Nelson Bertini - Pronto, eu… chamo-me Nelson, Nelson Bertini, sou mais conhecido por Nelson Bertini, o nome completo é Nelson Bertini da Silva Lopes. Nasci em São Mamede de Infesta, no dia 2 de Fevereiro de 1951, portanto, nasci em casa, nessa altura era hábito os partos darem-se em casa. Há uma história curiosa que a minha avó me contou, foi que a “habilidosa”, que era assim que se chamavam as parteiras de uma casa, eram as “habilidosas”, e ela acho que puxou tanto pela minha cabeça, que eu ia ficando sem cabeça, dizia ela “ó mulher, você vai tirar a cabeça do rapaz” e então, dá-se esse caso curioso, não é, que eu mal acabei de nascer e ia ficando sem cabeça, não é, fiz imensas coisas na vida de perder a cabeça, mas também nunca de cabeça perdida, e portanto, isso é que me pôs aqui.
Depois, a minha origem… a minha origem social, os meus pais eram operários, o meu pai era um operário com algum relevo nos Serviços de Transportes Coletivos do Porto, e a minha mãe tinha sido operária têxtil. Depois, como nós éramos quatro irmãos, ela estava em casa e tinha que cuidar dos filhos, que era o que acontecia nessa altura, e não voltou a trabalhar no exterior. Como o meu pai era uma pessoa com alguma importância nos transportes coletivos, houve um momento, eu tinha cinco anos, saímos de São Mamede e fomos viver para o Amial, para uma subestação dos transportes coletivos, portanto, era uma subestação que já estava modernizada, já não precisava de uma instalação tão grande, e portanto, cedia aquilo para alguns operários viverem lá. Para vocês terem a ideia da escala, no hall da minha casa cabiam dois carros elétricos, e estávamos montados em cima de uma subestação com mecanismos elétricos. O meu pai era um anticlerical, era um homem com posições progressistas. O avô… o meu avô, o pai dele, era anarquista, mas era anarquista mesmo, de bombas, nem Deus, nem Chefes, aquilo era assim. Eu nunca o conheci,...
Continuar leituraNelson Bertini - Pronto, eu… chamo-me Nelson, Nelson Bertini, sou mais conhecido por Nelson Bertini, o nome completo é Nelson Bertini da Silva Lopes. Nasci em São Mamede de Infesta, no dia 2 de Fevereiro de 1951, portanto, nasci em casa, nessa altura era hábito os partos darem-se em casa. Há uma história curiosa que a minha avó me contou, foi que a “habilidosa”, que era assim que se chamavam as parteiras de uma casa, eram as “habilidosas”, e ela acho que puxou tanto pela minha cabeça, que eu ia ficando sem cabeça, dizia ela “ó mulher, você vai tirar a cabeça do rapaz” e então, dá-se esse caso curioso, não é, que eu mal acabei de nascer e ia ficando sem cabeça, não é, fiz imensas coisas na vida de perder a cabeça, mas também nunca de cabeça perdida, e portanto, isso é que me pôs aqui.
Depois, a minha origem… a minha origem social, os meus pais eram operários, o meu pai era um operário com algum relevo nos Serviços de Transportes Coletivos do Porto, e a minha mãe tinha sido operária têxtil. Depois, como nós éramos quatro irmãos, ela estava em casa e tinha que cuidar dos filhos, que era o que acontecia nessa altura, e não voltou a trabalhar no exterior. Como o meu pai era uma pessoa com alguma importância nos transportes coletivos, houve um momento, eu tinha cinco anos, saímos de São Mamede e fomos viver para o Amial, para uma subestação dos transportes coletivos, portanto, era uma subestação que já estava modernizada, já não precisava de uma instalação tão grande, e portanto, cedia aquilo para alguns operários viverem lá. Para vocês terem a ideia da escala, no hall da minha casa cabiam dois carros elétricos, e estávamos montados em cima de uma subestação com mecanismos elétricos. O meu pai era um anticlerical, era um homem com posições progressistas. O avô… o meu avô, o pai dele, era anarquista, mas era anarquista mesmo, de bombas, nem Deus, nem Chefes, aquilo era assim. Eu nunca o conheci, mas tenho fotografias… fotografias em que se vê, ele era um dos oficiais, um dos responsáveis pela instalação das linhas do elétrico, dos carris. Pronto, a partir daí estive sempre ligado a uma… numa perspectiva que não era, que era no fundo ateia, não é, portanto, não fui batizado… mas havia uma política dos meus pais, e principalmente do meu pai, que achava que nós devíamos saber tudo, saber tudo. E, portanto, na escola primária, quando havia visitas de estudo, eram a igrejas, eu chegava a casa e dizia “amanhã vou a uma igreja” e o meu pai dizia “vai filho, vai, vai, vai e aprende tudo, vê tudo, aprende tudo”. E lembro-me que ele me disse uma frase que eu nunca mais esqueci, e que eu vou aproveitar e que é um projeto que tenho, que é assim “mas nunca te esqueças que um homem de joelhos é... sempre meio homem” e, portanto, isso, a não ser por uma boa causa, não é, que um gajo tem que pôr-se de joelhos, mas eu tive sempre dificuldade, nunca me dobrei de joelhos. Pronto, e dentro disso, associado a uma situação em que eu tive uma doença grave, quando eu tinha 6 anos, estive um ano de cama, e o meu pai como tinha muitos livros lá na biblioteca, eu comecei a ler, e comecei, essencialmente, a ter curiosidade e a ter inquietação, não é, inquietação.
Quando saio da escola primária, vou depois para… para a Gomes Teixeira e depois vou para o Infante, a escola Infante D. Henrique. O Infante, aquilo era uma coisa, o primeiro ano cheguei lá e chumbei, porque não percebia nada daquilo. O segundo ano fui expulso [risos], fui expulso da escola e, portanto, fiquei ali e o meu pai disse “ah és expulso então vais trabalhar”.
Entrevistadora - Foi expulso porquê?
Nelson Bertini - Hã?
Entrevistadora - Foi expulso porquê?
Nelson Bertini - Por mau comportamento. Porque aquilo era uma turma curiosa, foi um início de ano em que os professores atrasavam-se muito, eu tinha um professor, eu tinha o Pedro Homem de Melo, eu tinha o Poeta, que era um professor muito interessante, mas não ensinava nada. E, portanto, levava fotografias de arranjos folclóricos, daquelas coisas, e gostava de poesia e… e tinha uma coisa que era quando, todas as sextas-feiras, nós tínhamos uma aula com ele, e ele dizia, “escrevam uma redação sobre um tema” e, enquanto nós estávamos todos a escrever a redação, ele escrevia cartas. No fim, antes um pouco de acabar a aula, ele pedia a alguém para levar as cartas a um marco de correio, que havia ali no largo, perto da escola, e depois pedia ao chefe da turma para levar a casa dele. Ele vivia relativamente perto, era ali perto do Carvalhido, já não me lembro, e lá ia o chefe da turma levar e meter as redações na caixa de correio. E, de facto, nunca ninguém sabia o que é que aconteceu, porque aquilo não havia nenhum feedback de nada, o gajo não disse nada. Um dia, eu vou contar esta história, porque tem piada, ele perguntou “escrevam uma redação sobre o que fizeram no Carnaval” que foi a seguir às férias do Carnaval, eu escrevi, bem, eu não sabia o que é que eu ia fazer e fui escolher um livro para ler… e eu tinha em casa vários livros escritos em português, mas eu disse “epá, mas eu não tenho pachorra para ler”, escrevi mesmo assim “epá não tenho paciência para ler escritores portugueses” mas peguei lá em qualquer coisa. E mostrei aquilo a um colega meu do lado, e o meu colega estávamos na aula, ele disse “epá, o gajo é escritor português, pá, ele vai-te lixar” e fez assim uns movimentos e o Homem de Melo disse “o que é que se passa?” e eu expliquei “eu tenho aqui uma coisa, enfim, digo que não gosto muito de escritores portugueses, o colega está a dizer que o professor não vai gostar”, “ah, então deixa ver e já agora vai levar as cartas ao correio” e quando eu chego, acho que abri a porta e cheguei à sala, estava tudo esbugalhado a olhar para mim, e ele diz assim “ele não sabe, mas ele tem qualquer coisa cá dentro” [risos] e a partir dali elegeu-me como o inteligentíssimo, portanto, qual era a possibilidade e a vantagem do inteligentíssimo? É que ele chegava naquelas galerias do Infante com o seu guarda-chuva e o seu sobretudo, que era praticamente uma coisa que ele usava sempre, independentemente do estado, das condições atmosféricas, e fazia assim com o dedo e então o inteligentíssimo tinha que trazer-lhe o coisa, o guarda-chuva, e a chave… quer dizer, era aquela coisa de facilidade de abrir a sala da aula, que era uma coisa extraordinária. Bom, e isso deu ali uma certa lassidão a muita gente, com professores que era a primeira vez que estavam a dar aulas, e tudo gerou ali uma confusão, portanto quase toda a turma foi castigada, eu e outro fomos convidados a sair, fomos penalizados e depois não nos deixaram continuar lá na escola. E, portanto, a partir daí eu fiquei, e comecei a ganhar consciência, quer dizer, mas isto não está... mas depois há alguém que diz “não, tu tens é que ir para a arte, tens que ir para a Soares dos Reis lá, que aquilo é que é porreiro”. Bom, e nessa altura eu fui para a Escola Soares dos Reis, como trabalhador estudante, o meu pai obrigou-me logo a trabalhar.
Entrevistadora - Qual é que foi o teu primeiro trabalho?
Nelson Bertini - O meu primeiro trabalho [risos] eu era paquete, aquilo que se chamava na altura paquete, paquete era um moço de recados, não é? E eu trabalhei, o meu primeiro emprego foi num armazém de forros de umas pessoas que ainda eram vagamente familiares do meu pai. E aquilo era uma coisa terrível porque eu tinha que fazer embrulhos de grandes, daquelas peças de pano, dos cetins e dos… das entretelas e etc, e depois havia um desgraçado, um homem, que era muito magro, mas assim muito seco, que levava toneladas de coisas às costas até a estação de São Bento, estamos a falar da Rua D. Pedro… D. João IV, era a Rua D. João IV, aquilo era uma coisa. Um dia cheguei, que nós fazíamos aquilo com fita de nastro, aquelas peças, e portanto, naturalmente, as pontas cortava-se e ficava no chão, não é, eu lembro que um dia chega lá o patrão e eu digo “Ei, um desperdício, está aqui cheio de coisa, tudo atado”, depois um dia puseram-me a arquivar a correspondência de não sei quantos anos, com as datas, com a resposta enfim… foi uma cena e eu não conseguia suportar aquilo.
Entrevistadora - E isso foi até 15 anos?
Nelson Bertini - Sim, sim. Não, 15. Sim, eu comecei a trabalhar oficialmente a descontar para a Segurança Social com 15. E, pronto, e depois fiz isso, fui trabalhar para um armazém, para uma fábrica ... sim, uma fábrica e venda de móveis, não é, móveis. Depois fui trabalhar para uma compra e venda de propriedades, não é, aprendi, eu ganhava 300 escudos por mês, aprendi a subornar pessoas com notas que eram 10 vezes melhor do nada, não é, apresentava-os e deixava lá ficar as notas. Foi uma experiência muito interessante do ponto de vista humano, com isso. Lembro que uma vez um vendedor, que era um brasileiro, era um vendedor português, mas vinha do Brasil, e foi para lá trabalhar e um dia, e ele era vendedor de casas, não é, e um dia foi chamado ao patrão e ele disse que o despediu, porque houve uma cliente que disse que ele cheirava a aguardente de manhã. Eu achei que aquilo não era verdade, que devia ser qualquer coisa. Então, eu dirigi-me ao patrão e pedi a demissão, também, quer dizer, não expliquei porque era, mas eu não me sentia bem, estive lá uns meses. Pronto, depois trabalhei como desenhador já numa casa, numa fábrica, que fazia embalagens para, em celofane, para meias, para coisas, etc, pronto, até que um dia, acho que não fiz mais nada pelo meio…
Entrevistadora - Mas tiraste o curso na Soares dos Reis?
Nelson Bertini - Sim, tirei o curso da Soares dos Reis e fui trabalhar, era o curso de pintura decorativa, e depois fui trabalhar, acho que foi assim, não, ainda trabalhei numa litografia, era o retocador de fotolito e… que era uma coisa violentíssima, pá, era uma coisa do irmão do aguarelista, do António [impercetível], aquilo era uma coisa muito miserável, nós tínhamos uma salamandra para aquecer no inverno e que aquilo, eu não te via, o fumo, os jornais e também… eu não te via, era uma coisa violenta, os técnicos principais, aquilo era uma violência, puxavam as orelhas aos miúdos… “Educação!” e tal. Enfim, uma vez foi um médico de família, médico de trabalho, medicina de trabalho, foi lá, e quando chegou à minha vez, ele disse “você está pouco desenvolvido, precisa de fazer desporto, porque é que não tenta natação, hipismo…” Hipismo? Hipismo? [riso] epá, eu ganhava vinte e cinco tostões à hora, pá, não é, se gastava o dinheiro que ganhava de manhã, não me dava para almoçar, não havia subsídios, não havia nada. Bom, e pronto, até que um dia arranjei através de um amigo, um trabalho, num gabinete de engenharia, engenharia civil, engenharia de estruturas, pronto, e aí começou, começou com a Soares dos Reis. Entretanto, o Maio de 68, apareceu, não é, foi na França… chegou na altura de… as informações vinham um bocado tarde, mas nós acompanhámos aquilo, começámos a juntar-nos também com outros, com outra malta estudante… do liceu, é interessante que eu tive o privilégio, nessa altura, naquela turma, naquela turma não, naquele grupo de estudantes, de trabalhadores estudantes naqueles anos, que era uma malta extraordinária, a malta... falava todos de política nos intervalos, aquilo era uma coisa, e depois tínhamos o respeito dos professores, que eram pintores, artistas, não é, e eles, por exemplo, nós dizíamos uma... justificação de uma falta “olha, faltamos a isto e tal, porque fomos assistir à inauguração de uma exposição de pintura, ou fomos ouvir um concerto de música clássica” e eles aceitavam aquilo, que era uma coisa que conflituava com o diretor, porque o diretor era um professor, era um gajo de matemática e não entendia bem aqueles devaneios… e aí foi uma escola extraordinária, e foi daí que surgiu uma massa enorme que veio depois, para o MJT, que veio para o PCP, funcionários, militantes, etc., foi aí… mas houve, assim, alguns episódios pelo meio a tropeçar… como é que eu cheguei à política? Eu a determinada altura, disse “epá estou aqui, nós temos isto tudo, falamos”, nós fazíamos reuniões com a malta, ao sábado, à tarde, às vezes, em tempo de férias, um calor, a malta, em vez de ir à praia, estava ali, mas era muita gente. Tínhamos, por exemplo, a Orquestra Sinfónica do Porto, fazia concertos ao domingo de manhã, eram uns concertos para a malta nova, nós íamos buscar bilhetes, tínhamos alguns tipos que iam, alternadamente, iam buscar bilhetes à Biblioteca do Porto, que era aí que funcionava a sede da orquestra, e nós íamos ao domingo de manhã assistir aos concertos… a malta gostava, era a cultura, mas não era a cultura por cultura, não era para fazer de conta.
Há uma história muito engraçada, que é em 72, salvo erro, não, já não lembro, mas é por volta dessa altura, que houve o bicentenário do nascimento de Beethoven e aqui a Câmara do Porto, com a Orquestra Sinfónica do Porto, fizeram a integral das sinfonias e nós lá íamos, não é, com… com a lancheira e com os livros, não é… e fomos às sinfonias todas. Na última, que era a primeira e a nona, nós não conseguimos arranjar bilhete, porque era a nona sinfonia e era toda a gente a querer ir, pá não conseguimos arranjar bilhete, pá e disse “não pode ser, quer dizer nós assistimos a isto tudo, agora temos que ir” e fomos ao Rivoli e chegámos lá e ninguém nos deixou entrar, começámos a ficar irritados com aquilo e eu lembrei-me que na rua que liga depois ali a Praça D. João I à Avenida, há ali uma porta de acesso lateral, e eu disse “epá, aquilo deve dar algum lado e se calhar não está lá ninguém” e então, o que é que fizemos? Nós éramos para aí uns cinco, entramos por aquela porta e quando damos para nós, estávamos no palco, na traseira do palco, e aquilo tinha um grupo coral, pá, que eram uns homens e mulheres todos vestidos a rigor, com fraques e vestidos brancos e não sei o quê, mas era muita gente, porque um coro é muito grande, com as músicas a ensaiar e tal, na altura o Silva Pereira, que era o maestro, que era um gajo do Porto, e era muito irascível, e ele começou aos gritos “está aqui muita gente, isto não pode estar aqui tanta gente, está aqui gente a mais” e virou-se a um polícia que lá se estava a ver [risos] e disse “ó, olha, ponha tudo fora, a quem não pertence à orquestra nem ao coro”, o polícia estava à rasca, eu lembro-me que chegou à nossa beira e não sabia o tinha que fazer e eu disse “nós somos do coro” e ele deixou-nos ficar [risos] e então ficámos a ouvir a primeira sinfonia, cá fora nos bastidores… a ouvir a primeira sinfonia… isto não vai dar bom resultado, porque eu acho que havia lá mais malta assim. Bom, e aquilo tinha uma escada direta, que eu imaginei que aquilo iria dar à plateia e foi, a malta desceu por ali com velocidade, levámos o porteiro à frente, fomos ali no meio do intervalo, no meio das pessoas… e lembro-me, bom, só temos uma hipótese que é para ir para os camarotes, não é, para arranjar sítio, então lá começámos a ver os camarotes e vimos numa cadeira uma bengala que nós atribuímos aquilo a um pintor conhecido, que era o Guima, que era um pintor aqui do Porto, era do partido e tal, cegou muito rápido, não sei se já morreu, já deve ter morrido, mas começou a cegar e foi um drama… Mas era o Guima. era um tipo de porreiro e a dada altura, quando começou a tocar para a entrada, de lá vinha o Guima a manquitar com umas senhoras, umas raparigas e eu fui ter com ele assim “Guima, nós somos da Soares dos Reis, do curso de pintura, entramos a salto” e o Guima disse “e eu também” [risos] “e estas senhoras forneceram, deixaram-nos estar no camarote” e então a senhora mais velha disse “ah, entra”, então vamos todos para o camarote e então assistimos à nona sinfonia, todos de pé, a senhora e as filhas, o Guima é que estava sentado, porque se queixava de uma perna, e assistimos à nona sinfonia, portanto, isto simbolicamente tem… é uma história que eu acho que tem graça, aliás, já escrevi, eu escrevo às vezes estas histórias. Bom isso, e há uma dia que eu perguntei “mas o que é que se pode fazer? Veja, estamos mesmo aqui, como é que vamos?” e há um fulano que disse “aqui a única coisa que existe é um partido, que não é lá grande coisa, revisionista… que é o PCP e tens aqui um papel” e deu-me um daqueles papéis de bíblia, que era um comunicado, que era do PCP, e eu li aquilo e disse “bom, o que é preciso?”, “mas isto é clandestino, ninguém sabe” assim e tal e eu “bom, vamos ter que fazer qualquer coisa”.
Só para…só para veres mais outra história, há um dia que eu vou a uma… a um debate sobre pintura, ali na Foz, uma igreja e… estava lá um estudante, que era, que fez umas perguntas que eu achei “pá este gajo deve saber umas coisas” e eu no fim fui falar com ele “opá eu gostava de saber mais de política e tal, o que é que tu dizes?” e ele disse “eu vou-te arranjar um contacto, tu vais… tu vais lá e ele vai-te ajudar” e então deu-me um contacto, de quem? Do Edgar Correia, que era dirigente nessa altura de uma associação de estudantes, mais ou menos semi legal, que era, que havia ali uma sede, perto ali do… ali do Carlos Alberto, já não me lembro, e então eu vou lá, e disse “és o Edgar?”, “ah sou e tal”, “eu precisava de saber mais coisas sobre política” e ele disse “vem cá amanhã que eu trago uma coisa para ti” e no dia seguinte fui lá ele entregou-me uma coisa, um embrulho que era um livro… epá, vocês não querem crer para mim, que sou um trabalhador estudante, um gajo sem nenhuma cultura política, nem nada, e de repente abro aquilo que era o “Anti-Duhring”, em espanhol, do Engels, em espanhol! Epá eu considerei-me o gajo mais ignorante do mundo, pá, eu não conseguia perceber aquilo [risos], enfim. Portanto, a minha experiência foi essa, até que apareceu então um fulano, um amigo meu que é o Diamantino Carvalho que disse “olha lá, conheço aí um fulano que é um fotógrafo, acho que sabe muito de política vamos falar com ele” e fomos, era o Sérgio Valente e lá esteve, sei que conversamos imenso, o Vietname… aquelas coisas todas… antes disso ainda, em Janeiro, 31 de Janeiro, eu fui a um comício daquelas coisas dos republicanos, esses gajos da oposição democrática, e lembro-me que aquilo era uma coisa, eu acho que chegou a estar lá o Mário Soares, não fazia ideia nenhuma, não é, e depois houve uma grande confusão porque apareceu lá o Pedro Batista e mais uma série de gajos que começaram a insultar e aquilo ia tudo pegar à porrada, mas pronto, foi essa a minha primeira iniciativa e depois houve essas conversas com o Sérgio, passando uma semana nós estávamos já a distribuir panfletos do partido em Matosinhos às nove da noite. Portanto, essa foi a minha entrada para o partido.
Depois, mais tarde, rapidamente formamos uma célula… do partido, eu e o Henrique Sousa, que era dirigida pela Ivone Dias Lourenço que era a filha do herói do PCP, não é, como é que ele se chama? Dias Lourenço, era o Dias Lourenço e… e criámos aí a célula que ia desenvolver o Movimento da Juventude Trabalhadora. Mais tarde, veio o outro camarada, que era um amigo meu da escola primária, também morava ali perto, que era o Hermínio Basto, que morreu novo e era o homem da técnica do setor técnico, era um gajo absolutamente extraordinário nesse aspecto, um homem, um técnico do PCP, pá, e pronto, e há um momento que depois vou para a tropa, não é, e... é?
Entrevistadora - Quando é que foste? Em que ano?
Nelson Bertini - Fui em 72, fui para a tropa, fui…, eu como era, como tinha o curso e não sei o quê, eu já ia… quer dizer, fui fazer uma recruta e depois havia a formação e aí eu já ia para depois sair lá como Cabo Miliciano, que já era um bocado mais avançado, saí de lá como… fui depois para as Caldas da Rainha e depois fui fazer a instrução primária [risos] da tropa e depois fui para Tavira, onde era curiosamente… a malta da Soares dos Reis, normalmente, ia para a Fotocine, para a secção de formato da fotografia e cinema e daí também havia… havia malta que ia para a informação e propaganda e era uma coisa mais amena, a mim puseram-me logo como atirador, não é, eu depois percebi, porque eu entretanto fui preso numa manifestação aqui no Porto, eu fui preso duas vezes, uma vez numa recolha de assinaturas na via pública contra o aumento de custo de vida e depois no ano seguinte, ou um ano depois, fui preso numa manifestação contra o custo de vida que houve aqui no Porto e fiquei marcado, portanto, eu tinha depois aguardado julgamento no Tribunal Plenário, nessa altura, entretanto fui para a tropa e lembro-me que estava nas Caldas da Rainha, um dia o meu nome é lido no altifalante para eu me ir dirigir ao comandante da Companhia, cheguei ao comandante da Companhia e ele disse “epá, tens que ir para o Porto rapidamente, tens que ir ao Tribunal Plenário, o que é que aconteceu?” [risos] e eu disse “epá o que aconteceu é que eu fui preso” e ele disse “epá, vai lá” e lá fui. E quando regressei, eu percebi porque, entretanto, coincidiu mais ou menos na mesma altura, fui chamado para fazer provas para entrar para os comandos, eu que era um finguelinhas do caraças… para os comandos? Esses gajos fizeram umas cenas terríveis, com toda a malta a assistir, que era uma coisa, os gajos a chamar-nos maricas, a chamar-nos… quase a bater-nos, porque a malta estava a sabotar as provas… e depois como eu não passei, naturalmente, à tarde chamaram para as operações especiais eu disse “não, eles querem mesmo pegar comigo” e quando eu cheguei à conclusão de que não valia a pena, também boicotei, não é… boicotamos, a malta combinou e… e eu dei por mim, de facto, já não havia nada a esconder e então aconteceu uma coisa gira, porque naquela altura havia uma tensão muito grande já… já junto dos oficiais e principalmente dos milicianos, e… e o que acontece foi que, quando às vezes estava a chover, nós íamos fazer treino, íamos fazer a formação para uma caserna, e o Alferes dizia “então Lopes”, que eu era Lopes, “então Lopes, diga logo o que é que andou para aí a fazer”, pronto, e eu fazia conversas, contava a minha história política, toda a história e tal, e diziam qual era a minha ideia em relação à guerra em relação às coisas e, portanto, tinha ali um pelotão que estava… que estava sempre atento àquilo que eu dizia e perguntavam-me sistematicamente as coisas, portanto, eu depois brincava com aquilo, que o gajo aprendia, por exemplo, a fazer uma emboscada absolutamente fatal, mas depois a seguir no dia seguinte aprendemos a digamos a… a resistir a uma emboscada fatal e eu dizia “mas então o inimigo não sabe fazer isto?” [risos] e tal e aquilo… deu-se ali uma situação que, apesar de tudo, era confortável porque eu sentia-me… sentia-me apoiado porque as pessoas tinham tinham essa curiosidade, pronto. Entretanto, depois fui para Tavira fazer a tal coisa de atirador e pus a questão do partido, portanto, “o que é que querem que eu faça?” e, portanto, eu estava disponível para qualquer coisa, o partido sempre, sempre defendeu a ida para a guerra, etc… portanto, nunca defendeu muito a deserção, mas naquela altura disseram “olha, nós, se calhar, o melhor era passar já à clandestinidade, que a gente precisa” e pronto e assim foi. E com várias peripécias… porque estive várias vezes para passar e depois a coisa não funcionou, eu ainda estava na tropa e há um momento em que eu acabei a especialidade de atirador e depois fiz uma semana ou duas de férias e aí recebi a indicação para avançar.
A entrada no mundo da clandestinidade foi muito complicado porque… acho que houve exagero da parte de… isso depois foi reconhecido porque, quer dizer, eu ter que sair um domingo de casa dizer “até amanhã”, obrigaram-me a fazer isso, não faria sentido, ainda por cima dos meus pais… e eu saía a dizer “até amanhã” e não sabia quando é que ia voltar a vê-los. E depois aconteceu uma coisa muito má que eu fui para Lisboa, a instrução que eu tinha que ir para Lisboa no comboio, foi no comboio Correio que era aquele comboio que saía à meia noite e chegava às sete da manhã a Lisboa, epá e era numa altura de mobilização de… havia uma mobilização, portanto, aquilo parava em todas as estações e em apeadeiros com gritos alucinantes [risos] daquela malta… a despedir-se dos filhos, os filhos iam ser mobilizados… pá aquilo foi uma tortura do caraças, pronto. E nessa altura cheguei a Lisboa, tive que tirar umas fotografias, fui ao barbeiro, tinha que andar de fato, com uns óculos Ray-Ban, portanto, tive um bilhete de identidade, chamava-me Carlos Miguel Soares Lopes e pronto e fiquei ali naquela zona de Setúbal, estive em vários sítios… mas porquê? Porque, pouco antes de eu ir para lá, o Álvaro Pato, que era… o filho do Otávio Pato, tinha sido preso e portanto ele estava ligado às questões da juventude e eu fiquei lá e fiquei a trabalhar com a juventude naquela… portanto, houve várias preocupações e várias histórias.
Eu tenho uma história também muito engraçada que escrevi, mas depois quando se deu o 25 de Abril era curioso que nessa altura nós estávamos a preparar a criação da Juventude de Trabalhadores Comunistas, portanto, havia a UEC, os estudantes tinham uma organização e nós estávamos a preparar isso e… entretanto até cheguei a ir a Itália, em 73, fui a Itália juntamente com uma série de malta semi-legal e ilegal e clandestina, como eu e outros, e estivemos numa reunião lá durante uma semana com o Cunhal e com o Carlos Costa e o [impercetível], alvo erro, e estivemos ali a preparar isso, aliás eu tenho, estou convencido, isto pode não ser verdade aquele grupo musical… os Trovante, que surgiram, que foi uma direcção… e provavelmente também o UHF mas os Trovante, quase de certeza que eles eram todos turistas por ali, porque uma das direcções principais era criar grupos musicais, de jovens, era também para estudar os logotipos, as coisas do aparelho técnico, portanto, saiu dali uma série de coisas, isto foi em 73 em dezembro, pronto. Entretanto, veio o 25 de Abril… era curioso porque nós nessa estrutura para criar o movimento da juventude nós tínhamos reuniões aqui no Porto e a vinda de alguém como eu que estava em Setúbal era uma coisa complexa, não podia vir direto, tínhamos que fazer um certo corte, certo corte… e isto significou que no 25 de Abril eu estava a fazer uma pausa obrigatória de segurança, tínhamos que estar, uma semana da partida para a reunião, não podíamos sair de casa da mesma forma de uma semana depois, portanto, nessas duas semanas [risos] aconteceu o 25 de Abril e a gente não sabia o que havia de fazer! Ai, Spínola e não sei quê… isto não pode ser e tal… e então lembro-me que na véspera do 1 de Maio foi lá a minha casa, onde eu estava com a minha mulher da altura, que era a Luísa, e foi o Valentim Teixeira e disse-nos “opá vocês podem ir ao Barreiro, ao 1º de Maio, mas ficam um bocado à distância, a primeira coisa que vocês vejam, recuam logo”, porque aquilo, estás a ver, foi ali no Barreiro era… era um vulcão, não é, aquilo tinha… foi lá que se criou e abriu a primeira sede do partido… e, portanto, nós ficamos logo ali. Entretanto, rapidamente, eu tinha um Movimento da Juventude Trabalhadora, de Setúbal até Faro, não é? Quer dizer, era eu, era a Luísa, que estava grávida do meu filho, tinha uma barrigona do cara… foi para Almada, ela ia para Almada todos os dias, nós estávamos ali na Quinta da Marinha, não é, assim uma coisa qualquer… e eu andava com uma motorizada, não é, a percorrer, ia para o Barreiro, ia para o Seixal, ia para o Setúbal, etc. e andávamos ali, e havia ainda um camarada também, que morreu, que era o Virgílio, o Renato também, também entrou por funcionário, ficámos ali. E, portanto, a malta ia, por exemplo, de madrugada, íamos no mini, que gastava mais água que gasolina [risos] a atravessar o Alentejo, chegávamos de manhã à CP Faro, tinha lá um camarada do MJT, que dormia numa coisa da Estação de Faro, acordávamos, depois começávamos a fazer umas reuniões, e vínhamos por aí acima, pelo Alentejo. Era uma coisa absolutamente extraordinária, porque buscávamos um sítio, uma terra alentejana, e estávamos em uma reunião, e havia uma sala de teatro, um ginásio, uma coisa como aquilo, e estava cheio de gente, havia uns preparados ali, ainda por cima cheios de sono, cansados e… aquela gente, depois... depois coziam pão com chouriço, e vinho, e não sei o quê, olha era uma coisa absolutamente brutal, é tudo, não é? Vocês perderam essa, e ainda bem, mas perderam essa coisa notável neste país, que foi, de facto, um tempo a seguir à Revolução, porque nunca mais se voltou a ver isso, quer dizer, as pessoas... e demorou ainda algum tempo, demorou algum tempo, as pessoas estavam, sei lá… eu ia num autocarro, e era capaz de vir uma miúda, e eu oferecia uma flor, quer dizer, a malta toda, os autocarros eram sessões públicas de esclarecimento, de luta, de coisa… a malta toda queria... tinha coisas a dizer e tal… era um movimento imparável.
Eu uma vez, lembro-me, estávamos… só em Setúbal, nós tínhamos sete sedes, tínhamos seis mil gajos, eu não sei, tínhamos seiscentos gajos organizados, mas era aquela gente... “ó, ó, ó… ó Nelson chegou lá um gajo, pá, pegou à porrada com o outro, porque o gajo disse que a biblioteca era da responsabilidade dele, não tinha nada que mexer e tal”, “opá ó Nelson, os gajos estão a falar, a passar filmes pornográficos, pá… a gente vai lá, pá, e fecha aquilo tudo”, “olha o outro apalpou o rabo à rapariga, pá, e o pai foi lá”, bom, aquilo era uma coisa absolutamente gigantesca. E nós não conseguimos fazer nada, com uma particularidade, é que os gajos de Setúbal, nós tínhamos uma sede que até barcos tinha, é uma cidade… barcos… tinha aeromodelismo, era um... parecia um castelo, e o que é que aconteceu? Como o partido tratou muito mal o Zeca Afonso e o Eduardo Adelaide, aquilo criou-se ali um movimento logo muito negativo, principalmente, a filha do Zeca Afonso, que era uma dinamizadora daquelas coisas, não é? Um dia picharam as paredes da sede que havia para lá, e o que é que eles fizeram? Tomaram conta da sede, não é, do que era o MJT, portanto, nós íamos lá. Eu tinha uma sala onde eu estava, o resto... o resto eram eles que dominavam aquilo, eu ia... fazia questão de lá estar, até que um dia disse “não, isto tem que sair daqui”, fui lá com mais um fulano e tivemos uma reunião absolutamente surrealista, sabes o que é estares numa reunião a falar e os gajos que estavam na reunião não abriram a boca, eu acho que nem nos cumprimentaram, estavam ali, e nós a falar, a dizer que aquilo não podia ser e não sei o quê e os gajos completamente calados, foi uma outra experiência também muito curiosa, mas pronto. E a partir daí, entretanto, quando aquilo começou ali a organizar-se e houve uma decisão muito má, muito má, que eu considero sempre muito má… quando o partido acabou com a estrutura, digamos, partidária dentro, no fundo, com a fração comunista dentro do MJT. A instrução foi, juntem-se todos, misturem-se todos, tomem as decisões, etc, e assim pois… mas é que depois tens os outros gajos todos, que não sabes… e não tens ajuda, porque se tiveres uma fração, tiveres uma célula lá dentro, consegues combinar com a célula e fazer determinadas coisas, aquilo foi o fim, o fim do mundo, porque não se conseguiu controlar nada.
Entrevistadora - Vou voltar um bocadinho atrás [corte] para perceber ao certo, portanto, estavas na tropa, em Tavira, quando és novamente abordado pelo partido, é alguém que te contacta…
Nelson Bertini - Não, não, não… não, eu estava ligado a um funcionário do partido, não é, aqui no Porto, portanto, foi esse… não, foi aqui no Porto, foi cá no Porto, não é, isso é a minha… opá não me lembro quem foi com quem eu tive essa conversa. Quem andava cá, com quem nós falávamos, era com o Carlos Brito e com o José Carlos de Almeida, portanto, essas eram as figuras que eu conheço, embora andou por aqui também a Georgette… embora a Georgette acompanhava-nos na altura… era quem acompanhava a malta, fazia o controlo da malta lá em baixo no Barreiro, em Setúbal.
A Georgette tinha um problema complicado porque era muito franzina, já não era nova, não é, e andava sempre com os sacos e com umas agulhas de crochê e uns novelos e tal e depois trazia lá no meio resmas de papel, uma máquina de escrever, andava ali… epá e aquilo era uma situação complicada. Aliás, ela um dia ia caindo ao Tejo porque deu-lhe uma tontura quando ia numa passarela para entrar no barco e aquilo era uma situação complicada. E uma noite, agora eu vou-vos contar outra história, estamos numa reunião no Barreiro, eu e ela, com os jovens, e… houve uma tempestade muito grande e falhou, faltou a luz, faltou energia quase no Barreiro todo, era tudo escuro e ela disse “olha, eu se calhar vou ficar a dormir em tua casa”, então, vamos lá, apanhamos uns táxis, umas coisas, e quando eu cheguei à minha casa, acho que o nosso apartamento era no primeiro andar, portanto, não havia, nós
não tínhamos chave, não se podia andar com isso, era preciso, acho que como aquilo era visível à distância, havia um acordo, porque a camarada da casa tinha que estabelecer uma posição nas cortinas, nas persianas, que era para dar a ideia de que tinha uma coisa livre, porque não se podia entrar em casa sem ter esses sinais… e então, lembro-me que eu peguei e comecei a atirar umas pedrinhas, não é? Bom, e subimos, a Luísa percebeu, veio abrir a porta, tinha feito um bolo de bolacha, nunca me esqueço, e estivemos a comer o bolo de bolacha, a dada altura, pronto, fomos dormir, eu pus a tranca, porque aquilo tinha a porta, eu tinha uma tranca pesada de madeira, não é, e de repente, batem à porta. E eu disse “olha, vamos lá”, pensei nunca ninguém tinha batido à porta, foi uma coisa completamente inesperada, não havia eletricidade, não havia nada, e eu tive que raciocinar rapidamente, eu disse “bom, não vale a pena estar aqui a fazer fitas”, e o que é que vai acontecer? Tirei a tranca devagarinho, escondi-a, e entretanto, claro, a Luísa, a Georgette, ficaram ali assim atentas, e eu disse “vou abrir”, epá e abri a porta, então, quem era? Levei com uma flechada de uma lanterna nos olhos e disse “Boa noite” e tal e apontou para a mão, e tinha o bilhete de identidade da Georgette e disse assim “esta senhora mora aqui?” eu olhei e epá, quando olhei, vi que a pessoa estava de chinelos, foi assim uma coisa, está de chinelos, assim… e eu disse “é minha tia”, “é que há uma mala de senhora, que ficou lá embaixo, na porta, e a minha filha chegou a casa e viu, e nós estivemos a abrir, olha, venha cá abaixo ver, tivemos de a abrir para saber, e se calhar a senhora era daqui” epá, sabes o que é entrar na cozinha e ver não sei quantas velas, Avantes, dinheiro, documentos do PCP, foices e martelos… e o gajo era assim “quer conferir a ver se está tudo?” e eu disse “deve estar, deve estar, está de certeza” [risos] epá, cheguei cá em cima… porque ela esqueceu-se de… que trazia aqueles sacos todos, portanto, pegou nos sacos e ficou lá a carteira dela, pá, foi dramático. Depois houve uma discussão filosófica, quer dizer, nós dizíamos, bem “nós vamos arranjar isto”, nós começámos a destruir papéis, não é, na banheira, com lixívia, enfim, foi um truque que não se podia fazer, aliás, o Álvaro Pato, o filho do Octávio Pato foi preso porque estiveram a queimar papéis mais do que era normal, e os vizinhos chamaram a polícia, e eles foram apanhados por esse pormenor. E então começámos a discutir quem é que havia de sair da casa, não é, nós dizíamos que era ela, que era responsável, não é, e ela dizia que éramos nós, porque éramos os novos e eu disse, pá “está bem, caralho, mas acho que a gente não vai fazer nada lá para fora, quer dizer, tu é que tens que sair”, bom, e lá a convencemos, e ela lá foi, e nós ficámos em casa, à espera de ver o que acontecia, até que ela ao fim do dia, ela ao fim do dia acabou por aparecer lá com o carro de um camarada legal e saímos da casa. O remate foi que depois a casa ficou fechada durante uma semana, depois a Luísa, porque nós não podíamos deixar de abandonar casas, não é, a Luísa foi lá, passada uma semana foi lá sozinha, foi à mercearia, o que era normal, não é, porque nas mercearias sabes sempre o que é que se passa na zona e tal, portanto não havia nenhuma indicação, ela foi à casa, apareceram os vizinhos, e diziam “ah então”, “ah é o meu pai que está quase a morrer” e ela a chorar… deram-lhe chá e tal, e pronto, e resolvemos as questões, mas isso era a história que eu escrevi, que era a mala, escrevi uma história que é “A mala da Georgette”, depois um dia mando-te essas histórias.
Entrevistadora - Então, entraste na clandestinidade em 72, é isso? Nesse período em que vais para essa casa, é em 72?
Nelson Bertini - Sim, eu acho que é… que já foi, sim, acho que foi fim de 72, o princípio, o princípio de 73.
Entrevistadora - Ficaram nessa casa então?
Nelson Bertini - Sim, nessa casa abandonamos logo, não é? Nós entretanto já tínhamos estado também noutras casas, não é, noutras casas, mas que não eram propriamente casas do partido, eram de camaradas, e depois fomos para o Barreiro, mesmo para a casa também, de um camarada que partiu, deu uma instrução para eles alugarem a casa, e depois servia de apoio, nestas circunstâncias, não é?
Portanto do ponto de vista das casas clandestinas, estivemos para ainda… eu cheguei a estar, quando fui para a clandestinidade mesmo, estive num quarto, numa casa onde vivia uma senhora sozinha, que era adventista do sétimo dia [risos], porque eu tinha… eu passava o dia em casa, eu tinha que estar, estive uma semana, porque era para dar tempo também à Luísa também sair, porque a Luísa, nós já estávamos casados, e ela depois veio a seguir… e para dar tempo e para nós conseguirmos arranjar uma casa, e então era muito engraçado, porque a senhora achava que eu estava triste, não é? E um dia veio à minha beira e disse “olha, eu tenho aqui um livro que pode ajudar” e deu-me a bíblia “Ah, está bem”, porque eu não tinha nada, por acaso, nem tinha nada para ler, não é, eu só podia sair para ir comer ao café. Eu lembro-me que os operários, era um café onde comiam operários, depois começavam a conversar comigo, e um dizia “você não é nada peixeiro, você é mais carneiro, você só come carne e tal”, começavam logo a… um gajo era muito notado, aquela malta via tudo, mas pronto, tirando esses episódios mais…
Entrevistadora - Portanto, já conhecia a sua mulher antes, antes de ir para a clandestinidade, e ela também, que entrou na clandestinidade…?
Nelson Bertini - Sim. Sim, sim, sim, porque ela fazia parte de uma família, que ela tinha uma irmã, tinha duas irmãs que estavam a estudar aqui a trabalhar num laboratório, elas eram analistas e nós recebemos uma instrução do PCP para ir fazer o contacto com elas, que elas eram de Braga. Então eu lembro-me, nessa altura, eu sempre gostei muito de mulheres, e nessa altura eu tinha duas namoradas, da escola, daqui e de acolá, e um dia fui lá fazer esse contacto, foi um domingo, nunca me esqueço, e eu estava a falar lá com a Alina, que é a mulher do Henrique Sousa, e com o Avelino Gonçalves, o Avelino Gonçalves foi o nosso primeiro Ministro do Trabalho, foi o homem do salário mínimo, do subsídio de férias, dessas coisas, que era o meu cunhado, e eu estava lá em casa da Alina, nesse domingo, e de repente vejo assim uns cabelos compridos, pretos, a passar e disse “o quê?”, “ah, é a nossa irmã, que está a preparar-se, ela vai para Braga, ela veio aqui passar o fim de semana connosco”, ela despediu-se, foi assim um flash, eu não me esqueço, e eu disse “eu tenho que falar com ela” e, portanto, lembro-me perfeitamente, aquilo foi em Maio, fomos ao Senhor de Matosinhos, que meio que havia para essa altura, e em Setembro casamos. Mas casamos, pronto, gostávamos naturalmente um do outro, mas casamos por uma questão técnica, porque naquela altura, se nós não fôssemos casados, tínhamos mais dificuldade em fazer as coisas, em poder, digamos, estar presente ou ajudar o outro, e pronto, e portanto, essa…
Entrevistadora - E ela também entrou na clandestinidade ou tinha uma identidade também própria ou…?
Nelson Bertini - Sim, também tinha, também tinha, não, não, era clandestina, ela era a funcionária da casa. As mulheres nessa altura eram os elementos principais que faziam a segurança da casa, davam os sinais, eram quem ia à mercearia, quem ia às coisas, quem falava com as pessoas, nós tínhamos um… imitávamos o barulho de sair de manhã, depois andávamos de peúgas em casa, tínhamos a máquina de escrever, que tinha uma caixa que a gente fazia com espuma e com vidro para não fazer barulho, depois ao fim do dia fazíamos barulho como se tivéssemos chegado a casa, e portanto, mas a figura exterior era sempre, era sempre a mulher, não é? Era uma coisa lixada, porque nós ganhávamos… eu nessa altura, como desenhador, que eu era desenhador antes de ir para a tropa, eu ganhava não chegava a três contos por mês, três mil escudos, no PCP ganhava 600 escudos, portanto recebíamos, vestíamos era aquilo que nos davam, não é, o resto era o partido que dava, mas isso eram 600 escudos por cabeça, não é, e depois ainda tinha aquela coisa, suponho que eu ia à tua casa e tu me oferecias o almoço, eu tinha que chegar a casa e tirar do meu ordenado uma parte correspondente a esse almoço, não era a totalidade, mas aquilo havia um valor, esse valor, tu davas, oferecias um maço de tabaco, eu pagava metade, pegava nesse dinheiro e punha numa caixa ao lado, isso era uma recolha de dinheiro que chamava-se a solidariedade, porque depois o que é que para mim tinha que ser? Eu tinha esses contatos, não é, as companheiras da casa não tinham, então a malta, por exemplo… por exemplo, que estava a trabalhar nas tipografias clandestinas, esses não tinham contacto nenhum e, portanto, aquela ideia, era depois, todo esse valor era recolhido e era repartido igualmente por todos os funcionários, era uma espécie de subsídio de natal… e, portanto, a gente tinha de fidelizar, mas isso a propósito de quê? Porque quando, como nós, uma das obrigações era pagar sempre tudo o que se comprava e nas mercearias era muita prática, havia muita carência e dificuldade económica, e havia os livros de assentos, não é, portanto, a gente nunca usava o livro de assento e, portanto, quando vinha uma bola de queijo, quando me diziam “olha, tem aqui um queijo que é tão bom”, a gente não tinha era dinheiro, não é? Nós fazíamos todas as semanas o dinheiro disponível e fazíamos a conta para ver o que é que podemos comer com este dinheiro, que era basicamente para comer, não é, que a gente precisava, portanto, era assim, havia essa coisa. E o isolamento, não é, o isolamento.
Entrevistadora - Como é que foi lidar com essa situação?
Nelson Bertini - Olha, o isolamento, eu não sou uma pessoa assim muito dada a muitas saudades ou a muitas coisas, mas era a parte pior, por exemplo, era quando… foi, ainda apanhamos ali uma festa qualquer, já não sei se foi no Natal, não sei, qualquer, e isso aí custava um bocado, não é? Porque ainda por cima, por exemplo, os meus pais receberam uma vez uma carta minha que eu não escrevi, que veio de Moscovo, portanto, eles tinham a ideia que eu estava em Moscovo, eu não escrevi, nem mandei a carta, nem fiz nada e, portanto, nós não sabíamos nada, não é? Nós não sabíamos nada. Agora, há um outro problema que eu quero falar aqui. Não sei se tens no teu alinhamento, que é uma das coisas que eu, se puder, ainda hei de explorar melhor isso, que são as filhas da clandestinidade, não é? Porque isso é uma das coisas mais cruéis que, de facto, a malta era submetida, porque… nós sabíamos que se tivéssemos um filho na clandestinidade, ao fim dos três, quatro anos, ele tinha que sair e, normalmente, um dia ia para o estrangeiro, para um país socialista, etc. Epá, eu digo isso porque eu vi, a seguir ao 25 de Abril, o regresso de alguns filhos da clandestinidade e eu nunca vi, na minha vida, olhares tão cheios de ódio como vi em muita dessa gente que veio… aquilo não correu nada bem, não correu nada bem e não foi em um nem em outro, mas não era expresso, era a maneira de estar, a maneira de olhar… eles tinham formações superiores, eles sabiam falar, sabiam línguas, sabiam tudo, mas faltava ali qualquer coisa que eles nunca conseguiram compreender, não é. E, por exemplo, a Georgette incentivou-nos muito a dizer, vocês são jovens, vocês não sei o quê, vocês não têm filhos, eu acho que isso era uma das coisas que se calhar não devia ser incentivado, porque repare, se eu me disponibilizo para uma determinada acção em que ponho em risco a minha própria vida, quer dizer, não é um problema de um filho que me vai afetar, percebes? Quer dizer… a necessidade de ter filhos… pá eu percebo isso, quer dizer, mas nós estávamos numa luta, eu não posso faltar a luta, quer dizer, eu hoje estou aqui sentado e isto que eu estou a dizer é absolutamente verdadeiro, eu se for preciso, eu vou outra vez, pego na “canhota”, no que for preciso, não tenho a mais pequena dúvida, nem a mais pequena hesitação. Agora, não me obriguem a estar estes anos todos com a mochila às costas ou ali arrumada a penar, não é, à espera que possa vir o momento em que seja necessário e, portanto, há coisas que uma pessoa tem que ponderar, não é. Eu fui… quando eu fui preso duas vezes, por coisas mais ou menos insignificantes, mas eles sabiam, não é, aliás, eu tinha uma prima, que era mulher de um primo meu, que trabalhava na PIDE e eu soube só depois, não é, depois do 25 de Abril, através da datilógrafa, e tinha a minha fotografia na parede, nos “Procura-se”, eu estava no Barreiro, eu cheguei a… estava a ser vigiado, aliás, não me apanharam porque queriam ir mais longe, não é, quer dizer… esse tipo de relação, quer dizer, os silêncios, as coisas… mas, quando fui, das duas vezes, a carrinha entrou de marcha atrás e, portanto, entra de marcha atrás e tu vês o portão gigante metálico a fechar-se e dizes assim “bom, deixaste de ver o exterior e agora estás por tua conta”, portanto, esa ideia é absolutamente decisiva, estás por tua conta, estás aqui no covil dos gajos e agora temos que ver como é que vamos arranjar isto e, portanto, isso para mim é um bocado o limite, não é, da mesma forma que, a propósito daquilo de estar de joelhos, eu quando estive a intervir eu tive problemas complicadíssimos, pá, com os meus superiores e com aquela tralha toda da tropa, com aquelas coisas, eu não admiti aquilo, sempre em sentido, sempre ali e não admiti. Uma vez mandei calar um oficial, éramos mil gajos num refeitório à noite e entra um idiota que era um tenente que toda a gente chamava, era o tenente Caguei, era Caguei porque ele dizia uma frase e quando acabava a frase era “E caguei”, quando ele dizia era “olha, vai ali buscar não sei quê e caguei” então, pronto, coitado… e entra ali e a malta começa, nós levávamos sempre, que eram mesas de mármore, não é, de ardósia, era ardósia, e a malta tinha nos nossos armários uma púcara, uma púcara de alumínio e os garfos, portanto, o prato é que ficava, então aquilo fazia barulho… mil gajos numa coisa, não é, aquilo faz barulho. E um gajo entrou e começou a dizer que não queria ouvir barulho “Silêncio” e tal, mas aquilo havia sempre barulho, não é, e às tantas, o gajo começou a exaltar-se e começou a chamar de animais, ele era assim baixito “são uns animais” e nunca mais se calava, e a gente tinha, era em Tavira, nós queríamos sair do quartel para ir para o café, e naquela altura, aquilo irritou-me e eu disse “está calado” [risos] e o fulano veio furioso “quem é que disse, quem é que disse? quem é que mandou essa bobeira?”, eu pus-me em sentido e disse “fui eu que mandei”, então saia, saia, saia, vai para o meu gabinete, vai para o meu gabinete”, eu lá fui, não comi, e os sargentos “epá, estás lixado… e o gajo é maluco”, quando acabou a refeição, ele vem por ali disparado e disse “o que é que você fez? é gravíssimo, gravíssimo, você mandou calar um tenente, você mandou calar um tenente”, e eu sempre em sentido, máximo rigor, e comecei a dizer “não, desculpe, isso não é completamente verdade, eu mandei calar uma pessoa que me estava a chamar, embora indiretamente, de animal, cavalgadura, etc., essa pessoa, por acaso, era o meu tenente, olhe, se tiver forma de provar que eu sou isso tudo, eu só tenho que lhe pedir desculpa, se não, tem a faca e o queijo na mão e decida” e [risos] eu ainda estive mais de meia hora a dizer as mesmas coisas e o gajo ia “vais ser preso” e não sei quê “já ia ficar com ele a noite toda a tomar conta do quartel” e mais não sei quantos… e depois daquilo tudo, disse “olha, vá-se embora, vá-se embora, e sabe porque é que vai embora? Porque você não esteve aqui a inventar histórias” [risos] não me esquece, portanto, esse lado, um gajo estar perante o outro que tem um poder enorme, sempre foi… e tive situações mais complicadas, que é essa que estou a contar, esse aqui é apenas um exemplo, portanto...
Entrevistadora - Por exemplo, quando tu foste preso, como é que foi essa situação? Tu foste preso porque estavas a distribuir numa manifestação?
Nelson Bertini - Não. Eu fui preso, a primeira vez, estávamos a fazer um abaixo-assinado, quando era o momento de me distribuir, o que é que era um abaixo-assinado? Estávamos a sair... opá era uma coisa completamente... estás a ver o que é um abaixo-assinado, tu ias numa paragem de autocarros, estava aquela pessoa na fila “olhe, temos aqui um abaixo-assinado contra o aumento do custo de vida”, a quantidade de gajos que não sabiam assinar, gajos que não sabiam ler, era enorme, portanto, a gente viu que não dava grandes resultados, então pensamos, bom... porque havia grupos, brigadas, então vamos arranjar assinatura de malta ali que sai das fábricas e fomos para a zona industrial e vinha aquela malta, os operários e tal e aí já era mais fácil, já havia aglomerações, os gajos ouviam o que a gente dizia e tal. E… e há um momento em que eu vi que havia um carro que já tinha passado por lá duas ou três vezes e eu estava assim, afastei-me para falar com um gajo, e eu disse “há aí um carro, isto vai acontecer aqui qualquer coisa” e de repente há um polícia fardado sozinho que vem por ali com um despacho do caraças e eu guardei o meu abaixo-assinado no bolso interior de casaco, e era o Paulo Teixeira de Sousa, e era uma jovem universitária, que eu não me lembro o nome, e estavam com um fulano, reunindo assinaturas, e eu estava do outro lado do passeio, e o polícia chega ali e diz assim... “estão presos”, prendeu-os, prendeu-os, epá, eu deu-me uma coisa e dirigi-me lá “o que é que se passa então?”, “e você também está preso”, “ah, eu?” e o gajo... “eu bem o vi a meter isto aqui” e o gajo queria-me meter a mão e eu bati-lhe e o gajo pegou na pistola, e foi ali uma cena do… e eu disse “não mexe aqui” e nós… bom, acabamos a ir os três para a esquadra, até lá, que o gajo apanhou por ali fora, portanto... Ah, porque eu entretanto... eu disse... “mas olhe, você está-me a prender, mas eu tenho mais que fazer, eu trabalho, eu não estou aqui por acaso” epá e, eu pus a mão e encontrei um poste com uma paragem de autocarro e eu não conhecia aquela zona, nunca tido ido para ali e eu disse “eu estou aqui”, “mas está aqui a fazer o quê?” eu “estou à espera do autocarro” e ele disse “autocarro” e eu olhei e aquilo era só um poste, não tinha paragem nenhuma [risos] pronto, lá fomos, não é, no meio do caminho, o coiso... o Teixeira de Sousa tentou deitar fora um maço de autocolantes para a liberdade dos presos políticos e o polícia apanhou e depois quando…, quando chegámos à esquadra da polícia, foi muito engraçado, porque eu tinha... no meu... na minha carteira, uma poesia, que eu também, de vez em quando, gostava de escrever poesias, mas tinha uma coisa que era uma coisa meio burlesca, que era a história de dois irmãos chineses, que era o fu e o ku [risos], o fu meteu o dedo no olho do ku, enfim, era aquelas coisas… e o polícia começou a ler aquilo e disse... “o que é isto? Mas isto aqui é estranho, isto é estranho” epá e o gajo... o gajo estava à rasca, o gajo era o chefe da esquadra. Eles, entretanto, tinham recebido indicações que iam chamar a PIDE, tinham que chamar a PIDE, e os gajos tinham um medo da PIDE que era uma coisa do caraças… eram... mas essa eu disse “bom, mas olha, eu tenho que ir urinar” e então, ainda consegui ir à retrete lá da esquadra, com a polícia ao meu lado, quase em cima de mim, e eu, ali, a destruir… ainda consegui destruir umas coisitas que tinham uns nomes e umas… e eu, ali, a destruir... que estupidez do carago. Depois fomos para a PIDE, não é? Chegámos lá à noite, já depois do jantar, e pronto, depois os advogados mexeram-se e nós saímos no dia seguinte, essa foi a primeira. A outra foi mais complicada. E já agora, conto uma história que não é compreensível, e provavelmente ninguém acredita, porque nós fizemos uma mobilização muito grande e tal, como se calhar já te disseram, com aquelas bombinhas, aquelas petardos de foguete, para distribuir panfletos, etc, etc., eu a mim calhou-me para ir deitar uma caixa dessas à saída da EFACEC, eu tinha uma mota vermelha, que nunca me esquece, tinha uma mota… entretanto, chegámos à EFACEC e estava cheio de gente [risos] e eu pensei “a saída é à hora não sei o quê”, mas não imaginei que estivesse tanta gente à espera de malta que estivesse a sair, familiares… epá e eu não sabia o que eu queria fazer, eu tinha a mota escondida, tinha o capacete aqui, e tinha a caixa, e era preciso acender o pavio… e eu disse “não, eu tenho que fazer isto”, lá fui fumar, não é acendi aquilo, depois fiz de conta que estava a apertar o sapato e deixei ficar a caixa no meio da malta e fui-me embora [risos], epá quando eu dei a volta e passei por aquela zona, já pela Via Norte, os papéis todos no ar, porque aquilo tinha um efeito do caraças, não é, bom, e nós organizamos aquilo. Estive com o Henrique, um fim de semana estivemos num parque de campismo, num bangalô, a estudar o comprimento necessário daquilo para a gente saber quantos minutos tinha e, portanto, estávamos muito ligados à organização, à organização disso. Lembro-me uma vez de um amigo nosso, que já morreu, era o Caetano, e havia uma distribuição de panfletos de noite e era quase meia-noite e o gajo ligou, portanto, porque eu estava a fazer o controle em casa das brigadas, e o gajo ligou-me assim, era quase meia-noite, e disse “ó Nelson, eu estou aqui à espera, não aparece ninguém para ir ao cinema”, o que era o cinema? Era para a gente disfarçar, eu disse “está bem, está bem, vai embora”, o gajo continua à espera, “epá não aparece ninguém para ir ao cinema”, não havia cinema à meia-noite ainda por cima… naquela altura, não havia nada, enfim, era muito engraçado. E o partido disse “vocês podem… não podem ir à manifestação, vocês ficam na Sé”, Sé do Porto… epá qual Sé, qual quê? Os gajos, entretanto, fecharam o trânsito, porque não era comum nessas manifestações, fecharam o trânsito todo ali na avenida e na praça… epá e havia ali um silêncio sepulcral com milhares de pessoas, começou a aparecer... porque andávamos… ali naquela coisa… à volta da estátua do cavalo e, de repente, eu e a Luísa estamos no meio das coisas, a gente sabia que era dali, mas foi assim uma coisa, não se conseguia explicar. Bom, quando o Fernando Pessoa, que era um estudante de Medicina, que tinha que avançar uma pequena bandeira nacional ao ar, que era para dar início àquilo, o gajo inicia aquilo e nós estamos rodeados de polícias à paisana, a meter umas fitinhas coloridas no casaco e a tirar os safários epá… e a determinada altura o Domingos Oliveira, com mais uma cambada, estavam, tinham levado um cartaz, um pano, embrulhado à volta do corpo e abriram-no e estavam assim [abre os braços], agora a história, que ninguém conhece, é esta, eles estão de costas, estão a abrir o pano e há dois polícias que começam a pegar nos cassetetes para lhes bater pelas costas. Eu ia… que é aquelas coisas que um gajo nem pensa, não é, eu ia dar um salto para me agarrar a um polícia, pelo menos, para evitar que ele batesse… e eu via a Luísa “largue-me, largue-me”, “está presa, está presa”, era um gajo agarrado à Luísa, a prendê-la, e não é que esses dois gajos, polícias à paisana, que iam bater no Domingos, viraram-se para trás e começaram a bater no gajo, começaram a bater no gajo e o gajo “eu sou polícia”, partiram-lhe um dedo, era da PIDE o gajo! Ouve… o gajo, eu vi-o depois na PIDE com o dedo partido… e o gajo “eu sou polícia” e o gajo “vá-se embora, seu filho da puta” pa, pa, pa, caí, puxei, começamos a correr, entretanto, levei uma cacetada, dei uma cambalhota e fiquei sentado no chão, eu tinha o cabelo comprido, os gajos agarraram-me com o cabelo atrás, torceram-me o braço e levaram-me assim, que foi a parte pior, foi quando vinha a malta, ainda havia aquela passagem subterrânea ali na praça, os gajos vinham de lá pareciam malucos com os cassetetes pa, pa…. e um gajo estava indefeso, enfim, portanto, foi essa, a segunda vez. E por isso é que houve uma parte, o Domingos e outros, que ficaram presos numa sala coletiva, eu fiquei numa sala individual e, entretanto, a Luísa também foi presa e ela ouviu-os a dizer “o marido também já está” e eu não sabia que ela tinha sido presa, daí que no dia em que tivemos a primeira visita, eu achei estranho ela não vir “então onde é que está a Luísa?” e tal… e os meus pais ficaram assim “ah, não a deixaram vir”, “não deixaram?”, porque às vezes havia essa pressão, essa chantagem que eles faziam e eu ia começar a protestar e o meu pai disse “mas ela também está aí” [risos], eu não sabia, enfim… pronto, e, portanto, essa foi a minha coisa…
Entrevistadora - E ficaste preso durante quanto tempo?
Nelson Bertini - Opa, acho que foram duas semanas ou três semanas, uma coisa qualquer.
Entrevistadora - Como é que foi?
Nelson Bertini - Opa, quer dizer, o problema da prisão é aquilo que eu te disse… um gajo está ali numa tensão a dizer “eu tenho que aguentar isto”. Já agora também posso contar uma história, eu chorei por causa de um guarda prisional, é que havia a PIDE e depois havia os gajos que guardavam as alas e… e guardavam as alas e esses eram da guarda prisional, portanto, não eram propriamente PIDE’s, eles chegavam com uma requisição, entregavam a requisição, ele entregava ao preso e depois devolviam aquilo, bom, e há um momento em que… isso foi num sábado, a manifestação, e eu fumava, eu não tinha tabaco e o guarda… eu disse “olhe, eu precisava de tabaco” e ele disse “não, só na segunda-feira”, eu disse “tudo bem, só segunda-feira” e eu ouço uma cela ao lado, um gajo, uma voz a dizer assim “eu tenho aqui cigarros”, “eu não posso, eu não posso fazer nada disso”, “ei ó senhor guarda, tem aqui cigarros, tem maços” e lá convencemos o gajo… e o gajo perguntou “que marca é que fumas?” e eu disse “fumo qualquer coisa” [risos] e achei piada ao gajo, porque o gajo não me chateava muito, porque a gente durante o dia não podia estar na cama, não podíamos estar sentados, não podíamos estar a nada, estávamos ali e, às vezes, chegavam os agentes “levante-se!” aquela coisa, bom, mas uma noite, eu estou lá, no meio daquele silêncio, pá e era esse guarda que estava de serviço, os gajos tinham uma mesita e um daqueles candeeiros assim metálicos de dobrar e eu ouvi um balancear, não sei quê cimento, não sei qu… tijolos… o gajo estava a fazer uma lista de material, da casa que ele estava a construir pá… e eu comecei a chorar, aquilo comoveu-me, pá… eu era assim “porra, pá, que mundo do caraças”, não é, um gajo está ali, está… mas a sério, ele estava a fazer, porque eu espreitar assim de lado, eu ouvi o gajo, assim, pá, porra, pá… e a pensar, mas a que propósito é aquilo, não é? É que um gajo sente alguma piedade, alguma pena daquilo, mas isso é bom, acho que é o ser humano, pá, que está aqui, não é, nós somos assim, aliás, se estamos lá, é por isso.
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Sabes que uma coisa, no início, quando eu comecei a ter o contato com a política organizada, eu dizia sempre que um dos meus objetivos era a felicidade, a malta nunca entendeu muito isso, aliás, a malta da esquerda não entende muito isso… até deve achar que isso é um bocado... pequeno-burguês ou… é isso e a cultura, a cultura, a cultura…. a curiosidade e a cultura. O Domingos Oliveira, não sei se te contou uma história… quando um gajo no meio de um ambiente hostil, muito hostil, familiar, em que o pai batia nas filhas, se as apanhava a ler, porque dizia de facto que as mulheres não tinham potencial, e portanto, que as mulheres não tinham era que trabalhar… e ele, um dia, ele morava... a 18 quilómetros de distância do Porto, ele, um dia, veio a pé à feira do livro comprar um livro sobre o átomo, porque tinha curiosidade de saber como é que funcionava a bomba atómica e voltou a pé, quer dizer, tu hoje tens à ponta dos dedos as coisas e ninguém se mexe por isso. Essa história… aliás, eu todos os 25 de bril, nos últimos 10 anos, tenho escrito a tal historinha e este ano estou inclinado que a história vai ser chamado “O livro do átomo”, porque tem a ver… aliás, 55 anos depois, depois do surgimento do MJT, 55 anos depois, nós estamos confrontados com a mesma situação, porque estamos com a iminência da guerra, nós tínhamos nessa altura a guerra, estamos com a iminência da guerra, com as ameaças nucleares, com essas coisas todas e, portanto, a minha história vai ser um bocado o homem que se, naquela altura, há 55 anos, olhava e via que do outro lado do grande oceano estava, de facto, a origem do mal, porque é de lá, é de lá, podem vir todos dizerem o que quiserem, mas é de lá, se tirarmos aquela malta, isto era muito melhor… e, portanto, estamos outra vez nisso, percebes? Portanto, essa circulatura do quadrado… [risos] e eu vou tentar fazer isso, portanto, a minha posição na vida é essa, e como te disse, como vos disse, eu se for preciso amanhã pegar numa coisa qualquer e pôr a mochila às costas, eu vou, mesmo com problemas na próstata e com dores nas costas, mas eu vou, portanto. Ouve, às vezes, a malta diz “ah vocês tinham uma coragem”, não era, claro, havia algumas coisas, havia sempre alguma coragem física, tinha que ser, mas era um problema de decisão, quer dizer, tu tinhas ou uma posição ou outra. Agora, há uma coisa que nós temos que ter consciência, é que qualquer da nossa posição, qualquer da nossa opção, tem custos, isso tem um custo e tu tens que pagar esse custo, quer dizer, eu não posso dizer “eu vou-me meter ali e levei com uma pancada e agora estou aqui a chorar, sou muito desgraçado” não, eu fui lá, nunca me ouviram queixar, nem das prisões, nem das coisas, nem das restrições, nem do medo, não é, do medo, a clandestinidade era uma tensão permanente, era medo.
Entrevistadora - Além de saberes depois que estavas a ser vigiado e que eras procurado, tiveste alguma situação nesse período da clandestinidade que sentisses que estavam atrás de ti ou que tivesses…?
Nelson Bertini - Sim, sim, sim, sim, sim. Uma vez houve uma reunião num fim de semana, que era o que era o… do MJT em Coimbra, e nós tínhamos um fulano que era o irmão do Judas, era do Maneca Tim, que era aquele Judas que chegou a ser presidente da Câmara de lá de baixo, já não me lembro, Cascais… era o irmão… e nós tínhamos combinado com ele, portanto, eu precisava de saber o resultado da reunião, portanto, ele vinha de Coimbra e depois arranjamos uma forma e tínhamos um encontro marcado, que ficava ali na Trafaria, não me esqueço, epá e o gajo veio num carro, que, ainda por cima, era um carro velho, que estava a funcionar a três cilindros, e veio ter comigo e eu perguntei-lhe “fizeste algum corte?”, “não, pá, fiquei lá, aquilo é para tarde, depois não sei o quê, eu vim direto”, bom, passado um bocado, fomos lá para uma bouça e aparece um Volkswagen preto, e saem dois gajos, e ficam ali a olhar para nós, relativamente perto, mas nem eles se mexeram nem nada, eles estavam a fazer aquilo porque estavam, de facto, a seguir os passos das coisas e, portanto, aí, quer dizer, o medo é, é… há ali uma adrenalina, não é muito o medo de ir preso, é o medo de toda a complicação que lhe pode dar, era nesse sentido. Nesse sentido de medo físico, daquela coisa, não me lembro, olha, então, não, há uma altura que senti medo e senti medo, e tive uma… foi a única vez na minha vida que eu estava convencido, é assim “eu tenho que matar este gajo”, eu tinha que matar um gajo, foi quando fui a Itália, quando fomos a essa reunião na Itália, no regresso, os italianos ofereceram-nos algumas prendas e uma delas que nos ofereceram foi um porta-moedas de senhora e eu achei aquilo com piada para trazer para a minha, para a minha mulher, não é? E fiz, e isso era um erro, porque a malta não podia trazer nada, aliás, deixamos ficar um saco com as peúgas, com as cuecas e o caralho, num sítio qualquer, porque não podíamos, eu não tinha assim, eu tinha uma gabardina com os bolsos e há um momento em que o passador, aquilo havia uns passadores, não é, o passador deixou-nos ficar num determinado sítio na fronteira, ali perto de Chaves, e era eu e outro, e o passador era um velho lavrador que trazia uma enxada e nós começámos a ir pelo meio da bouça, o gajo com a enxada, não é que a partir de um determinado momento sai de trás de uma pedra um Guarda Fiscal… e o gajo aproximou-se, olhou para nós, eu olhei para o passador e o gajo começou a ficar amarelo e eu disse “ei” e diz-me o gajo “vocês de onde é que vêm?” e eu assim “nós viemos da Espanha”, “e o que é que foram lá fazer?”, “ao médico”, porque havia, nessa altura, como havia falta de médicos aqui, havia muita malta que atravessava, aliás, nós para lá, quando atravessámos ao contrário, a gente ia ali cheio de cuidados e havia malta a rir-se, portanto, aquele momento ali da raia, não é… “foi ao médico” e o gajo, com um ar absolutamente desconfiado, olhou e então olhou para mim e viu que eu tinha aqui um volume no bolso e disse “o que é que leva aí?”, “é uma coisa minha”, “mas o que é que leva?”, “é minha” epá e começou-me a subir aqui a adrenalina, e não é que o gajo, pá, vem com a mão para ver o que é, eu seguro-lhe a mão e ele põe a mão na pistola, não é, ele põe a mão, não tirou, põe a mão na pistola, ficamos a olhar um para o outro, eu tirei a mão e fui e dei-lhe aquilo e o gajo rasgou o papel todo… viu ali que era um porta-moedas, entregou-me aquilo assim com um ar desconfiado, eu não tinha nada, não é, mas eu disse “eu tenho”, a sério, quer dizer, “eu vou matar o gajo”, eu tinha que o matar, porque eu não sentia, não tinha outra ideia, porquê? Eu era desertor [risos], eu era clandestino [risos], no meio daquela bouça, pá, o outro gajo não dizia nada, o lavrador estava a tremer, e às tantas o gajo entregou-me aquilo e eu comecei a andar, e começámos todos a andar devagarinho e o gajo também atrás de nós, portanto, daí, passado pouco tempo estávamos na estrada e tinha chegado o passador, o passador deixava-nos depois de carro, passava na fronteira e apanhava-nos naquele sítio, o sítio onde chegámos cá de cima, tinha uma casa, e os gajos foram para lá, o Guarda-Fiscal, o lavrador e o passador… e passado um bocado veio um gajo, o passador, “epá vamos embora, vamos embora” e fomos embora, mas eu… sinceramente, nunca tive essa sensação, assim, pá, “eu vou matar o gajo”, eu tinha, quer dizer, ouve, não, era irracional, foi aquela coisa, não, “eu vou matar o gajo”, foi das situações mais desconfortáveis que eu passei na minha vida, mas, quer dizer, não, era assim “ai, mas havia aqui uma iminência?”, não, quer dizer, mas eu estava focado naquilo, eu estava a ganhar, a ganhar, porque, quer dizer, isto de lhe pegar no braço, e tirar-lhe, “sou eu que te vou a mostrar” e o gajo pôs a mão à pistola, e eu disse “não”, são coisas em segundos, mas pronto, mas não fiquei traumatizado [risos].
Entrevistadora - Então, quer dizer, eu acho que essa pergunta ainda não ficou respondida… do… o porquê? Porque é que um jovem, como tu, decidiu… dar a esse, a dar todo a esse, a dar a vida, a dar… a abandonar uma vida que se tinha, com os pais, irmãos… porquê de querer ser funcionário e ser clandestino?
Nelson Bertini - Pá, o essencial, e não foi só, em relação àquilo que eu estou a fazer, é uma linha constante, é a injustiça, a injustiça foi a principal mola disso, quer dizer, eu nunca convivi, convivi bem com a injustiça, não consigo e, portanto, naquela altura, porque é uma coisa assim, eu às vezes digo assim, eu vou no autocarro, ou estou numa loja, ou qualquer coisa, se houver uma reação qualquer de alguém, por exemplo, antirracista, alguém que provoque um preto, uma coisa qualquer, eu vou reagir, eu sei que vou, eu vou reagir e vai ser uma reação um bocado explosiva, porque está cá, não é porque é uma questão ideológica, nem é por nada, é esse o sentimento, é esse o sentimento. Da mesma forma que sou exigente comigo próprio, sou exigente com as pessoas, e com tudo que se combina, e com a lealdade, por exemplo, eu hoje o que sou, nos últimos anos, sou fruto do PCP, quer dizer, não é do PCP estrutura política, é do PCP organização, quer dizer, a pontualidade, para mim, é uma coisa absolutamente essencial, a organização. Há uma coisa terrível que a malta aprendeu lá, que se habituou, que é tu não consegues… eu não consigo fazer, mas não sou só eu, eu já tenho falado disso, eu não consigo fazer a análise de uma situação qualquer que seja, ou de conhecer uma pessoa qualquer que seja, sem ver, sem a estar a analisar tridimensionalmente, a bidimensional não funciona, e isso é muito estranho, porque cria uma relação com o outro que pode parecer, estudada, planeada, o outro pode aperceber-se disso, quer dizer, mas aquela coisa de, tu estás a ver uma situação, estás a imaginar o que é que está ao lado, a imaginar o que é que vai acontecer a seguir, ou o que é que pode acontecer, percebes? E isto é uma coisa que não é, quer dizer, não é de propósito, estás numa coisa daquelas e tu… quer dizer, eu tenho algum sucesso, tanto em termos profissionais, e não sei o quê, e de falar com as pessoas, etc, porque eu acho que sou suficientemente flexível, mas também sei conduzir as coisas, não é, e sei até onde é que uma pessoa pode ir, onde é que tem que recuar, onde é que tem que valorizar isto ou valorizar o outro e isso é uma coisa que se aprendeu na política, na política a sério, percebes? Às vezes, fala-se que a política, normalmente, não tem nada de sério, porque nem sequer é muito estruturado, mas nós temos isso estruturado.
[corte]
Entrevistadora - Então, agora voltando só mais um bocadinho atrás…
Nelson Bertini - Volta outra vez, faz as perguntas todas.
Entrevistadora - Portanto, estávamos na clandestinidade lá em baixo, em Setúbal, estás nessa casa que depois têm que sair, por que mais casas passas, ou já… depois quando regressam ao Norte e é quando se dá o 25 de Abril ou estás lá no 25 de Abril?
Nelson Bertini - Eu estou lá no 25 de Abril, que foi aquela história que eu contei, não é, que estava lá preso, quer dizer, estava em casa, não podia sair porque tinha essa instrução, estava a preparar uma reunião cá. Sim, lá na clandestinidade eu acho que estivemos em três casas, mas uma delas era mesmo uma casa alugada pelo partido, eu acho que estivemos em duas delas, era mesmo alugada para nós e depois estivemos numa outra que foi alugada por um camarada, legal, não é, que recebeu a instrução de alugar aquela casa para a gente voltar lá. E… e depois aconteceu o 25 de Abril, tivemos toda aquela explosão, eu posso dizer, está a ver, que eu saí de casa às 8 da manhã e regressei ao Porto para ver a família três meses depois. E depois foi uma coisa muito interessante, porque eu regressei três meses depois, como eu tinha, era desertor, eu tinha um problema, tinha que resolver a situação militar, e então, há um dia que o partido disse-me “o melhor é ires entregar-te” e eu fui ao quartel-general e disse “olha, eu sou desertor”, o gajo toca numa campainha e vêm uns gajos com metralhadoras [risos] e depois “epá, que é isto” e tal “eu vim aqui voluntariamente”, foi uma confusão, depois veio o oficial de dia “ah não, nós aqui não podemos receber desertores” e eu disse “epá, então eu venho me entregar e vocês não recebem?”, “não, escolha aí um quartel”, eu fui ao quartel de transmissões e disseram “opá, então você vai já, de marcha, vai já para Tavira”, porque eu desertei em Tavira, e então foi muito engraçado porque nessa altura eu já usava barba e digo… bem, uma semana antes tinha havido uma autorização aos militares de poderem usar barba, e então eu vou pela noite fora, não é, até Tavira e, claro, começo a caminhar a pé para o quartel. No quartel há aquela cerimónia que é a entrada do comandante, em que está uma fanfarra, está o oficial de dia e tem novamente o sentinela, eu começo a aproximar-me e está tudo montado para receber o comandante, os gajos ficaram um bocado confundidos porque eu ia com uma mala, ia à civil com uma mala, ia com a barba e estava a aproximar-me, quer dizer, não ia…. objetivamente ia ali, intensamente aproximando-e do quartel, o soldado começa a gritar “às armas” e quando chegou o comandante [risos], o gajo dá um grande grito “às armas” e gajo começa a gritar e o sargento a bater-lhe “meu comandante, meu comandante”, enfim foi uma confusão militar. O que é verdade é que depois deram-me uma farda, que cabiam dois lá dentro, sem nada, sem identificação nem nada e eu estive… pensei que ia lá resolver o problema e vir embora, não, estive lá quase 15 dias, estive lá. E depois aconteceu uma coisa muito desagradável, porque estive lá 15 dias e como eu não estava com um atavio, eu estava numa caserna sozinho, onde apareciam os mangas, aqueles gajos que fugiam às coisas, iam para lá contar anedotas e fazer-nos rir, mas aquilo era tudo clandestino e… e eu, por exemplo, para comer, eu não podia estar nas formaturas, porque aquilo para comer um gajo tem que ir fardado e tal, não podia ir e os gajos “saia daí e tal”, eu estava todo fora do esquema e então… via-me à rasca com aquilo e há um momento que os gajos disseram “bom, agora não conseguimos resolver isto já, vai para casa”, mas eu não tinha dinheiro, não tinha nada, eu não ia preparado para aquilo, então dou por mim, para já a fazer um esforço do carago, que a gente para sair do quartel tinha que estar na formatura [risos] e eu dou por mim, tínhamos que sair fardados, a pedir ao oficial para me deixar sair e mostrar-lhe o papel e de repente estou fora do quartel e dizem “agora como é que eu vou para casa?” e então aparece lá um outro bacano também e disse “epá, eu vou para Lisboa para ver se a gente conseguisse arranjar uma boleia” e fomos para a estrada e passou um taxista, tinha ido levar uma pessoa de Lisboa para Faro e depois ia para Lisboa e, por acaso, fez a viagem, porreira, e depois queria que a gente pagasse [risos] quando tinha chegado, eu fiquei assim “epá a gente não tem dinheiro” [risos], foi uma chatice, bom, e eu pensei, eu estive aqui na clandestinidade, vou à sede do partido e vou pedir dinheiro para ir para casa. Era o Santo, o nosso camarada Santo do comité central, era o que já nessa altura, quando a Georgette foi afastada dali, depois era o Santo, era um homem absolutamente… porra pá… e eu dirigi-me a ele e disse “ó Santo, acontece isto” - e eu era funcionário do partido - “acontece isto, pá, eu vim agora sair do quartel e ir para casa, venho aqui ao partido para ver se me empresta dinheiro para o comboio e tal” e ele olhou para mim e disse assim “o partido não está aqui para ajudar os problemas pessoais de cada camarada”, eu fiquei a olhar para ele e eu disse “olha, desculpa, eu não estou a pedir para mim, eu sou funcionário do partido e tenho que me apresentar no Porto, mas não me digas mais nada” e fui bater à porta do camarada mesmo, se me emprestava dinheiro, portanto, são também histórias que não são muito dignificantes… nessa merda, mas enfim.
Entrevistadora - E uma outra questão, que era como é que se dava o contacto com o controleiro? Ou seja, era essa…
Nelson Bertini - Era o controleiro.
Entrevistadora - E foi esse Santo que depois ficou o controleiro?
Nelson Bertini - Sim, esse Santo, saiu a Georgette, porque estava de facto com problemas físicos e de saúde e assim… e depois foi o Santo. Nós tínhamos uma... tínhamos, portanto, aquilo marcavam-se reuniões, às vezes, marcavam-se reuniões com um mês de antecedência. Por exemplo, quando fui à Itália, eu tinha que estar… eu tinha uma série de coisas que tinha que fazer e se falhassem, eu tinha dali a 15 dias uma reunião marcada numa gare, não sei onde, em Paris, ok? Portanto, quer dizer, estava tudo e a gente tinha que ter isso tudo na cabeça. E portanto, ali na clandestinidade aquilo também era assim, eram coisas muito combinadas e muito rigorosas. Esse Santo… nós tínhamos ali no Distrito de Setúbal, tínhamos uma coisa terrível, que era o cruzamento de Coina, estava sempre lá um carro da PIDE, com um gajo, portanto. Há uma coisa que eu demorei imenso tempo a perder… e depois, claro, apareceram os passes e assim e a gente deixou, porque era, por exemplo, nunca guardar o bilhete de transporte, a gente tinha que levar sempre na mão o bilhete. Porque se houvesse uma entrada intempestiva da polícia, a gente largava o bilhete, porque o bilhete podia dar indicação de onde a gente vinha e, portanto, depois do 25 de Abril, durante anos, ainda andava ali e nunca guardava o bilhete. E então, ali naquela situação de Coina era complicado, então o Santo, que era um gajo absolutamente incapaz de ter uma alegria, ter alguma coisa qualquer, uma piada… era um gajo absolutamente frio, ele quando esteve preso, eu li numa história que ele conseguiu domesticar uma salamandra, portanto, quer dizer, um gajo que domestica uma salamandra é capaz de fazer tudo e então… ele escolheu para mim os percursos, que eram os percursos mais inconcebíveis, eu saía de cá, por exemplo, eu estava no Seixal e morava relativamente perto de uma estação da Marinha que havia lá e o Seixal tinha antigamente uma linha de caminho de ferro que atravessava o Tejo, num daqueles braços, que depois é que foi desativado, não tinha nada e, portanto, o que é que acontecia? A gente ia por aquele caminho, ia por um caminho onde passava por sentinelas da Marinha, olhavam para nós, a gente de fato, e com uma pastinha, e quando estava a chover, ali no ermo, pá, e depois tinha um sítio, tinha umas pedras, e a gente assobiava e via um gajo de barco, não é… epá, quer dizer, e às vezes aquilo estava tempestade, a gente apanhava ali, o barco balouçava todo, quer dizer, a gente chegava ao Barreiro, o Barreiro era uma terra cercada, tomada pela GNR, quer dizer, guardas de todo lado, jipes [risos] ter que sair ali de um paredão, estás a ver? E o Santos não conseguia dizer “ora, isto não faz sentido”, “não, aquilo é o melhor, é o mais seguro”, quer dizer, não pode, então, se eu vou passar ali, toda a gente repara que há ali um gajo que está a passar… na tempestade, porque lá está, se marcas uma coisa, tens que lá estar, se não, então, atrasas e mais não sei o quê… e eu disse “na tempestade? epá”, portanto, foi giro essa experiência com o Santo, porque era um homem completamente sem nenhuma empatia.
Entrevistadora - Que mais regras tinhas? Para além dessas… da pontualidade…
Nelson Bertini - Sim, a pontualidade era aquela coisa de… por exemplo, uma pessoa chegar a um sítio e só poder esperar cinco minutos, ou então, quer dizer, chegava a um sítio antecipadamente e sabias que faltavam cinco minutos ou dez minutos e tu andavas cinco minutos para um lado e depois andavas outras por trás outros cinco minutos para chegar ali exatamente naquele momento. Portanto, as regras eram essas, eram as regras da vigilância. Aliás, há uma história que se conta do Cunhal, ele um dia estava numa casa clandestina e de repente deu uma indicação “vamos deixar a casa já”, porque ele viu que havia um mendigo que andava por lá, andava por aquela zona ali, não sabia onde seria, mas era talvez mais rural, digo eu, e ele, a determinada altura, viu o gajo a lavar as mãos [silêncio] e achou que aquele não era o mendigo… da maneira como ele estava a lavar e, portanto, mandou… essas coisas, esses sinais, o falar com as pessoas… o problema ali era, por exemplo, é quando tu estás numa coisa e falha o encontro… e ali, porque ali desorganiza-se logo uma série de coisas. Depois, há outra coisa também interessante na clandestinidade que são as próprias pessoas, que são seres humanos, que têm medo, que não têm, que têm coragem, que fazem coisas disparatadas. O funcionário do partido ali também era muito um bocado o padre, as pessoas confessavam-se, as pessoas falavam das crises matrimoniais, quer dizer, havia esse lado riquíssimo do contacto com as pessoas, as pessoas tinham conflitos com os filhos, quer dizer, não há nada que escapasse ali ao ser humano. Portanto, aquela coisa do homem de ferro, do herói… ah, isso são coisas muito pontuais, quer dizer, quando há essas partes assim mais emotivas, são coisas muito pontuais e passam depressa.
[corte]
Entrevistadora - Pronto, já me respondeste aqui um bocadinho a esta questão de... de que forma é que a clandestinidade influenciou a tua trajetória de vida…
Nelson Bertini - Ah, sim, sim, sim.
Entrevistadora - Falaste de algumas questões que ainda hoje se mantêm na tua vida, não sei se queres acrescentar alguma coisa…
Nelson Bertini - Não…
Entrevistadora - Em função do que é que a clandestinidade em si e as experiências que tiveste durante esse período influenciaram o resto da tua vida…
Nelson Bertini - Não, eu tive... eu tive, depois da clandestinidade, tive um período que foi pior que o da clandestinidade, que foi a seguir ao 25 de Abril. Eu fui funcionário do partido até 80 e poucos, acho eu, e… foi pior, porque eu tive um problema complicadíssimo com o meu regresso à tropa, portanto, eu estive no verão quente, eu era furriel no Regimento de Infantaria de Braga, de onde surgiu... era de lá que surgia a grande contra-revolução. Tivemos problemas complicados, tivemos pistolas apontadas à cabeça, tive situações... claro, eu tive sempre essa vantagem de tratar bem as pessoas e pôr-me sempre em sentido e a dizer “vossa senhoria, meu comandante, é um filho da puta” e os gajos tremiam um bocado com aquilo, porque era uma frontalidade a que não estavam habituados, mas eles também sentiam que havia do meu lado alguma lealdade dentro daquilo que era possível, eu lembro-me que o capitão, que era um capitão da Assembleia do MFA… curiosamente, não sei se o Ernesto falou nisso, mas o Ernesto era um elemento importante do MFA, ele era o soldado Afonso e toda a gente naquela altura, os coronéis e tal, quando o soldado Afonso falava, toda a gente se calava, esta coisa é o MJT que está aí, não é? E, portanto, isso é muito importante, esse histórico, não é, e como há outras coisas que ele foi obrigado a fazer contra a vontade e claramente, mas nós tivemos sempre isso e fomos ficando reduzidos, reduzidos, eu lembro-me, tivemos situações... bem, houve situações muito complicadas, eu há bocado contei-vos a história em que quis matar um gajo, mas, um ano depois da Revolução, a… a 5ª Divisão, que era a Divisão da Propaganda, resolveu fazer uma exposição, que era um ano da Revolução, em 25 de Abril, um ano da Revolução, e nessa altura, em Braga, havia uma feira agrícola, que era a Expo, não sei o quê, a “Agora” ou não sei o quê, e o que é que eles resolveram fazer? Alugaram um pavilhão para fazer, do MFA, para fazer a exposição e mandaram vir o material todo, portanto, aquilo, a partir daquele momento, passou a ser terreno militar, território militar e havia as organizações dos países socialistas que estavam lá também com as suas coisas, a determinada altura, o homem que estava na dinamização cultural, não era esse capitão do MFA, era um gajo muito mais fraco e... e começou a dizer, epá... “os gajos, à noite, há para lá umas provocações, os gajos querem, parece que, destruir algumas coisas e tal, então decidi, vou mandar um, pôr lá um sentinela” então, passou a estar lá um sentinela, a ver uma... sentinelas, a tomar conta daquilo, estavam a tomar conta da nossa coisa e, ao mesmo tempo, vigiar… e a tensão era tremenda, a gente percebia que havia ali uma pressão no caraças. Bom, a determinada altura, era a inauguração, o dia da inauguração, estava tudo previsto, compraram, a organização da feira comprou bilhetes para o Mário Soares, que ia lá fazer a visita… os bilhetes, alugaram um fotógrafo para ele tirar fotografias, etc. e na véspera começou a perceber-se que ia haver ali confusão… e, de repente, o comandante do MFA, o capitão Batista da Silva, chegou à minha beira e disse assim “Nelson, vamos mandar para lá armas” e eu disse “ó armas para lá?”, “vamos, eu vou mandar uns cunhetes de munições e umas G3” e eu disse “por favor pá”, “não, aquilo é território militar, a gente defende aquilo” e o que é verdade é que mandou um jipe com aquilo, opá… no dia seguinte... ah, e tinha havido uma coisa, eu vou… porque aquilo tinha uma instalação sonora, a feira já anunciava aos gajos dos lavradores e das... das pesticidas e o carago e… e combinou-se que se fazia lá e não se desligava a música, porque não fazia sentido, não é, se fosse lá o gajo da... sei lá, do petróleo, também se não se desligava… e havia um gajo, que era um advogado, que era um alferes, mas estava nisto, que era um gajo irascível, estava sempre ali a criar problemas, bom, no dia da inauguração, nós já na véspera já tínhamos visto que apareciam uns gajos a provocar e nós já tínhamos combinado que nosjuntavamos os dois assim, um de cada lado dos ombros, íamos empurrando o gajo devagarinho para o pôr fora do pavilhão, não discutíamos, não é, bom, mas tínhamos lá outro gajo bestial, que era o Picas, que era um soldado, que era de CDS, o gajo dizia “pá, eu sou do CDS, mas por causa da minha sogra, que ela tem dinheiro” eu dizia “está bem e tal” e então ele subia as escadas e descia e andava sempre lá a dar-nos informações… e a determinada altura estou eu no balcão, as armas e os cunhetes debaixo do balcão, está... uns gajos, mais dois gajos, borrados ali, cheios de medo, porque aquilo estava a ser uma coisa complicada… e há o tal alferes advogado, que era o gajo que era a ligação com a organização da feira, bom, o Mário Soares chega, arrebentam com os portões, arrebentam com aquilo dentro, aquela tropa para dentro, levam o fotógrafo à frente e não sei o quê, e vai para o sítio dos partidos, quando chega lá, o Mário Soares quer falar, e então o que é que acontece? Desligam o som, opá, o alferes não tem mais nada, vai à cabine do som, chega lá e diz “o quê? Isto não estava combinado na reunião, mas têm que pôr o som” e o gajo põe o som, e quando põe o som, começam a destruir os alto-falantes e… começou aquilo, bem, o Mário Soares estava previsto dar a volta e eu, isso também não me esquece, eu fiquei ali tenso naquilo, mas fico com uma grande clarividência e disse assim “Picas, ajoelha-te, e começa a meter carregadores, três, sete, três” e ele [risos] de joelhos pá, pá, pá “não pode ser”, quando foram perguntar, o gajo no som disse “quem foi o MFA que deu a ordem para pôr a música, pá?” e aquilo ia já no meio, o Mário Soares deve ter tido uma premonição qualquer, que não deu a volta à feira, saiu logo, e acabou. Epá, mas nós estávamos ali numa situação, e não estava nenhum dos oficiais, connosco, estávamos completamente, era aquela malta, portanto, isso também foi uma história gira, de complicação. Ali sim, ali era uma coisa, como é que eu vou… como é que se faz… não é, não pode, mas nós sabíamos que corríamos risco, aliás, quando foi depois o “Verão Quente” e a rede bombista, houve gajos que morreram, houve coisas do caraças ali, não é, e com a tropa… e com a tropa comprometida com aquilo. Bom, já contei mais de uma história!
Entrevistadora - E… e como é que relacionas a tua trajetória individual no contexto da história política? Ou seja, esse período em que viveste na clandestinidade, que importância é que dás também a esse período no contexto… mais geral da situação social e política?
Nelson Bertini - Epá, eu sempre, eu sempre quando comecei, passei essa fase, ultrapassei esse livro do “Anti-Duhring” do Engels, passei a ler outras coisas, e a estudar, eu estudei por mim, estudei filosofia política, estudei economia política, estudei as coisas, e sempre tive a curiosidade e, portanto, formei a minha, a minha, digamos, a minha filosofia é marxista, sem dúvida nenhuma, é materialista, tenho imensa pena, não consigo raciocinar de… de outra forma.
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Entrevistadora - Mas consegues colocar a tua história, ou seja, ser clandestino, consegues colocar isso… eu não diria, a questão, há sempre aquela tentativa de colocar heróis, nomes, mas, tentar colocar essa trajetória… que importância é que achas que teve com esse contexto social?
Nelson Bertini - Sim, acho que contribuí com a minha parte. Aliás, é uma das coisas que me choca hoje perante a situação, porque eu tenho, eu dei esse contributo, está lá. Eu hoje não acredito… o PCP pôs-me fora, de uma forma um bocado cobarde, porque não foi com os olhos, foi na atualização dos ficheiros, portanto, aquela coisa, de atualizar os ficheiros, nunca me deram o papel para me inscrever, com uma coisa que eu tomei e tenho tomado as posições que tomei depois que houve esse desligar, porque eu disse sempre às pessoas que estavam comigo e que eram responsáveis por me acompanhar, eu disse sempre “olha, a partir deste momento, esquece, porque eu vou, não estou de acordo convosco, vocês nunca me dizem, tu és um idiota, estás enganado, etc.” eu fui uma vez, de propósito, eu disse “eu vou falar com alguém do Comitê Central, quem tu quiseres, vou onde for”, disseram, “vai no sábado, vais a Lisboa, vais falar com o…” e eu estive lá, estive a falar uma hora com ele, ele disse “ó camarada” e escreveu e escreveu e disse “eu estou de acordo com quase tudo que tu dizes, pá porreiro”, eu tinha reuniões na sede e depois passei a ter reuniões no café… quer dizer, há aqui qualquer coisa que não funciona. E, portanto, hoje verifico e tenho uma opinião muito negativa, não é do partido, é dos dirigentes, eu tenho uma opinião muito negativa. Acho que a malta está muito enconchada, está muito incapaz, está incompetente, está muito incompetente e… opá os erros táticos são sucessivos, não é? E aquela coisa, nós pensamos, aquela frase da CDU “dá força a quem te dá voz”, eu acho isto absolutamente deprimente, eu não preciso que ninguém me dê voz, não é? Quer dizer, é a coisa, deixa-me só dizer-vos, eu acho que houve um grande erro que a gente cometeu a seguir ao 25 de Abril, portanto, a geração que participou e que fez o 25 de Abril, foi fazer crer às pessoas que alguém vai resolver o problema, não te preocupes, a gente vai resolver “ah, isto o Governo vai resolver”, “ah, isto o Sindicato vai resolver”, foi o pior, porque hoje tens as pessoas “ah, eu quero isto, eu quero aquilo” e, epá, não, a malta tem que trabalhar, tem que fazer, tem que batalhar, tem que lutar pelas coisas, tem que se opôr, lixaste-me estás lixado, não é? Foi sempre assim, é um bocado olho por olho, não é? A situação é complexa, nós estamos numa situação complexa, estamos numa situação de transformação muito grande e não estamos preparados.
Entrevistadora - É a reflexão que fazes agora, dos 50 anos do 25 de abril?
Nelson Bertini - Dos 50 anos? É, é… e porquê? E porque é que eu digo, porque é que eu sou? Epá, as pessoas que são os meus clientes, com quem eu vivo, eles sabem tudo o que é que eu penso. Eu, um dia, estava numa reunião com os arquitetos, num almoço, e estávamos a falar da situação política, foi naquela altura, salvo eu 2008, naquela crise brutal, que pôs a malta toda ali de rasto. E eu, a determinada altura, disse “nós estamos numa altura para recuperar o capitalismo” e o gajo disse “ó Nelson, recuperar o capitalismo? Isto vindo de si, até é estranho” e disse “não, eu vou explicar, vou explicar”, é que nós não estamos no capitalismo, nem isso, nós estamos em uma coisa pior, nós estamos no imperialismo, nestas coisas todas, quer dizer, o capital já não é mais-valia do produto, já é financeiro, quer dizer, está tudo estragado, mas eu vou lhe explicar, muito simples, como é que eu penso, vamos admitir que nós vamos num barco, e queremos ir para o Brasil, e chega a meio do oceano, e o comandante, que é maluco, quer ir para a Índia, eu acho que é muito mau, nós destituirmos o comandante no meio do barco, no meio do mar, então a gente vai à Índia e depois tratamos do comandante, e vamos chegar ao Brasil mais tarde. Portanto, é isso que eu penso, é a mesma forma que as alianças, quer dizer, se nós estamos aqui, nesta casa, e tu queres ir para a Foz, e eu quero ir ali para a Boavista, epá, são caminhos absolutamente diferentes e opostos, mas nós temos um caminho comum, até chegarmos ao momento de nos separarmos, temos um caminho em comum. E portanto, eu acho que um dos grandes erros que a esquerda, de uma forma geral, o PCP com uma responsabilidade histórica tremenda, criou uma situação de enquistamento, em que parece que eles são, de facto, os sabedores, são os guardiães da chama sagrada, que é uma coisa do caraças, que é uma chama sagrada, que eles nem sequer respeitam os livros que dizem que leram, não sei se leram, não é, porque não vem nos livros. Este problema da aliança, da política da aliança, da aliança de classe, quer dizer, nós não conseguimos resolver nada sozinhos. Nós temos que ser capazes, em cada momento, de perceber a realidade concreta e transformá-la, se não estamos sozinhos, se não somos derrotados… “ai, criam-se heróis”, epá, mas é um herói, não vale puto, pá, porque eu acho que na política, como na guerra, as vitórias e as derrotas dão-se no terreno, não é na parede, eu para mim.
Noutro dia eu estava numa reunião de trabalho e estava um gajo a insistir comigo, um engenheiro, com alguma coisa qualquer, que ele dizia que não era assim e o gajo insistia e eu disse “olha, engenheiro, se você me diz que a Terra é plana, não esteja à espera que lhe vá explicar porque é que não é, se você afirma isso, você é que tem que explicar”, portanto, até essa ideia que nós temos que responder a uma coisa, não, quem faz a afirmação tem que assumir e há a liberdade e tal, “eu tenho o direito de dizer o que penso”, sim, mas tens a obrigação de assumir a responsabilidade daquilo que dizes, porque isso é o mínimo, quer dizer, isso é o mínimo que a gente pode fazer e, portanto, falhou. E nós falhamos nisso porque criámos umas gerações que depois acham que têm tudo, quer dizer, que... não, eles têm que lutar, têm que estudar, têm que merecer e têm que estar à altura dos desafios, não é, porque se, repara, nós estamos num ambiente, os tambores da guerra aí por todo lado, supõe que amanhã te apanhas aí com um Zircon, num sítio qualquer, tu vais aonde? Onde é que tu vais? Onde é que vais bater? Quer dizer, eu sei que não é preciso ninguém dizer nada, eu vou procurar ali uns paus e uns ferros para lutar, quer dizer, mas isso não faz sentido…. e sabes que nesta campanha eleitoral, por exemplo, eu falo com muita malta, e havia malta da direita… e uma das coisas que eu notei era um certo desencanto e ao mesmo tempo temor com a perda de influência do partido, porque a malta viu sempre no partido e estava habituada, são 103 anos, etc… era um esforço, era um porto seguro, não existe, a malta desperdiçou isso, quer dizer, se não vêm dizer “ah, a herança”, a herança é essa, mas não há, não há, não consegues. Hoje tens um secretário-geral que é uma coisa patética, quer dizer, não consigo perceber, ainda havia uma esperança, um gajo novo e tal… pá, não dá… e portanto, eu não sei, eu não sei, sinceramente, eu não sei, porque eu sou um gajo de esquerda, e acho que a esquerda é necessária, que é absolutamente vital, agora, não é esta a esquerda que a gente tem e isso é uma coisa um bocado transversal, um bocado de todo lado. A malta entregou, entregou as coisas, sei lá, a uma certa estabilidade, com uma certa rotina burocrática, quando o outro telefona para a sede do partido, tem aqui um problema de epá… “mas tens as cotas em dias?” [risos], pá não pode funcionar, quer dizer, fala-se com um desgraçado qualquer, com um bandalho, não é, mas com um gajo que já esteve no partido, que fez a escola do partido, e assim não falam, eu não falo com muita gente, eu vou ter com a Faustina e falo sobre o 25 de Abril, eu falo com o Domingos, que é um gajo que estamos diametralmente com uma opinião diferente, mas eu respeito, estás a ver até estou a pensar escrever uma história sobre o livro do… porque eu respeito e sei isso, sei que aquilo é autêntico, aquele esforço, agora aquilo é um esforço inútil, em alguns casos, e repetitivo. Aquela coisa de nós estarmos a fazer sempre a experiência da mesma maneira e esperar obter resultados diferentes, não funciona, porque as pessoas mudaram.
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Eu uma vez fui conversar, fiz parte da lista das autarquias, e uma hora antes de saber os resultados, eu entreguei uma carta a ele, a mesma carta e uma cópia ao responsável político, eu dizia que era o momento de começarmos a preparar a próxima campanha, porque o problema da autarquia, por exemplo, é muito importante que as pessoas tenham, tenham... sejam conhecidos, quer dizer, as eleições ganham-se com votos, não é? E as outras as têm que conhecer, não é? Eu quando fiz, eu fiz parte da campanha…
Entrevistadora - Então, continuas ativo politicamente?
Nelson Bertini - Ah, sim. Eu aqui há uns anos fiz parte da primeira eleição do Rui Moreira, eu estive com os gajos, com os meus inimigos, pá, estive com os gajos de sapatinhos de vela e de cachecol à volta de… nunca mais me esqueço, eu fui porque eu tinha aqui a…o Daniel estava na escola, eu estive 12 anos nos Pedagógicos, naquela coisa... na Associação de Pais e conheci lá uma mulher que era do... que agora é a presidente da junta daqui, que era da… da Associação e fizemos ali uma parceria porreira. E eu disse “um dia”, ela era do PSD, eu disse “um dia vamos fazer uma lista de independentes e ganhamos esta merda”, “ah achas que sim e tal?”, “acho e vamos fazer isso”, bom, mas então ela tomou essa iniciativa com o Rui Moreira e disse “queres fazer parte?” e eu disse “faço”, então há uma reunião na sede do Rui Moreira, estávamos para aí 19 pessoas carago a lista daqui e tem muita piada, porque só ela é que me conhecia, ninguém mais me conhecia… e depois “ah eu o colégio alemão, o colégio alemão, o meu filho”, “ah sou o doutor não sei quê e tal” e quando chegou a minha vez, disse assim “eu sou Nelson Bertini, sou comunista e estou aqui com dois objetivos: primeiro fazer qualquer coisa pela cidade, segundo impedir que os partidos que estão no governo ganhem aqui as eleições no Porto” [risos], que era o PSD e o CDS e os gajos ficaram todos assim a olhar para mim… ouve, mas começaram a tratar-me com um respeito do caraças. Na véspera das eleições, a revista Visão tinha um artigo que trazia a minha fotografia de quando fui preso, aquelas fotografias da PIDE e dizia assim…
Entrevistadora - Tens essas fotografias ainda?
Nelson Bertini - Tenho, tenho. E dizia assim “Nelson Bertini, o pedigree de esquerda do Rui Moreira” e eu pensei… nesse dia eu tinha uma reunião lá na sede, que era a última reunião antes da votação e eu tinha dito à Sofia, “ó Sofia eu quero ter uma intervenção”, epá eu chego lá e está toda a gente com a Visão, todos eufóricos “ó Nelson tu é que sabes dessas coisas e tal” e eu assim “ai que confusão”, porque aquilo era o Rui Moreira e depois havia os comissários políticos do CDS, havia gajos que entravam mudos e saiam calados, mas estavam sempre ali, bom, havia gajos que nunca olharam direito para mim, imagina-te tu agora não estás na tua tribo, não estás no teu grupo, és um gajo completamente outsider e então eu comecei, “ah o Nelson quer falar” pá e eu fiz um discurso absolutamente demolidor, eu disse coisas como do género “o programa é feito por indigentes”, “este nosso programa eu tenho vergonha de o dar a um meu vizinho”, “epá não há plano disto, plano b disto, não há nada” epá, e criou-se ali um impacto do caraças e eu acabei de falar e estava um gajo à minha frente, que nunca olhou para mim, que olhou para mim, estendeu o dedo e disse “é isto, é isto que é preciso fazer, não estou de acordo com nada do que o Nelson disse, mas é isto que a gente deve fazer, é isto” e, portanto, toda aquela malta sempre teve… porque eu era o gajo, era o gajo de fora, mas era o gajo que olhava para eles e dizia as coisas, não é, claro, que depois ia a sair e vinham os comissários políticos falar comigo “ah e tal sobre aquilo que disse” e “sim epá e tal”, enfim, e depois a malta, claro, do PCP “ah andaste aí com a malta da extrema direita” oh o gajo é monárquico, é um idiota qualquer, como outros, mas… mas de facto isso não me preocupa nada.
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A mim interessa-me é isso, é trazer pessoas que não são as pessoas do costume, gosto imenso das pessoas do costume, mas acho que não vale perder tempo, perder tempo com isso e, portanto, e é… é o grande erro que está a dar… é não se falar, é não se falar, têm medo. Porque sabes, já agora, têm medo porquê? Porque eu acho que os dirigentes estão afastados da realidade e tens gajos que estão por aí, a batalhar, no dia a dia, e sabem muito melhor.
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Eu quando houve a queda do… do muro e houve o problema da queda da União Soviética, uma das coisas que eu defendi sempre nas reuniões era que era preciso abrir, tínhamos que chamar o mais possível gente, porque isso também nos defende, quer dizer, se tu estiveres sozinho… na clandestinidade… nós tínhamos reservas por razões muito específicas, mas onde tu estás mais defendido é no meio das pessoas, quer dizer, não é no sítio onde és detetado, no meio das pessoas e passares por elas, despercebido, não é. E… e o grande problema, por exemplo, aqui com o problema da burguesia e tal… não, o PCP não conseguia sobreviver na clandestinidade se não fosse o apoio da burguesia, eram os gajos que nos tratavam, eram os médicos, eram os gajos que nos davam apoio, guarida, eram os gajos que nos davam dinheiro, porque de outra forma a gente… mas isso era o PCP inserido na sociedade, quer dizer, nós fazíamos parte disso, de um grupo que… que estava ali, quer dizer, para manter um livro na mão e dizer que esta é que é a verdade histórica, epá… eu não ponho isso em causa, o que eu digo é… é resultados, o que eu quero é resultados, e não é resultados eleitorais, atenção, eu também acho um erro transformar a sede da… da… o Parlamento como a sede da luta, principal da luta, mas só para acabar… eu tenho um irmão que é mais velho do que eu 10 anos, vive em Loures, e nunca foi do partido, aliás os meus pais eram do partido, pagavam cotas… portanto, os velhotes, e o meu irmão nunca foi, ele fez parte como independente de uma primeira campanha do Bernardino, em Loures, e foi… e era de vez em quando chamado para umas conversas, umas discussões e tal e um dia o Bernardino fez lá um debate sobre a questão europeia, a Comunidade e tal, e o meu irmão pediu para falar e perguntou como é que, que explicasse as implicações, os prejuízos que tinha, quais eram os problemas principais económicos que tinham com a nossa saída da Comunidade e o Bernardino deu aquela resposta de chapa cinco, não é, que é o costume e depois nunca mais o chamaram para reunião. No outro dia ele disse-me “ó irmão, eu tenho passado pela sede, mas a sede tá fechada sempre” e eu disse “aí em Loures, tá fechada”, “tá, epá não percebo, campanha eleitoral e tal”, e até que um dia telefonou-me a dizer “já lá fui, já lá fui”, entrei na sede, tava aberta, tocou uma campainha, como naquelas lojas tlim tlim e até depois veio uma rapariga e tal… e disse “ah posso ajudar?”, “ah eu venho aqui porque tenho uma pergunta para fazer”, “ah então entre” e estavam lá numa reunião com meia dúzia de pessoas “então qual é a pergunta?”, “eu gostava de saber onde é que está o camarada Bernardino Soares”, “ah tenho uma boa notícia, ele é o cabeça de lista de Santarém, vamos tê-lo outra vez na Assembleia e tal” e o meu irmão disse “olhe, eu sempre votei no PCP, na CDU, os meus pais pagavam as cotas, tive um irmão que inclusive foi funcionário, esteve na clandestinidade, acho que o PCP com 103 anos é absolutamente essencial e é uma pena estas coisas e tal…” e fez o discurso e deixaram-no vir embora pá, é que nem o telefone lhe pediram, não é, quer dizer, é um gajo que vai à sede, carago, é um gajo que vai à sede… e eu digo assim “carago”, impossível, ouve… isto numa empresa a malta estava despedida, são incompetentes pá, não pode, não pode, quer dizer, tinhas ali o mel a cair e não pegas, pá… até podia ser uma provocação, não era, ele foi sincero, aliás, ele não sabe ser de outra maneira também, mas é… mas é curioso e isto é uma linha que está lá, não é, é uma linha que está lá. E, portanto, é o meu descontentamento, se quiseres, enfim.
Entrevistadora - Obrigada, por nos terem contado a tua história também, obrigada.
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