Lucas chegou ao trabalho ressabiado porque neste dia terminava seu período de experiência em seu novo emprego. Passara no concurso dos Correios, e, pela primeira vez, apesar de ser quem era, conseguia trabalhar. Seu chefe parecia contente com ele, e os colegas o tratavam bem, embora o chamassem de...Continuar leitura
Lucas chegou ao trabalho ressabiado porque neste dia terminava seu período de experiência em seu novo emprego. Passara no concurso dos Correios, e, pela primeira vez, apesar de ser quem era, conseguia trabalhar. Seu chefe parecia contente com ele, e os colegas o tratavam bem, embora o chamassem de fanho, o que parecia ser inevitável, com a voz que ele tinha! O melhor de seu emprego é que não precisava falar com ninguém, simplesmente saía a entregar as cartas, com a sacolinha nas costas, e, nas portarias dos prédios, mostrava os recibos e esperava que os porteiros os assinassem, interfonassem aos moradores, e sorria em resposta. Raramente precisava falar, o que era um alívio!
Lucas sabia que, em empresas públicas, onde se ingressava por concurso, após o primeiro trimestre, havia estabilidade. O que significava que, se ele não cometesse um crime dentro da empresa, roubando, ou batendo em alguém, não poderiam mandá-lo embora, o que lhe garantia o sustento pelo resto da vida. Ele recebia nos Correios um bom vale alimentação, uma excelente cesta básica, convênio médico e odontológico de boa qualidade; e o trabalho era em local agradável, havia sido enviado para um bairro perto da praia, bem bonito. A primeira parte da manhã passou rápida. Os colegas admitidos pelo mesmo concurso estavam já festejando a estabilidade, certos de que permaneceriam ali. Então, no intervalo do lanche matinal, o chefe o chamou e entregou-lhe uma intimação: ele estava sendo chamado ao ambulatório médico.
- Você está dispensado por hoje, para ir falar com o médico.
Lucas sentiu-se gelar por dentro. O chefe estava sorrindo, mas isto não queria dizer nada, ele poderia estar completamente indiferente à demissão de Lucas.
- Vá logo, rapaz, o que está esperando? Vá, vá...
Lucas não gostara do médico, desde a primeira vez que o encontrara, em seu exame admissional. O sujeito o fizera abrir a boca e comentara: Ah, é por isso então que você fala assim... nunca fez cirurgia pra corrigir isso?
Lucas negara, balançando a cabeça.
- Já nasceu assim, não é? Por que não foi operado quando era bebê?
- Eu nasci em casa, doutor. Sou lá do vale do Jequitinhonha, não tem médico, não...depois, eu fui vivendo assim e me acostumei.
O médico fizera uma careta.
- Bem, então você não tinha nada nos lábios, só na goela.
Lucas não disse nada, não compreendera.
- Isso que você tem é um lábio leporino incompleto, nunca ouviu falar de lábio leporino?
Nunca viu outras pessoas com marca de cirurgia nos lábios?
Lucas não respondera, pois não compreendera o comentário sobre os lábios diferentes. E o médico continuara:
- Não seria bom comer sem engasgar? Falar como toda gente? Poder ir aos bailes e ir falar com as moças sem medo de que elas riam de você?
Aí Lucas ficou mesmo muito zangado, pois era isto mesmo que acontecia com ele, e o médico não tinha nada a ver com a vida dele, porém, continuara quieto.
- Agora você vai ter convênio médico, rapaz.
Lucas não entendia o que o convenio médico da empresa tinha a ver com a garganta dele, deu de ombros, pegou seu ASO apto e retirou-se. Tivera medo de ser reprovado! Agora, três meses depois, este novo chamado... A secretária do ambulatório já o esperava:
- Oi, Lucas, o doutor está esperando você, pode entrar.
E o médico lhe comunicou, à queima roupa, no jeito apressado dos médicos:
- Rapaz, marquei uma consulta pra você dia 15 do mês que vem, e temos então umas duas semanas pela frente para agilizar os exames preliminares: avaliação com o dentista, com o cardiologista, exames de laboratório gerais, agendar sua condução, programar sua internação...Claro que se você não puder nesta data, a gente agenda outra, caso você tenha um compromisso inadiável ou algo assim, por isso o chamei aqui.
E como Lucas nada respondesse, o médico o encarou:
- Lucas, eu consegui uma consulta para você em Bauru, em um hospital de cirurgia plástica especializado em casos como o seu. Não é ótimo?
- Como?
E a cada vez que o médico explicava, Lucas abanava a cabeça e teimava:
- Olha, doutor, eu estou bem do jeito que eu sou, não quero operar, não, comecei agora, vou perder meu emprego.
O doutro riu.
- Pois foi por isso que eu só o chamei agora, pois agora você tem estabilidade e pode usar o convenio para operar! O seu chefe já está sabendo, aliás, e já sabe que vai ficar sem você por umas semanas.
- Semanas?
Bauru? Eu nem sei onde fica isso...
Lucas sentiu-se desconfortável. Aos dezenove anos, era um caipirão, pois passara quase toda sua vida entre gente simples, a maioria analfabeta, e saíra da casa da família depois do concurso que o colocara neste emprego. Ainda estava bem desconfortável na cidade grande, onde todos pareciam tão mais espertos que ele. Mas o doutor parecia ter resposta para tudo:
- Claro que não sabe! E por isso nós vamos ajudar você com todos estes detalhes. Você vai agora conversar com a assistente social da empresa, a Lúcia, e ela vai explicar tudo a você, marcar as consultas, os exames, agendar a condução, porque você não vai sozinho, seria muito complicado. E a empresa quer ter certeza de que você foi bem tratado e não se perdeu pelo caminho. Hehehe... Vai ser ótimo poder comer direito e falar como toda gente, não?
Lucas, que volta e meia se engasgava, e comia cautelosamente, sem falar na vergonha que sentia em se aproximar das moças, suspirou. O médico se levantara e o encaminhava para a porta:
- Vá com a Lúcia, agora.
A secretária se adiantou e disse a ele:
- A Lúcia espera você na sala dela, ali adiante, vou mostrar onde é.
Toda esta atenção estava deixando o rapaz inibido. Ele não estava habituado a tanta cordialidade. Três salas adiante, uma senhora de óculos, forte, de aparência decidida, falou-lhe longamente sobre várias coisas que o deixaram tonto. O que ele entendeu é que, só Deus sabe por que, a empresa decidira que ele seria operado o mais rápido possível, e auxiliado em tudo o que fosse preciso. Lucas começou a acreditar que tinha um anjo da guarda, afinal. E começou a sonhar com a cura. Passaram-se três meses, findo os quais, um rapaz entrou com andar firme no ambulatório. Seu sorriso era alegre, sua voz modulada e confiante:
- Boa tarde, Raquel, estou de volta!
A secretária olhou admirada para o rapaz:
- Lucas! Você parece ótimo, garoto!
Pelos próximos cinco minutos, Lucas conversou com a secretária, animadamente, e, ao cabo, foi chamado pelo médico.
- E aí, rapaz? Arrebentando corações? Alto, bonito, e agora, bem-falante... tem chances!
Lucas comentou:
-Posso voltar ao trabalho? Eu fiz o melhor que pude para passar neste concurso para ter uma vida melhor. Eu sempre achei que um bom emprego mudaria a minha vida. Só não pensei que a mudança seria tão grande. Agora tenho de me esforçar para ser o melhor funcionário desta empresa!
O médico disse:
- Bem, eu estou feliz de ver que a cirurgia correu bem, e você está curado e todo animado para voltar ao batente.
Lucas, tímido, completou, à guisa de agradecimento:
- O senhor mudou a minha vida, doutor!
- É, por detrás desta mesa de médico do trabalho, às vezes eu tenho estas oportunidades...Recolher