.
.
”.
Eu nem falei assim: “Ah, porque vocês estão falando mal de mim, porque.
.
.
”, (riso) não.
“Houve uma situação, tipo assim, eu sei que tem causado um certo incômodo, talvez, pra alguém, por causa assim da formação religiosa de cada um, essa coisa toda.
E eu estou usando, estou fazendo um trabalho com eles, com a Matinta Pereira, com o Curupira, com o Boto.
E eu sei, assim, isso é estranho.
Porque lá na igreja a gente nunca tratou disso, a gente cresceu , tipo assim, refutando essas coisas.
E agora eu estou usando isso aqui na escola.
E dá uma ideia assim, eu entendo vocês, eu sei que dá uma ideia de que eu estou ensinando o menino, como é que vira Boto, (riso) como é que vira Curupira.
Mas não é isso.
O que eu estou fazendo com eles é o que eu fiz com vocês, entendeu? Se vocês fossem meus alunos, vocês queriam que fosse desse jeito ou desse jeito?”.
Eles: “Claro que é desse jeito”.
E eles vão dizendo pra mim.
Quando terminou aquela conversa, estava resolvida a situação.
E ainda fui lá pra Bíblia, eu disse assim: “Quando você vai lá na Bíblia, tem o diabo pra tudo o que é lado, mas pra falar de Deus.
Sempre a Bíblia tem lá: porque Deus criou um anjo, esse anjo se revoltou contra ele e virou o diabo.
Não foi Deus que fez o diabo.
O diabo mesmo se virou no diabo.
Então, a Bíblia tem.
Aí depois vocês vão ver, o diabo vem e tenta Adão e Eva, eles caem em pecado.
Então, vocês vão ver o diabo presente o tempo todo.
Agora, isso não quer dizer que, quando você vai fazer um sermão na igreja, você vai falar do diabo, você está ensinando pros alunos que eles têm que ser do diabo, não é isso.
Ele é um personagem assim como o Boto, como o Curupira, enfim”.
Aí eu falei pra eles, todo mundo entendeu.
Acredita? Acabou.
Empecilho não teve mais.
A gente trabalhou.
Até hoje, na escola, eu não trabalho mais lá, faz dezesseis, dezessete anos que eu saí da escola, foi a escola que eu sempre trabalhei e a minha esposa é uma das professoras lá.
E eu continuo trabalhando, sem nenhum problema.
Mas tivemos que resolver essa situação, entendeu? Porque senão não tinha dado pra continuar, eu tinha que abrir mão daquilo.
Eu sempre falo que pai de aluno não é pra ser confrontado nesse sentido.
Se ele vai reclamar na escola, ele precisa ser ouvido e sentar com ele pra nós conversarmos e nós chegarmos a um denominador comum e a gente consegue se entender.
A escola precisa ter essa função também, entendeu? Porque se nós nos tornarmos inimigos, professor de comunidade, comunidade de professor, a gente não vai conseguir, porque a educação já tem os entraves naturais dela.
Se nós criarmos esse entrave.
.
.
não.
A comunidade precisa ser parceira.
Nós conquistarmos a comunidade, pra que nós possamos fazer uma construção de conhecimento junto com a comunidade, né? E isso precisa ser valorizado, o que a comunidade tem de melhor, pra que a gente possa fazer esse trabalho bem feito.
P/1- Agora, eu digo assim, a nível pessoal, quando você era pequeno, vocês iam na igreja, também não era um entrave? Não era visto como contraditório isso?
R- Em relação a que, tipo assim? Me explica melhor.
P/1- De vocês participarem da igreja e viverem, contarem essas histórias?
R- Ahhh! Sim.
Não.
Não.
Não.
Não.
Não.
Na verdade, assim, as pessoas, todas as vezes vão imaginar assim: você pertence a uma religião e você faz coisas, como eu diria assim, que faz parte da sua cultura, que você não observa que aquilo, em algum momento, poderia bater de frente com uma concepção religiosa, ali.
Até que alguém chega e diga pra você assim: “Olha, isso aí é pecado.
Isso aí é errado.
Isso aí te leva pro inferno”, tipo assim.
E, às vezes, então: “Ah, você conta a história da Matinta Pereira, você conta a história do Boto.
Deus não concorda com isso”, aí, se você não tem um conhecimento pra lidar com essa situação, você pode acreditar, né? E daqui a pouco você se torna até um fanático.
E você dizer isso porque alguém te disse, porque alguém não tem conhecimento do que está falando.
Então, você deixa de.
.
.
você não tem o conhecimento, você se deixa induzir pelo outro.
Eu penso assim: que as pessoas, na nossa comunidade, por exemplo, o meu pai, a minha mãe, os meus tios, as pessoas assim irmãos, sempre contaram história desse jeito e nunca foi um empecilho, entendeu, nunca foi.
Mas aí, quando ouve alguém chegar e argumenta e essa pessoa não tem o poder de contra-argumentar, aí ele se deixa envolver por essas coisas.
E isso tem acontecido muito, em muitas situações religiosas, em que as pessoas acabam se deixando levar pelo pensamento do outro.
Eu penso assim: que você pode até manter a sua postura assim, de que você vai pro inferno, essa coisa toda, mas que seja uma convicção tua, entendeu? “Ah, eu li e tal.
Mas o meu ponto de vista continua sendo esse”.
E eu penso assim que, na época, a gente não fazia muito essa coisa.
O que era mais lá no tempo que a gente, era que jogava bola, se jogasse bola ia pro inferno, aquela coisa toda.
Hoje em dia, por exemplo, assim, os próprios pastores, a maioria deles diz assim: “Não.
Não tem problema.
Pode jogar bola.
Liberado e tal”.
A gente ainda tem um ou dois que diz assim: “Não.
Mas é pecado jogar” (riso), continua com aquela ideia e tal.
Mas a gente já tem o argumento que.
.
.
sempre eu penso que é argumentação, né? Eu digo assim, no ato de jogar bola, eu ensino isso, eu faço um sermão lá na igreja e digo pras pessoas: “O ato de jogar bola é como qualquer jogo.
Se você não souber perder, é melhor você não jogar.
Ou então, se você não sabe perder, você tem que ir trabalhando isso, porque no jogo você ganha, você perde, né? Agora, ______(1:48:43) assim, já que se trata de pecado, aonde vai estar o pecado? Quando você começa a ofender o teu colega”.
O ato de jogar bola, de vinte e dois que jogam, tem quinze que não sabem perder.
Aí ele já vai bater o outro com violência, o outro se revolta e quer uma briga e chama um nome imoral.
Aí já tem uma coisa equivocava, uma coisa errada.
Agora, se você consegue jogar bola, ir bem e voltar bem, não tem problema nenhum.
Deus, nunca que vai.
.
.
Ele vai dizer: “Poxa, que legal que eles conseguem se entender.
Mesmo numa disputa, eles conseguem se entender”.
Isso é essencial.
Então, a gente procura colocar isso pra igreja, pra que a gente tenha uma consciência do que a gente fala e não apenas dizer assim: “Ah, vai pro inferno.
Porque vai.
Simplesmente.
Porque eu estou dizendo que vai”, né? Na verdade, a própria Bíblia, vamos olhar o que a Bíblia disse, que a Bíblia está recheada de amor.
Normalmente, as pessoas usam o ódio, ou usam só a justiça, mas não usam o amor que a Bíblia traz.
Aí dizem assim: “Porque os seguidores das religiões são xiitas, porque os seguidores das religiões são fanáticos, são isso”, e não é.
É aquele que não sabe usar a religião da maneira que ela é.
Eu não acredito que o Deus muçulmano manda matar aquele monte de gente pelo mundo, estourando bomba, eu não acredito nisso.
Eu acho que foi alguém que decidiu fazer daquele jeito, por ele mesmo, né? Então, na religião, eu costumo mostrar muito isso pras pessoas, que existe lugar pra religião, existe lugar pra cada coisa no seu lugar, você sabendo usar com moderação, fazendo com moderação, existe sim.
E esse Deus que todo mundo fala, não é um Deus tirano, um Deus ditador.
Ele é um Deus que diz assim, Deus acima de tudo, ele é amor, né? Ele é amor.
E com esse amor que ele contempla a humanidade, a gente precisa aprender isso, pra gente ensinar isso pras pessoas também.
Então, eu acho que nós usávamos isso lá quando eu era criança, que eu ouvia as histórias muito na inocência e imagino assim: “Que bom que nunca ninguém interferiu nessa época, pra dizer assim: ‘Para!’”.
Porque (riso) eu acho que os meus pais aceitariam aquela ideia da igreja, entendeu? Se dissesse: “Não é pra contar mais essas coisas”, eles não iam mais contar, eu tenho certeza disso, entendeu? Diferente de hoje, que se hoje alguém me falar isso, eu digo: “Não”, eu tenho argumentação.
Eu vou pra argumentação e não vou brigar com ninguém, mas dentro da argumentação, eu tenho elementos sólidos pra.
.
.
mas os meus pais não tinham isso.
Mas que bom que ninguém atrapalhou e isso aí nós conseguimos ter isso na nossa infância.
P/1- Agora, eu queria perguntar pro senhor, finalmente, na verdade, como foi esse processo educacional do senhor? Você falou que o seu irmão começou a lhe ajudar.
Foi isso?
R- Sim.
Exatamente.
Porque, quando eu era criança, a nossa comunidade, nós não tínhamos uma escola, como eu disse, né, uma escola convencional.
Então, as pessoas que queriam estudar tinham que ir pra uma outra cidade ou então na Vila do Conde, que existia uma escola estadual.
Mas, assim, era bastante sacrifício pra se chegar, pra ter acesso à escola, lugar distante.
E também assim, a preocupação, eu penso assim, principalmente do meu pai, era muito que nós trabalhássemos, que se aprendesse a trabalhar na roça, na pescaria, que era o meio de sobreviver.
E a minha mãe tinha muito interesse que nós estudássemos, mas não tinha as devidas condições, né? Porque, como eu falei anteriormente, nós vivíamos da agricultura de subsistência, da pescaria, da caça.
Então, os meus irmãos foram crescendo, estudando um pouco.
Eles falavam, no passado, assim, que era muito pra “desemburrar”, né? Falava assim.
Desemburrar o que era? Era ser alfabetizado.
Aprender a ler, a escrever já é o suficiente pra sobreviver.
E eu tinha o meu irmão, que hoje é pastor da Assembleia de Deus, o pastor Teodoro.
E ele foi uma pessoa muito importante, assim, nessa época, na minha vida, porque ele era, além de ter a minha mãe, outros parentes, mas ele era uma pessoa que se preocupava muito, assim, em me contar histórias.
E principalmente ler.
Ler pra mim.
Além dele fazer os brinquedos que nós brincávamos, fazia muito brinquedo de lata, lata de sardinha, lata de conserva, eram os carros que ela fazia pra gente brincar, que nós tínhamos, o que ele arrumava, assim, de livros, de cadernos, alguma coisa que ele achava que era interessante.
.
.
ele sabia ler um pouquinho, bem pouco, mas ele lia pra mim.
Ah, achou um livro, que era coisa rara, na nossa região, um livro, mas encontrou com ______ (parte 2, 2:33) ele trazia e lia pra mim.
E eu lembro assim que os primeiros textos escritos foi ele que leu pra mim, o meu irmão.
Então, tipo assim, na minha idade de quatro, cinco, seis anos, eu tive a oportunidade de conviver assim com ele, dele fazer essas leituras pra mim, até de jornal.
Pegava um jornal velho que já fazia um ano que já tinha sido escrito, ele tinha acesso, ele achava uma coisa interessante, uma notícia ali, ele vinha e dizia que ia ler pra mim, entendeu? Então, eu sempre me interessei muito por isso, por alguém que pudesse ler.
E eu lembro assim de umas histórias que ele contava, que é de uma obra que é As Mil e Uma Noites, que é Ali Babá e os Quarenta Ladrões, por exemplo, eu lembro que ele leu pra mim, entendeu? E ele leu pra mim, não foi só, eu acho que pelo menos umas cento e cinquenta vezes na vida, ele leu aquela história pra mim.
E outra história que ele leu muito foi aquela Simbad, o Marujo.
Essa história que, posteriormente, depois que eu me tornei professor, eu tive que estudar esses textos, pra poder usar na formação dos professores, que eu vou descobrir que é de uma obra mais completa, que é chamada As Mil e Uma Noites, entendeu? E hoje, tipo assim, um dos materiais muito usados nas formações, que eu sempre utilizo, é essa obra, As Mil e Uma Noites, que são muitas histórias e que hoje elas têm um significado muito grande na minha vida, porque foram as histórias, algumas das histórias de As Mil e Uma Noites, eu ouvi o meu irmão lendo pra mim.
E eu lembro assim que ele ia, às vezes, pra Belém com o meu pai.
E nessas - eu diria assim - vendas que eles faziam de carvão, de farinha, que iam pra Belém, aquelas viagens demoradas que eu falei pra você, o meu irmão, às vezes, ia.
E quando ele pegava algum dinheiro, ele comprava algum livro, alguma coisa.
Eu não lembro, assim, nunca dele ter comprado um carro, um carrinho pra mim, alguma bola, alguma coisa, não.
Eu lembro que ele comprava livro, entendeu? Um ou dois livros.
E, quando ele vinha, ele trazia uma novidade.
Aí ele lia pra mim, entendeu? Então, esse processo, eu penso assim: hoje em dia eu sou uma pessoa encantada por leitura, por ler e por contar histórias.
E uma parte, assim, do meu trabalho hoje, na Secretaria de Educação, tem sido isso, essa arte de contar, recontar.
Eu faço formação tipo assim: esse mês todo vai ser só leitura, só sobre leitura, eu lendo pros professores, os professores lendo pra mim, esse processo.
Então, eu digo assim: foi algo que esse gosto foi me ensinado na infância, pela minha mãe contando história e o meu irmão lendo, principalmente o meu irmão lendo.
E aí, com o tempo, eu me interessava tanto pelas histórias que ele contava, que ele lia, na verdade, que eu comecei a me interessar, assim, ele lia uma história pra mim que tinha “sapato”, por exemplo, aí eu já comecei a me interessar, assim, como é que escreve sapato, entendeu? Não tinha um professor, eu tinha o meu irmão lá: “Como é que escreve sapato?”, aí ele: “Cadê a palavra sapato?”, mostrava no livro: “Está aqui sapato” “Como é que escreve?” Ele dizia: “Olha, pra escrever sa, tem que ser um s e um a, o sa” “Tá.
Tá bom.
Só isso”.
Aí depois eu ia procurar no livro onde tinha sa, aí: “Tem aqui, tem aqui, tem aqui”.
Eu mesmo começava a buscar sa: “Aqui e aqui, aqui tem.
Tá”.
Aí: “Como mais?” Ele dizia: “Pa.
Esse aqui é pa”.
“Mas o que é isso aqui? Ele dizia: “É uma letra, o P e o A faz pa”.
Aí eu começava a procurar pa no texto e ia riscando com lápis, com alguma coisa, riscando.
Então, nessa brincadeira minha com ele, ele me mostrando o sa, o pa e o to, eu aprendi ler, na minha casa com ele, entendeu? Só nas brincadeiras, entendeu? Então, eu aprendi ler e aprendi a escrever com o meu irmão.
Ele foi o meu professor.
Como eu disse pra você, você pensando nas crianças de hoje, quando eu fui pra escola, eu fui muito tarde, eu fui com dez anos de idade pra escola.
Então, na verdade, eu estava fadado a que, na época? A alguém que ia ser como os meus irmãos, nesse sentido de não estudar.
Porque até dez anos de idade eu não tinha ido pra escola, né? Mas eu aprendi ler e escrever com meu irmão.
Com dez anos eu lia e lia muito bem.
Não escrevia tão bem, mas lia muito bem.
E a minha família se mudou, na época, pra uma outra cidade, cidade de Vigia de Nazaré, uma cidade aqui do Pará.
E o meu pai, muito, muito pressionado pela minha mãe, decidiu ir passar um tempo numa cidade pra nós podermos estudar.
Pros meus irmãos mais novos, porque os mais velhos já estavam trabalhando, não queriam saber muito de estudar, mas os mais novos, a gente pudesse estudar.
Então, ele nos levou pra passar um tempo na Vigia.
Deixou as nossas propriedades aqui, terrenos, essa coisa toda aqui e nos levou pra Vigia.
Com muito sacrifício, porque nós não tínhamos casa na cidade.
A gente foi morar com os outros.
Só pensando nisso: que nós pudéssemos ter chance de estudar.
E eu fui matriculado, com dez anos de idade, na primeira ‘fraca’.
Porque na época existia isso: primeira fraca e primeira forte, né? Como se fosse uma alfabetização e um primeiro ano, hoje em dia.
Então, eu fui estudar na primeira ‘fraca’, com dez anos de idade.
E eu lembro que, no primeiro dia de aula, uma professora chegou e perguntou, entrou com a diretora lá na sala de aula e perguntou se tinha alguém que sabia ler ao menos um pouquinho, lá na sala de aula.
Aí eu tinha falado pra menina.
Eu era tipo assim, imagina, alguém que veio do interior, nunca conviveu com as pessoas da cidade, eu tinha muita vergonha das pessoas.
E eu estava por ali escondido, que ninguém me notasse.
Mas um colega meu já tinha observado que eu sabia ler um pouquinho.
Aí ele me entregou lá pra professora, que nunca que eu iria dizer que eu sabia ler um pouquinho, entendeu? Aí o menino falou: “Professora, ele sabe, aqui”.
Aí a professora me chamou.
Eu, com muita vergonha, eu fui.
Eu li alguma coisa.
Aí a diretora que estava lá fazendo aquele teste, aí depois que viram que eu li alguma coisa, ela falou: “Olha, amanhã tu vem já no intermediário, vai passar pra primeira forte”, no primeiro dia de aula.
Aí: “Tá.
Então, amanhã eu já vou pra primeira forte”.
Aí fiquei lá.
Daqui a pouco elas voltaram de novo e trouxeram um livro com um texto maior e perguntaram se eu sabia ler aquele texto.
“Eu acho que sim”.
Eu peguei e li.
Eu sabia ler legal.
Aí ela falou: “Então, amanhã o seguinte: não vem mais no intermediário, vem à tarde, porque você vai passar pra segunda série”, entendeu? E assim começou a minha trajetória na escola.
No segundo dia de aula, eu já fui estudar na segunda série.
Aí eu estudei e consegui passar da segunda série pra terceira.
Eu nunca fui reprovado.
Todos os anos eu conseguia ser aprovado.
E quando eu estava na sétima série, o meu pai decidiu voltar, entendeu? E nós tivemos que voltar, porque a gente não tinha como ficar na cidade.
E eu estudei, tipo assim, da segunda até a sétima série.
Aí nós voltamos pra nossa comunidade, que era Curuperé e Montanha, na beira da praia.
Quando eu chego lá na região, já tinha uma escolinha.
Tinha um senhor que dava aula lá na casa dele, não tinha o prédio, tinha uma casa e ele dava aula lá.
E ele ficou lá mais uns dois anos e de lá ele decidiu ir embora.
E a escola era regularizada, era uma escola do município.
Nesse período tinham regularizado a escola e ele dava aula lá nesse local.
E aí, quando eu cheguei, o professor foi embora e a escola ficou um ano sem funcionar, né? A escola ficou um ano sem funcionar.
E eu fiquei.
.
.
aí me convidaram pra eu dar aula.
Uma vereadora lá do Conde, a Lindalva Azevedo, me convidou, que a escola já era regularizada, mas não tinha professor, estava sem funcionar.
Mas eu só tinha a sétima série.
Ela disse: “Mas pode.
Naquela época podia, né? Aí levaram o meu nome pra prefeitura e conseguiram um contrato pra mim.
E eu comecei dar aula.
Só que aí eu não tinha uma casa lá na Montanha.
Eu morava no Curuperé, ia pra Montanha pra dar aula.
Então, a igreja construiu um barracão, pra eu dar aula nesse barracão.
E ali começou a minha trajetória como professor.
P/1- Você tinha quantos anos?
R- Eu tinha dezenove, vinte anos de idade, nessa média, com a sétima série.
Nunca tive uma orientação pedagógica, na época.
E já recebi alunos assim: os alunos eram de educação infantil, primeira série, segunda série, terceira série, quarta série, quinta série.
Todos na mesma turma, entendeu? Que é chamado de classe multisseriada.
Aí eu comecei dar aula pra eles lá.
Detalhe: barracão, quando eu comecei a dar aula só tinha banco.
Não tinha nem aquelas carteiras antigas, só era banco.
Então, os alunos tinham que sentar no banco e escrever na perna, ou então, se ajoelhar no chão e escrever no banco, entendeu? Era, foi essa escola que eu recebi pra dar aula.
E tipo assim, eu tinha trinta alunos.
Esses trinta alunos eram alunos de todas as séries juntas.
Eu tinha que dar conta desses alunos.
Aí o aluno eu decidi: eu vou passar no quadro.
Como eram muitas turmas, eu usava dois quadros, uma aqui, o outro ali.
Eu vou o que eu achava que eu deveria ensinar, era isso, que eu não tinha orientação, escrevia aqui ou lá.
Escrevi aqui e lá, um tanto que copiava daqui, outro tanto que copiava de lá.
Era como eu achava que deveria ensinar.
E ainda tinha a merenda, que nós não tínhamos servente.
Aí vinha a merenda do município pra lá e lá tinha que fazer a merenda.
Aí fizeram um forno de carvão, um fogão de carvão.
Aí eu tinha que fazer a merenda pros alunos também.
Então, nessas quatro horas de aula, ainda tinha que fazer a merenda.
Aí, o que eu fazia? É uma coisa que é até ilegal, mas que eu fazia, na época: mandava os meninos maiores lá, fazerem o fogo.
(riso) Enquanto eu dou aula pra esses aqui, que eu não posso largar todo mundo de uma vez, os maiores já fazem o fogo, aí depois eu venho, coloco o panelão aqui e nós vamos fazer o mingau, nós vamos fazer alguma coisa.
Eu fiz isso durante mais de dez anos.
Ensinando, em classe multisseriada.
E o bom da coisa era que os meninos aprendiam a ler e escrever, entendeu? Os meninos conseguiam aprender.
Nem todo mundo tinha a mesma facilidade, mas de alguma forma eles iam aprendendo.
As pessoas, hoje da minha comunidade, muitos dos que moram na minha comunidade, que são pais de alunos da escola, da mesma escola, foram meus alunos, aprenderam a ler e escrever comigo.
Eu digo assim, que mesmo que eu não sabia as técnicas de ensino, mas o que eu sabia deu pra ajudar, pra ajudá-los.
E todos, eu penso que todos que passaram, que foram meus alunos, aprenderam ler e escrever.
Como diz assim.
.
.
hoje muitos deles, assim, atravessando na rua, passam num carro, numa coisa assim, aí param e: “Professor, você quer uma carona?” Uma coisa assim, uma moto, uma coisa assim.
Eles têm muito carinho ainda por mim, as pessoas que foram meus alunos da época.
Com muito sacrifício, num barracão daquele.
Quando caía chuva muito forte tinha que parar a aula, porque não dava mais pra continuar a aula.
Eu ganhava meio salário mínimo, na época, por mês.
Eu lembro que eu deixava passar três meses pra eu receber, porque era muito sacrifício na época, só tinha um transporte.
No ano de 1988, 1989, por aí assim, 1988, 1989.
Aí, tinha um transporte do Conde, às vezes, de manhã e outro à tarde.
Aí era muito complicado pra eu ir receber.
É lá na prefeitura que a gente recebia, meio salário mínimo.
E eu deixava passar três meses pra dar um salário e meio, pra valer a pena.
Eu ia, recebia aquele salário e meio.
Tipo assim, eu tirava meio pra comprar as coisas pra mim, pessoais.
E um salário eu pegava e comprava tudo em material pros alunos, entendeu? Eu era solteiro e dava para eu fazer isso.
Comprava tudo de material pros alunos.
Meus alunos tinham o caderno, tinham o lápis, o que a secretaria, na época, não dava, eu conseguia, de três em três meses, reabastecer os alunos.
E eu investia tudo o que eu ganhava, praticamente neles, entendeu? Tipo assim: eu tinha muito amor por aquela escola.
Eu sempre amei trabalhar com eles, ali na escola da Montanha.
Até que chegou a empresa da Vale, a Pará Pigmentos e a Imerys Rio Capim Caulim, que eles retiraram as pessoas da comunidade da Montanha, acabou a comunidade.
E de lá, nós fomos, eles foram remanejados da Montanha pra região do Curuperé, onde eu morava, entendeu? A minha vida, até então, era na Montanha, porque eu dava aula lá, dormia lá, ficava lá e tudo era lá.
De lá eu sou remanejado, sou levado, a escola é levada para o Curuperé.
Mas _____ (parte2 15:47) o prédio.
Mas como as empresas se instalam na Montanha, nas negociações, foi preciso construir uma nova escola.
Foi preciso construir uma escola, um prédio.
Então, eles constroem um prédio.
Quer dizer que, pra mim, era um sonho, porque eu dava aula num barracão, agora constrói uma escola com toda a estrutura, tudo direitinho.
Inclusive, tendo uma servente, né? A prefeitura contrata uma servente.
E agora eu passo a dar aula.
Eu trabalhei mais algum tempo, alguns anos nessa escola que, posteriormente, mudou o nome de Montanha pra Escola Roberto Carlos Dias dos Anjos, né, o prefeito da época, como reconhecimento pelo trabalho que eu tinha prestado à comunidade.
Na Secretaria da Educação eles baixaram um decreto oficializando o nome da escola como Roberto Carlos Dias dos Anjos.
E durante alguns anos ela teve esse nome.
Eu saí de lá, ela continua tendo o nome de Roberto Carlos Dias dos Anjos.
Recentemente foi retirado, porque eu estou vivo e isso, pela lei, é ilegal, né? Mas durante algum tempo eu tive, assim, a honra de dar o nome pra uma escola do Município de Barcarena.
E hoje voltou a ser o nome Escola da Montanha.
Mas assim, toda a luta que nós tivemos pra alfabetizar, pra cuidar das crianças, eu passei nessa escola, quinze anos, na verdade.
Foi praticamente a escola que eu trabalhei, com quinze anos, nesse processo, eu dando aula pros meninos e eu continuei a estudar.
Eu terminei o ensino fundamental.
Terminei o ensino médio.
Aí, de lá, eu fiz vestibular, passei.
E fiz Pedagogia na universidade do estado do Pará, na Uepa.
E eu estudei e me formei como pedagogo.
E, depois de eu me formar como pedagogo, chegou o Programa Escola que Vale no Município de Barcarena, eu participei.
Eu recebi a formação durante alguns anos e depois eu fui convidado a sair da Escola da Montanha, pra me tornar coordenador pedagógico da Secretaria de Educação, já trabalhar na.
.
.
eu me tornei coordenador do Programa Escola que Vale.
É um programa que eu recebi a formação.
Agora eu me torno coordenador no município, do programa.
Eu fiquei mais de cinco anos como coordenador do programa Escola que Vale, em Barcarena.
E desde então, eu estou já pra dezoito anos como coordenador da Secretaria de Educação.
Eu trabalho na formação dos professores do município, vai pra dezoito anos.
Ou seja, tem uma média de trinta e três anos trabalhando nessa função, né? Começando lá na Escola da Montanha e vindo nesse processo, hoje eu trabalho na formação.
E faço formação no município de Barcarena e faço formação em muitos outros municípios do estado, onde eu sou convidado, sou contratado pra fazer formação.
Sempre que possível eu trabalho na formação, né? Também trabalhei três anos como consultor do Cedac, que é uma instituição em São Paulo, especializada em educação no país.
E eu trabalhei três anos como consultor do Cedac, fazendo formação em Pernambuco, na cidade de Pernambuco e uma cidade aqui do estado do Pará.
E tenho essa experiência, né, é uma parceria da empresa Votorantim com o Cedac de São Paulo.
E pude estudar bastante no Cedac, com pessoas que elaboraram os parâmetros curriculares nacionais, que atuam na instituição.
E eu pude estudar, aprofundar os meus conhecimentos.
Fiz a minha especialização em Psicopedagogia, me ajudou um pouco também.
Mas eu posso dizer assim que, o que me ajudou muito foi a experiência que eu tive no Programa Escola que Vale, porque eu pude estudar com pessoas especializadas na área de metodologia, né e de didática.
E eu posso dizer assim, que hoje eu trabalho muito na formação de professores, não muito pelo o que a universidade me deu.
A universidade me deu muita teoria, me ajuda, mas não resolve.
Agora, o que eu aprendi no Programa Escola que Vale, eu estudei muito a questão da didática e da metodologia, o como fazer na sala de aula e isso é um diferencial muito grande na minha vida, eu posso dizer assim, que eu tive um trabalho antes do Programa Escola que Vale e, posteriormente, eu tive maior oportunidade.
E o município de Barcarena também, por meio da Secretaria de Educação, investir em formação, né, em qualificação.
E ao longo desse tempo que eu trabalhei na Secretaria da Educação, a secretaria tem dado qualificação pra nós, pra que nós possamos fazer essa formação dos professores com qualidade, com essa coisa toda.
Então, nós temos uma trajetória assim.
De lá, de um local, com dez anos de idade, nove anos de idade, nunca ter pisado no chão de uma escola, entendeu? E alguém diria assim: “Foi muito tarde pra você ir pra escola”.
Eu fui.
Mas pude aproveitar a oportunidade que a escola me deu e as portas que foram se abrindo ao longo dessa caminhada.
E aproveitei cada coisa que as pessoas tentaram me ajudar.
E busquei também bastante, pra eu poder ter essa condição de hoje.
Aí hoje, além de todo o trabalho que eu faço, eu trabalho muito nessa área também da história de Barcarena, de divulgar a história, de contar a história e ser guia turístico, essa coisa toda, enfim.
Por ter nascido e me criado aqui, ter conhecido cada coisa desse município, ter visto esse município passar por essa fase de mudança ao longo dos anos, eu pude acompanhar muito dessas coisas e isso tem ajudado bastante.
P/1- Você se lembra de algum aluno especial? De alguns alunos, em especial, que passaram por você?
R- Lembro.
Lembro, sim.
Eu lembro do Francinaldo.
O Francinaldo é um dos alunos mais pobres que eu tive na vida.
Assim, eu não vou falar de alguém que.
.
.
eu posso falar depois de alguém que hoje tem uma formação superior, coisa desse tipo.
O Francinaldo não conseguiu ter nível superior, porque ele teve que sair pra trabalhar e não teve como, a situação financeira dele era muito precária.
Mas o Francinaldo chegou também assim: é um menino que ele já era, já tinha lá pros seus oito anos de idade, não sabia nenhuma letra, mas uma grande vontade de vencer na vida.
E que a oportunidade na família dele era, eu poderia dizer, zero, de vencer.
Mas ele tinha uma vontade muito grande de vencer.
Eu lembro que ele foi pra escola.
Assim, dentro de poucos dias, o Francinaldo aprendeu ler e escrever.
Aquela família que não tinha condição de comprar nem o caderno pra ele.
E um dos alunos mais inteligentes que eu tive na vida.
Eu lembro que os teatros que nós fazíamos na escola, na culminância dos projetos, eu nunca tive, eu já tive muito aluno bom pra fazer teatro, mas como o Francinaldo eu nunca tive, entendeu? O Francinaldo é alguém que eu lembro dele com muita saudade.
E, assim, o sentimento de não poder tê-lo ajudado mais na vida, principalmente financeiramente.
Porque ele precisava disso, de alguém que o ajudasse, pra que ele não tivesse que trabalhar tanto na vida, mas pudesse usar a inteligência dele pra vencer.
E infelizmente, depois ele teve que casar e foi trabalhar pra sustentar a família dele, essa coisa toda.
Mas um cara que dava um show, assim.
Finalização, o papel que desse pro Francinaldo pra ele fazer, ele fazia com muito brilhantismo.
Lia super bem.
E também me ajudava a alfabetizar os outros.
Ele vinha depois que eu já dava aula de manhã e à tarde já tinha uma turma de alfabetização.
Ou então, ele estudava à tarde e de manhã ele vinha me ajudar a alfabetizar os alunos.
Ele sabia alfabetizar os alunos.
Como eu sabia, ele sabia.
Ele, mesmo sendo aluno lá do quarto ano, do quinto ano, ele sabia alfabetizar.
Ele vinha pra sala de aula e ajudava os alunos.
Ele e a Rosangela, uma outra aluna que eu tive também, ajudava.
Eu já ficava com um tanto de alunos, ele já me ajudava com outro tanto de alunos.
, entendeu? Depois ele teve que ir embora, mudar pra outro lugar.
E hoje em dia, ele está aí, tem a família, tem a responsabilidade, aquela coisa, trabalha.
Mas ele, até hoje, não cursou ensino superior.
Mas eu digo que Francinaldo é um dos alunos mais inteligentes, um dos seres humanos mais inteligentes que eu encontrei na vida.
Todo mundo é inteligente, mas o Francinaldo se destacava, muito, entendeu? E eu sinto porque eu vi, assim, na vida do Francinaldo, uma repetição, muito, da minha vida.
E que ele poderia ter ido mais além.
Mas ele faltou um apoio mais de alguém.
Mas eu ainda creio que ele vá, que ele ainda é novo, ele tem por volta de vinte e dois, vinte e três anos, ele ainda pode retomar, né, onde quer que ele esteja.
E tive tantos outros alunos na vida.
Eu digo assim, tem vários deles que fazem relatos na vida, eu fico muito feliz, assim.
Por exemplo: no whatsapp, lá no Facebook, sempre que tem o Dia do Professor, alguém pergunta assim: “Escreva o nome de um professor que foi marcante na sua vida”.
Aí, todas as vezes que fazem isso, tem alguém que vai lá e diz assim: “O professor Roberto”, né? Um ex-aluno meu que hoje tem família, tem filho, às vezes tem filho que já está lá na faculdade e chega e diz assim: “O professor que mais marcou a minha vida foi o professor Roberto, numa escola aonde a gente ajoelhava no chão pra escrever no banco.
(choro) Uma pessoa que me ajudou naquele momento que eu estava começando os meus estudos e não tinha, assim, o que tem hoje: um bebedouro, não tinha nenhuma copa com servente, com coisa desse tipo, não tinha um banheiro de qualidade.
Mas tinha um professor assim, sempre que tinha vontade de ensinar, entendeu, que fazia a diferença na vida da gente”.
Ele diz assim: “O gosto que eu tenho hoje pra ler, eu aprendi com ele”, entendeu? “O gosto que eu tenho de produzir texto, foi com ele que eu aprendi”.
E faz um relato.
Aí aparece os outros que vão dizendo: “Eu também” “Eu também”, coisa desse tipo.
Então eu digo assim, que isso gratifica muito mais ou tanto quanto, porque a gente precisa de dinheiro, mas os salários que eu recebi na vida foram muito importantes, né, poder criar meus filhos, tanta coisa, eu estudar um pouco mais.
Mas eu penso assim, que o meu certificado, o meu diploma, a minha realização, também está no relato deles, sabe, desses meus ex-alunos, que tudo o que dizem assim: “Ele fez a diferença na minha vida”, né? A pessoa dizer assim.
Eu conheço, tem um rapaz que mora lá na minha comunidade, o Rivanildo, ele diz assim: “Eu consegui vencer na vida.
Eu tenho a minha profissão hoje, mas eu devo muito ao professor Roberto”, né? Ele é pedreiro.
E eu não ensinei essa arte pra ele, mas ensinei os caminhos que ele poderia chegar hoje a ser um pedreiro e ganhar bem, porque ele é um bom pedreiro e tem conhecimento.
E ele conta pra muitas pessoas, ele faz relato em relação a isso.
Um dia desses eu entrei num ônibus e entrou um rapaz, fazia um tempo que eu não via esse rapaz.
Ele sentou no meu lado, ele estava meio embriagado.
Aí ele sentou no meu lado e meu deu um abraço.
Falou pros colegas dele que estavam bebendo com ele, falou assim: “Pense num professor bom, é esse aqui ó”.
Eu fiquei todo sem jeito, né? Num ônibus, um monte de ônibus, lotado de pessoas e ele falando isso.
Aí ele foi fazendo relato, falando lá pra todo mundo ouvir.
Aí eu baixava a minha cabeça, ficava sem jeito.
Aí depois ele começou a conversar comigo, ele disse assim: “Olha, o senhor leu uma história pra mim quando eu tinha lá os cinco, seis anos de idade, o senhor leu uma história pra mim que eu nunca esqueci dessa história.
Uma história assim, eu acho que é a história mais bonita que eu já ouvi na vida.
E se o senhor quiser, eu lhe conto cada detalhe daquela história que o senhor leu.
Não foi só uma vez.
Foram várias vezes que o senhor leu pra nós na escola”.
Aí eu disse: “Foi mesmo?”.
Ele disse: “Foi.
Se o senhor quiser, eu lhe digo o nome da história”.
Aí ele me falou, o nome da história era A Ilha Perdida.
Ele disse: “Eu me lembro até o nome da autora.
A autora era Maria José Dupré”.
Eu me lembrava da história, mas eu não me lembrava do nome da autora e ele lembrava, já um rapaz, já pra um senhor.
Aí ele disse assim: “Eu sou tão encantado com essa história, que eu quero que o senhor a consiga pra mim, que eu quero ler pro meu filho, entendeu, eu quero ler pro meu filho.
Eu tenho o sonho de ler essa história pro meu filho, que eu nunca esqueci”.
Então daí ele falou o nome da autora: Maria José Dupré.
Isso é tão marcante, sabe assim, algo desse tipo.
E eu lembro assim e digo assim: “Tudo valeu a pena”, entendeu? Faz dezessete anos que eu não estou em sala de aula.
Hoje em dia eu faço formação com professores.
Mas eu faço com o mesmo gosto com eles, sabe assim? Quando eu olho os professores ali na formação, eu lembro dos meus alunos lá da educação infantil, lá da Escola da Montanha e eu faço com o mesmo gosto com eles, sabe? Eu leio uma história pra eles como se fosse aquelas crianças lá.
Eu sei assim que, uma das melhores coisas que tem da formação, eu sinto que eles gostam de estar, é porque eles sabem que eu gosto de estar ali, entendeu? Eu não faço aquilo porque, ah, porque eu sou um profissional da área da Educação, não é só por isso.
Também é por isso, mas é porque eu gosto de fazer aquilo ali.
E amo a arte de educar.
E tento fazer com que os professores da rede, tenham o gosto também de fazer bem feito as coisas, entendeu? Então, essa questão de ser, eu acho que a profissão de professor, eu acho que eu não poderia ter escolhido algo melhor, entendeu? Se eu pudesse voltar a ter quinze anos de idade, eu seria professor de novo.
Eu nunca vestiria uma camisa com o dizer “Não me assalte, eu sou professor”, como eu vejo muitos professores usarem, entendeu? Só que a gente conversa com os professores, às vezes, sobre isso e eles dizem: “Poxa, eu nem parei pra pensar nisso”.
E ele retira a camisa, não usa mais a camisa.
Porque a gente conversa, que a gente ______ (parte 2 30:35), porque ele faz é uma análise.
E porque eu acho que, assim, uma camisa “Não me assalte, eu sou professor” desvaloriza a gente, de alguma forma, porque tem a questão financeira, tem sim, mas tem a questão de fazer diferença na vida das pessoas, enfim.
______ (parte 2 30:51) pra próxima pergunta.
(risos)
P/1- Descreve pra mim como é que era a Escola da Montanha.
R- A Escola da Montanha, fisicamente, era um barracão coberto de palha, com os esteios de pau roliço, tirado no mato mesmo, sem muito cuidado.
E não tinha parede, tudo aberto.
E aí tinha apenas os bancos.
Tinha os bancos, tinham dois quadros, um num esteio e o outro no outro esteio.
Não tinha ventilador.
O bom é que era na beira da praia, dava muito vento, nem precisava mesmo de ventilador.
E tinha um fogão de barro, onde eram feitas as merendas.
E como eu disse pra você, sem servente.
Então, fisicamente era isso.
Não tinha um armário.
Não tinha banheiro lá.
Tinha o banheiro lá da igreja que era usado.
E fisicamente era isso.
No meio, próximo à praia, mas numa área assim que tinha muitas árvores.
Um lugar muito lindo.
Eu diria assim que a Montanha era um paraíso.
Imagina você estar numa ribanceira, você olhar, você vê a baía na sua frente e você está numa escola.
Uma escola que a prefeitura nunca fez.
Assim, na época, não foi construído um prédio lá na Montanha.
Nunca teve um prédio na Montanha mesmo.
Tem hoje que é no Curuperé.
Mas que você tinha uma paisagem linda, que aquilo.
.
.
como é que diz, assim.
.
.
era um bálsamo, né, pra alma, que você podia estar com os alunos num lugar muito bonito.
Agora, assim, uma escola onde os pais entregavam os filhos pra estudar e deixava os filhos.
Tipo assim: eles não tinham todo aquele conhecimento de ajudar em casa.
Eu sempre tive comigo uma coisa assim: “Eu tenho que aproveitar quatro aulas de aula pra ensiná-los, porque em casa não dá muito certo.
Porque os pais não vão ter condições de dar o reforço em casa, porque eles não têm esse conhecimento.
Então, o que vai fazer diferença na vida deles são essas quatro horas de aula aqui.
Então, eu tenho que aproveitar bem aproveitado”.
Eu dava aula dia de sábado.
Se eu visse assim que eles estavam muito necessitados, eu dava aula dia de sábado.
E os pais não reclamavam.
Ninguém reclamava.
Tinha facultado, eu parava no feriado.
Mas no facultado de depois do Círio, do Abacaxi, essas coisas, não facultava, eu dava aula.
Porque eu achava que eles precisavam disso e tinha que dar aula.
Quanto mais aula, ia ser mais saudável.
E detalhe: não tinha nenhuma fiscalização.
Não tinha diretor, não tinha coordenador pedagógico, não tinha.
As pessoas da Secretaria da Educação nem iam na minha comunidade, entendeu? Mas os pais entregavam os filhos, assim, com muito gosto.
E o impressionante, sabe o que é? Que a Vila do Conde tinha a escola, várias, umas duas ou três escolas, na época.
Mas tinha pessoas que levavam os filhos da Vila do Conde pra estudar lá na Montanha, eu diria uns quatro quilômetros de distância.
Eles iam andando pra levar o filho pra estudar na Montanha.
A Escola da Montanha era famosa, entendeu? Por causa da dedicação que eu tinha por aquela escola.
Então, os meninos iam, atravessavam o rio com o maior sacrifício pra chegar na Montanha, pra poder estudar.
Tive, sempre tive muitos alunos da Vila do Conde que estudavam lá, na Escola da Montanha.
Imagina você, uma escola que era um barracão coberto de palha, aí o pai deixar de matricular um filho numa escola de alvenaria, com todo o cuidado que tinha, pra ir lá pra Escola da Montanha.
Mas isso aconteceu muito.
E quem sabe se um dia, você não vai ter a oportunidade de ouvir um relato de um ex-aluno meu e que ele possa contar algo nesse sentido, como era, como era a Escola da Montanha.
Às vezes, eu penso também assim, que eu tinha um pouco de rigidez com eles, eu digo rigidez até de colocar de castigo.
Às vezes aconteceu isso, quando eu comecei, porque eu nunca tive orientação pedagógica no começo.
Então, eu trabalhei uns cinco, seis anos, sete anos, oito anos, sei lá, sem nunca ter uma orientação pedagógica e a minha ferramenta era aquela, eu achava assim: “Ah, eu vou colocar alguém de castigo, porque isso vai surtir efeito”.
Hoje, depois de formação e toda coisa que eu pensei, hoje eu oriento os professores e falo que não é por aí, não é dessa forma.
Mas era o que eu tinha pra dar pra eles, né? E então eu penso assim, que a Escola da Montanha deixou muita saudade.
E eu, hoje, pra você ter uma ideia, o meu nome incorporou o nome Montanha, todo mundo, se você chegar na Secretaria da Educação, tem mais de um Roberto lá, mas perguntando assim: “Qual o Roberto?”, eles dizem: “O Roberto da Montanha”, entendeu? O Roberto da Montanha.
Se falar o “Roberto da Montanha”, todo mundo sabe que sou eu, porque eu era o professor da Escola da Montanha, entendeu? E que era na comunidade da Montanha.
E que até hoje a escola está em outro lugar, mas tem o nome Montanha.
P/1- E você se casou depois?
R- Sim.
Eu, na verdade, tive uma primeira esposa, né, que eu tenho três filhos com ela.
Tenho um filho que é o Dario, que tem vinte e nove anos.
Tenho uma filha que é a Roberta, que tem vinte e sete anos.
Tenho uma outra filha que é a Carla, que tem vinte e três anos, que é desse primeiro casamento que eu tive.
Depois me separei.
E depois passei a viver com a minha esposa atual, que é a Eunicéia.
Com ela eu tenho três filhos também.
É muito filho, né, seis filhos.
Tem a Késia que tem vinte e dois anos, a Karen que tem dezenove e o Vinicius que tem dezoito anos.
Os meus filhos já são todos crescidos.
Então, assim, a minha filha Roberta tem uma filha, que é a Heloisa, que é a única neta que eu tenho.
Então, assim, só tenho uma filha casada, que é a Carla.
O restante são todos solteiros.
Basicamente isso.
A minha mulher também é professora, minha esposa atual.
E ela é uma das professoras da Escola da Montanha.
Quando eu ainda dava aula na Escola da Montanha, ela se tornou professora.
Ela é concursada, assim como eu.
E eu saí da Escola da Montanha, ela assumiu, ela é responsável pela escola.
É uma escola que ainda não tem diretor, lá na comunidade do Curuperé.
Ela não tem diretor.
Ela é responsável.
Ela é professora e responsável pela escola.
A escola, hoje, tem uma média de cento e trinta alunos.
Aí tem dois professores, que é ela e uma outra professora, tem servente, tem todo um cuidado.
Uma escola bonita.
Está lá, enfim.
Eu fui pra Secretaria da Educação e ela deu continuidade no trabalho na comunidade, na escola.
P/1- Na época do senhor, era só o senhor?
R- Era só eu.
Somente eu trabalhei durante o tempo da Montanha mesmo, onde era o barracão, sozinho.
Depois tive uma servente, que trabalhou lá comigo uns dois anos.
E posteriormente fui pro Curuperé, onde foi construído o prédio.
Lá eu dei aula durante um tempo, só.
Depois tive a parceria do Professor José Lucio, que foi meu colega por uns dois anos.
E depois a minha esposa também começou a dar aula.
E a Professora Maria Hilda também, que foi professora nessa época e a Professora ______ (parte2 38:31).
Pessoas que foram revezando, entrando.
Elas foram me ajudar na verdade, no trabalho porque foi aumentando a quantidade de alunos.
Porque, quando era na Montanha, eu tinha uma média de trinta alunos, mas aí foi aumentando e chegou, na época que eu estava lá, a ter cento e vinte alunos na escola, que é a média que ainda tem hoje, entendeu? Hoje tem muito mais pessoas morando na localidade, já não é um lugar, um povoado apenas, já é uma vila, né, com umas trezentas famílias que tem lá.
E é uma escola que já tem bastante alunos.
P/1- Você contava histórias pros teus filhos também?
R- Contava.
Contava e conto histórias.
Eles adoram ouvir histórias, quando eu conto.
Mesmo eles sendo adultos, agora, se eu chamar um dia: “Bora desligar a televisão e vai ser o momento da história”, até a minha filha desse segundo casamento, a minha filha mais velha, está se formando em Pedagogia, mas eles vêm, se sentam lá e ouvem a história.
Eu posso contar ou posso ler.
Se eu passar duas ou três horas contando pra eles, eles ficam lá, encantados.
E, às vezes, eu faço uma coisa: eu convido pessoas da comunidade, crianças da comunidade que estão lá pela rua e os levo pra minha casa e conto histórias pra eles lá, leio pra eles.
Eles vêm, se sentam, eles adoram.
Eu só não faço mais isso, porque eu não tenho muito tempo.
Mas volta e meia, quando eu tenho tempo, eu os levo pra lá, junto, convido as pessoas na rua.
É só eu dizer: “Olha, hoje à tarde vai ter história, três horas da tarde”, dá casa cheia pra ouvir as histórias, entendeu, eles são encantados.
E não importa, tipo assim, se a história eu já contei dez vezes, eles querem ouvir de novo: “Conte aquela história”.
Eles vão lembrando as histórias e eu vou contando.
Meus filhos são encantados por história, também gostam muito de ler.
Exatamente por isso, por essa prática de eu ler pra eles, muito, em casa.
Não somente eu, mas a minha esposa também lê, porque ela gosta muito de ler também, então ela lê muito pra eles.
E eu também faço isso.
E eles vão se apropriando do gostar de ouvir uma boa história e sabem, de alguma forma, contar também, né, já recontam pra outras pessoas também, as histórias que eles ouvem.
P/1- Como é que foi e é, pra uma pessoa que é professor, pedagogo, ser pai?
R- (riso) É assim: na verdade, eu penso que a responsabilidade é maior do que alguém que não é.
E a gente carrega um peso maior, até da sociedade mesmo.
Que eles dizem se a pessoa souber, tiver um bom conhecimento, dizem: “Ah, também porque é a filha do professor”.
É um peso até pros filhos mesmo.
Eles têm que ser melhor do que os outros, porque é filho do professor.
E o professor também, se o menino não se deu bem, diz assim: “Poxa, mas o pai dele não é professor? A mãe dele não é professora?” (riso), entendeu, nesse sentido.
Agora, no outro sentido é interessante assim, porque nós conhecemos o que existe de mais atual na Educação, os conteúdos, a importância dos conteúdos pros alunos.
Eles chegarem em casa com um trabalho, com alguma coisa e a gente saber assim: “É por aí mesmo.
Não é por aí.
Como é que eu posso te orientar? Como é que eu posso te ajudar nesse sentido?”, entendeu? Então, eu penso assim, que o conhecimento que nós adquirimos na área educacional, nos ajuda em relação ao ensino e aprendizagem deles na escola e também serve pra vida porque, por exemplo, nós somos, eu diria assim, discípulos de uma concepção de ensino que nós chamamos de construtivismo ou sócio interacionismo, em que nós entendemos que o ato de aprender não é um ato isolado assim de um ensina e o outro aprende, né? Essas concepções dizem assim, que é preciso interação entre os pares para haver aprendizagem e que não é o ato de explicar que vai ensinar, mas o ato de nós vivenciarmos, nós vivermos o ato daquele conteúdo, daquela coisa.
E por tudo isso passa a questão do exemplo, a questão de.
.
.
entendeu? E a gente pode dizer assim: a gente precisa construir o conhecimento junto.
É aquele conhecimento em que eu digo assim: “Tu tem que fazer desse jeito, porque é assim”, não.
Nós vamos analisar cada situação, cada caso, pra nós extrairmos o que existe de positivo e do que existe de negativo nessa situação.
Então, eu penso que essa coisa da concepção de construir um conhecimento com os nossos filhos, a gente aprende a ser mais maleável com eles, entender algumas situações deles, mas sem abrir mão do que eles precisam aprender.
É ter consciência.
É aquilo que nós falamos lá: até religiosos, quem quer que seja, você precisa ser, mas desde que você tenha consciência disso.
Você não tem que ser porque alguém disse que é desse jeito, alguém manipulou a tua mente pra ser desse jeito.
Não.
Você precisa, a gente precisa construir um conhecimento, analisar as práticas do dia-a-dia, da vida, essa coisa toda e nós tirarmos o nosso conceito, o que é melhor pra nós, o que é.
.
.
entendeu? Então, eu penso que esse nosso papel assim de nós sermos.
.
.
eu sou pedagogo, a minha esposa é pedagoga, nós temos ajudado os nossos filhos nesse sentido, por nós entendermos a questão da didática, a questão da Pedagogia mesmo.
E isso ajuda, não somente em relação aos conteúdos de sala de aula, mas em relação à própria criação dos filhos.
P/1- O seu primeiro filho nasceu, o senhor tinha quantos anos?
R- Eu tinha vinte e dois anos.
P/1- Bem cedo, então?
R- Bem cedo.
Exatamente.
P/1- E você se lembra como é que foi o dia que ele nasceu?
R- (risos) Eu lembro, sim.
Dia vinte e nove de dezembro de 1990.
Tipo assim: eu tinha muita vontade de ter um filho, né? Um sonho, assim, de um filho.
E aquele dia, assim, é um dia da realização, né, de um sonho.
De saber assim: “Poxa, eu tenho alguém que pode dar sequência à minha vida, à minha existência, alguém que eu posso ensinar aquilo que eu acho que o ser humano precisa aprender.
E é a continuidade da minha existência, da minha vida”.
E eu lembro assim que foi de manhã.
Foi uma felicidade, assim, muito grande.
E ele tem correspondido, assim, à altura.
Hoje em dia, ele tem vinte e nove anos de idade.
Ele é solteiro ainda.
Mas uma pessoa, assim, que tem um carinho muito grande por mim e eu tenho por ele.
Ele não mora comigo, ele mora em outro local.
Mas ele é músico.
Está empregado, ele é motorista de uma empresa.
E ele toca, sempre que ele vai tocar em algum lugar, ele me liga pedindo permissão se ele pode - mesmo com vinte e nove anos de idade, entendeu? - ir, com quem ele vai, aquela coisa toda.
Então, é alguém com quem eu tenho muita intimidade.
E foi o começo.
Depois mais cinco filhos e aquilo, são meus filhos, tenho um carinho muito grande por eles.
E amo profundamente cada um deles.
E agradeço a Deus por ter dado cada um deles por mim.
São seis filhos.
Mas eu digo que são muito mais pra mim, eu digo assim é o suficiente, entendeu? Nem mais, nem menos.
Está bom.
É isso, que eu penso que Deus os colocou na minha vida e está bem assim.
P/1- E como é que foi isso de começar a contar, a organizar a história da cidade? Como é que começou isso?
R- Certo.
Porque assim, na verdade, por eu morar numa localidade que nunca conheceu a sua história, assim, eu diria, secular, eu sempre tive muita curiosidade pra saber as coisas da minha localidade.
Assim, não somente eu, mas eu acho que a maioria das pessoas da minha localidade.
Porque a minha localidade, que dá nome geral pra região, é Vila do Conde, né? E eu sempre tive muita curiosidade desde criança, assim: “Por que o nome Vila do Conde?”.
E eu ouvi as pessoas dizerem que Vila do Conde era pelo fato de que, nessa localidade, tinha morado um conde.
E o nome desse conde era Conde de Vila Flor, davam até um nome pra ele.
E as pessoas diziam que, quando os jesuítas vieram pra Vila do Conde, pra essa localidade que hoje é Vila do Conde, que o nome antigamente era Mortigura, esse conde veio junto com os jesuítas.
E ele decidiu fixar residência lá.
E o nome que era Mortigura passou a ser Vila do Conde, por conta desse Conde de Vila Flor que morou na localidade.
P/1- Tirou o nome ______ (parte2 47:49)
R- Sim.
Isso era o que as pessoas contavam, que hoje eu sei que não passava de lenda.
Mas era a história que nós sabíamos, entendeu? Então, as pessoas diziam assim, inclusive, alguém dizia assim: “Porque o meu avô veio com esse conde.
Quando o conde veio, ele veio junto com ele”.
Então, existia muitas lendas que levavam as pessoas a crerem que era isso mesmo.
Mas existia, assim, uma grande dúvida: diziam que os moradores aqui da Vila do Conde, os primeiros moradores, foram os índios Mortiguras.
Outros já diziam: “Não.
Foram os Geribiés.
Os primeiros moradores foram os Geribiés”.
Então, quando criança, adolescente, eu ouvia muito isso e eu ficava, assim, na dúvida: “Mas, poxa, será que não tem alguém que saiba contar essa história verdadeira pra nós?”.
Aí, nunca encontrei alguém que contasse assim: “Porque eu tenho o livro, eu tenho alguma coisa assim”.
As pessoas sempre contavam muito: “Porque alguém me contou, porque eu ouvi dizer, por causa dessa história assim”.
Aí, inclusive, Barcarena, a cidade de Barcarena, creio que o Lenon já falou isso pra vocês, que falava que Barcarena é derivado de uma barca que encalhou no rio de Barcarena, aí por isso o nome da barca era “barca arena”, né? Por causa do nome da barca, colocaram o nome da cidade de Barcarena.
E depois, quando a gente vai descobrir que não era bem assim, que não era bem isso, que não era verdade.
Então, tipo assim: o que nós sabíamos do nosso município, eu penso que setenta por cento do que nós sabíamos eram lendas, entendeu? Eram histórias mal contadas que alguém, na tentativa de explicar algo, tinha inventado uma história.
Então, eu sempre tive a curiosidade em relação a isso.
Depois que eu me torno professor, eu começo a buscar, começo a pesquisar.
Infelizmente, até hoje, se você entrar em sites procurando assim: “Barcarena”, muito do que você vai encontrar em site, a história não é verdadeira.
O que você vai encontrar, as informações não são verdadeiras.
Elas precisam ser atualizadas, na verdade.
Nós, inclusive, temos o compromisso de fazer isso, de refazer informações equivocadas.
Nos sites, na verdade, até da prefeitura, recentemente estava com esse problema, creio que já foi ajustado.
Aparece assim, que Barcarena deriva de uma barca.
Até historiadores paraenses falando isso, entendeu? Você entra lá, diz isso: Barcarena foi derivada de uma barca.
Então, como professor, fui buscar informações, algumas informações equivocadas foram confirmadas, de forma equivocada (riso).
Mas outras questões foram adquirindo algum material, nós fomos lendo.
E fomos aprendendo.
Fomos conhecendo.
A nossa vivência, no dia-a-dia, as transformações no nosso município.
E vivenciando essas coisas.
E conhecendo umas pessoas.
Aí, atrás das pesquisas aqui no município de Barcarena, vinham professores das universidades, até aqui.
Aí um trazia uma informação, outro trazia outra e a gente ia melhorando essa prática, esse conhecimento.
Até que eu conheci, eu diria o que.
.
.
há quinze anos, o Doutor Lenon.
E o Doutor Lenon, como o nome já diz, é o doutor na área, uma pessoa que tem um profundo conhecimento sobre o município de Barcarena.
E ele me ajudou muito nisso, me contou muito da história, não somente pra mim, mas pros professores de Barcarena, porque ele passou a fazer parte da nossa equipe da Secretaria de Educação.
E nós fazíamos as palestras juntos.
Ele contava a história de Barcarena e eu dizia pros professores como era pra transformar essa história, pra ensinar pros alunos.
A parte dele era o conteúdo histórico.
E a minha parte era a parte pedagógica, didática, como fazer aquilo nos projetos, no município.
Mas aí nós fomos nos apropriando e também ele nos acenou possibilidades de estudo, o que nós poderíamos ler, fontes confiáveis, né? Ele dizia assim: “Olha, você pode ler isso”.
E eu comecei a ler material, dando sugestão.
Então, quer dizer, eu fui melhorando essa prática, esse conhecimento.
E aí me apropriei do conhecimento e hoje em dia, eu e o Lenon fazemos muita palestra, em muitos lugares, né? Quando o Lenon pode, ele vai.
Quando ele não pode, eu vou.
Então, nós fazemos esse trabalho.
Além de nós ainda tem mais umas duas ou três pessoas, que também tem essas informações, que fazem as palestras.
E tantas outras pessoas do município, que têm um conhecimento muito bom da história.
Mas, enfim, eu fui descobrir sobre a Vila do Conde, o que eu vou descobrir? A primeira questão foi a seguinte: o primeiro lugar que o homem branco pisou em Barcarena, no município de Barcarena, foi Vila do Conde, né? O primeiro local.
Em 1653.
Um padre chamado Padre José Delgardes, com uma comitiva, um grupo de jesuítas, chegaram na Vila do Conde.
Esse é dado como o pontapé inicial para a - eu diria assim - história de Barcarena, dia três de março de 1653.
Só que, na verdade, já existiam portugueses na Vila do Conde, entendeu? Só que esses portugueses não conseguiram fazer com que os índios trabalhassem pra eles, né? O governo já tinha conhecimento, tinha dado terra lá na terra dos indígenas, para portugueses.
Mas a intenção deles era que os índios trabalhassem, que mostrassem ouro, alguma coisa pra eles, mas os índios não aceitaram.
Então, os jesuítas vêm pra Vila do Conde, assim como vieram pra muitos lugares do Brasil, nessa intenção de catequizar os índios, pra que eles pudessem ser úteis a eles, coisa desse tipo.
Então, pra Vila do Conde, no município de Barcarena, os primeiros jesuítas chegaram.
Em 1653.
E lá eles fundam, constroem uma igreja.
É a igreja que tem lá é histórica.
É São João Batista, que é o padroeiro da Vila do Conde.
Então, eles fundam a igreja.
Eles constroem a igreja, inauguram a igreja.
Inauguraram no dia três de março de 1653.
Que dizer que eles chegaram um pouquinho antes.
Mas o ato, nós diríamos assim, o marco zero é esse, é a inauguração da Igreja de São João Batista, na Vila do Conde.
E então é descoberto ouro, nas margens do Rio Uraenga, que hoje se chama Arienga, um rio que nós temos aqui, que os índios chamavam de Uraenga.
E eles vão e extraem o ouro das margens do Rio Uraenga.
E esse ouro serve pra fazer tudo os utensílios da Igreja da Vila do Conde.
Eles constroem os candelabros, eles constroem os vasos, todo o material, os utensílios da igreja, são feitos com ouro de lá, do Rio Uraenga.
E é tanto ouro, que eles constroem muitos dos utensílios da Igreja de Santo Alexandre em Belém, que é uma das Igrejas mais tradicionais do Estado do Pará.
Foi construído com ouro da Vila do Conde.
A Igreja da Nossa Senhora das Neves na Vigia, também com ouro da Vila do Conde.
E mais uma outra igreja no Marajó, que eu não me lembro o nome nesse momento, mas construído com ouro, muito ouro.
E Vila do Conde que, quando eles chegam, quem mora ali? Os índios Mortiguras.
Quando os jesuítas chegam, quem mora? Mortiguras.
Eu diria pra você, aos milhares, na região.
Não eram poucos.
Os Mortiguras são descendentes do tronco Tupi, eles eram do povo Tupi-Guarani.
E as três tribos que nós vamos aprender depois, que habitavam o município de Barcarena eram os Mortiguras, na Vila do Conde; os Gibiriés, na Vila de São Francisco, que vai dar origem à sede do município; e os Carnapijós, nas regiões das ilhas, em frente à Ilha das Onças, essa região toda.
Então, eram três grupos de indígenas, mas todos eles pertenciam ao tronco Tupi-Guarani, tá? Eles eram chamados de Tupinambarana.
“Rana” quer dizer assim, como se fosse algo meio falsificado, tipo assim, porque os Tupinambás tinham a prerrogativa de morar no litoral, na beira do oceano, né, do oceano Atlântico.
E esses Tupinambás aqui moravam no centro, que isso era mais próprio dos Tapuios, né? Os Tapuios que moravam no centro.
E os Tupinambás moravam beirando o oceano e esses aqui já entraram mais pro meio da mata, então, eles eram chamados assim: “Ah, você são Tupinambá, mas não são muito original, não.
Vocês são meio ‘rana’” “Rana” quer dizer meio falsificado, coisa desse tipo.
Que os antigos diziam muito isso, tipo assim: “Ah, aquela ali é mãerana do fulano de tal, porque é uma mãe, mas não é a mãe verdadeira”.
Eles falavam muito isso, antigamente, aqui.
Então, Vila do Conde é habitada pelos Mortiguras, aos milhares.
E ali eles fundam uma Missão, fortificam a Missão.
Pra você ter uma ideia, tinha oitocentos e cinquenta índios só guerreiros, pra defender a Missão, entendeu? Oitocentos e cinquenta índios guerreiros.
E a Missão dos Mortiguras na Vila do Conde passa a ser uma das cinco maiores Missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará, né, que na época o estado é unido, Maranhão e Grão-Pará.
E a Missão dos Mortiguras se torna uma das cinco maiores, né? Pra você ter uma ideia, o Padre Antônio Vieira, que é um dos mais importantes jesuítas da História do Brasil.
, morou na Missão dos Mortiguras, na Vila do Conde.
O Padre Bettendorff também, que é lá de Luxemburgo, um grande escritor, um dos escritores que deixou mais textos, mais livros sobre os jesuítas no Brasil, morou na Vila do Conde também, Padre Bettendorff, que é uma das fontes de informação hoje, pros estudos que se faz a respeito dos jesuítas aqui, na colonização, no estado do Pará.
Então, o Padre Antônio Vieira foi esse maior nome, pessoa de fama que morou na Missão dos Mortiguras.
E como eu disse pra você, se torna uma coisa, uma Missão tão importante, que todos os navios, os barcos que iam pro Baixo Amazonas, que iam pra Santarém ou pra Manaus, saíam de Belém, vinham, tinham uma parada obrigatória em Mortigura, né? Eles passavam, paravam em Mortigura.
Quando voltavam do Baixo Amazonas, antes de chegar em Belém, eles tinham uma parada obrigatória em Mortigura.
Eles faziam troca de produtos na ida e na volta e tanta coisa.
Então, a Missão de Mortigura na Vila do Conde alcançou o apogeu nessa época que ela passou a ter tantos moradores, que ela foi apelidada de Arca de Noé, devido a tanta gente que morava na Vila do Conde.
Pra você ter uma ideia, a Missão de Mortiguras, na época, tinha mais moradores do que Belém, a capital do estado, entendeu? Por que isso? Porque, aí, assim, vai entrar um elemento importante aqui nessa história.
Aí vai entrar um elemento muito importante na história de Barcarena, que são os índios Aruãs.
Porque quando fala da história de Barcarena, em muitos textos que você vai encontrar, aparece lá dizendo que os primeiros habitantes da Vila do Conde foram os índios Aruãs e isso era uma confusão muito grande, porque muitos moradores diziam que eram os Gebiriés, outros diziam que eram os Mortiguras, na Vila do Conde, mas na maioria dos textos dizia que eram os Aruãs foram os povos primitivos que habitaram Barcarena.
Então, nós fomos descobrir que, na verdade, nós estudando aqui, nesse processo de colonização e catequização que eles estavam fazendo nos índios, os jesuítas estavam fazendo, eles converteram a maioria dos Mortiguras aqui na Vila do Conde ao catolicismo.
Depois de eles converterem a maioria dos Mortiguras, eles seguiram numa campanha em direção ao Marajó, pra conquistar mais índios pra fé católica, pra ampliarem esse universo deles.
Então, de onde eram os Aruãs? Você sabe que os Aruãs eram os povos indígenas mais desenvolvidos do Brasil, os que tinham a melhor tecnologia no país, eram os Aruãs, que inclusive, eles faziam urna mortuária, eles faziam casa de alvenaria, eles já tinham alta tecnologia no Brasil, né? Os Aruãs, quando você estuda História do Brasil, você vai ver que eles eram daqueles povos muito desenvolvidos, muito ao modo ali dos incas, dos maias, dos astecas, eles tinham muito essa coisa.
Muito mais desenvolvidos em relação aos outros que moravam em oca, que moravam em tudo feito de palha, não existia uma tecnologia mais avançada.
E, na verdade, muitos aruãs foram conquistados pra fé católica, no Marajó.
E o centro de catequização mais próximo era a Vila da Conde, era Mortigura, entendeu? Então, eles foram trazidos do Marajó, pra serem catequizados na Vila do Conde.
E depois que eles foram catequizados, eles iam ficando na Vila do Conde, fixando residência ali.
Então, eles fazem parte, sim, do povo que deu origem a nós que somos hoje.
Por exemplo, eu posso dizer que eu sou descendente dos Mortiguras e dos Aruãs também, porque ali se junta índio Mortigura com índio Aruã e vão dando origem ao povo mestiço que tem hoje, aos índios da época e os mestiços que tem hoje.
Então, nós temos, nosso sangue é tanto dos Mortiguras, quanto dos Aruãs.
Mas que os Aruãs não eram necessariamente moradores desse território, eles vieram trazidos do Marajó pra cá, uma quantidade, porque eles estavam presentes em quase toda a região do Marajó, todo lugar tinha índio Aruã.
E além dos Aruãs, vieram os Ariguenas, os (Guarabas? 01:02:04 parte 2), todos que foram trazidos pra serem catequizados no Conde.
Isso quer dizer que houve uma explosão demográfica, na época.
Por isso passa a ser apelidada de Arca de Noé, que chegou a ter mais moradores que a cidade de Belém, na época, a capital do estado.
Então, Mortigura viveu o apogeu.
Quando se acabou? Quando o Marquês de Pombal, de Portugal, manda o irmão dele pra vir governar o estado do Pará.
O irmão dele se chamava Francisco Xavier de Mendonça Furtado.
Ele vem governar o estado do Pará, trazendo um documento chamado diretório.
Esse documento, o diretório, ele determinava as leis pra Colônia, né, o que pode, o que não pode ter nas colônias, né? E quando ele chega aqui no Pará, o Francisco Xavier de Mendonça Furtado, lá no diretório, uma das primeiras coisas que dizia era: tem que trocar o nome de todos os indígenas, tem que batizar índio na igreja católica, né? Se o nome dele é, eu diria assim, Tibiriçá, Paraguaçu, tira isso aí, né? Coloca o nome dele lá de Antônio Carlos Rodrigues.
Tem de colocar nome civilizado.
Isso tem lá no diretório, né? Tem que colocar nome civilizado nele.
E tirar o nome indígena, porque é imoral.
Isso diz no documento: qualquer nome indígena é imoral.
Retira e coloca o nome de Portugal neles.
Então, quando ele chega, ele determina na Colônia: “Nós vamos trocar o nome”.
E começa a trocar o nome.
Quer dizer, se você olhar o nome das pessoas no Brasil, Barcarena, os nossos lugares aqui, o meu nome é Roberto Carlos Dias dos Anjos.
Cada nome meu pertence a uma família em Portugal, né? Roberto é alemão, né, mas europeu.
Aí vem Carlos, aí você vê lá o Carlos Magno, né? Tem o pessoal, aí, o Dias.
Se você procurar em Portugal tem muitos Dias, tem muito Anjos.
Se você procurar o seu sobrenome - se você não é descendente de um alemão, uma coisa assim, você tem nome que nós dizemos que é brasileiro - tem em Portugal.
Os nossos sobrenomes têm em Portugal.
Quer dizer, foi algo obrigado.
O povo teve que aceitar esse nome, tirar o Paraguaçu, o Mundurucu, o Tibiriçá.
Some o nome indígena, coloca nome em português, em todo mundo.
Essa foi uma das primeiras coisas que ele fez.
A segunda coisa foi: tem que tirar o nome indígena dos lugares.
Onde existia uma Missão, o nome indígena tinha que desaparecer e colocar o nome de um lugar de Portugal.
E assim ele fez, né? Então, por exemplo, Vila do Conde tinha a Missão dos Mortiguras, aí eles tiram o nome Missão de Mortiguras, o Francisco Xavier de Mendonça Furtado manda retirar e coloca o nome de Vila do Conde, que é uma cidade portuguesa, uma cidade histórica portuguesa, né? Então, quebra aquela ideia lá, de que se teve um conde, que morou na Vila do Conde, que o nome dele era Conde de Vila Flor.
Na verdade, nós recebemos o nome de uma cidade portuguesa, né? Vila do Conde existe em Portugal.
Nós estudando, assim, de onde surgiu esse nome, Conde de Vila Flor? Na verdade, o Conde de Vila Flor foi um governador do estado do Pará.
Depois do Francisco Xavier de Mendonça Furtado, alguns anos depois, veio um governador pro estado, que era o Conde de Vila Flor.
Era um título dele, na verdade.
E ele governou o Pará durante algum tempo.
Então, as pessoas na Vila do Conde, querendo explicar a história, por que o nome Vila do Conde? Eles uniam Vila do Conde ao conde que governou o Pará.
Que talvez, eu não sei se veio alguma vez na Vila do Conde, mas unia as duas coisas.
E, na verdade, nunca na Vila do Conde morou um conde.
Nunca.
Na verdade, recebe o nome de Portugal.
E a Missão dos Gibiriés deixa de ser Missão dos Gibiriés e passa a ser Barcarena, por causa da cidade de São Pedro de Barcarena, em Portugal, que lá morava a esposa do governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado.
Ela era dessa cidade, São Pedro de Barcarena, em Portugal.
Em homenagem à esposa dele, a Violante Velazquez, ele coloca o nome no nosso município, na sede do município, de Barcarena.
Não tinha nada a ver com a barca, novamente.
Assim como Vila de Beja, uma vila que tem aqui próximo a nós, era a Missão de Samaúma, passou a ser Vila de Beja, é uma outra cidade portuguesa.
A Missão de Tapajós deixa de ser Missão de Tapajós e passa a ser Santarém.
E assim por diante.
O Baixo Amazonas todo foi trocado o nome das cidades e passou a ser cidade portuguesa.
A maioria das cidades do Baixo Amazonas são todas cidades portuguesas.
Então, nós fomos, tivemos que estudar, aprender, pra nós desfazermos esses mitos.
Hoje em dia esses mitos ainda existem, mas como lenda.
Tipo assim: a história da barca é uma história bonita, mas não passa de lenda.
A história do conde que morou na Vila do Conde, não passa de lenda, é apenas contada como lenda.
Hoje nós conhecemos a verdadeira história.
Temos um compromisso, escrevemos um livro nesse compromisso de divulgar nas escolas.
Porque o que nós sabemos, que nós estamos falando nessa entrevista, ainda não é de conhecimento total da população de Barcarena, na verdade.
A nossa população, eu penso que em sua maioria, ainda desconhece a verdadeira história.
Então, o livro é recente.
Ele foi produzido por conta de que o prefeito de Barcarena, o ex-prefeito, já falecido, né, o senhor Vilaça, sempre teve, assim, um amor muito grande por essa terra.
Ele era mineiro, né, mas ele se elegeu aqui.
Mesmo sendo de outro lugar, ele veio e se elegeu.
E eu posso dizer assim, que ele foi, penso que o melhor prefeito que Barcarena teve.
Então, uma das coisas, assim, ele sempre dizia assim: “Eu quero colocar Barcarena num patamar que dê orgulho de ser moradores.
Eu quero que Barcarena seja reconhecida”.
E tudo o que se relacionava a Barcarena, ele achava que era positivo: o que a gente pode adquirir, o que nós podemos fazer? Você vê várias escolas aqui no município, escolas boas que ele mandou construir, uma coisa muito bonita.
E nisso, uma editora aí do nordeste vem até ele e diz que eles têm um trabalho de produzir um livro.
O município onde ele vai, o que ele oferece é fazer um livro pra contar a história dos municípios.
Então, chega aqui em Barcarena e diz: “Você não quer fazer um projeto conosco, pra nós escrevermos a história do município de Barcarena?”.
O prefeito: “Quero”, entendeu? E ele encampa essa luta.
E o projeto da editora é: “Nós vamos escrever o livro, mas nós contratamos os historiadores do próprio local, entendeu? Nós não vamos trazer, porque o nosso historiador, até ele aprender a história do local, é complicado.
Se já tem, aí pode ser um, pode ser dois, pode ser três, pode ser quatro, pode ser cinco, pode ser seis.
Depende de vocês”.
Então, a Secretaria da Educação do Município com o prefeito, fizeram um trabalho de seleção de pessoas e eu fui uma das pessoas selecionadas, devido ao tanto de palestra que nós fazíamos, esse trabalho que a gente já fazia na rede de ensino há dois anos, fazendo a formação de professores nessa área.
Então, nós fomos convidados, eu, o Doutor Lenon, o Professor Jacobson, que é um professor mais voltado pra Geografia e o Professor João Poça, que é a pessoa da área de Letras, né? É uma pessoa, assim, que tem bastante conhecimento na área.
Então, nós nos juntamos e escrevemos o livro na Editora Didáticos.
E esse livro foi lançado e a prefeitura, por meio da Secretaria da Educação, adquiriu dez mil exemplares desses livros e eles foram distribuídos nas escolas da rede.
Então, todas as escolas da rede têm uma quantidade de livros, pra que os alunos possam aprender a verdadeira história de Barcarena.
Nós vivemos uma situação que, logo de início, houve a pandemia.
Então, isso foi um certo entrave.
Mas agora, retornando as aulas, esse livro vai ser muito utilizado.
E eu penso que vai ser, assim, algo muito positivo pro município de Barcarena, porque até então, antes do lançamento do livro, na verdade, se você quisesse um texto sobre Barcarena, você teria que.
.
.
você pegava um texto numa biblioteca; queria um outro texto que complementasse, tinha que ir em um outro local, em uma outra escola.
Ou então, procurar um de nós: ou eu, ou o Lenon, ou um dos professores, Jacobson, o Professor João, pra conhecer um pouco de cada coisa.
Aí vai com um, sabe um pouco.
Com outro conhece mais, coleta um pouco.
Então, a gente junta o conhecimento que todo mundo tem e faz esse livro.
Sendo que esse livro é apenas uma síntese.
Nós colocamos, assim, os pontos mais importantes.
Porque, pra contemplar a história de Barcarena, nós teríamos que ter trinta livros desses, tipo assim, muito.
Então, pra um livro é pouco, mas já é bastante pro que nós tínhamos ou não tínhamos antes, entendeu? Então, hoje ele está disponível, né, nas escolas.
Ele é um livro didático, né? Ele não é um livro que esteja disponível pra venda, né? Ele é apenas um livro didático.
Mas vai ser muito útil, porque esses alunos podem levar o livro pra casa, podem estudar com a família, pode então.
.
.
a verdadeira história de Barcarena está sendo divulgada por meio desse livro: Barcarena, a Cidade da Gente.
P/1- E me conta uma coisa, agora, indo um pouco pra frente, depois da intervenção do Marquês de Pombal, né?
R- Sim.
P/1- Como é a relação da localidade aqui com a Revolta da Cabanagem, que é muito comentado também, né?
R- Sim.
Sim.
Até porque Barcarena, eu poderia dizer assim que Barcarena foi o principal foco da organização do Movimento Cabano, do estado do Pará.
As pessoas se reuniam.
Um dos locais onde as pessoas se reuniam pra traçar metas, pra traçar os planos, fazer a organização do grupo, foi o município de Barcarena, principalmente Vila do Conde e a Ilha das Onças.
Aqui eles faziam a mobilização pra batalha, né? Teve alguns outros locais, muitos outros municípios do estado do Pará, mas Barcarena foi um dos locais onde teve mais esse movimento de mobilização.
Por exemplo, pra você ter uma ideia, dois dos maiores ícones da Cabanagem, que foi Eduardo Angelim e Batista Campos, foram enterrados aqui no município de Barcarena.
O Eduardo Angelim era cearense, mas eu diria que cresceu aqui no Pará e foi enterrado aqui em Barcarena.
O Batista Campos era barcarenense, daqui de Aicaraú, né? Viveu a vida dele, política, aqui.
Morreu muito jovem e foi enterrado aqui em Barcarena.
Então, assim, as pessoas, eu diria assim, os nossos avós, diziam, contavam a história, diziam assim: “Nós vimos o movimento.
Ah, eu estive numa reunião que o Eduardo Angelim fez aqui em frente à igreja católica”.
O bisavô, os bisavós, os nossos avós diziam isso: “Eu vi, eu participei de uma reunião com ele.
Eu era muito novo.
Eu não fui pra batalha em Belém, mas eu vi, vi muita gente ir”, entendeu? Então, inclusive no livro, tem um discurso feito pelo Eduardo Angelim.
Eduardo Angelim tinha dezenove anos de idade.
Ele, lá na frente da igreja da Vila do Conde, da Igreja de São João Batista, ele conclamando a população pra batalha em Belém, entendeu? Então, aqui no nosso livro, nós temos o discurso que ele fez, entendeu? E arregimentou as pessoas naquele momento e em muitos momentos, mas esse momento que ele fez esse texto, ele fez esse discurso, que tem o registro no livro, ele saiu da Vila do Conde com trezentas pessoas, pra batalha em Belém.
E eles vão a pé, da Vila do Conde pra Belém.
E passando nas comunidades.
Aonde eles iam passando, eles iam engrossando as fileiras, porque eles iam arregimentando novas pessoas pra batalha.
Tipo assim: sai da Vila do Conde com duas mil, pra chegar em Belém com milhares.
Sai do Conde com duzentas, trezentas pessoas, chega em Belém com milhares de pessoas.
E nessa feita, que ele sai com esse discurso que ele fez, eles conseguem dominar, vencer a batalha em Belém e passam a governar o estado.
Então, assim, os nossos bisavós, muitas dessas pessoas, inclusive índios, ainda, na época existiam índios originais.
Eu diria que Mortiguras e Gibiriés participavam dessas batalhas, né, junto com os cabanos.
Bem poucos, eu diria já assim, não era basicamente índios, índios originais, mas já é uma geração miscigenada, na verdade, que já participam dessas batalhas.
Mas muitas pessoas assim com características muito mais forte do que eu, que você olha e você vê que eu tenho toda a característica de indígena, a fisionomia, mas eles eram mais fortes, essa questão do sangue indígena.
Essas pessoas que participaram, muitas pessoas mesmo assim descendentes diretos dos indígenas, que participaram do Movimento da Cabanagem, enfim.
O Batista Campos morreu aqui no Furo do Arrozal.
Ele morreu e foi enterrado lá.
E posteriormente.
.
.
na época que eles morreram, eles eram considerados como bandidos, né? O Lenon deve ter falado isso aí.
O governo considerava-os como bandidos, porque eles eram da oposição, eles estavam fazendo uma revolução.
E por essa época o Eduardo Angelim morre e é enterrado também lá na Trambioca, perto da praia, também é enterrado lá.
E se passam muitos anos, até que a República é proclamada.
A partir da República, aí vão se tornar.
.
.
eram bandidos e agora vão se tornar heróis da Nação, né? Aí se tenta resgatar a memória deles, a história deles é assim: não eram bandidos, eles estavam lutando por um ideal.
P/1- Professor, você falou que, então, os cabanos foram enterrados como bandidos.
R- Sim.
P/1- E a questão agora é.
.
.
R- Posteriormente é resgatar a imagem deles, né? Eles passam de bandidos a heróis da Nação, porque eram pessoas que lutavam pelo direito dos menos favorecidos, entendeu? Então, se cria em Belém o monumento chamado o Monumento da Cabanagem.
E esse movimento era resgatar todos os restos mortais das lideranças cabanas espalhadas pelo estado, resgatar essas ossadas, pra serem levadas pra esse monumento, em Belém.
E, por conta disso, eles vieram retirar, buscar os ossos do Eduardo Angelim e do Batista Campos.
Sendo que os do Batista Campos, na verdade, já havia sido retirado desse local onde ele tinha sido enterrado, no Arrozal, já havia trazido os ossos dele pra cá, pra uma igreja em São Francisco, a igreja lá que foi construída pelos Gibiriés, na Vila de São Francisco dos Gibiriés.
E lá tinha sido construída uma urna na parede da igreja, até hoje tem essa urna lá e colocado os restos mortais dele na urna.
Então, já havia sido retirada do local, lá próximo à praia e havia sido colocado esses restos, aqui na Igreja de São Francisco Xavier.
Então, as pessoas vêm ali, um historiador, com várias pessoas e retiram os ossos aqui da Igreja de São Francisco Xavier e levam pro Monumento da Cabanagem, em Belém.
E os ossos do Eduardo Angelim foram retirados do túmulo onde estava, lá na Trambioca, na Comunidade Madre de Deus e foi levado também pro Monumento da Cabanagem.
Hoje eles se encontram lá, no Monumento da Cabanagem, junto com os restos mortais de outras lideranças cabanas, tá? E a partir de então, eles são tratados em termos de Pará e até de Brasil, como heróis desse movimento dos menos favorecidos, dos cabanos, que tem muito a ver com as casas que as pessoas moravam, com as cabanas, coisas desse tipo, né? E hoje eles são vistos como elementos que precisam ser ensinados pela escola, como heróis e pessoas que lutaram, em prol da população paraense.
P/1- E me diz uma coisa: como é, então, um dos mitos, digamos assim, de Barcarena, que é o casarão do Cafezal? O que vocês descobriram dali?
R- O casarão do Cafezal, na verdade, teve vários, mais de um dono, na verdade.
E, na verdade, o nome já diz, é um casarão, né? As pessoas dizem que ele tinha trezentas e sessenta e cinco janelas, né, uma pra cada dia do ano, né, pra que eles pudessem: “Ah, hoje, dia primeiro de janeiro, é nesta janela; dia dois na outra janela; dia três.
.
.
”, cada dia olhar o mundo de uma janela diferente, né? A ideia era essa.
Mas também isso está muito no campo da mitologia, né? Porque, na verdade, não se tem certeza quantas janelas eram.
Assim como também que o Dom Pedro II foi hospedado no casarão do Cafezal, também dizem que isso não passa de lenda, não tem confirmação, né? Mas foi um local onde o último dono, na verdade, do casarão, exportava produto do casarão pra Europa, né? Porque ele já era uma personalidade muito conhecida na Europa.
Quando ele veio pra cá, pro Pará, ele veio.
.
.
como diz assim.
.
.
numa intenção, ele era rico e um homem muito famoso em Portugal.
E ele vem pra cá, pra Belém do Pará e inclusive, ele foi um dos que construiu a Santa Casa de Misericórdia em Belém e tantos.
.
.
ele era, eu diria assim, uma pessoa da elite portuguesa e se torna uma pessoa da elite aqui em Belém do Pará.
E a esposa dele adquire o casarão do Cafezal, essa fazenda, essa coisa toda, onde eles vêm morar.
Inclusive, ela teve dezesseis filhos, né, que moravam aí e alcançam, tipo assim: eles foram, eu diria assim, os últimos donos do casarão e que, eu diria assim, alcançam maior, a gente fala o apogeu, na verdade, na época dos últimos donos do casarão.
Inclusive, o Doutor Lenon tem o livro dele, da tese do doutorado, que ele conta toda a história dos últimos moradores do casarão do Cafezal.
Desde o nascimento dele em Portugal, até o enterro dele em Portugal novamente, porque ele retorna pra Portugal.
Inclusive, ele tirou a foto lá do túmulo dele, essa coisa toda, ele tem toda a trajetória dele.
E que, na verdade, depois eles decidem retornar, voltar pra Portugal e o casarão ficou sob os cuidados dos caseiros.
E aqui, eu penso assim que um dos maiores enigmas do casarão do Cafezal, é uma das coisas que precisa ser mais desvendada: é a questão por que derrubaram o casarão do Cafezal? Ele poderia ser, hoje, um museu, né, histórico de Barcarena, contando muita coisa da fazenda, do que era produzido.
E foi derrubado.
Então, nós já ouvimos pessoas dizerem assim: “Porque foi culpa dos prefeitos que Barcarena teve, porque o prefeito não cuidou do casarão, porque o governador não cuidou do casarão, o governador, os vereadores, quem quer que seja, nunca se importaram”.
E que, na verdade, assim, precisa ter um cuidado com isso, porque não foi muito bem culpa dessas pessoas.
Porque o casarão era uma propriedade particular, como nós estamos falando.
Então, quando o último dono retorna pra Portugal, os filhos dele já haviam saído do casarão.
Eles estavam estudando em Belém, eles estavam estudando no Rio de Janeiro, em São Paulo, estavam espalhados pelo Brasil, estudando.
Eles não tinham intenção de morar no casarão.
Então, eles deixam o caseiro recebendo o salário, né, pra cuidar assim de toda a propriedade.
E os caseiros ficam.
E os anos vão passando, eles recebendo o salário, até que deixam de receber, ninguém paga mais.
O dono morre, em Portugal.
E eles não recebem.
Estão cuidando de algo que não é deles, sem receber nada.
E um dia eles escrevem uma carta pra um dos filhos pedindo que, tipo assim, tome uma decisão em relação a eles: “Nós precisamos de uma casa pra nós morarmos, não temos.
Nós cuidamos de algo que não é nosso.
Mas nós precisamos de ter novamente o nosso salário.
Ou então vocês constroem uma casa pra nós.
E nós nos mudamos daqui e vocês cuidam disso aqui.
Nós não podemos continuar assim”.
E o governo do estado já havia feito uma proposta aos filhos do dono, pra que eles vendessem pro estado, porque o estado queria fazer um leprosário.
E os filhos do dono não quiseram vender, disseram não, que era uma herança do pai, era memória, aquela coisa e não iam vender.
Nunca quiseram vender.
A própria prefeitura de Barcarena fez investida tentando comprar, mas nunca conseguiram que eles tivessem permissão pra vender, enfim.
E quando os filhos recebem a carta dos caseiros, eles dizem pra eles assim: “Olha, nós não vamos pagar mais salário, porque vai custar caro pra nós.
Nós não temos intenção de investir mais aí.
Nós queremos que fique o local apenas, como uma recordação, uma lembrança.
Agora, o que nós autorizamos vocês, é o seguinte: se vocês quiserem fazer uma casa, vocês podem retirar material do casarão pra fazerem uma casa pra vocês.
Vocês podem tirar telha, vocês podem tirar madeira, vocês podem tirar o que vocês acharem que interessa, os tijolos que tem, vocês tiram”.
E eles fizeram isso.
Eles começaram a retirar o material e acabaram tirando tudo.
Derrubaram o casarão, pra retirar os materiais.
E eles fizeram a casa deles e venderam pra.
.
.
tem várias pessoas no município de Barcarena que tem casa construída com material do casarão, entendeu? Tipo assim, algo histórico do município, desapareceu por uma coisa boba, por uma coisa que.
.
.
entendeu? Porque, na verdade, pelas autoridades, eles teriam cuidado.
Mas a questão foi essa, de uma propriedade particular, eles não tiveram como intervir, ainda mais sendo particular de uma pessoa que tinha muitas pessoas conhecidas pelo mundo afora, essa coisa toda.
Então, se perdeu uma propriedade que era uma referência do município de Barcarena.
P/1- E essa derrubada aconteceu em que década, mais ou menos?
R- Olha, na verdade, ela aconteceu há mais ou menos, há uns.
.
.
eu não tenho exato.
.
.
na verdade, eu vou ficar te devendo.
É melhor do que eu te dar uma data, assim.
Eu não tenho, assim, de mente, agora.
P/1- No século vinte ainda?
R- Exatamente.
No século vinte.
Mas não tenho bem o ano, assim, o mês que aconteceu.
Vou ficar te devendo essa data.
Mas foi uma perda muito grande pro município de Barcarena, né?
P/1- Sim.
E essas histórias da escravatura, procedem? Era uma.
.
.
R- Procedem.
Na verdade, assim, não somente no casarão.
Mas, na verdade, nós tivemos mais de cinquenta engenhos no município de Barcarena.
Mais de cinquenta engenhos.
E esses engenhos, todos eles tinham mão-de-obra escrava, entendeu? Então, a escravidão em Barcarena foi muito forte.
Só que, assim, é algo que praticamente não existe na boca, na história, nem em termos de lendas.
Barcarena não existe muito, entendeu? É tipo assim algo que parece que as pessoas nunca se importaram muito e que precisa ser resgatada essa questão da presença negra no município de Barcarena.
O Doutor Lenon tem livro contando essas coisas, mas que isso não é muito divulgado.
Então, na verdade, lá na fazenda do Cafezal, também tinham muito escravos.
E inclusive, assim, no livro tem recorte de coisa assim, de tortura que os escravos sofriam.
E quando um escravo fugia, a ameaça que os próprios donos faziam pras pessoas que pudessem dar cobertura pra um escravo.
Então, se escrevia textos, documentos e enviava pra todas as comunidades dizendo: “Será aplicado penalidades, até tortura mesmo, em quem” - eles diziam assim – “ocultar escravos fugidos da fazenda, de Santana do Cafezal”.
Então, a coisa era muito rígida.
E eles, tipo assim, as torturas quando um escravo fugia, aconteceu várias vezes isso, eram levados, eram muito torturados na fazenda, né, por conta disso.
E no livro, no nosso livro tem textos que falam dessa situação.
E agora tem uma coisa que se diz assim, que isso é lenda.
Inclusive, o Doutor Lenon fala muito disso, porque dizem assim que tem um poço lá na Fazenda do Cafezal que lá, o dono jogava aqueles que fugiam, eram torturados e depois eles eram jogados no poço, pra serem mortos.
E nós sabemos hoje que isso não era verdade.
Porque principalmente, assim, um escravo era muito caro.
Era tipo assim: você não conseguia, se você vendesse trinta cabeças de gado, trinta bois, comprar um escravo, entendeu? Então, os senhores, essa questão de matar, era muito difícil um senhor que matasse o seu escravo, porque era prejuízo financeiro.
Era mais fácil ele vender barato pra alguém do que matar, porque era prejuízo e eles não queriam ter prejuízo.
Pra você ter uma ideia, assim, um senhor, pra trazer, por exemplo, cinco escravos do sul do país, do sudeste, de onde quer que seja, ele tinha que ter muito dinheiro pra comprar.
Tipo assim: uma pessoa que fosse apenas abastada, mas não fosse rico, ele dificilmente tinha condição de comprar um escravo, entendeu? Aí as pessoas acham assim que qualquer pessoa branca tinha acesso a um escravo, comprar um escravo.
Não tinha.
Eram só pessoas que tinham muito dinheiro.
Então, um senhor não vinha trazer escravos pra jogar fora, pra perder, pra ter prejuízo, entendeu? Então: “É melhor vender por cinquenta por cento do preço, que eu consigo reaver muito do dinheiro que eu investi nele, do que matar”.
Então, vende mais barato pra alguém, pra ser devolvido esse dinheiro.
Então, eu sei que na Fazendo do Cafezal eram torturados, mas questão de ser morto.
.
.
mas isso é muito forte na fala.
Se você for entrevistar o povo, de maneira geral, eles vão contar essa história pra você, que eles eram mortos nesse poço lá.
Isso é uma lenda, na verdade.
Na realidade, não existe nenhuma comprovação que isso acontecia.
Existe o contrário, que eles eram torturados, mas não mortos.
P/1- Agora, a população afrodescendente aqui, é presente ou não é? E essa história? São duas perguntas, então.
Isso.
.
.
R- Sim.
P/1- E por que essa história não é tão divulgada, você acha?
R- Sim.
Na verdade, é assim: eu penso que mais assim por um preconceito, tipo assim, histórico, na verdade.
Vão falar de tudo, menos disso, entendeu? Eu entendo.
Eu não posso te afirmar com certeza, mas no que a gente conhece, no que a gente observa, é muito isso.
Tipo assim, ao longo do tempo, quem morreu? Foram escravos, negros.
Então, isso não tem muita importância, deixa pra lá, a história absorve isso aqui.
Por isso não é, nunca foi tão divulgado.
Os afrodescendentes estão presentes aqui no município de Barcarena, em vários lugares.
Nunca antes havia sido reconhecido, até recentemente, que foi aprovada a lei, né, pra que as pessoas que são indígenas, as pessoas que são descentes indígenas, dos negros, essa coisa toda, pudessem refazer essa população quilombola, indígena, essa coisa toda.
A partir da aprovação de um projeto recente que ______ (parte 3 15:26) conhecimento, que Barcarena conseguiu já reconhecer, né, ser reconhecido nacionalmente, como por exemplo, nós temos aqui o São Lourenço, que é um quilombo, né, que foi reconhecido, o movimento quilombola aqui em Barcarena, bem próximo aqui.
E esse movimento do São Lourenço foi reconhecido.
Quer dizer, hoje é uma comunidade quilombola que nós temos no município de Barcarena.
Já é um reconhecimento que hoje se sente um pouco, assim, esquecido.
Mas, na verdade, eles têm lutado pelo reconhecimento do direito.
Aqui na estrada mesmo, existe outro movimento como quilombo.
Aqui na estrada existe outros também e que eles lutam por esse.
.
.
que realmente a lei está reconhecendo.
A Justiça está reconhecendo, por mais que não seja reconhecida pela população, por todo mundo.
Porque alguém chega e diz assim: “Não.
Isso aqui é um aglomerado de pessoas que nasceram e se criaram aqui”.
Às vezes, não querem dar esse devido reconhecimento.
Mas eles estão nesse movimento, quer dizer, já têm os documentos, já têm certidões, já têm toda essa coisa pra ser reconhecida legalmente.
Mas ainda tem essa coisa de ser reconhecida pela população e até por alguns governantes, pra dizer assim: “Poxa, esse documento que vocês têm, tem validade.
Vocês precisam ter os direitos, tipo assim, não apenas o documento, mas os direitos mesmo que cabe a vocês”.
Porque foram pessoas que deram muita contribuição pra esse município, pro desenvolvimento.
Você imagina, cinquenta engenhos que nós tivemos aqui! Quanto lucro deu pra pessoas aqui nesse município, né? Quanto imposto foi arrecadado! Quanta coisa nesse município, por conta dos ancestrais dessas pessoas.
Então, mesmo que as pessoas não queiram reconhecer, mas isso precisa ser reconhecido, né? De alguma forma já existe esse movimento forte aqui, que antes não havia, mas hoje já existe o movimento.
Mas, eu ainda te digo, mais voltado pros afrodescendentes, do que pra indígena.
Pra indígena ainda é muito fraco esse movimento.
Porque, inclusive na minha comunidade, nós temos os documentos, nós temos alguns documentos, nós temos algumas coisas que podem reconhecer, nos reconhecer como indígenas, né, mas que a gente precisa do movimento, pra esse reconhecimento.
Então, eu te digo que os afrodescendentes já avançaram mais do que os indígenas, em relação a isso.
P/1- E indo agora, mais pros dias atuais.
R- Sim.
P/1- Você consegue relatar, antes de como historiador, digamos assim, mas como pessoa que, provavelmente, viu o processo das grandes empresas vindo pra cá, como é que foi pra você e pra sua família? Como é que foi isso?
R- Tá.
Eu penso assim: nós tivemos ganhos nesse processo e tivemos perdas.
Eu não posso te dizer assim que foram só perdas.
Tiveram muitos ganhos e muitas perdas.
Entre os ganhos, eu poderia dizer assim, nós termos estradas, apesar de que as nossas estradas não estão tão bem, né, mas abertura de estradas.
Eu diria assim, energia elétrica, né, que uma boa parte da população tem acesso à energia elétrica.
Empregos, né? Escolas melhores.
Mais escolas, inclusive.
Então, nós tivemos, assim, muitas coisas que eu poderia dizer como melhorias pro município.
Mas dizer assim que, nessa mudança pra população nativa, as mudanças não foram pra melhores, num certo sentido assim.
Nós convivíamos com a natureza.
Eu posso te dizer, eu vivia no Curuperé.
Eu vou te dizer, como diz assim, é uma coisa pessoal, não de historiador: vivia no Curuperé.
E vivia na Montanha.
Curuperé e Montanha, nessa região.
As pessoas, tudo descendente de indígenas, quem a gente conhecia eram essas pessoas, o mundo que nós conhecíamos era esse.
Eu diria assim que na comunidade da Montanha, por exemplo, não tinha energia elétrica.
Lá na escola que eu dava aula não tinha energia elétrica.
Tinha, na nossa comunidade, um televisor à bateria, antes da chegada das empresas, só uma, que todo mundo se juntava lá pra assistir televisão.
Dia de domingo se junta mundo e ia pra assistir a televisão preto e branco, televisão pequena, à bateria.
E a nossa vida era aquela assim, tipo, de deitar cedo, né? Por isso que a gente acordava cedo.
Porque sete horas da noite a gente já tinha jantado e já estava deitado, sete horas da noite.
E acorda às cinco horas da manhã, seis horas da manhã, porque já não tinha mais sono, né, para dormir.
E quando ia pra igreja que a gente ia dormir às dez horas, porque termina o culto nove horas, dez horas vai dormir.
E acorda cedo também.
A vida era o quê? Pescar, caçar, pegar camarão ali na praia, era basicamente isso.
Nós não tínhamos energia elétrica.
Mas a gente nem achava, assim, que importância teria energia elétrica na nossa vida? Queríamos um televisor.
Mas nós tínhamos outras coisas que compensavam isso, né? Então, a gente vivia aqui no local, dessa forma.
Um dia alguém aparece ali e diz assim: “Isso aqui foi vendido.
Onde vocês moram foi vendido”.
E diz assim: “Poxa, mas como vendido? Nós não estamos morando aqui?”.
Porque a ideia era assim: os indígenas que eram os donos, eles passaram pro outro, pro outro, aí chega já no mestiço, que já é o neto dele, do índio.
Dele vai passando pro meu tataravô, pro meu bisavô, pro meu avô, pro meu pai, é nosso.
Pra nós sempre foi nosso, né? Aí chega nos nossos dias, como eu te disse logo no começo: “O terreno do compadre vai até tal lugar, daqui termina, passa pro outro dali, tal”.
Tudo era nosso.
Nós sempre achamos que era nosso.
Aí quando chega as pessoas: “Não.
Isso aqui não é de vocês.
Isso aqui é do Estado” “Como assim?” “Não.
Porque o único documento que tem das terras está na mão do Estado” “Como assim?” “Aí”.
Naquele momento, eu não sabia.
Mas hoje nós sabemos.
Aí eu já volto no papel do historiador.
Depois eu volto lá no papel de morador.
O historiador hoje sabe que quem titulou as terras, quando os jesuítas chegaram, em 1653, eles titularam as terras em nome da igreja católica, entendeu? Os meus parentes indígenas que moravam, nunca tinham titulado a terra, porque não sabiam nem que existia isso.
O direito dele era o direito de morar.
Mas agora chega o jesuíta lá de Portugal, que lá as propriedades têm documento, agora ele chega, cria um setor aonde documenta: “Agora nós documentamos”.
Documenta tudo em nome do patrimônio de São João Batista.
A igreja católica se torna proprietária de tudo.
E nós estamos morando dentro de uma área que era nossa, agora não é mais nossa, porque quem titulou foi o padre, que titulou.
Aí, quando os japoneses chegam pra comprar a área, aí a área, quem tem o documento? A igreja.
A igreja tem o documento.
Então, o governo e empresas vão até a igreja e compram as terras de quem? Da igreja católica, que é detentora da titulação e agora o título passa pra mão do Estado.
O Estado vende pra empresa.
Aí aonde foi a Albrás e a Alunorte, a primeira leva.
E até hoje o governo do Estado tem a titulação e manda.
Então, onde você quiser uma área, daqui até o Rio Arienga, essa área todinha, até hoje ainda tem muita área pra ser vendida.
Quem vai vender é o Estado.
Então, nós moramos dentro de uma área que era nossa e depois nós percebemos que não era nossa.
Nós estávamos morando numa área que foi, alguém titulou antes de nós, entendeu? Agora, nós morarmos naquela área nos dá direito àquela terra.
Quando alguém chega lá na Montanha e diz assim: “Nós compramos essa área e vamos instalar uma empresa aqui, duas empresas aqui”, pra nós aquilo era estranho, porque era do meu bisavô, do meu avô, era nosso.
Nós não sabíamos o que era a situação.
Então, começa esse processo pra um povo inocente.
Eu te digo, um povo inocente.
Inocente de não saber.
Tipo assim, nós fomos vendidos dentro dessa área, sem saber, sem nunca ter sido ouvido, sem nunca ter sido consultado, entendeu? Era um povo tão inocente, que achava muito bonito os tratores derrubando as árvores.
E tinha pessoa que largava o seu serviço na roça pra passar o dia inteiro andando atrás do trator, porque achava muito bonito o trator devastando tudo, o trator levando tudo.
Então, eu digo que é inocência.
Porque hoje não fariam mais isso.
Hoje lamentariam profundamente.
Mas no começo foi muito assim.
Porque tudo que entra aqui, tudo o que chega aqui é novo, é trator, é carro, nós não estamos acostumados a ver isso, né? Então, passa por todo esse processo e de alguém que morou na Montanha, um paraíso, lá no Curuperé, essa coisa toda, pra hoje.
Eu moro no Curuperé.
Hoje é uma invasão o Curuperé, né? A Montanha, onde nós morávamos na beira da praia, um paraíso, ninguém nunca nos perguntou assim: “Vocês querem sair daqui?”.
Não.
Nunca perguntou.
Simplesmente o governo do estado vem e diz assim: “Não.
Está vendido e tem que sair”.
O que nós podemos opinar? Sobre o lugar onde vamos morar e a indenização, quanto é, essa coisa.
Basicamente é isso.
“Mas ficar aqui vocês não podem, porque o governo já determinou que vão ter que sair”.
Então houve, eu posso te dizer assim, hoje, dos anos setenta até hoje, qual foi o maior problema pra nós? A desagregação de famílias nativas.
Porque, se isso não acontecesse, até hoje nós estaríamos lá.
A gente podia até não ter energia elétrica, mas as nossas famílias estariam todas juntas, as famílias nativas, descendentes dos indígenas da Vila do Conde.
Era um direito nosso.
Mas essa situação fez desagregar.
Hoje, lá na nossa comunidade, na nossa comunidade, quem era do Curuperé, naquele pedaço lá, eram muitas famílias, só está eu com a minha família lá.
Os meus irmãos, tem uns pra Massarapó, tem outros pra Barcarena, tem na Vila do Conde, meus parentes todos espalhados aqui.
Uma outra comunidade que tem aqui, a Nova Vida, foi desagregada a nossa família.
A gente se encontra quando morre alguém, né? Morreu um parente, aí todo mundo se encontra naquele dia ali e a gente volta a conviver junto.
E isso ninguém nos perguntou: “Vocês querem que aconteça isso?”.
A nossa família foi desagregada à força.
Cada um mora pra um lugar.
Antes nós morávamos tudo ali no Curuperé e Montanha.
Eu penso que essa foi a maior perda, porque quando sai, ele perde a identidade de nativo.
Ele não é nativo mais, agora ele é apenas, em alguns lugares chegava até a dizer, são sem-terra, depois de ter tanta terra, perderem ______ (parte 3 26:16).
Então, na verdade, eu penso que a maior mudança foi essa, a maior perda foi essa.
E, ao longo do tempo, as empresas foram se instalando cada vez mais.
E já teve muitos acidentes, graves acidentes na nossa região da Vila do Conde, que a gente tem convivido com isso ao longo dos anos.
Nós estamos lá.
E aguardando, tipo assim, o dia que o estado dizer assim: “Nós queremos esse pedaço de terra que tu estás”, eu não posso dizer: “Eu não vou sair”.
Eu posso dizer assim, eu posso negociar com ele: “Quanto é que você vai me dar? Vai me dar uma casa? O que você vai me dar, pra eu sair daqui?”.
Mas eu não posso dizer assim: “Eu vou ficar aqui”.
Não, eu tenho que sair.
Na hora que o estado quiser me tirar, ele me tira daqui, qualquer pessoa dessa região ali.
Então, na verdade, eu penso que trouxe progresso, sim, nós temos muita coisa que nós adquirimos nesse processo.
Mas nós tivemos muitas, muitas perdas, né? E hoje, assim, quando nós falamos, nós dizemos e tal, não é ser contra o progresso, mas é um progresso que respeite muita coisa.
Porque nós vemos assim que, em nome do progresso, muita destruição foi feita também.
E nós temos os dois lados: o lado do progresso, que trouxe vantagens e o lado do progresso, que trouxe desvantagens pra nós.
P/1- Como está, hoje, a relação - como você vê, em geral - das empresas com essas comunidades?
R- Eu penso assim, que as empresas têm ajudado por meio de projetos, né? Têm conseguido dar um suporte pra muitas comunidades, né? Volta e meia a gente vê alguma ação, alguma.
.
.
e em alguns momentos também acontece caso, quando acontecem essas situações de desastres ambientais, existe toda uma luta da comunidade, tentando tipo assim.
.
.
na verdade, existe muita coisa no meio disso.
Existem aquelas pessoas que lutam pelo direito: “Porque eu moro aqui, porque eu fui prejudicado na pescaria, eu fui prejudicado num serviço que eu tenho, numa venda, eu fui prejudicado no turismo, porque as pessoas vinham pra cá nas férias, agora já não vêm mais”.
E eu vejo muito isso, das pessoas lutarem pra sobreviver e tentar conseguir.
.
.
a gente vê também nesse meio, pessoas espertas que tentam se aproveitar da situação, pra se beneficiar, né? E tem acontecido muita coisa.
E eu penso assim que o diálogo sempre se tenta, eu acho, da comunidade tentando dialogar com as empresas, as empresas também, muitas das vezes, se colocam à disposição pra dialogar.
Mas, às vezes, a empresa ou então o governo nega o fato, diz que não, não aconteceu.
Ou que, se aconteceu, não é tão grave quanto alguém está dizendo que foi, um instituto, alguma coisa que fez um exame na água, em alguma coisa disso.
E, às vezes, a gente observa assim, as empresas ou o próprio governo negarem isso e dizerem: “Não.
Não é tão prejudicial.
Não foi bem desse jeito.
Não é muito bem dessa forma”.
E, no final, eu observo assim, que as empresas, inclusive, pagam multas, muita coisa assim e nem sempre, hoje eu penso que já se reverte um pouco mais em prol da comunidade.
Mas historicamente muita coisa que acontecia, por exemplo, a indenização por uma destruição ambiental que ocorreu e essa verba não ser revertida em favor da comunidade prejudicada, entendeu? Então, muitas das vezes aconteceu isso.
Eu penso que hoje já se tenta negociar, a empresa com a comunidade, ver de que maneira.
.
.
e nós temos visto, assim, projetos que tem acontecido, tentando ajudar a comunidade, pra reverter essa situação.
Muita coisa já tem sido feita atualmente.
Mas historicamente não.
.
.
P/1- Pode continuar falando.
Você estava falando da relação, das multas que não se revertiam tanto assim, né?
R- Sim.
Exatamente.
Então, eu penso que, no passado, isso foi muito mais complicado.
Porque, tipo assim: acontece um acidente ambiental e as empresas são multadas ou eram multadas e essas multas não se revertiam em bem pra comunidade.
Eu não posso dizer assim onde que ficavam essas verbas, essa coisa toda.
Mas eu digo assim, que alguém poluía, alguém ficava com o dinheiro e nós ficávamos com o desastre, com o prejuízo todo dessa situação.
Então, isso aconteceu muito.
Eu penso que hoje se tenta já negociar essas coisas, pra que a comunidade tenha acesso a alguma coisa, pra que a pessoa possa ter uma produção, pra que a pessoa possa, no mínimo, repor aquilo que perdeu.
E hoje nós vemos, assim, muitos projetos sendo feitos no município, por conta dessa situação, entendeu? E pessoas recebendo importância, o pessoal está fazendo investimento em alguma coisa.
Então, eu penso assim, que se conversa mais hoje, entendeu, do que antes.
Eu penso que antes a gente tinha mais dificuldade nesse diálogo entre empresa, comunidade e estado, principalmente.
É o que eu vejo.
Mais ou menos dessa forma.
P/1- E como é que você vê a cidade daqui uns dez, vinte anos?
R- Olha, eu penso assim.
.
.
o que eu penso, na verdade? É que as pessoas sonham com mais empresas aqui em Barcarena, pra ser aumentada a quantidade de imposto, de emprego.
E eu digo: “Não.
Basta”, entendeu? O que eu poderia dizer é basta.
Porque eu vou ser muito sincero com você, é assim: você oferece cinco mil empregos, aqui nós temos quarenta mil desempregados esperando esses cinco mil empregos.
Quer dizer, de quarenta mil, cinco empregam, fica ainda trinta e cinco mil de desempregados.
Mas se você oferece cinco mil empregos aqui em Barcarena, vem vinte mil pessoas de outra região atrás desses cinco mil empregos, entendeu? Aí chega aqui, não arruma.
Aí se junta a quem já está desempregado aqui.
Aí, ao invés do emprego ser uma solução, não é uma solução, piora mais a situação.
Porque vem muita gente de fora.
E aqui já tem muita gente desempregada.
Então, emprega uma quantidade, sobra quinze mil.
Esses quinze mil se juntam, aí ocorre o quê? Muitas invasões.
Porque as pessoas, muitas dessas pessoas que vêm, não têm condições de retornar pro seu lugar de origem.
E ele precisa morar e isso aumenta as invasões.
Isso aumenta o número de alunos nas escolas.
Isso aumenta gente pra ser atendida nos hospitais, entendeu? Então, se não parar, eu penso que a quantidade de empresas que tem em Barcarena já é suficiente pro que se propõe pra esse município.
E, se for pra desenvolver o município, a quantidade de empresa que tem aqui já seria suficiente, entendeu? Eu penso que, quanto mais empresas virem pra essa região, vai aumentar o número de todas as situações que eu estava te falando, de desempregados.
Ao invés de melhorar a questão do emprego, aumenta a questão de desempregados, aumentam as invasões, aumentam as pessoas pra serem atendidas nos hospitais, aumenta as pessoas pra estudar.
Então, na verdade, quanto mais aumenta o povo, aumenta mais os problemas.
Na década de setenta nós tínhamos, esse município, tinha trinta mil habitantes.
Nem tinha, tinha menos de trinta mil, na década de setenta, antes das empresas.
Hoje nós temos cento e vinte mil habitantes.
É uma explosão demográfica.
E isso trouxe consequências pro nosso município.
P/1- Um terço desempregado?
R- Exatamente.
Então, eu penso que, se nós não frearmos isso, nós pensarmos no progresso e no futuro dos grandes empreendimentos aqui - é o meu pensamento como um morador lá do Curuperé - é que nós vamos, daqui com dez anos, vinte anos, a situação não estará melhor.
A situação será pior.
Já chega o que tem.
Bora cuidar do que nós temos aqui, com o que nós temos.
E ver o que dá pra nós fazermos pra ajudar essas pessoas da comunidade.
E ver se nós fazemos algo de bom pra nossa comunidade.
P/1- Eu tinha esquecido de uma pergunta: como é que foi essa história de surgir um Festival do Abacaxi aqui?
R- O Festival do Abacaxi foi o seguinte: na década de setenta, existia o movimento no Brasil chamado Mobral, né, que era pra alfabetização de adultos.
E o Mobral era, além de ter a situação de alfabetização de adultos, tinha assim uma certa preocupação em que as pessoas pudessem ter um modo de vida melhor em termos financeiros, coisas desse tipo.
Aqui em Barcarena, na época, porque você pode dizer assim: “Não tem abacaxi.
Tem pouco abacaxi em Barcarena.
Por que o Festival do Abacaxi?”.
Então, na época, existiam sessenta produtores de abacaxi em Barcarena.
Eles produziam o abacaxi e não tinham como escoar esse produto, eles não tinham como vender, tinha muito abacaxi, esse abacaxi se estragava.
Então, existia um diretor do Mobral aqui, chamado senhor Adílson.
E ele coordenava o Mobral aqui no município de Barcarena.
E ele foi quem teve a ideia de criar um festival, pra que essas pessoas pudessem vender esse produto, por meio de um festival.
Tipo assim, a gente fazendo um festival de alguns dias, aí vem pessoas pra dançar, vem pessoas pra participar desse movimento.
E essas pessoas vão comprar o produto e outras pessoas de outros municípios vão ter conhecimento.
Aí, quer dizer, vai ter mais facilidade pra que nós possamos vender o produto desses sessenta produtores de abacaxi.
E assim foi criado o Festival do Abacaxi, não pra fazer show, não foi nessa intenção, que tivesse alguma música, alguma coisa, mas a intenção era que levasse esses abacaxis, pra que nós pudéssemos fazer um monte de alimento com abacaxi, guloseima, tanta coisa do abacaxi, pra ser vendido.
Então, vendendo aqui, também que alguém saiba: Barcarena tem abacaxi.
Então nós possamos comprar, né? E foi feito esse movimento, o primeiro Festival do Abacaxi, por conta do Mobral, na verdade, o diretor do Mobral, pro escoamento desse produto.
E se tinha o abacaxi, vai produzindo, mas depois parece que o movimento não conseguiu alavancar a venda dessa quantidade de abacaxi e esses produtores foram diminuindo, até chegar num ponto de o Festival do Abacaxi subsistir pelos grandes shows (riso) de grandes fenômenos da música no Brasil.
Essa coisa que tem sustentado o Festival do Abacaxi, né? Menos o abacaxi.
O abacaxi foi deixado de lado, né? Eu não posso dizer totalmente porque hoje, na verdade, em Barcarena nós temos produtores de abacaxi, que produzem grandes quantidades de abacaxi.
Mas hoje, o festival não é muito mais por causa.
.
.
tipo assim, você querer saber assim: “Eu quero comprar abacaxi em Barcarena.
Quero comprar quatro toneladas de abacaxi”, você tem como comprar.
Em Barcarena sim, tem abacaxi.
Mas o movimento, o festival não existe por causa desses quatro mil, desses cinco mil abacaxis.
Ele existe mais hoje por causa, realmente, do movimento cultural.
Não apenas dos shows, mas muita coisa da cultura de Barcarena é divulgada no festival, né? Ele poderia ser um festival cultural, menos assim um Festival do Abacaxi, na verdade, nesse sentido.
P/1- Professor, como é que foi contar um pouco da sua história, hoje, pra gente?
R- Eu penso assim que é uma oportunidade de poder compartilhar com muitas pessoas essa história.
Eu penso que o que foi dito aqui vai ajudar no entendimento de muita coisa do município de Barcarena.
E eu me sinto assim, feliz por saber assim, que eu estou vindo, na verdade, pra contar essa história, eu não diria nem assim como um historiador, alguma coisa, mas como.
.
.
eu sei que eu fui convidado como morador do Curuperé, da Vila do Conde.
E saber assim que o Museu está me dando essa oportunidade, de um caboclo lá do Curuperé poder contar um pouco da trajetória de vida, não somente minha, mas do meu povo.
Porque nas minhas falas, muitas das vezes, apesar de eu falar de mim, mas dizer assim que a minha luta, a minha fala, representa toda fala de um povo, né, que é o povo Mortigura, é o povo da Vila do Conde, é o povo do Curuperé, é o povo da Montanha.
Então, eu me sinto assim honrado como um morador dessa localidade, uma pessoa que nasceu, cresceu, se criou ali, sempre viveu ali, moro lá.
E saber assim que a voz do meu povo que está sendo trazida até aqui.
Então, eu me sinto honrado por representar um povo.
E ampliando mais assim, dizer assim, representar o povo de Barcarena, aquelas pessoas simples, pessoas humildes, pessoas hospitaleiras, né, pessoas sábias, que nós temos muito isso aqui no município de Barcarena.
E dizer assim que eu estou muito feliz de estar aqui, né, representando um pouco do meu povo lá da Vila do Conde.
E espero, assim, com estas palavras, que eles sintam, assim, orgulho, em dizer assim que está sendo representado por mim, né? E também lhe dizer assim que as pessoas em Barcarena possam aprender, ou até em outros lugares do Brasil, um pouco mais sobre a nossa história, a partir desses momentos que eu passei aqui dando essa entrevista, né? Principalmente isso, os dois pontos: que eu possa representar o meu povo, estou feliz por isso; e a outra é que eu possa ajudar na ampliação, na melhoria do conhecimento das pessoas, né? E dizer, assim, que eu não sou o dono do conhecimento, o detentor do conhecimento.
Eu sou apenas um, uma das pessoas que pode estar contribuindo com a ampliação do conhecimento de todo mundo.
Eu penso que cada pessoa que vem aqui dar entrevista, vai colaborar um pouco.
Então, eu fico feliz, assim, de ser uma das pessoas que veio pra ajudar nessa ampliação do conhecimento.
E que as pessoas possam se beneficiar de tudo isso que está sendo feito aqui, tá? Estou muito feliz por estar aqui.
P/1- Obrigado, professor.
R- Por nada.
Eu que agradeço.
P/1- Obrigado, foi ótimo!
R- Agradeço pela oportunidade.
Recolher