Entrevista de Antônio Carlos Rodrigues da Silva
Transcrita: Mônica Alves
(0:00) P1 - Para começar, eu queria que você pudesse dizer seu nome, onde você nasceu e quando.
R – Bem, meu nome é Antônio Carlos Rodrigues da Silva, eu nasci no hospital dos Servidores que fica logo ali na frente e ...Continuar leitura
Entrevista de Antônio Carlos Rodrigues da Silva
Transcrita: Mônica Alves
(0:00) P1 - Para começar, eu queria que você pudesse dizer seu nome, onde você nasceu e quando.
R – Bem, meu nome é Antônio Carlos Rodrigues da Silva, eu nasci no hospital dos Servidores que fica logo ali na frente e eu nasci em 23 de junho de 1955. Hoje, 67 anos.
(0:28) P1 – E o nome dos seus pais?
R – Meu pai era José Cândido da Silva, que era estivador. E minha mãe, Ivete Rodrigues da Silva, que era uma costureira. Os dois já falecidos.
(0:39) P1- E você sempre morou aqui por perto?
R – Eu nasci aqui e fui criado lá no Estácio, fui criado no morro de São Carlos.
Eu já não moro no morro de São Carlos já tem 48 anos. Depois que eu descobri que eu era adulto eu botei a perna no mundo, igual ao Gonzaguinha, e nunca mais voltei. Tenho sobrinhos, afilhados, de vez em quando vou lá no morro visitar as pessoas, amigos. A maioria dos meus amigos que foram criados junto comigo, todos já faleceram, e só sobrou muito poucas pessoas.
(1: 28) P1 – Seus pais trabalhavam com quê?
R – Meu pai era estivador, trabalhava na Escavajima, aqui no porto, e minha mãe era costureira, uma costureira inclusive que fazia ternos. Eu tenho uma irmã que é costureira e faz terno também, que é meio raro porque mulher em geral não faz terno, é coisa de alfaiate.
(2:00) P1 – Quais eram os costumes da sua família quando você cresceu?
R - Olha, eu quando nasci fui morar lá no São Carlos e vinha muito ao médico, então eu vinha ao médico aqui no Hospital dos Servidores e na época ainda era bonde ainda, a gente vinha de bonde. Meu pai era locutor de uma escola de samba chamada Cada ano ser melhor, onde se funde com a Unidos de São Carlos, que dá origem hoje à Estácio de Sá. E a minha mãe, junto com minha madrinha, eu tinha uma família muito grande e todo mundo era envolvido com escola de samba e minha mãe costurava as fantasias e minha madrinha também. Fazia fantasia do Mestre Sala e Porta Bandeira e família toda trabalhava com carnaval. Eu, depois de adulto, trabalhei com carnaval basicamente acho que uns 22 anos. É, 22 anos eu trabalhei com carnaval e agora eu trabalho com cultura. Eu tinha um cine clube em 1976 lá no morro de São Carlos. De 76 até 79, 80 o cine clube se chamava Rio Zona Norte que foi inaugurado por Nelson Pereira dos Santos e Grande Otelo e a partir daí eu chego até o Centro Cultural José Bonifácio, porque eu trabalhei com um jornal chamado Cine Imaginário que era da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro, que na época aqui tinha o Amir Haddad que tinha o Tá na Rua, tinha os Filhos de Gandhi que era aqui também e tinha um outro grupo Águas de Oxalá, agora esqueço o nome do presidente. Tinham vários grupos que tinham assento no Centro Cultural José Bonifácio. Então, minha trajetória e minha família está toda envolvida na verdade com escola de samba
(4:20) P1 – Você trabalhou em que área do carnaval?
R - Eu sempre trabalhei na área do barracão, sempre trabalhei com arte, ou ferragem, ou madeira, ou empastelação, pintura de esculturas. Você vê, cheguei até a ser até carnavalesco por 24 horas de uma escola de samba chamada Império Marangá, que não existe mais, que era lá em Jacarepaguá que desfilava na Intendente Magalhães. Antes, na verdade todo mundo desfilava aqui embaixo, depois é que vai lá pra cima. E fui carnavalesco por 24 horas, porque o carnavalesco abandonou e alguém tinha que assumir e eu peguei a tarefa. Eu não trabalho mais com carnaval hoje porque eu não tenho paciência, há uns 10 anos que não trabalho mais, perdi a paciência porque é um trabalho muito pesado, um trabalho 24 horas, você trabalha 30 dias direto, não tem folga. Então, depois de 22 anos eu parei e aí venho pra zona portuária, por exemplo, quando eu era membro do COMDEDINE, Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro, eu sou ativista do Movimento Negro desde 76, e tinha esse projeto que era o Prêmio de Pesquisa Escolar com temas afro-brasileiros nas escolas públicas, isso na década de 80. E me convidaram em 98 pra vir em uma reunião aqui na Descoberta do Cemitério dos Pretos Novos
e a partir daí, na terceira reunião eu trouxe uma minuta do estatuto do Instituto Pretos Novos, porque estavam discutindo o que que seria, tal. Porque a prefeitura estava ameaçando desapropriar a casa dela devido a descoberta do sítio arqueológico e a alternativa que a gente tem pra gente quebrar isso é montar uma ONG.
E aí eles tinham uma dúvida muito grande com essa história de ONG, porque tinha uma desconfiança de ONG muito grande.
E aí a gente só conseguiu inaugurar mesmo o Instituto Pretos Novos em 2005. E aí, de 2005 até 2019 eu trabalhei, é de 98 até 2019 eu trabalhei direto com o Instituto Pretos Novos. E eu ainda trabalhava com carnaval ainda, que eu alternava, tal. Quando as coisas pegavam eu ficava uma semana sem aparecer, porque estava direto com o carnaval. Essa é a trajetória que eu tenho aqui na zona portuária. E essa questão do passeio, quando eu fiz essa pesquisa sobre o Moinho Fluminense, foram duas grandes descobertas. Na Revolta da Armada, que eu acho que foi em 1898 o Rui Barbosa se escondeu dentro do Moinho, não sei se ele era Ministro da Justiça e a Revolta da Armada era uma revolta do exército e aí ele veio se esconder dentro do Moinho Fluminense. E isso me fez procurar mais coisas, porque eu fiz uma pesquisa já de materiais que eu já vinha fazendo há alguns anos, porque essa perspectiva de vir atrás das informações está relacionado com meu pai. Quando meu pai era locutor da escola de samba Cada Ano Sai Melhor, e ele faleceu e aí eu falei: Quem é meu pai? Estivador e tal. E aí saí pesquisando sobre ele, fiz entrevista com os amigos e todo mundo dizia que, parece que ele também foi deputado em 1968 ou 69, pela UDN. Tanto que quando falavam da UDN lá em casa minha mãe ficava p da vida, porque parece que o Rubens Medina, pai, tinha enganado ele. E ela odiava falar em UDN. E eu fui pesquisar mais e acabei nessa história de me envolver com cultura afro brasileira e fui atrás. A gente ia
escrever um projeto, eu e um grupo de pessoas, chamado As mãos Afro Brasileiras, que era descobrir o que que o negro tinha feito no município do Rio de Janeiro. Como a gente só tinha acesso ao município, através da prefeitura e aí a gente foi, e aí eu fiz esse levantamento dessa trajetória do Cais do Valongo, a gente já fazia passeio no Cais do Valongo antes dele ser escavado, que aí tem o obelisco lá, que o Pereira Passos colocou em 1906, quem aterra o Cais do Valongo é o Pereira Passos. E aí fui pesquisando, pesquisando e acabamos descobrindo que na verdade, porque lá no Obelisco está escrito: “Aqui Cais da Imperatriz e Cais do Valongo”, só que no Cais do Valongo, não se conta a história do Cais do Valongo, só conta a história da imperatriz que era a Teresa Cristina que veio a casar com Dom Pedro II em 1843, então a partir daí falei: “Tem mais coisas”. E aí que a gente descobre que era desembarque de escravos, descobre que o mercado de escravos é na Rua Caberiano, tanto que o Cláudio Norato que é um dos pesquisadores hoje da região, conseguiu descobrir 98 casas onde foram esses mercados, quer dizer, era um número maior, mas ele só consegue o registro dessas 98 casas. Como a partir de 1900 os endereços mudaram todos, nome de rua. Os endereços e a numeração, então quebrou tudo isso, então você hoje não tem uma identificação, que a ideia da época do Pereira Passos, o governo tinha em mente que a escravidão era uma grande vergonha para o Brasil e aí o Rio de Janeiro, capital, o que que eles fizeram? “Vamos apagar a memória”. Por exemplo, o morro da Providência vinha até aqui. A Rua do Livramento não existia, e é a partir de 1900 que eles abrem a Rua do Livramento. Então, apagou-se tudo. Tanto que essas casas você vê a numeração, ali é 1909 ou 1908?
(11:58) P1 - 1908.
R – E aquela?
(12:00) P1 – Aquela ali acho que é 1919 ou 1909. É 1919, 1918.
R - E aí muda tudo, tanto que a Rua Pedro Ernesto chamava Rua do Cemitério, hoje é Rua Pedro Ernesto. Então, os caras apagaram a memória, então você não tem hoje, por exemplo a referência que se tem, por isso o Cais do Valongo é patrimônio da humanidade por causa da referência. Porque ali você não tem como contestar, ali tá aí a prova física, mas o resto foi tudo apagado. A forca que tinha na Praça Mauá, uma série de outras referências do mercado escravo, foi tudo remodelado, os caras construíram casas novas, mudou o nome da rua, a nova numeração. Tudo isso apagou a memória mesmo. Hoje, por exemplo, o Circuito de Herança Africana é contar a história do que as pessoas leem, porque muita gente diz assim: “Como, cadê as referências?”. Não tem, os caras apagaram a memória, não tem como. A única prova é o Cias do Valengo e o Cemitério dos Pretos Novos que é a maior prova da existência. Só lá no Cemitério dos Pretos Novos, por exemplo, tem 50.000 corpos enterrados de crianças de 5 a 21 anos de idade. E hoje a arqueologia prova isso. Por exemplo, lá na Catedral do Rio de Janeiro tem o livro de óbito, que é a prova da existência do Cemitério dos Pretos Novos, com 50.000 nomes. E a idade ainda e na época os caras inventavam os nomes, por exemplo, o meu nome é inventado, o teu nome é inventado. Porque os africanos não se chamavam Antônio Carlos Rodrigues, nem José, nem Maria, nem João. Então, eles apagaram a memória mesmo e um grande contribuidor disto é a Igreja Católica, que administrava o Cemitério, ou melhor, quem administra o Cemitério até hoje é a Igreja Católica. Então, tanto que eles não permitem que você nem veja o livro, ele não está aberto ao público. Exatamente porque é a grande prova que a Igreja Católica, que ganhava por isso, porque os donos dos escravos mortos tinham que pagar o enterramento. E na verdade não era um cemitério como a gente conhece hoje. Hoje a gente conhece como cemitério entre muros, era na verdade um local de desova. Os caras jogavam, tanto que tem relatos por exemplo, de viajantes internacionais que viram o Cemitério dos Pretos Novos na época, 1800, que o cemitério é de 1776, acho que funcionou até 1831, e relatam que os corpos ficavam à flor da terra. Tanto que um pesquisador escreveu um livro À Flor da Terra, fez a pesquisa e colocou o título, porque você tem lugares lá no Cemitério dos Pretos Novos que você tem 4 centímetros que você encontra uma ossada e tem lugar que você tem que furar 1 metro, 1 metro e meio. Então dá para perceber bem que os corpos estão um em cima do outro. Tanto que você tem a praia da Harmonia e a praia da Gamboa, quando chovia muito, quando dava essas grandes chuvas no Rio, a água da Gamboa jogava água lá na Praia da Harmonia pela Rua do Cemitério. Se você observar a parte mais alta e a parte mais baixa, jogava água lá e isso tudo é Baía de Guanabara, porque na verdade você tem um processo de aterramento a partir do Rodrigues Alves, Ferreira Passos contribuiu pra caramba nesse aterramento também. Tanto que os viajantes diziam que os corpos boiavam na rua. Tanto que na abertura da obra do VLT ficou parado parece que 2 meses ou 3 meses exatamente para tirar as ossadas, porque você tinha uma série de ossadas na rua. Tanto que as casas, me parece que são de 1826, não estou bem certo disso, a construção desse quarteirão, onde está em cima do cemitério, construíram um monte da casa com uma puta estrutura, exatamente pra você não descobrir. Eu acredito que todo mundo que fez uma reforma nessas casas, entre Leôncio de Albuquerque, Pedro Ernesto e Rua do Propósito, deve ter encontrado essas ossadas. Só que tem um, porém, nenhum morador quer saber que mora em cima de um cemitério, ainda mais de um cemitério de escravos. Por exemplo, o número de visitantes e moradores daqui, da periferia aqui é o mínimo. Nenhum morador daqui vai lá no cemitério. Se forem 5 é muito, acho que já tem 22 ou 23 anos a descoberta, se a gente teve 10 visitantes da redondeza aqui, foi muito, porque as pessoas não vão, entendeu? De cemitério todo mundo tem medo. Bem, acho que eu falei demais.
(18:20) P1 – Eu tenho uma pergunta, você sabe o significado do seu nome Antônio?
R - Olha, a minha família, meu pai era mineiro, a minha mãe é de Natividade Carangola. Meu pai veio com a minha avó para o Rio, porque as terras foram doadas para eles pelos senhores, eu acredito, da minha vó. E eles foram expulsos pela igreja de Minas Gerais, então eles vieram para o Rio. A minha mãe, eu lembro bem, que a minha vó dizia que lá em Natividade Carangola era plantação de cana e era também área de escravidão também. Então, essa coisa do Antônio Carlos Rodrigues eu acredito que tenha a ver com o senhor da minha família. Por parte do meu avô e por parte da minha avó e parte da família da minha mãe, porque muito provavelmente, hoje tem provas aí que mostram que a maioria dos nomes dos negros estão relacionadas aos senhores dos seus avós e tataravós. Então eu não vejo significado no nome. Por exemplo, minha filha nasceu em 1978 e eu queria registrar o nome dela como Mabel Angola e o cartório não permitiu na época. Hoje você pode botar qualquer nome que você quiser por exemplo, o meu irmão tem uma filha que se chama Negrita, conseguiu registrar lá na Bahia. Então, eu não consegui esse registro, só pude botar Mabel só. Não pude colocar Mabel Angola. E outra, a mãe dela na época era casada e era separada, mas não era divorciada. Então, nós só conseguimos colocar o nome da mãe dela no registro há 10 anos atrás. Que nem o nome da mãe tinha. Falei: “Pô, como é que o registro de uma filha ou de um filho não tem o nome da mãe dela, ela nasceu de quem? Nasceu do pai?”. Ela ficou até os 20 e poucos anos, 25, 26 anos sem o nome da mãe no registro. E todo mundo dizia: “Pô, isso aqui é um absurdo”. Mas o cartório não permitia porque ela era casada e não podia ter filho fora do casamento. E aí aconteceu mais, que é uma coisa que me deixou mais revoltado, tal. Ela que conseguiu me controlar. Aí eu falei: “Vai no Ministério Público e ela conseguiu depois de 25 anos ir no Ministério Público. O Ministério me mandou uma carta perguntando pra mim se eu dava autorização de colocar o nome da mãe dela no registro. Aí eu falei: “Porra, agora é sacanagem, eu vou quebrar o pau nessa história”. E ela: “Não pai, deixa isso pra lá, vamos resolver isso, que eu queria resolver, porque eu casei, ter um filho, tal. E eu queria resolver, não quero criar briga”. Eu falei: “Pô, mas se a gente não brigar, vai acontecer com todas as outras pessoas. Como o Ministério Público me pede autorização pra botar o nome da sua mãe, como?
E aí tive que fazer uma carta, autorizando. E eu queria fazer a carta questionando isso, como que o Ministério Público me manda um pedido de autorização para botar o nome da mãe dela, se é a mãe dela. Quer dizer, já tive um problema no cartório em 78, agora depois desse modernismo todo, uma nova constituição, não é permitido. Tem que ter a autorização do pai para botar o nome da mãe? É loucura né? Se tivesse que pedir autorização, teria que pedir autorização a ela, não a mim, que sou o pai. Ela nasceu de quem? Muito louco.
(22:39) P1 – Você tem irmãos?
R – Eu tenho uma irmã e um irmão. Ou melhor, eu tenho uma irmã por parte de mãe e um irmão por parte de pai.
(22:49) P1 – Qual o nome?
R – A minha irmã é Adélia Regina Rodrigues da Silva, nasceu no dia nacional do samba, atualmente. Na verdade, não existe o dia nacional do samba, existe o dia estadual do samba, e todo mundo diz que é o dia nacional. E meu irmão que se chama Marcos Cândido, porque o meu pai era José Cândido da Silva. Então só tem um nome, porque tinha aquela história que o estivador tem duas famílias. Eu sempre digo que não conheço nenhum homem que só tenha uma mulher, né. Até porque o histórico machista do Brasil, tal. Até porque a nossa cultura é toda europeizada, a nossa cidade é europeia. Olha aí, as casas todas portuguesas, inglesas, francesas. As construções brasileiras são as favelas do Rio. Até os cortiços, né, você tem cortiços na Alemanha, na França, na Inglaterra, no mundo inteiro você tem cortiço e eles eram todos copiados da França, da Alemanha. Porque nem o cortiço era brasileiro. É claro que na Alemanha o cortiço é uma coisa linda, na Inglaterra também, na França também. O nosso também era muito bonito, só que não tinha tratamento de esgoto, não era uma questão urbanística. O pessoal pagava aluguel, mas o tratamento era, banheiro coletivo, cozinha coletiva.
(24:38) P1 – Você sabe a origem da sua família, eles sempre foram daqui mesmo do Rio?
R - Ô rapaz, é complicado, porque é o seguinte, historicamente você tem aí 8 nações que mais vieram para o Brasil. Então, como que eles faziam, eles faziam o que no período da escravidão? Se fosse uma família de 4 pessoas eles separavam e cada um ia para um lugar. Para essas pessoas não ficarem juntas. Então é muito difícil, por exemplo, só se a gente fizer um DNA. Os Estados Unidos conseguiu fazer um DNA para os americanos com a África. Hoje a gente ainda não tem essa tecnologia, pra fazer um DNA aqui leva 3 meses pra você ter o resultado. Lá os caras tem o resultado quase de imediato. Apesar de demorar também, mas é quase de imediato. Aqui a gente ainda não conseguiu fazer isso. Claro que tem alguma discussão nesse sentido, mas já é uma questão mais governamental. Você vê que o IBGE classifica o negro, o mulato, marrom bombom, o escurinho. Você tem uma série de classificações. Você não tem o preto, o branco, o índio. Todo mundo diz: “Mas tem o amarelo”. Eu não conheço ninguém amarelo. E eu ainda entro com uma outra discussão, que eu falo, até o século 14 não existia o branco, eram todos albinos, conhecidos como albinos. Depois do século 14, lá pelo século 16, 17, 18 é que se tem as primeiras nomenclaturas de branco. E se apaga a história de albino. Antes todo mundo era albino, não era branco. A história aqui, ela não é contada, os caras passam assim totalmente salteada, contada ao modo do vitorioso. Quem ganha é que conta a história. Por isso essa briga toda, todo mundo diz que a esquerda é que gosta de briga e quando a esquerda perdeu não houve nenhuma confusão, não fizeram barreira nenhuma. E a direita quando perde é a chamada democracia, entre aspas.
(27:39) P1 – Queria voltar você falou no começo aqui do IPN, que vocês de alguma maneira se estruturam, enquanto uma ONG em um movimento um pouco de proteção da Casa contra o Estado e você falou agora da história sendo contada pelos vitoriosos. Eu queria entender um pouco, como que esse movimento, de alguma maneira de resistência a essa apropriação do Estado é também uma maneira de contar a história, não deixar que o outro conte.
R – Exatamente, o caso por exemplo do IPN, por exemplo o IPN, a Mercedes comprou a casa em 1990 e em 96 ela foi fazer uma reforma e aí começou a surgir, e aí a partir dessa reforma por exemplo, ela teve que ficar, o IFIM interditou a casa e ela teve que ficar morando no escritório, que ela tem uma empresa de dedetização, aqui na Rua da Gamboa e ela teve que ficar morando no escritório por 2 anos. Ela tem 3 filhas, marido e teve que ficar morando lá. E aí, só em 98 que essa história começa, “Pô, vou ficar morando num escritório, com uma casa, tal”. E aí ela começou a recorrer a uma série de pessoas. E aí ela vem no Centro Cultural José Bonifácio em 98, na época era o Cobrinha que era o diretor e ele começou a acionar o movimento negro como um todo. E aí a gente começou a fazer algumas reuniões periódicas exatamente pra saber como é que...E aí em uma dessas reuniões, que eu fazia parte de um projeto chamado As mãos Afro Brasileiras e me chamaram para a reunião. E na terceira reunião eu cheguei com uma minuta do estatuto e disse: “Ó, monta uma ONG, uma associação cultural”. E aí a gente só conseguiu fazer esse registro em cartório em 2005. Mas foi legal porque teve uma abertura de discussão muito boa. Todo mundo, na época, Zózimo estava vivo, inclusive o Zózimo chegou a fazer até um filme sobre. Antes as coisas aconteciam todas na casa da Mercedes, os passeios. E aí naqueles dois números novos agora onde está instalado o instituto eram duas gráficas que estavam abandonadas há 20 anos. Em 2005, falei: “Pô, está abandonado aqui, vamos entrar”. Que era parede assim ó, junta. Falei: “Pô, vamos furar aqui um buraco e a gente entra aqui”. Em 2005 a gente entrou, invadimos e tiramos um monte de bagulho, dois caminhões de bagulho que tinha lá dentro e aí começamos a fazer uma série de atividades para arrecadar dinheiro. Botamos luz, água, verificação de banheiro, tal. E aí começou...é aqui mesmo e o Zola apareceu 6 anos depois, já um senhor e tal. Esse senhor, inclusive, foi um cara Alaor, não sei o sobrenome dele, ele escreveu um livro, inclusive sobre os termos que eram usados no período da escravidão. E aí, isso combinou porque aí ele, pô. E aí o IPN entrou com uma relação de compra do espaço e ele vendeu assim a preço...tá abandonado, e tal, está infestado a 20 anos, tal. E aí ele vendeu o espaço pro instituto e está lá até hoje, quer dizer hoje tem outra...né. Hoje o Instituto Preto Novo, por exemplo, é o tripé pra você ter um espaço como faz o Valongo, como patrimônio da humanidade tem que ter as relações. Então tem a relação A Pedra do Sal, o Instituto Pretos Novos e Cais do Valongo. Porque na verdade é tombado como patrimônio da humanidade tem vários números da Rua Sacadura Cabral, você tem o jardim suspenso do Valongo é tombado pelo patrimônio da Humanidade. E dentro dessas referências está o espaço do Instituto Pretos Novos e A Pedra do Sal. Mas eu acho que todo mundo só sabe que é patrimônio da humanidade o Cais do Valongo, o resto as pessoas não sabem. Tanto que ninguém cita isso, você vai lá no Jardim Suspenso do Valongo já roubaram tudo, tal. Tem estátuas gregas que tem lá, aquelas estátuas que em 1846 foram colocadas em mármore carrara. E aquela lá é uma cópia em cimento. A de mármore carrara ninguém sabe, ninguém viu. Coisas do Rio de Janeiro.
(32:45) P1 – Eu queria fazer uma relação, como você acredita que o carnaval movimentava não só a cena mesmo da arte em si, mas como as pessoas, ele trazia essas pessoas para dentro do carnaval dentro da produção artística relacionado com o Moinho. Porque o carnaval... qual que é a contribuição dos dois em termos de movimentação de gente?
R - Olha, aqui tem um bloco, não sei se existe ainda, mas sei que ele sai, que é o Coração das Meninas. Que ele foi inaugurado em frente ao Moinho Fluminense, que é aqui do Sindicato do Bloco. A gente tem vários sindicatos aqui, né. Temos o Sindicato da Resistência, que é ali próximo ao quinto batalhão. E tem o Sindicato do Bloco aqui, que é em frente ao Moinho e tem um outro sindicato lá depois da Praça da Harmonia. Eu vejo assim, por exemplo, o Moinho Fluminense, eu acho que aqui ele era a empresa que mais tinha funcionários da região. Tem muitas pessoas aqui que trabalhavam no Moinho Fluminense. O Moinho Fluminense, depois que fechou ele deixou uma tristeza muito grande para as pessoas, tanto que eu falo que esse senhor que mora aí na rua hoje, ele era o embasteiro lá no Moinho Fluminense. E é uma pessoa que conta a história do Moinho Fluminense por dentro, né. Eu acho que essa coisa do carnaval tem essa mobilização desse trabalho operário, que na verdade antes o carnaval era um trabalho operário. Hoje o carnaval é uma arte-indústria. Tanto que você tem até elevador para subir os destaques. Então eu veja por exemplo, eu peguei o Moinho Fluminense funcionando e tinha uma outra coisa muito curiosa no Moinho Fluminense, que a gente naquela época não tinha aquela preocupação de fotografar tudo. Mas aí a Rua Antônio Aiser, que é essa rua que está paralela à linha do VLT, o Moinho Fluminense, a legislação obrigou que eles colocassem alguns filtros porque aquele pó da farinha saia toda pra fora. Então quando dava meia noite, a hora que ficava paralisada a zona portuária tinha um mar de ratos na Rua Antônio Aiser. Se você passasse ali estava meio arriscado dos ratos te sufocarem, que era uma rua de ratos, exatamente porque eles vinham atrás do grão, um mínimo de grão. E aí, depois dessa legislação, que ficou proibido grandes indústrias em centros urbanos, o Moinho Fluminense mudou e ficou o prédio aí com uma perspectiva de ser um centro cultural. Eu lembro que alguns anos atrás saiu até um CD mostrando como é que seria, tal, qual era a perspectiva de se fazer um hotel, um shopping cultural, quer dizer hoje você tem um boato de cada um, cada um fala uma coisa que será o Moinho Fluminense. E me parece que ninguém sabe exatamente o que que é. E aí, o Moinho, eu acho que grande parte do Moinho muitos estivadores trabalhavam lá também e grande parte do Coração das Meninas, que eu acho que foi o primeiro bloco que surge aqui na zona portuária, tem outros também, a metade desses trabalhadores eram do Moinho Fluminense. Eu acho que quem pode melhor contar essa história é o pessoal do bloco, só que isso tem muitos anos e não sei se as pessoas estão vivas ainda. Por exemplo, o avô do meu filho, ele foi presidente do Sindicato da Resistência, que é o primeiro sindicato aqui, que fica ali perto do quinto batalhão. Ele já contava histórias do Moinho Fluminense. Os trabalhadores comiam todas na redondeza aqui. Eu quando trabalhei aqui em 82, a quantidade de gente que tinha aqui, porque aqui na esquina tinha um açougue, lá outra esquina tinha açougue, aviário. Você não tinha um mercado dominante em relação a vender determinados produtos. Por exemplo, eu me lembro que a gente trabalhava com papel carne seca, que é aquele papel que se embrulhava pão antigamente ou se embrulha peixe até hoje, a gente fazia empastelação nas esculturas em isopor no carnaval porque não havia tinta ainda que pudesse pintar o isopor. Se você botasse a tinta ela comia o isopor. Hoje você já tem uma tinta específica pra isso. Então você empastelava aquela escultura em papel carne seca com farinha de trigo. Ninguém comprava cola, ia lá comprava farinha de trigo e fazia a cola, empastelava e você pintava. Você comprava tudo isso aqui na região, então você tinha uma série de produtos que se vendia, você vê, a Rua do Livramento toda era comércio, total. Você tinha uma companhia de cinema perto aqui da Rádio Tupy. Aqui era o centro da cidade era aqui. Você queria comprar parafuso, era aqui. Tudo que você quisesse a nível de produto assim mais específico você encontrava aqui na região. Hoje não tem nada, você vê a maioria do comércio aqui acabou. A Rua do Livramento não tem nada, só tem hoje algumas ocupações e moradias, não tem mais comércio. Fechou basicamente tudo. E aqui na Pedro Ernesto também, que você tinha uma série de comércio também, também foram fechados e antes do VLT, neste período por exemplo, o ponto de ônibus era em frente ao Moinho Fluminense. Todos os ônibus passavam em frente ao Moinho Fluminense, fosse pra Zona Sul, Barra da Tijuca, saíam da rodoviária e passavam aqui. E quem ia pra rodoviária subia pela Rua do Livramento. Então eu acho que o Moinho Fluminense foi um ponto importante a nível comercial. Por exemplo, a Mercedes, que tem uma empresa de dedetização, ela fazia dedetização lá no Moinho Fluminense, tinha que ter um produto específico, que não podia contaminar a farinha, tal. E é um lugar que dá ratos, porque não tem como, ainda mais onde tem farinha. Rato já gosta de grão, menor partícula pra eles é melhor ainda, porque não dá mais trabalho. Por isso que eu estou falando da Rua Antônio Aiser, era uma rua com um mar de ratos. Eu acredito que o Moinho Fluminense e os sindicatos aqui tinham grandes relações, tanto que vou falar do Coração das Meninas, tem outros blocos também que agora eu não lembro o nome deles, mas o Coração das Meninas parece que foi o primeiro a surgir, não sei se é década de 20 ou de 30. Mas é bem antigo e o Moinho Fluminense tem uma grande contribuição disso que era uma relação de estivadores e Moinho Fluminense, tanto que o Moinho Fluminense tinha uma esteira que vinha lá do porto. O pessoal botava as sacas e já saia dentro do moinho. É uma coisa, até hoje quando falo sobre o Moinho Fluminense nos passeios que eu falo dessa esteira todo mundo: “Então, mas como? Será que a gente pode entrar lá?” Agora é outra coisa, teve uma reforma, deve ter sido aterrado, não funciona mais. E todo mundo está esperando o Moinho Fluminense dar o boom ali, que é a perspectiva de todo mundo né. Não só a perspectiva como a nível de trabalho, tem uma preocupação dessa questão de a partir do momento que se instale no Moinho a região fique altamente valorizada. Ela já está valorizada pela questão do VLT e pela questão do Porto Maravilha e aí tem ainda a preocupação desse distanciamento do novo com o antigo que possa vir a afastar mais ainda as pessoas. Você vê aí o caso do teleférico do Morro da Providência foi tirado uma série de pessoas do morro, né, para instalar o suporte para o teleférico e o teleférico acho que não funciona tem quase 6 anos. Não tem ninguém preocupado com o teleférico, não tem ninguém preocupado. Inclusive as pessoas que saíram, por exemplo, uma das meninas, mãe das meninas que saíram do Morro da Previdência, ela trabalhava no Moinho Fluminense, a mãe dela. Como o moinho fechou, houve um processo de modernização, tal, eles mudaram. Não sei se estão em Caxias. E aí, foram mandadas uma série de pessoas embora. E a mãe dessa menina que morava exatamente onde está um dos pilares do teleférico foi morar em Campo Grande. Na primeira chuva que teve lá a água deu até a maçaneta e elas tiveram que mudar de casa, mudar de região, não estão morando em Campo Grande, acho que agora estão em Bangu. A mãe dela acho que até faleceu há pouco tempo, nesse processo de pandemia e ela falava da saudade que ela sentia de trabalhar no Moinho Fluminense, exatamente que ela morava ali e trabalhava aqui. Acho que gastava só de passagem para subir, que naquela época não tinha a perspectiva de ter o teleférico. Por que o teleférico os moradores não pagavam? Quer dizer, ninguém pagava o teleférico, acho que por isso que ele parou mesmo. Se não tem investimento, nem que fosse cobrado um real para você ter recursos para manter funcionários, equipamento, manutenção, etc. É isso.
(44:30) P1 – E como você percebe essas mudanças e esses grandes projetos que se tem para esse território atravessada pela identidade e a história daqui como um todo?
R – Olha, eu vejo assim, eu não percebo que esses novos empreendimentos tenham conhecimento dessa história, entende? Porque eu vejo assim por exemplo, aqui no Santo Cristo estão fazendo vários edifícios para moradores, tal, estão vendendo apartamento na planta e tal, num preço até acessível, mas, como todo mundo comenta aqui, essas edificações não são para moradores daqui. Então as pessoas tem se sentido um pouco meio desvalorizadas por exemplo, o Porto Maravilha construiu uma caixa d’água lá em cima na área de lazer do Parque Machado de Assis lá no Morro do Pinto, ela não funciona até hoje, uma puta caixa d’água, ela deve ser do tamanho do Moinho Fluminense ou maior. Ela não funciona, não tem água e ela também não tem nenhuma tubulação para água para a comunidade. Então, a ideia da construção de caixa d’água na época era abastecer essas empresas que iriam ser construídas aqui, seriam instaladas aqui na zona portuária. Mas eu não vejo assim que essas empresas tenham esse conhecimento histórico, porque você vê propagandas e eles falam do Porto Maravilha, mas não falam da história do lugar, até porque essa história está muito relacionada com a questão da cultura afro brasileira, então acho que ainda tem um afastamento, um distanciamento muito grande.
(46:39) P1 – Eu queria te perguntar, que muita gente, muitas das pessoas com quem a gente conversou também falaram dessa incerteza sobre o que que o moinho vai virar, ninguém sabe mesmo, mas você teria alguma proposta? Das propostas que surgiram, alguma te interessou mais?
R - Olha, eu já ouvi falar que o Moinho Fluminense seria um shopping cultural. Eu acho até que eu tenho esse CD do moinho que mostra o que que seria. É uma animação mostrando que teria hotel, shopping com lojas, comércio e tal. Seria, acho, um comércio varejista. Mas essa história deve ter uns 15 anos ou mais. Então, nunca aconteceu, nunca vi acontecer. Só agora que a gente está vendo que fizeram obras, derrubaram uma série de edificações que tinham lá. Mas ninguém vê mais nada. Já soube também que iriam ser instaladas algumas feiras culturais, feira de artesanato, uma série de feiras que aconteceriam lá também. Também até agora a gente não viu nada, eu pelo menos não vi nada. Eu faço passeios já tem quase 30 anos aqui. E o que todo mundo pergunta é: “O que que vai ser o Moinho Fluminense?”. Eu sempre digo: “Eu não sei”. Porque é muito difícil você falar de boato, porque que cada um conta uma história: “Eu ouvi que vai ser.” “Eu ouvi que vai ser.” Então eu conto a história do Moinho Fluminense, a história do moinho, não falo o que que vai ser hoje porque realmente não tenho...
(48:59) P1 – E o que que você gostaria que fosse?
R - O Moinho Fluminense? Olha, eu aceito qualquer coisa que o moinho queira ser desde o momento em que ele atenda a questão de emprego para a comunidade. Nem que você tenha que treinar as pessoas, capacitar as pessoas para trabalharem lá. Porque o Porto Maravilha criou uma perspectiva dizendo que 50% dos empregos aqui na região seriam para os moradores e a gente não viu isso acontecer. Se teve 20%, 10%, 15% eu acho que foi muito. O MAR quando foi instalado tinha a proposta de atender a comunidade, de ter um emprego para essas pessoas. Isso também, se você for lá no MAR você não tem, o Diego Deus inclusive chegou até a trabalhar lá. O Museu do Amanhã também, então você tem na verdade algumas promessas que não foram cumpridas. Então eu sempre fico imaginando seja o que for o moinho, que seja hotel, que seja shopping cultural, mas que dê emprego para as pessoas aqui. Eu acho que o maior problema nosso aqui hoje, na comunidade, é a falta de trabalho. Trabalho pelo menos digno. Para você ser capacitado, ser treinado para seja lá a tarefa que for, mas que tenha emprego para as pessoas aqui. Primeiro que você não vai precisar pagar a passagem. Se você dá emprego para um cara que mora lá em Campo Grande, certamente você tem que bancar a passagem. Aqui a pessoa já mora aqui, você pode até ir almoçar em casa. Eu sempre fico imaginando que as grandes empresas que se instalam deveriam ter essa preocupação. Até por auto proteção, auto se protegerem. Porque na verdade a realidade o que acontece muito, porque todo grande trabalho aqui a maioria das pessoas é de fora. Se você tiver 3, 4, 5 que estejam trabalhando é muito, quer dizer, é muito entre aspas.
(51:47) P1 – Tem alguma coisa que você lembra da sua infância, algum costume, alguma história que você ouviu?
R – Olha, uma das coisas que eu lembro da minha infância é que eu faço hoje, inclusive, aqui que são os carrinhos de rolimã. Carrinho de rolimã e patinete. Nós fizemos para o MAM, fizemos para o Museu do Amanhã, já fizemos 2 vezes. Para o MAM fizemos 2 vezes. Estou fazendo agora para a Casa Amarela que é lá em cima no Morro da Providência. Tem uma série de outros lugares, por exemplo, São Paulo sempre a gente faz oficina. Que a ideia do carrinho de rolimã é ensinar para os pais a fazer o carrinho de rolimã para ensinar para os filhos. Que é uma coisa tão simples que eu acho que todo mundo sabe fazer. Se você vê, não tem mistério. E era uma coisa que nós fazíamos quando éramos crianças, só que a gente não tinha martelo, o prego era torto, a gente ia lá e desamassava. Muitas vezes a rodinha de rolimã era uma maior do que a outra e pra gente não importava, porque o que a gente queria era brincar. Não tinha telefone. Telefone era só o orelhão na época e a gente tinha televisão, mas a televisão para a gente não tinha a menor importância. O importante mesmo era você poder construir as coisas e a gente fazia muitas coisas. Carrinho de rolimã, nós fazíamos patinete. Uma época a gente trabalhava na feira e nós pegávamos os caixotes, grandes caixotes, botava 4 rodinhas e botava um skate atrás para você não ficar só empurrando, tipo um skate atrás para você impulsionar o carrinho. E a gente fazia entrega na casa das madames com esse carrinho. Porque elas faziam as compras, botavam dentro do carrinho e levavam. Como era tudo asfalto, não tinha nenhum problema você subir ladeira. É uma coisa que ficou gravado na minha memória, porque na verdade a gente construía uma série de coisas. E há uns 20 anos eu vi vídeo sobre o atelier do Heitor dos Prazeres e tem uma filmagem, que é uma filmagem de 1965 e na filmagem, era uma filmagem de 1960. Ele morreu em 1965, um filme de 16 ou 35mm e aparece na calçada as crianças brincando com uns patinetes, que eram os patinetes que nós fazíamos. Ele morava de frente, ele morava Praça Onze de frente para a Pedra Lisa, sabe onde é? Morava de frente para Pedra Lisa, ele morava exatamente onde tem aquele viaduto que vai para o para o Sambódromo. Hoje é a oficina do metrô. Então isso me remeteu, nós fizemos carrinho de rolimã, o festival de inverno foi em 2014 lá em Teresópolis. Então a gente tem uma equipe, a gente tem um coletivo que se chama Coletivo I Love MP, MP é Morro do Pinto. E a gente vem trabalhando com grafismo e trabalhando com os carrinhos de rolimã. Os carrinhos de rolimã a gente faz para os museus e eles dão de presente para as crianças. Na verdade, a gente leva o carrinho semi pronto e lá só coloca o volante e a gente ensina o pai a furar, ou as mães. Que muitas vezes, a maioria das crianças está com as mães nos passeios. É uma das coisas que eu me lembro muito da minha infância. Agora, já chegando na adolescência, eu me lembro bem dos desfiles das escolas de samba, que tinha os blocos na Rio Branco, tinha banda na Rio Branco em cada esquina de um lado e do outro. Da Presidente Vargas até a Cinelândia. Você levava basicamente 4 horas num bloco, que o pessoal ficava pulando nos coretos, ficava pulando na rua e as bandinhas nos coretos da Presidente Vargas até a Cinelândia. Isso é uma coisa que ficou gravado na minha memória também, até porque eu sou filho de escola de samba. Cada ano sai melhor, é uma escola de samba lá do Morro de São Carlos, a gente basicamente morava quase que atrás da quadra. E eu me lembro que onde tocava a bateria tinha umas esteiras que era onde as crianças iam dormir. Eu me pergunto então como conseguia dormir com uma bateria tocando em um lugar fechado, o sono é tremendo, você apaga e claro né, você só não consegue dormir em um processo de guerra, mas fora isso. Então, é uma coisa que ficou registrado na minha cabeça. Com esse processo, a partir dos 18, 19 anos de sair para pesquisar. Pesquisa hoje, você faz pesquisa pela internet, a gente tinha que ir para a biblioteca e muitas vezes você não encontrava uma determinada coisa em uma biblioteca e você tinha que ir em várias bibliotecas para você ir pesquisar. Então essas coisas começam a ativar sua memória para uma série de experiências que você já viveu. Mas o que mais ficou gravado mesmo foi a questão do carrinho de rolimã e os patinetes. Patinete eu ainda não comecei a fazer, vou começar os patinetes também. E aí, já surgiu a ideia aqui do grupo de fazer um carrinho de rolimã para a gente botar na linha do VLT. Tiramos as medidas e vamos ver como é que vai ser. Antes a gente pegava as rodinhas de rolimã nas oficinas mecânicas, hoje não tem mais, era dado, davam para você. Hoje não, hoje uma rodinha de rolimã custa 20 contos, 23 contos, é muito caro. Nós costumamos comprar 100 rodinhas, a gente faz 30 carrinhos, muitas vezes 40, 50. Então, é uma grana. A gente hoje, por exemplo, compra pela internet, porque as lojas que vendem hoje no Rio são muito caras. Muito caro, aí então você tem aquelas promoções, os caras fazem uns lotes de 100, de 200 que a gente compra por um preço mais acessível. Mas é muito caro. E é um brinquedo hoje, que a criança hoje não tem mais. Tanto que as crianças quando veem os carrinhos de rolimã elas ficam enlouquecidas: “Que negócio é esse?” É um negócio muito simples, não tem mistério você fazer um carrinho de rolimã. Então isso está gravado na minha memória, espero poder fazer muito carrinho de rolimã ainda.
(1:00:00) P1 – Você falou que é cria do carnaval e aí eu fiquei aqui curiosa. Qual é a sua escola de coração?
R- Olha, eu como trabalhei com muitas escolas de samba eu...é igual, todo mundo me pergunta: “Qual é o seu time de futebol?” Eu não tenho, porque na minha família não tinha essa paixão por futebol como se tem hoje. Escola de samba, eu trabalhei com Mangueira, Portela, Salgueiro, Estácio, escola de samba pequenininha. Trabalhei com escola de samba de Três Rios, trabalhei com escola de samba de Minas Gerais, trabalhei com várias escolas de samba. Já fiz carro alegórico para várias escolas de samba, inclusive carrinho alegórico para crianças da escola de samba mirim. Hoje, por exemplo, se eu for na avenida ver o desfile de escola de samba eu durmo. Porque eu não tenho paciência mais para isso. Eu sou um cara meio agitado, por exemplo, não consigo ficar parado, tenho que fazer alguma coisa. Então eu prefiro vir pra cá porque aqui eu invento qualquer besteira. E aí, eu gosto da Estácio, em termos, porque eu não gosto da Estácio porque, você sabe da história do Estácio, né?
O Estácio de Sá, Estácio de Sá foi flechado no rosto e o desenho que fizeram, a pintura que fizeram sobre a história do Estácio de Sá, esse quadro está lá na Câmara dos Vereadores no segundo andar, um quadro que deve ter 6 por 9, um quadro enorme. O Estácio de Sá está barbudo, uma barba branca enorme, um cabelo branco também, enorme. Araribóia, pelado só de tanguinha. Araribóia tinha 1,90m de altura. Só de tanguinha e ia visitar o Estácio de Sá, que ele tinha sido flechado na cara, na guerra dos Tamoios com os franceses, da invasão do Rio de Janeiro. E não tem nenhuma pintura do Estácio de Sá com uma flecha na cara. O Estácio de Sá não é um cara legal. Eu sempre fui contra o nome da Estácio. Bom é Unidos de São Carlos, né. Que é de onde são oriundos os seus componentes. Então eu gosto da Estácio de Sá, mas não gosto da Estácio de Sá por causa da história do Estácio de Sá, que é o fundador da cidade do Rio de Janeiro. E aí, esse quadro é igual ao Tiradentes. O Tiradentes morreu careca e os caras botaram o Tiradentes barbudo e cabeludo. Então é a história do vencedor. O vencedor põe o herói dele da forma que ele achar que é interessante. Ainda tem a história dizendo que não se tem certeza de que foi realmente Tiradentes que morreu. Eu acho que é a história mesmo do vencedor.
(1:03:26) P1 – Quais são as coisas mais importantes pra você hoje?
R- Beber, comer e dormir.
(1:03:50) P1 – Você falou da história do vencedor, um dos primeiros lugares onde a gente tem contato com essas histórias é a escola. Quais são suas lembranças de escola? Tem algum professor que marcou, professora?
R – Não. O que me marcou foi uma coleguinha que nós tínhamos medo da escola naquela época. Eu fui para a escola não sei se foi em 60, 65 ou 67. E aí, várias crianças com medo de ir para a escola, todo mundo chorando. Os pais tentando empurrar as crianças pra dentro da escola. E eu vi uma senhora, que essa senhora me deixou também guardado na minha memória uma menina, que para fugir, ela se escondeu dentro do forno do fogão. E a gente foi criado junto, inclusive. E o apelido dessa menina, e eu quero até fazer alguma coisa, trabalho em arte, lembrando-a. Nem sei se ela está viva porque há muitos anos eu não a vejo. E o apelido dela era minhoca. Ela era grande pra caramba, era alta. Digo agora, porque depois que a gente cresceu eu percebi que a minhoca era alta pra caramba. E ela era pretinha, pretinha assim, pretinha da palma da mão. Tinha um ditado naquela época que dizia: O peito do pé do Pedro é preto, que era pra você falar rápido. Então a minhoca, a minhoca ficou guardada na minha cabeça, que é a menina que se escondeu dentro do forno, onde nós estávamos indo à primeira vez para a escola. Ninguém queria entrar, as crianças com medo e tal. Isso me marcou muito. E aí fiquei com a minhoca na cabeça até hoje. Toda vez que eu vou lá no São Carlos, as pessoas não lembram, quer dizer, a maioria das pessoas que conviviam comigo de infância, elas já faleceram. E aí eu não lembro mais delas. Se estiver viva, no dia que eu encontrar eu reconheço. Mas a minhoca me marcou muito com essa história de se esconder dentro do forno da escola. Então aquilo ficou guardado na minha memória. Mas professor, eu não lembro de nenhum professor. Assim, nome, nem a imagem desses professores guardei na minha cabeça. Nenhuma. Realmente, nenhuma mesmo. Eu muitas vezes tento até lembrar o nome de alguns, mas não...ficaram apagados. Aí, toda vez que eu lembro dessa história dessa escola eu lembro da minhoca. Que a minhoca marcou, realmente aquilo eu achei tremendo, marcou mesmo, assim ficou guardado na minha memória. Não como um negócio triste, nem como uma questão humorística, mas aquilo ficou guardado mesmo. Toda vez que me lembro da escola lembro da minhoca se escondendo dentro do forno do fogão, não sei porque. Mas aí a gente cresceu junto, e todo mundo tinha apelido naquela época, e minhoca, pô. Não podia ver e todo mundo: “Ó a minhoca aí, e tal”. E até hoje eu não sei por que esse apelido. Não sei se é porque ela era magrinha e alta. Mas foi bem marcante.
(1:07:40) P1 – Você se formou na escola? Você foi até qual ano?
R - Olha, eu consegui fazer até o segundo grau. Eu até pensei na faculdade, mas naquela época o vestibular era bem diferente do ENEM hoje. E aí foi uma coisa que, como eu tinha que trabalhar, minha filha nasceu em 78. 78,79 já no segundo grau e aí tive que investir na questão do trabalho. E esquecer a faculdade, fiz uma série de cursos. Como eu trabalhava com cine clube, aí fiz curso de fotografia, câmera, cenografia, fui fazer um monte de oficinas que deu esse conhecimento, eu sou carpinteiro e tal. Investi nisso, na verdade não me preocupei muito com essa questão da universidade. Mas consegui terminar o segundo grau e aí me aconteceu o quê? Eu morava, já não morava mais no São Carlos, morava em Santa Teresa e eu tinha uma pasta com os documentos, tinha todos os diplomas e fui, não sei se fui a Copacabana levar alguma coisa ou fazer alguma coisa em Copacabana e deixei a pasta na casa de um amigo na Rua do Resende, quando eu voltei já era tarde, 5 e pouco da tarde então basicamente eu passei o dia inteiro lá, a casa tinha pego fogo. Então sumiu todos os documentos, pegaram fogo. Sumiu tudo. Deu sorte que ele não estava em casa e aí não aconteceu nada com ele. E aí eu comecei a peregrinar atrás dos documentos, tirar carteira de identidade, e tal. Certificado de reservista, CPF. CPF na época era um papelzinho, não tinha, hoje é tudo digital. Os diplomas todos que eu tinha, inclusive dos cursos que eu tinha feito. Eu tinha feito até um curso Dayfix, que era um curso de extensão e tinha o certificado, mas isso dançou tudo. Quando eu fui atrás do certificado da escola, a escola que eu estudei em 78 acabou. E aí transferiram todos os documentos para uma outra escola lá na Tijuca. Eu fui lá e: “Ó não está mais aqui”. Isso foi 20 anos depois. E aí não está, então hoje se eu tiver que fazer prova, eu tenho que fazer uma prova de novo, porque esses documentos, eu só tenho carteira de identidade, título de eleitor e o número do certificado de reservista e carteira de trabalho. Carteira de trabalho eu tive que tirar outra. Todos os documentos, basicamente eu tive que tirar outros. Só não consegui pegar os certificados escolares. Porque a Secretaria da Educação não tem a menor ideia, hoje é tudo digital. Antes era tudo arquivo de papel, você chegava lá e o cara ia procurar: “Que ano foi?”. Agora. Aí dancei nessa história toda. Hoje só posso mostrar na prática. Não posso mais ter prova documental.
(1:11:57) P1 – Eu ia te perguntar então, como você chega aqui nesse atelier, porque você falou do trabalho no carnaval, depois no José Bonifácio, depois o IPN. Como que de alguma maneira você volta para esse trabalho, já que você parou de trabalhar com madeira?
R- É, na verdade acabou não parando mesmo. Eu vim parar aqui, porque é o seguinte, eu trabalhei durante 22 anos lá no Instituto Pretos Novos e aí eu falei assim: “Pô, 22 anos, ah vou fazer outra coisa. Quero fazer outra coisa”. Aí eu falei: “Ó, não vou mais trabalhar em 2019”. Em 2019 eu fiz um passeio com 185 pessoas. Era um tempo chuvoso e tinham marcado 4 guias e os guias não apareceram. Ia ficar cada grupo, dividido ali. E aí os guias não apareceram por causa da chuva. Um morava em Campo Grande, outro em Niterói: “Ah, não dá pra ir, tal, não sei o que”. Mas as escolas estavam todas lá. Falei: “Venham comigo”. Aí, peguei 185 pessoas e fiz um passeio, como eu estava com um megafone, então dava pra… rodeava assim, fazia uma roda, todo mundo em volta e em cada ponto eu contava a história e tal e a gente ia seguindo. E aí esse foi o último dia que eu fiz o trabalho para o IPN, né trabalhando com o IPN. Porque eu fui secretário geral do IPN, fui secretário. Só não fui presidente. “Ó, você podia ser presidente”. “Não quero ser presidente”. Não fui presidente nem tesoureiro. Não me chama pra isso porque são dois cargos que eu não quero na minha vida. E aí eu não fui. Eu sempre fui secretário geral. Fui secretário geral anos no IPN. Eu falei: “Não, agora me dá licença que eu quero fazer outra coisa, não quero mais fazer isto. Vou dar um tempo, talvez daqui uns 4, 5 anos eu volte”. E aí, estou aqui e tal e sempre via o Daniel catando madeira no meio da rua, e tal. E aí: “Estão catando madeira pra quê? “A gente tem um atelier, não sei o que...” E aí eu fiquei aqui namorando um ano, vinha aqui sempre pra gente conversar, como é que seria, divisão de grana. Aqui em cima, você não entrava, que era tanto bagulho que tinha que você não entrava aqui. “Você quer fazer o quê?”. “Eu quero fazer carpintaria”. “Tem que ser lá em cima”. Eu vim aqui ver e aí eu passei a pandemia toda fazendo uma limpeza geral aqui. “Não acredito, você arrumou espaço para andar”. Falei: “Carpintaria tem que ter espaço”. Como é que você vai fazer as coisas num lugar que não pode andar? E então eu fiz uma limpeza geral, o que era bom eu separei, o que era ruim joguei fora. Tinha muito entulho, muito bagulho. Porque aqui, o atelier já tem 7 anos eu acho, eu já estou aqui há 4, 5 anos. Então muita gente já passou por aqui, todo mundo fica largando as coisas, vai largando. E aí eu dei uma geral. Madeira que estava boa, eu fiz algumas coisas, fiz muita mesa, muita cadeira. E aí estou aqui até hoje, mas já estou no processo de fazer outra coisa também. Que eu não sei fazer a mesma coisa o tempo todo. Claro que carrinho de rolimã me prende muito porque: “Faz um carrinho de rolimã pra mim.” Faço carrinho de rolimã. “Faz 3, eu tenho dois filhos, 3 filhos”. Eu faço carrinho de rolimã. Tudo bem, mas carrinho de rolimã eu posso fazer em qualquer lugar. E aqui eu vou ter que realmente sair. Porque eu estou, eu morava no Bairro de Fátima e estou indo pro Morro do Pinto. Estou tentando alugar uma casa lá que tenha este espaço aqui. Então a minha ideia é, porque não dá pra ficar com 2 aluguéis, eu quero transferir tudo pra um lugar só, porque aí dá pra dar um respiro. Você tem que produzir dinheiro pra pagar o aluguel, pagar a luz, pagar aluguel e pagar luz, e aí fica muito pesado. E aí eu já estou nesse processo. Provavelmente ano que vem já devo estar, se conseguir fechar mesmo no Morro do Pinto, já estou mudando pra lá. Porque lá a gente tem um outro projeto que é um projeto que a gente escreveu em 2007 que é a FLIMP, que é a Festa Literária do Morro do Pinto. Então a gente está querendo, o projeto está pronto, falta fazer essa captação de recursos que agora a prefeitura tem esse FOCA, ações locais, tal. Só que a ideia do projeto é fazer, que no Morro do Pinto tem uma história ainda da invasão dos franceses em 1911, então você tem vários pontos históricos lá. Por exemplo, o Ernesto Nazaré nasceu no Morro do Pinto, Dino 7 Cordas, que é um dos primeiros violonistas de 7 cordas do Rio de Janeiro nasceu no Morro do Pinto. Um outro violonista também que é o Manuel da Conceição, que é o Mão de Vaca também, que ele tocava assim ó, só com esses dedos, também, que ele tinha essa deficiência e tocava violão de 7 cordas. E aí a gente quer botar música nesses pontos. E isso tudo é uma grana, você tem que pagar todo mundo, você tem que ter equipamento, iluminação. Uma semana de evento, então já viu né. Então estamos hoje empenhados em fazer essa FLIMP. Para poder realizá-la. Seria uma festa literária movida com uma gincana escolar. Você tem porta bandeira do Morro do Pinto, no Morro da Previdência. A gente quer evidenciar isso dentro das escolas. Uma gincana cultural para as crianças buscarem informações dali da sua própria comunidade. Você, lá no Morro do Pinto, por exemplo, você chama de área de lazer, e você pergunta: “Onde é o Parque Machado de Assis?”. “Não, aqui não tem isso”. E é a área de lazer, todo mundo conhece como área de lazer. Agora também que a prefeitura botou uma placa lá dizendo assim Parque Machado de Assis. Mas as pessoas não sabem disso. Então eu acho que essa coisa da escola que não valoriza o seu próprio lugar, então a busca é essa. Vamos ver se a gente consegue. Aí, tem uma série de outros compositores, por exemplo, o Zé Keti fez uma música falando do Morro do Pinto, Nei Lopes. O Morro do Pinto era frequentado por Paulo da Portela. Você tem aí Monsueto, Grande Otelo, o Boca de Ouro com o marido da Glória Menezes, que agora não lembro o nome do marido dela, que fez o Boca de Ouro foi no Morro do Pinto. Tem o Banqueiro dos Mendigos de Jards Macalé feito no Morro do Pinto. Tem toda uma história que as pessoas não conhecem, são filmes e tal e a gente queria passar para a comunidade conhecer. Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, foi feito no Morro do Pinto, que é um filme do Nelson Pereira dos Santos. Você tem uma história linda, bonita pra caramba e as pessoas não conhecem. E aí a ideia de fazer essa coisa, a gente tem um cine clube, mas está parado porque tem alguns que casaram
e mudaram de lugar. Então tem um morando no Jardim Botânico, outro morando em Niterói, outro em Campo Grande, outro morando na Penha. E aí para reunir esse grupo todo, só final de semana e ainda não pode ser todo final de semana que a mulher diz assim: “Vocês vão pra onde? “Vou lá no Morro do Pinto me reunir com os meninos”. “Ah, essa história não está bem contada não”. E aí já virem, aí tem problema com as esposas. Falei: “Traz as esposas”. “Ah, mas a esposa não quer vir, porque tem filho, tem que arrumar a casa, tem que lavar roupa, fazer comida, não sei o quê”. “Pô, vai jogar bola e me deixar fazendo tudo isso aqui sozinha?”. Ele não pode vir. Então a gente tem meio que deslocado, então tem que ser de 15 em 15 dias, fazer uma agenda. “Traz a esposa, leva a esposa, tal”. Você sabe como é que é homem. Que jogar futebol, mas jogar futebol sozinho, vai levar a mulher no futebol pra quê? Que é o que todos nós fazemos. Não vai levar a esposa para o futebol. E aí você tem o conflito e esse conflito por exemplo, impediu a gente 2 anos. Eu falei: “Gente, leva a mulher pro futebol, vamos fazer um futebol aqui só de mulher”. Que aí traz as esposas e aí que começa, pra não ficar naquele imaginário que o marido saiu no sábado às 7 horas da manhã pra jogar futebol e só chegas 5 horas da tarde. “Que futebol que você jogou hoje?”. E aí, acha sempre que está envolvido com alguma mulher. Traz a esposa pra ela saber que a gente tem um espaço lá onde a gente se reúne, faz churrasquinho, macarronada. Traz pra cá as crianças, tem lugar. Mas é interessante.
(1:22:35) P1 – Você falou que você já está com vontade de fazer outra coisa, então vou pegar o gancho e perguntar. Quais são os seus sonhos?
R – Olha, vou dizer uma coisa pra você, como é que eu entendo essa história de sonho, por exemplo, eu nunca sonhei em trabalhar com escola de samba. Isso veio na sequência da vida. Eu na verdade, eu tenho assim, na verdade é mais desejo do que sonho. Eu fico sempre imaginando ir morar na beirada da praia, ou na beirada do rio. Se não tiver praia pode ser o rio, não tem nenhum problema. Aí, já me arrumaram uma casa pra morar lá na Barra da Tijuca, perto da Praia dos Amores. Eu falei: “Como é que eu vou vir pra cá? Vir de metrô? Depois da meia noite dá pra vir de bicicleta? Não. Não posso morar próxima à praia”. É até um lugar legal, ótimo, tal. Falei: “Pô, tem que trabalhar, fazer alguma coisa”. Fazer alguma coisa a gente inventa, isso não é problema. Mas é um dos grandes desejos que eu tenho. Que é ou morar perto do rio ou morar perto do, eu fico logo pensando em construir um barco, já quero pescar. Eu gosto muito de planta. Mas isso, as plantas aqui são todas eu que trouxe. Eu tinha outras aqui que eu acabei dando, porque ninguém molha, só molha quando chove. Aí eu comecei a dar as plantas. Ficaram mais esses registros mais aí. Eu fico pensando por exemplo, eu tenho lá onde eu estou morando no Morro do Pinto eu tenho um tomateiro que está dando mais de 30 tomates. Maior do que uma laranja, do tamanho do tomate é desse tamanho assim. Eu tenho um monte de semente de pimenta, semente de não sei o quê, tal, eu fico na perspectiva de ter espaço pra você plantar. Sair daquela coisa de ter que ir ao mercado, uma galinha, porque toda vez que passo no mercado pra comprar ovos. “Pô, aumentou 10 reais?”. Eu falei: “Tenho que comprar uma galinha”. Porque galinha, pô, eu tenho ovo todo dia, 2 ovos por dia, 4 ovos por dia na verdade, com 2 galinhas. Porque elas põem ovos de manhã e põem de tarde. São 4 ovos. Então eu não fico muito nessa perspectiva de plantar, de fazer as coisas. Meu sonho é muito mais simples, me entende? É mais difícil de ser realizado, porque tudo que é simples é muito mais difícil de ser realizado. Lá na feira de Caxias eu consigo comprar 2 galinhas com 50 reais. Eu vou em Maricá, meu amigo lá me dá 10 galinhas. Eu falei: “Como é que eu vou 10 pro Rio?” Eu morei em Maricá 5 anos e lá eu tinha galinha, eu tinha uma cerca de bertalha. Comia bertalha quase todo dia. Tinha acerola, manga, côco, mas aí, o que que acontecia lá em Maricá? Eu não tinha emprego, a maioria das pessoas vinham trabalhar aqui no Rio. Hoje uma passagem daqui para Maricá está custando quase 30 reais. Como que um trabalhador consegue? Agora está melhor, Maricá está criando empregos. Com o governo lá, inclusive do PT. Era o Quaquá, o prefeito de lá. Eu sempre tive essa perspectiva, porque eu cresci, a minha casa lá no Morro de São Carlos era no fundo do curral. Meu avô tinha 4 burros porque na época não tinha asfalto. Não era asfaltado, era barro, era estrada de barro. A gente tinha 4 burros e era ele que levava os produtos todos lá pra cima do morro. Eu fui criado no fundo do curral e aí tinha cabrito, galinha d’angola, peru, tinha porco. Eu lembro que quando matava porco lá em casa, acordava às 5 horas da manhã matava o porco, tal. Tinha o sangue pra fazer chouriço, as tripas pra fazer linguiça. E galinha...a gente era feliz e não sabia. Então, eu fico com essa coisa, ainda tem uma infância na minha cabeça dessas coisas que eu vivi. Que eu quero na verdade é ter um quintalzinho para atender, entende, plantar, ter algumas galinhas. Se tiver um porco melhor ainda. Agora, por exemplo, com um porco com as fezes do porco eu faria gás. Lá em casa era fogão à lenha, não tinha, eu faço um feijão cozido, eu faço na lenha que é um espetáculo. Eu fazia lá em Itaipuaçu no dia de São Jorge para um amigo que nasceu no dia de São Jorge, no dia 3 de abril eu acho, feijoada na lenha. Eu fazia feijoada para 700 pessoas. Quatro panelões, fazia de um dia pro outro. De meia noite, quando era 3, 4 horas da manhã estava pronto, na lenha. E eu não coloco sal e dessalgo a carne na água gelada e não fervendo. Então você não tira o sabor da gordura, quando fervendo você tira uma parte da gordura que é uma parte do sabor importante da carne. Eu aprendi a fazer isso com água gelada, então eu não colocava sal na feijoada. Que o final do sal que fica na carne é o suficiente pra você não precisar colocar sal. Então todo mundo já começava a comer a feijoada antes de temperar. “Feijoada está boa”. “Eu tenho que temperar agora”. “Não precisa”. Eu achava ótimo. Adoro, adoro, gosto muito. Isso me remete muito ao meu desejo, que seria um sonho para um dia ter um quintalzinho. Na verdade, esse quintal aqui já é o suficiente para você montar um galinheiro e ter essa infância de volta. É por isso que eu trouxe esse monte de planta. Essa aqui foi a Telma que me deu, ela jogou fora, lembra das plantas que ela jogou fora? Eu olhei e falei: “Isso parece ser uma orquídea. E na verdade é uma orquídea bailarina, muito bonita. Nesse tamanho ela dura 24 horas e ela parece uma orquídea bailarina mesmo, amarelinha e branca, muito linda. Aí eu trouxe e tem um monte de muda. Tem mais mudas por aqui. Essa que está dando aqui é abacaxi. Eu plantei abacaxi também e até agora, 1 ano, e não deu nada. Esse aqui é abacaxi de jardim. Mas também nasceu agora também já está há tempos aí. Eu sou a única pessoa que cuido, que ponho água. Que a maioria aqui, o pessoal faz os trabalhos e cai fora. Mas eu gosto muito, isso aí é petália, mas ela precisa, não sei se da fêmea ou do macho para dar o fruto. Ela dá flor, a flor é muito bonita, mas não dá fruto. Aí tem que dar uma germinada, tem que botar uma outra muda aí. Então o meu sonho é esse na verdade, que é ter aquela vida que eu tive quando era criança, que era maravilhoso. É por isso que eu não consigo me adaptar ao apartamento. Eu morei no Bairro de Fátima durante 8 ou 9 anos, não conseguia ficar dentro de casa. Eu só chegava pra dormir. Acordou, tomava um banho e rua. E passava o dia inteiro na rua, o dia inteiro. Tanto que eu passei a pandemia toda trabalhando aqui. Não vinha ninguém, eu estava sozinho. Mas eu não consigo ficar dentro de um apartamento, não consigo. Não consigo mesmo, primeiro que eu fui criado em casa, numa casa com quintal com tudo. Apartamento, se eu ficar 1 hora dentro de um apartamento, vou na sala, vou na cozinha, vou no banheiro, vou na janela e não tem mais pra onde ir. E eu não aguentava, eu não aguento na verdade, e aí eu ia pra rua. Apesar de ter uma bicicleta e ficar andando de bobeira, tal. Tinha que ter um atelier, senão eu tinha enlouquecido. Pelo menos eu ia inventar alguma coisa, fazer alguma besteira. Você tem o que fazer aqui. Na rua não, na rua não tem o que fazer, só vê as coisas e mais nada. Não pode fazer nada. Então o meu grande sonho na verdade acho que é esse, ter esse quintalzinho com uma casinha pra poder ter cachorro. Gosto mais de cachorro do que de gato. Aqui no Morro do Pinto eu tenho já gato. Tenho 4 gatos. Gato dos outros, porque eles vem tomando conta. Como a gente se dá bem com animais, a gente dá comida, água. Todo dia de manhã vou lá e troco a água, ponho comida pra todo mundo. Já vou fazer umas casinhas para eles. Vou fazer um cortiço para gato aqui. Eu botei umas madeiras na parede que eles ficam todos pendurados lá. Eu falei: “Vou fazer uma casinha agora”. Eles querem ficar dentro de casa, mas dentro de casa toda vez que você chega você tem que varrer um quilo de pelo. E a minha mãe e meu pai, nós tínhamos cachorro e gato e eles não entravam dentro de casa. Tinha a casinha deles, comida, água, mas dentro de casa não. “Não porque senão tem que varrer a casa todo dia, não pode, cai muito pelo”. Eles não deixavam. Eu tento evitar isso também, mas isso é impossível, eles entram pelo basculante da cozinha, pelo basculante do banheiro, quando tu vê tem 4 gatos deitados no sofá, de perna aberta, felizes da vida. Eu falei: “Tá ótimo, tudo bem”. Todo mundo gosta disso, por que ele não? Faz parte.
(1:34:31) P1 – Tem alguma coisa que você gostaria de dizer, que a gente não perguntou?
R – Olha, o que eu posso dizer pra vocês é o seguinte. Acho que essa história do que vai evoluir, por exemplo do Moinho Fluminense eu acho que não pode perder a perspectiva de que precisa criar emprego para as pessoas daqui. Eu acho que isso é fundamental pra você até ter sucesso no empreendimento que eles vão investir, porque o emprego acho que é fundamental pra todo mundo até pra ter um cuidado com o lugar. Eu tenho visto lá, eles estão pintando de branco embaixo. Até vou perguntar se vão botar um grafismo lá, alguma coisa? Não sabe, né? Eu conheço centenas de grafiteiros que gostariam muito de grafitar o moinho. Não grafitaram ainda porque, a gente consegue emprestado aquele munk que você sobe com elevador, com plataforma para as pessoas grafitarem. Porque quando a gente fala: “Vamos grafitar o Moinho Fluminense?”. “Não, você vai me comprometer, estou emprestando o material pra você, meu equipamento, polícia vai prender, precisa de autorização”. Senão já estava grafita já. Centenas, centenas mesmo. Até o Cobra mesmo, quando a gente estava fazendo os desenhos dele, fazendo a marcação dos desenhos, falou: “E o Moinho Fluminense a gente não vai grafitar não?” Falei: “É tudo contigo, vai cair tudo no seu nome. Vamos lá, a gente vai atrás. E aí vamos ver o que acontece”. Mas eu acho que é importante para um empreendimento tão grande como o do moinho eu acho que o emprego pra comunidade é... já podiam ir capacitando as pessoas agora pra quando estiver pronto as pessoas estão todas capacitadas pra todo mundo trabalhar, ser recepcionista, mecânico, eletricista, bombeiro. É isso.
(1:37:05) P1 – Como é que foi contar a sua história?
R – Rapaz, eu acho que, eu estou com 67 anos de idade, se eu contar a história, eu vou ficar contando história...Eu sou um contador de história, eu conto histórias há trinta e poucos anos. Sou contador de história, então eu acho que história é muito legal. Eu pesquiso muito sobre história. Por exemplo, agora eu quero fazer o circuito em drone contando essa história de cima, que ainda foi feito. Tem até umas imagens de um drone, mas não tem circuito. Eu quero fazer o circuito. Eu fiz esse mapeamento, mas eu só tenho fotografias. Eu queria fazer de drone, em cima pra você ter uma outra visão. É uma outra visão você tendo de cima. É uma das coisas que eu gostaria de fazer, e espero poder fazer agora. Até me propuseram fazer um curso de drone pra eu mesmo pilotar. Eu falei: “Tudo bem. Olha gente vamos deixar isso para o ano que vem”. Porque são amigos meus que são professores, o Maluf, e está todo mundo envolvido com final de ano. Eu falei: “ãPara tudo e ano que vem a gente recomeça”. É uma das coisas que eu espero poder fazer, poder contar essa história, eu quero poder contar essa história não só eu. Essa história que eu conto hoje, por exemplo, sobre a zona portuária é baseada em um professor, Dr. Claudio Honorato, que é um professor lá de Caxias e do Júlio César Medeiros que é um cara que escreveu sobre o Flor da Terra que é sobre o Cemitério dos Pretos Novos. A gente se conhece desde 98 e desde quando eles chegaram para pesquisar. Quero contar a história com eles, porque eles que tem o conhecimento muito maior, um outro conhecimento acadêmico. Eles dizem pra mim: “Antônio, tem aqui uma escola querendo fazer um passeio e eles estão me convidando pra fazer o passeio, mas a pessoa que eu mais indico pra fazer o passeio é você”. Falei: “Tudo bem, não vou contar a história acadêmica que você conta, mas eu vou chegar próximo e bem próximo”. Eu, de todos os guias, hoje por exemplo, eu faço treinamento de guias inclusive. “De todos os guias que eu conheço, você está nessa história há anos. Então você conhece mais, leu todas as minhas teses, leu todos os meus livros”. Claro, para aprofundar essa história. Então, quero fazer com eles porque acho que é muito legal. Esses são os caras que realmente tem essa informação acadêmica. Passaram 20 anos pesquisando. Eu fiz uma pesquisa de modo geral, mais geral. Mas eles tem uma pesquisa acadêmica, com livros publicados. São os caras. E eu queria valorizar isso. Eles merecem essa valorização. E estão aí tentando vender os livros deles debaixo do braço. E é loucura né? Falei: “Um trabalho tão bom, tão importante, com fontes confiáveis e não conseguem vender o livro”. Até porque o livro no Brasil é muito caro. Livro é muito caro, muito. Muito caro mesmo.
(1:41:20) P1 – Mas vamos combinar aqui, que essa sua academia aqui que você também consolida ao longo de todos esses anos não tem preço. Não tem academia também que dê conta dessa parte.
R - É, eu tenho por exemplo, feito muitos passeios com vários professores universitários, fiz muito com canadenses, franceses, ingleses. Eu não falo nenhuma língua, mas eles contratam um tradutor e eu faço muitos passeios. Por exemplo, tenho 2 amigos que moram no Arizona que são brasileiros que toda vez tem excursão: “Faz o passeio com o Antônio”. Ele dá aula de português lá. Eu faço passeios com a Universidade do Arizona que todos falam português. Não precisa nem de tradutor. Só que é uma outra língua, é aquele português bem acadêmico mesmo. “Você fala muito rápido”. Você tem 10 minutos para contar a história de 100 anos. Como é que faz? É claro que eu, você fez aquele passeio conosco que eu levei aquele livro amor do Santo Cristo? Eu tenho até a cópia que está aqui comigo, porque eu dei para a Telma. Eu tenho tentado fazer um livreto pra facilitar pra pessoas, porque você tem desenhos, você tem fotografias da época. Para melhorar o entendimento das pessoas. Porque muitas vezes você fala sobre um determinado fato que aconteceu numa determinada região, por exemplo, ali tem a igreja onde o Machado de Assis foi batizado. Aquela igreja era virada pro lado de cá. O Pereira Passos de 1903 a 1906 virou a igreja para o outro lado, para o lado da Presidente Vargas. Então, a igreja foi girada para o lado de lá. E aí quando você conta essa história, todo mundo: “Mas como que o cara virou?”. Destruiu a igreja e construiu para o outro lado. E isso tem registro. Se você não tiver esse registro para mostrar para as pessoas, muita gente não acredita. Quando eu falo da lei criada pelo Pereira Passos e Rodrigues Alves, que era proibido andar sem camisa e descalço, 14 anos depois da abolição da escravatura. Quem andava descalço e sem camisa? Os ex-escravos. Como é que você cria uma lei proibindo de andar descalço e sem camisa? Os caras não tinham nem sapato. Muitas vezes usavam calça, camisa e terno, chapéu e o sapato pendurado no pescoço. Porque o tamanho do sapato era tamanho europeu. Sapato você tinha que mandar fazer. Você não ia na loja lá e: “Quero comprar um sapato”. Então, pra provar que ele tinha sapato ele andava descalço com o sapato pendurado no pescoço. Isso é fato, é coisa que aconteceu. Você tem registro disso. Mas se você não vê isso, ninguém acredita. Porque não dá na escola. A não ser que você vá se aprofundar sobre o assunto, fora isso, não tem. É coisa de escola. A escola não conta a história da sua rua, do seu bairro. Por que as crianças se perdem? Porque a escola não ensina. Você mora aqui e a escola é aqui. Aqui é a delegacia, aqui o escritório, o posto de saúde aqui. Porque se amanhã ela se perder, ela sabe onde recorrer. Aqui é a escola, voltei pra escola. Então falta uma série de relações, por exemplo, tem um projeto que já acontece há mais de 20 anos lá no Vidigal que se chama Afro Alfabetizar. Que é contar a história, alfabetizar uma criança com os elementos que ela vive. Não adianta, todo mundo fala dessa questão da favela, mas a favela é uma trança. Não é um conglomerado de casas. Antes se chamava cortiço. Na verdade, está aí meio cortiço mesmo. Mas favela é uma trança, e acabou em trança criando esse processo da favela como uma habitação de marginais. Marginal também é uma palavra inventada pela imprensa. Você tem a história, por exemplo, do Sete Coroas do Morro da Providência, em 1910, que ele só roubava cemitério. Estava lá no velório, o cara chegava assaltava todo mundo e roubava a coroa. A coroa de flores. E a imprensa botou o apelido nele de quê? De Sete Coroas, porque foram 7 assaltos que ele fez e roubou a coroa de flores. E ele não gostava de flores. Era um assaltante e a imprensa o coloca como um marginal, é perigoso e tal. Ele nunca tinha dado um tiro. Nunca deu um tiro. Nunca deu um tiro em ninguém, só assaltava e aí entrou como perigoso. É a história, né. O vencedor conta a história que quer.Recolher