Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Maria do Carmo Pantoja da Silva
Entrevistada por Marcia Trezza e Tereza Farias
Manaus, 30/04/2018
Realização Museu da Pessoa
HTC _ HV20_ Maria do Carmo Pantoja da Silva
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Maria, a gente vai começar a conversa. Diga para nós o seu nome completo, a cidade e o estado em que você nasceu, e a data.
R – O meu nome é Maria do Carmo Pantoja da Silva, nasci na cidade de Parintins, estado do Amazonas.
P/1 – Em que dia?
R – Dia 16 de julho de 1989.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – O nome do meu pai é Paulo Reis de Oliveira e o nome da minha mãe é Maria da Saúde Pantoja da Silva.
P/1 – Eles também sempre foram de Parintins?
R – Sim, sempre moraram no estado do Amazonas.
P/1 – E o seu pai trabalhava com o quê? Ou trabalha com o quê?
R – O meu pai, ele era pescador… Era não, porque ele ainda está vivo, não é? Ele trabalha com pesca.
P/1 – Sempre foi pescador?
R – Sempre foi pescador.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha mãe era dona de casa. E é até hoje.
P/1 – Você, quando era criança, costumava, de vez em quando ou muitas vezes, ir pescar com o seu pai?
R – Com o meu pai? Não. Nunca fui pescar com o meu pai. Agora, com os meus irmãos, que a gente se divertia, não é? Quando a gente era criança, o meu irmão mais velho e o outro meu irmão do meio, a gente gostava de pegar ____00:02:08_____, a gente ia embora de caniço, remando, aquela diversão de criança. A gente gostava de fazer isso, sempre.
P/1 – E em que rio vocês faziam isso?
R – Ali, o rio Epacucu o nome do rio. Lá onde a gente morava.
P/1 – E seus pais não achavam ruim? Vocês podiam ir? Não tinha perigo?
R – Não, assim... A minha mãe… O meu pai… Não tinha perigo, não. Até porque eu estava com os meus irmãos, então não corria risco.
P/1 – Vocês eram… São três irmãos ou tem mais?
R – Somos nove irmãos. Somos três meninas e sete meninos.
P/1 – E vocês eram os três mais velhos?
R – Os três mais velhos.
P/1 – E traziam muito peixe, não?
R – Muito peixe. E onde a gente mora… Onde eu morava, ali na comunidade Itaboraí do Meio, dá muito peixe, muito peixe mesmo. Cada tambaqui! Lá tem tambaqui, pirarucu, tem bastante.
P/1 – Que delicia. E vocês pescavam como? Com o quê?
R – O meu pai pescava com anzol, arpão... Que chama... E de malhadeira, também; malhadeira ele pegava...
P/1 – E você e os seus irmãos, iam com linha…?
R – Com linha, não é? Aquele carretel de linha que a gente compra e caniço. Eles faziam o caniço para cada um. O meu irmão mais velho fazia assim: fazia um caniço para mim, fazia um para o outro meu irmão e para ele. E a gente ia pescar, pegava muito aqueles gafanhotinhos pequenos que, com esse, pegavam os peixes: sardinha, essas coisas que a gente puxava.
P/1 – E você pegou algum peixe grande alguma vez?
R – Não, só peixinho pequeno (risos).
P/1 – E você lembra, Maria, de alguma vez que vocês foram pescar que aconteceu alguma coisa diferente? Algum acontecimento assim de que hoje você ainda lembra?
R – Algum acontecimento…
P/1 – É, assim... Que vocês ficaram um pouco em perigo ou então, por exemplo, foi engraçado…
R – Ah, um pouco em perigo com a gente mesmo não aconteceu. Mas com o meu pai, quando ele foi colocar o anzol para pegar… Colocar o espinhel para pegar jacaré. Ele colocou o espinhel e quando foi no outro dia de manhã, ele foi ver. Aí, era ali na fazenda do meu avô, porque o meu avô tinha uma fazenda, ficava bem atrás do lago. O meu pai colocou o espinhel e foi ver de manhã, a linha estava presa debaixo do mato que tinha assim lá no rio. Ele viu que estava presa a linha. E dura, não é? E puxava assim, estava presa, não tinha como. Aí ele voltou e avisou aos outros pescadores que estavam lá também nesse dia, e o meu tio, o meu avô pegaram, foi aquela barcada na canoa, foram em dois cascos. Chegaram lá e mexeram com aquilo, um imenso jacaré… Um jacaré muito grande, que eu nunca tinha visto um jacaré grande como eu vi aquele. E quando eles estavam trabalhando com aquele jacaré, que ele estava muito bravo, que ele estava na linha, saiu rasgando e foi destruindo… Sabe? E o que foi triste ali e, ao mesmo tempo, eu guardo isso comigo até hoje, é porque aquele jacaré, se fosse só o meu pai que fosse ver aquela linha, o jacaré ia matá-lo, porque quando eles estavam trabalhando com aquele jacaré - era cacete, arpão, zagaia que eles levaram para ajudar a matar - o jacaré errou o meu pai, no meio, porque ele era imenso, a cabeça dele muito grande. Na hora em que o meu pai foi querer matar ele com o cacete, o jacaré errou ele nisso aqui dele, abriu a boca dele, quando ele mandou, era para pegar nisso aqui, atravessava ele, ia matar o meu pai, se fosse só ele, não é? Como tinha outras pessoas ajudando, graças a Deus, ele… O jacaré não acertou ele. E isso é uma lembrança que eu guardo até hoje comigo, sabe? Se fosse só ele para lá, não é?
P/1 – Ainda bem que ele chamou os outros, não é?
R – Ainda bem que ele chamou os outros e que foram lá e ajudaram, não é? E isso eu guardo comigo até hoje, que eu lembro, de lembrança assim de coisa perigosa que aconteceu ali. E fora outras coisas. Ali, aonde a gente morava, dava muito sucurijú, muito sucurijú mesmo, daqueles grandes. E o meu avô, ele tinha uma fazenda, que agora não tem mais, ele faleceu, teve derrame e faleceu e aí a esposa dele tomou conta de tudo, vendeu, não é? Vendeu os bois, vendeu a fazenda lá dele, a terra, barco, tudo! Aí, a gente passou a morar em cima do terreno que era do meu avô lá…
P/1 – Ele é pai do seu pai?
R – Sim, pai do meu pai, mas de criação. Porque o meu pai foi criado, não é? Não foi pelo próprio pai.
P/1 – Seu pai era de Parintins? Você disse que ele morou sempre em Parintins, mas ele nasceu lá também?
R – Sim, nasceu lá, sempre morou. A minha mãe também. Inclusive, ali onde eles moravam, na fazenda, era bem próximo tanto da fazenda do meu avô - desse avô que criou o meu pai- como ali o meu avô, de parte de mãe, também tinha fazenda, não é? Então, se conheceram ali. No mesmo rio, naquela mesma região. Aí, ficaram juntos.
P/1 – E na região ali o pessoal trabalhava com a pesca mesmo?
R – Era só com a pesca. E as pessoas que tinham fazenda viviam das suas fazendas, não é? Porque tinha bastante boi ali e ali era só gente que tinha grana mesmo - prefeito, governador. Que tinha fazenda naquela região. Porque ali era cheio de fazendas. Naquele trecho daquele rio lá era só fazenda.
P/1 – O pessoal criava gado?
R – Criava gado, muito gado ali.
P/1 – Maria, e além de pescar vocês brincavam de outras coisas ali?
R – Sim, a gente brincava de pular na água, de jogar bola... Eu gosto até hoje. E eu jogo bola até hoje, no campeonato (risos).
P/1 – É mesmo?
R – Sim.
P/1 – Futebol?
R – Futebol. E gosto muito. É uma coisa que, como eu falo para o meu esposo, é uma coisa que eu não… Até agora ainda não deixei. Jogar futebol... Até hoje eu jogo futebol e gosto, a gente joga no campeonato e é uma delícia.
P/1 – Qual é o seu time? Como chama?
R – Sou vascaína. É do Vasco.
P/1 – Mas esse time em que você joga?
R – É Vasco, o nome do nosso time é Vasco.
P/1 – E os seus filhos curtem que você joga futebol?
R – Sim, minha filha de quatorze anos joga junto comigo, hoje, no campeonato.
P/1 – E você lembra de um jogo assim marcante, desde que você era criança até hoje? Se tem algum para você escolher, assim?
R – Ah, eu vou escolher um que aconteceu em 2015. A gente estava jogando um campeonato e quem era o nosso técnico e, ao mesmo tempo, presidente, era o professor Euro. E foi uma coisa marcante que ficou para mim no jogo, que a gente foi lá, na outra comunidade, jogar. E a gente conseguiu se classificar em segundo lugar, era para a gente ficar em primeiro, mas, infelizmente, não deu. Mas foi uma coisa assim que ali eu fiquei triste, muito triste, porque não era para a gente ficar em segundo lugar, era para a gente ficar em primeiro lugar. Eu fiquei triste, mas depois pensei: “Tudo bem, mas mesmo assim a gente ganhou, estamos em segundo lugar, não tem problema nenhum”. O professor tentou acalmar a gente: “Não fiquem bravas com vocês e nem com a goleira de vocês”. Conversou com a gente lá e todo mundo se acalmou. Eu fiquei triste, porque eu queria ter ganhado mesmo (risos), eu queria ter ficado em primeiro lugar. Aí, eu pensava que a falha era minha, na zaga, porque eu sou zagueira, não é? Eu pensei que a falha era minha, era eu e a minha outra colega, não é? Aí, depois, o professor me chamou, ele viu que eu estava chateada, estava triste ali, ao mesmo tempo, e conversou comigo, disse que não era para eu me sentir assim, que era para eu me acalmar, que estava tudo bem.
P/1 – Não era só sua responsabilidade.
R – É, não era só minha responsabilidade. Ele falou: “Se acalma”. Inclusive, a goleira era a filha dele, que, naquele tempo, errava para a gente. Goleira. E ela era uma boa goleira, filha do Euro. E aquilo ficou marcado para mim até hoje, porque como a gente está treinando e hoje já é outro técnico e outro presidente, o professor entregou, não quis mais, não é? A gente colocou um outro presidente e um outro técnico, a gente está treinando. Dia treze agora deste mês a gente vai ter um jogo para se classificar, não sei se a gente vai ficar em primeiro ou em segundo também. Eu estou ansiosa, à espera desse dia. E a gente vai lá, vamos ver como vai ser o jogo, a gente está treinando bastante.
P/1 – E a torcida? Família vai…?
R – A torcida vai todo mundo. A gente tem um barquinho, um barquinho pequeno, que sempre quando tem jogo nas comunidades a gente vai. Reúne ali, vai bastante gente, não só o nosso barquinho como a outra bajolinha vai também, vai cheia, cheia de gente. Aquela animação! É uma coisa que é muito legal para quem gosta de futebol, é muito bom.
P/1 – Sim, porque pega todas as comunidades próximas.
R – Sim, pega todas as comunidades próximas.
P/1 – Cada vez vocês jogam numa comunidade, assim?
R – O campeonato ali, eles escolhem para fazer em uma comunidade. Inclusive, em 2017, foi lá na Vila Batista. Aí, neste ano de 2018 está acontecendo lá na outra comunidade. Comunidade mais próxima.
P/1 – Maria, conte um pouco como era onde você morava quando era criança. Você sempre morou lá, antes de casar?
R – Sim.
P/1 – Conte um pouco como era e se teve mudanças, como que foi mudando o lugar. De quando você era pequena até hoje.
R – Olha, lá onde eu morava, lá na fazenda do meu avô, eu achava ali… Porque quando a gente é criança, para a gente tudo é bonito, tudo é legal, tudo é uma maravilha, não é? Então ali, naquela fazenda do meu avô, eu praticamente me criei ali. E me criei e estudava também na comunidade. Desde que eu comecei a estudar, a gente sempre enfrentou dificuldades ali, porque a gente ia para a escola… Como naquele tempo a gente estudava… Eram cinco irmãos, os mais velhos começaram a estudar e eu, a menorzinha de todas, lá com todos os meus irmãos, a gente ia para a escola naquele tempo. Era dificultoso porque a gente morava na fazenda e a gente tinha que atravessar dois rios. Atravessava dois rios e, além dos dois rios, andava uma boa distância por terra para pegar outro rio. Atravessava e andava mais uma boa distância até chegar na nossa escola, que era longe, não era perto. A gente saía cedo, muito cedo. E ali, o meu pai acordava a gente às quatro horas da manhã. As quatro horas da manhã todo mundo estava de pé. Mamãe preparava o café, a gente ia para a escola. E quando não tinha casco, o perigo ali era que a gente atravessava por água, atravessava por água, com a água na cintura. Quando o rio estava mais cheio, era com a água no pescoço, a gente pegava as nossas mochilas, suspendia assim em cima para não molhar o caderno e todos nós... E fora mais outras crianças, primos nossos que um tempo passaram a morar com a gente, também faziam a mesma coisa. É porque ali a gente tinha o nosso casquinho que a gente atravessava. Só que como vinha gente da comunidade lá para as bandas da fazenda, pegava o casco, atravessava para o outro lado, aí não tinha como a gente pegar. Aí, o jeito era por água. E aí era muito arriscado, porque tinha muito jacaré. Arriscado era isso, eu ficava com muito medo, me aguentava no meu irmão, segurava no braço dele, me atracava nele, dizia que não, não, que não ia atravessar. Assim mesmo ele me pegava e me atravessava para o outro lado, com aquele medo. Mas, graças a Deus, a gente passou por tudo isso enfrentando dificuldade…
P/1 – Vocês fizeram durante quanto tempo isso? Quantos anos de escola?
R – Ih, foi um bom tempo. Um bom tempo.
P/1 – Você entrou no primeiro ano?
R – Sim. Aí, no primeiro ano, segundo ano, terceiro ano, estudando lá. Depois de um bom tempo a gente veio aqui para a banda do rio Uaicurapá, aqui próximo à Vila Batista, porque o meu avô, ele tinha um sítio aí, não é? O pai da minha mãe tinha um sítio por ali, com a minha avó. Aí a minha avó sempre convidava para ir com ela para lá, a gente ia. Era mais eu que ia com ela. Aí, a gente ia para lá, eu perdi um ano de escola e no outro ano a minha avó me matriculou na Vila Batista, passei a estudar o quarto ano na Vila Batista, o quarto ano. Eu tinha naquele tempo... Eu tinha o quê? Onze anos de idade já. Então, lá na Vila Batista, eu passei a estudar.
P/1 – Maria do Carmo, e vocês depois chegavam na escola molhados, ensopados?
R – Não, a gente já se prevenia, não é? Já levava uma roupa na mochila ou na nossa sacolinha porque, caso molhasse aquela roupa, a gente trocava lá na frente. Assim é que a gente fazia. Mas era complicado ali, porque assim... Eu achava complicado e triste. Hoje em dia eu, como adulta, pessoa já adulta, eu vejo assim: que, para a gente, quando era criança, para a gente aquilo tudo era coisa normal, como se fosse assim uma coisa que não fosse perigo, não é? Não tinha perigo. E hoje, vendo depois de treze anos que eu voltei novamente para lá, depois de treze anos que eu vim de lá... Eu fui lá, fiquei uns dois anos, vim embora com uns treze anos. Aí, quando eu voltei para lá com vinte e quatro anos é que eu fui ver que muita coisa ali mudou, tanto na fazenda como nos rios e na comunidade, muita coisa mudou.
P/1 – O que mudou, Maria do Carmo, nesses três lugares - no rio, na fazenda…?
R – No rio, na fazenda... Porque a fazenda não era mais do meu avô, não é mais nossa, já moram outras pessoas, não é? Mudou totalmente ali, a paisagem também mudou, os rios e ali na comunidade também mudou totalmente, porque a gente como adulto, a gente já tem uma visão diferente do que de criança, não é? Já muita coisa mudou na comunidade, aí quando eu fui para lá eu falei para o meu pai... Porque o meu pai está com sessenta e sete anos, aí eu falei para ele... Eu falei assim: “Pai, aqui na comunidade está muito mudado, mudou a escola, mudou a igreja, a casa das pessoas”. Porque antes não era assim, as casas das pessoas eram uma longe da outra, longe, sempre foi assim. E hoje em dia, lá, a escola está bem organizada, a igreja, as casas das pessoas estão uma do lado da outra ali, não é? E a casa do meu pai, que era bem atrás - está bem à frente agora - próxima à escola... E eu tenho três irmãos que são solteiros ainda, um de dezoito anos, um de dezesseis e um de quatorze, que é o caçula do meu pai; esse de quatorze anos é o que ele cria, que é filho só da minha mãe, mas o caçula dele mesmo é o de dezesseis, que ele cria, não é? Como ele diz: “Quem faz não é o pai, é pai quem cria”. Ele tem muito carinho por aquele garoto e estudam lá na escola hoje, estão estudando lá, estudo tecnológico também.
P/1 – Essa escola que tem lá é nova, então? Não é da sua época?
R – Não é mais da minha época, porque na minha época eu estudava em uma sede que tinha lá, era uma sede, onde fazem festas, dança, era em uma sede.
PAUSA
P/1 – Maria do Carmo, você falou que mudou muito lá, na sua comunidade. Mas a paisagem mudou? Como ela mudou? Essa paisagem?
R – Sim, a paisagem mudou porque naquele tempo, a paisagem era muito bonita, não é? Linda, bem verdes os pastos. E hoje em dia, a gente vê que muita coisa mudou ali. Os pastos, a gente já não vê como via antes, bonitos, bem verdes. Cada vez eles vão assim… Lugares que eram, naquele tempo... As matas, as árvores também já estão diminuindo, já é mais terra; o campo, que tinha bastante árvore, hoje em dia já não tem mais, já está ficando só terra, água, porque ali vai… Como é várzea, vai no fundo e depois, seca, não é? Fica terra de novo. Aí, quando está… Sai do fundo a terra, já é praticamente mais terra do que árvore, do que o cerrado naquele tempo, não é? Era tão bonito e hoje em dia, já…
P/1 – E o que provocou essa mudança, Maria do Carmo? Você tem ideia?
R – Ah, o que provocou essa mudança deve ser através da poluição, não é? Porque a própria gente mesmo não tem aquele cuidado. Como o combustível, não é? Ele faz muito mal. O combustível e garrafas, latas, vidros, tudo isso vai poluindo, polui o rio. Não só o rio, como polui o meio ambiente, não é? Tudo isso vai prejudicando. Então, ali pode ser isso e podem ser outras coisas mais, porque hoje em dia, como eu falo com o meu pai, ali muita coisa mudou. Porque tinha aquelas árvores tão lindas, aquele Mari-mari e tem o mari, que é o verde que a gente gosta muito de comer, que lá na fazenda do meu avô dava muito, ali na beirada do rio, ali do Igarapé era cheio daquelas árvores. E hoje em dia, a gente já não vê mais.
P/1 – Mudou a plantação? Plantaram alguma coisa lá?
R – A plantação lá... O que eles plantam até hoje é a melancia, jerimum, mamão, banana, macaxeira e até a mandioca mesmo, aquela mandioca de seis meses, que deu seis meses você tem que tirar porque, com o tempo, vai para o fundo, não é? E eles plantam. E o meu irmão, até hoje - o filho do meu pai, o mais velho, que mora lá na comunidade - ele planta essas coisas até hoje. Planta bastante pimenta cheirosa, jerimum, melancia... Então, ali, eles vivem disso, vivem da pesca e da plantação deles lá, que eles plantam. E levam para o parente para vender.
P/1 – Então isso sempre teve, não é? Não é que mudou o tipo de plantação.
R – Sempre teve. De plantação ali nunca mudou. Agora, os lugares onde eles plantavam, onde faziam a plantação é que mudou, porque a terra, ela já vai se desfazendo, não é? Já não é mais aquela terra que era antes, bonita, não é? Hoje em dia, já a água... Tanto a água como a chuva, porque está chovendo bastante, vai levando, vai se desfazendo a terra, aí já… A beirada ali, onde eles plantavam, que eles chamam de beirada, toda já destruída, já não é mais aquela terra perfeita que era, aquela beirada tão bonita, plana, não é? Plantava e agora não, está toda feia. Mudou nessa questão. Mudou, não é? Porque naquele tempo, a plantação que eles faziam ali, a beirada era tão bonita e agora já não é como era. Mas as plantações são as mesmas, continuam plantando, continuam colhendo para vender.
P/1 – E a escola em que você ia, essa escola que você atravessava dois rios, como era essa escola?
R – Ela era feita de madeira. Madeira coberta de telha, até porque não era uma escola mesmo, era uma sede de dança, de festa, lá que fazia.
P/1 – E todos estudavam na mesma sala?
R – Na mesma sala, as séries todas juntas ali. E não só na sede que eu estudei. A gente também passou a estudar dentro de uma igreja, porque eles são católicos, a gente passou a estudar dentro de uma igreja por um bom tempo.
P/1 – E você gostava dessa escola? Mais ou menos?
R – Gostava mais ou menos, não é? Mas ali eu gostava e, ao mesmo tempo, não gostava. Porque quando eu era criança, eu tinha um colega que era muito brigalhão, sabe? Muito brigalhão mesmo, ele só queria me magnar, às vezes. Eu não queria ir para a escola só por pensar nele, que ele só queria me magnar e o meu irmão do meio não gostava, ele ficava muito bravo com ele, muito bravo mesmo. Até, um tempo, chegaram a brigar lá na escola, porque o menino veio, me deu um tapa por trás e o meu irmão não gostou, trancou o couro com ele lá e foi aquela para acertar. A professora chamou os pais, a minha mãe, aí o meu pai foi lá, o meu irmão falou por que ele tinha feito aquilo, não é? Não era coisa assim à toa, ele falou que não gostou o que ele fez para mim, que ele me deu um tapa por trás, porque ele era um colega assim muito levado que com todas as crianças ele queria magnar. Era empurrão, puxava, dava tapa, cascudo... Então, tudo isso ele fazia, não é? Aí, às vezes, eu achava chato porque eu não gostava que ele fazia isso comigo, não queria ir para a escola porque eu pensava nele e ele já era bem grande. Eu era uma criança bem pequena naquele tempo, não é? E ele já era um rapazinho, já era um menino de treze, quatorze anos. E o meu irmão também era quase nesse nível dele também, de doze, treze anos. Aí, ele não gostava e sempre era assim na escola. E chamava… Eu falava para a minha professora, ela o aconselhava, mas parecia que continuava o mesmo menino.
P/1 – E do ensino? Da professora com vocês? Do ensino, o que você achava?
R – O que eu achava do ensino? A professora ensinava bem, até porque eu estudei com várias professoras e tinha uma professora que era muito brava. Cheguei a apanhar da minha professora, naquele tempo. Porque naquele tempo, as professoras batiam nos alunos. Hoje em dia, a gente não vê isso. Hoje em dia, se uma professora bater em um aluno, Deus o livre, não é? Vai presa, vão processar e…
P/1 – E por que ela te bateu?
R – Assim... Naquele tempo, a professora dava reguada na gente. Era para sentar, ou se errasse as letras, ou se errasse as nossas continhas de Matemática que ela passava para a gente. Se errasse, levava reguada. Era na bunda, era na mão. Então, era assim. Ela colocava… A minha professora, naquele tempo ela colocava a gente frente a frente e colocava a tabuada lá no meio, entre duas pessoas, e fazia as perguntas. Se eu ou o meu colega errássemos... Se, por exemplo, eu errasse, o meu colega... Ela dava com a régua, ou então a palmatória, daquelas bem grossas, dava na mão do meu colega, abria a minha mão, não querendo, ao mesmo tempo, mas ali eu colocava daquele jeito. Se eu errasse, era… Pegava mesmo bolada de palmatória. E se o meu colega errasse, era eu que tinha que dar nele. Mas eu ia com aquela dó. Mas era o jeito, não é? Porque a professora estava obrigando a gente a fazer isso. E são essas partes que eu não gostava, não gostava mesmo e não gosto até hoje. Porque a gente vê que muita coisa mudou de lá para cá. Hoje em dia, nas escolas, a gente não vê mais isso. Talvez, também, se fosse assim até hoje, não sei também se os alunos eram assim, não é? Porque hoje em dia, os alunos já são muito rebeldes, já são muito levados, não querem obedecer a professora, já muitas vezes não obedecem o pai, já não obedecem a mãe e fazem muita coisa que não deveriam, dentro de uma escola. E, naquele tempo, quando a gente estudava, não acontecia tudo isso, não é? E hoje em dia, a gente já vê aluno que bate na sua professora em sala de aula, como a gente vê em jornal. Eu estava assistindo no jornal…
P/1 – Mas eu ia lhe perguntar: você se sentia bem com essa situação da palmatória?
R – Não, eu não gostava. não gostava quando chegava nessa parte.
P/1 – Todas as professoras faziam isso?
R – Todas as professoras, naquela época, faziam isso. Davam até puxão de orelha, as nossas professoras davam puxão de orelha naquele tempo…
P/1 – E você mudou de lá, depois, não é? Quando você entrou no projeto Telecurso? Quando começou? Você estava em que ano?
R – No Projeto Igarité depois de… Mas aí, para eu entrar no Projeto Igarité eu… Foi no tempo em que eu conheci o meu esposo, que aí eu me afastei da escola por um bom tempo.
P/1 – Então vamos começar daí.
PAUSA
P/1 – Maria, você disse que depois do terceiro ano, pelo que eu entendi, você mudou da comunidade, foi morar com a sua outra avó…
R – Sim.
P/1 – Conte como foi daí para a frente.
R – Sim, quando eu fui lá para as bandas da Vila Batista, lá para o sitio da minha avó, que eu fiquei um ano longe da escola, aí, no ano seguinte, ela me matriculou, passei a estudar na área indígena, lá na escola da Vila Batista. Fiz o quarto ano, passei a estudar, aí foi o tempo em que eu conheci o meu esposo, não é? Viajando através de barco de linha, para cá e para ali. Mas, antes disso, eu morei um bom tempo em Parintins. Eu passei a morar numa casa de família, aos onze anos. Eu era babá, fui babá de criança, não é?
P/1 – Em Parintins?
R – Em Parintins. Só que em Parintins, eu não estava estudando, estava fora da escola, fiquei uns dois anos em Parintins longe da escola, não ia para a escola, morava com uma senhora.
P/1 – Por que você foi morar em Parintins para trabalhar nessa casa? Como foi essa passagem?
R – Porque a minha avó, ela tinha uma casa ali em Parintins, ali na Santa Rita, a minha avó tinha uma casa lá e aí, sempre que a gente ia para Parintins, ia sempre para a casa da minha avó. Lá que eu conheci essa senhora, que eu passei a morar com ela. Conheci-a, ela gostou de mim, aí pediu à minha mãe, ao meu pai, meu pai deixou. Eu passei a morar com ela lá porque aí o meu pai vinha para o interior com a minha mãe, não ficava ninguém na casa da minha avó. E passei a morar com ela por esse período, esses dois anos.
P/1 – E você gostou de morar com ela?
R – Sim, gostei de morar porque ela era uma pessoa muito legal, ela me tratava bem, não é? E, nesse mesmo ano, ela me colocou numa escola lá próxima, eu nem cheguei a concluir, eu desisti porque foi o tempo em que eu fui para as bandas da minha mãe, do meu pai, estava com saudades da minha mãe e do meu pai. Então, eu saí da escola no meio do ano. Aí fiquei como desistente, não voltei mais.
P/1 – Como foi a sua passagem por essa escola?
R – A minha passagem por essa escola foi muito legal. A minha professora me tratava como era lá na escola em que eu estudava, na minha primeira escola. Já foi uma coisa ali muito diferente, porque eu já estava maiorzinha, não é? E a gente fazia Física, ela tratava a gente direito, falava com carinho. Já aí na cidade, não é? E assim... Os trabalhos que ela passava para mim, ela me ajudava bastante, era uma coisa muito legal, gostei de estudar. Mas, infelizmente eu não conclui.
P/1 – Porque você ficou com saudades dos pais?
R – Foi. Aí fui para o interior, cheguei lá, passei… Não terminei, fiquei longe da escola. Aí lá, a minha avó falou: “Minha filha, você não quer estudar aqui?” Eu falei: “Vovó, será?” “É, minha filha, eu vou lhe matricular aqui para estudar, você quer? Vou conversar com a professora Dicijane”. Aí eu falei: “Está bom”. Aí ela conversou com ela, ela pediu lá os meus documentos, me matriculou e, no ano seguinte, comecei a estudar, fazer o quarto ano lá. Aí, já repeti o quarto ano, já repeti o quarto ano. Já no quinto ano eu fiquei longe da escola de novo por um bom tempo.
P/1 – Por quê?
R – Porque a minha mãe... Foi o tempo em que ela se separou do meu pai. A minha mãe se separou do meu pai quando eu tinha entre os doze e treze anos. A minha mãe se separou do meu pai, o meu pai ficou só ele cuidando dos meus irmãos e eu e as minhas duas irmãs fomos com a minha mãe. Então, a minha mãe não parava, não é? Ela passava um tempo em tal lugar, ela ia para outro lugar e passava tempo vinha para Parintins, ia para o interior e a gente atrás dela - para onde ela ia, a gente ia com ela. Aí foi o tempo também em que eu conheci o meu esposo, viajando de barco de linha…
P/1 – Como foi esse encontro?
R – Ah, esse encontro (risos)... Esse encontro foi que um primo meu me apresentou, não é? Então, o meu primo chegou comigo, viajando de barco ali, como era o pessoal da área indígena viajando de barco, aí o meu primo… A gente vinha no barco, brincando de dominó, baralho, junto com as outras meninas, os outros meninos. Aí o meu primo chegou para mim assim: “Maria, eu quero lhe apresentar o Glaucio, quer conhecê-lo?” Eu falei: “Não sei, vamos ver, não é?” Aí ele falou: “Tá, eu vou lá, vou conversar com ele”. Aí ele foi lá, apresentou para mim. Como ele já conhecia ele também, aí a gente veio conversando, conversando, chegamos na comunidade Vila Batista, eles ficaram na Vila Batista e nós fomos lá para o sitio da minha avó, que ficava mais acima um pouco, no barco de linha, deixou a gente lá, aí a gente foi se conhecendo aos poucos, não é? Quando eu viajava para Parintins ele também vinha de Parintins para a comunidade e aí a gente ia se conhecendo. Aí, foi o tempo em que a gente ficou... Ficamos namorando por vários meses. E chegou um período em que a gente ficou... Foi lá, pediu para o meu pai, meu pai não queria, nem a minha mãe, porque o meu pai dizia que eu era muito nova, não é? E a minha mãe não queria, não queria, não queria, de jeito nenhum.
P/1 – Vocês decidiram casar?
R – Não, a gente ficou primeiro junto, não é? Convivendo junto. Aí, depois de um certo tempo é que a gente casou.
P/1 – Mas você queria ir morar com ele? Por que o seu pai e a sua mãe não queriam? Que vocês ficassem morando juntos?
R – Sim, porque o meu pai falou que eu era muito nova, disse que eu era muito nova, que eu tinha que estudar. E quando a gente é assim muito nova, adolescente, a gente não pensa em nada, a gente… O que vem à cabeça a gente faz. Então, ali, naquele momento, o meu pai disse que eu era muito nova, disse que não dava e tal, aí a minha mãe não queria, minha mãe nunca aceitou. Até que ele conversou com o meu pai e aí foi que o meu pai foi cedendo aos poucos, até que ele deixou. No mesmo dia em que ele pediu para o meu pai, a gente já foi embora, a gente passou a viver junto desde esse tempo, não é?
P/1 – Você foi morar na comunidade…
R – Sim, fui morar na comunidade indígena, fiquei por um bom tempo na comunidade indígena, aí depois vim para Parintins. A gente morava em Parintins, porque a mãe dele tem casa em Parintins. Aí, a gente… E assim... Eu fui me distanciando da escola, sabe, eu não estudei mais, aí foi o tempo em que, com quinze anos, eu engravidei da minha filha mais velha e tive ela, não é? Aí passou, eu não estudei, foi passando, quando ela estava com um ano e seis meses eu engravidei do meu segundo filho. Aí, quando eu estava com o meu segundo filho com seis… Tentei voltar para a escola, estava com seis meses de idade o meu filho. Então, voltei para a escola, desisti.
P/1 – Por que você desistiu?
R – Eu desisti, porque quando a gente tem filho pequeno é complicado, porque ali não tem no braço não tem como a gente escrever, não tem como a gente prestar atenção com criança pequena, não é? É difícil. Aí, eu desisti. Eu estava lá pela Vila Batista, morando lá, e o professor Janderlei já vinha morando lá na Vila Batista, trabalhando já por um bom tempo, ele já estava lá, não é? Se eu não me engano, ela já estava há uns três anos na Vila Batista trabalhando, que não era só ele, eram ele e os dois irmãos dele - Janderlei, o Adinã e o Jamilson. Aí foi que surgiu o Projeto Igarité, foi para lá. Fizeram uma reunião na comunidade e conversaram com o Tuchaua. O Janderlei explicou como era, como é que ia funcionar e tal, falou, explicou lá e começou a pegar o nome das pessoas que queriam estudar, naquele tempo. Aí eu pensei, eu falei: “Vou entrar”. Dei o meu nome, os meus documentos para ele. Aí ele falou assim para mim: “Maria, você tem certeza de que quer estudar?” Eu falei: “Sim, professor, por quê?” “Você vai ter uma única chance”. “Sim, eu sei disso”. Porque eu já tinha desistido duas, três vezes, eu tentava, não dava, desistia. Aí: “Você tem uma única chance. Se você desistir, já era. Você não vai ter como entrar em escola nenhuma”. “Está bom, eu estou decidida a voltar a estudar. Eu posso passar por dificuldades, mas jamais vou desistir dos meus estudos”. E, naquele tempo, eu já estava com dezoito anos. Aí eu falei: “Não, já me decidi, vou entrar na escola e vou até o final”. Aí, o professor Janderlei foi uma pessoa que sempre incentivou muito a gente, dava apoio e conversava, aconselhava, ele é uma pessoa muito legal, o professor Janderlei. Eu passei a estudar no Projeto Igarité, estava ansiosa porque nunca havia estudado na tela assim, tendo professor presencial e tendo professor ministrante ao mesmo tempo. E assim... Foi uma coisa nova que aconteceu na minha vida, não é? Uma coisa que foi muito boa, porque a tecnologia, hoje em dia ela já avançou muito, não é? Estudando… E eu achava muito legal estudar, sabe? Quando eu entrei, no primeiro dia, na sala de aula, eu entrei ansiosa, querendo saber como é que ia funcionar a nossa aula. Aí o professor falou: “Eu vou ser o professor de vocês, presencial, mas vocês vão ter o professor de vocês na tela”. Então não era só um professor, a gente estudava com dois professores na tela. Às vezes era só com um, mas…
P/1 – Antes então de você avançar no Projeto eu preciso perguntar umas coisas para entender um pouco a sua rotina. Aí depois a gente entra direto e vamos ficar bastante no projeto, está bem? Quando você resolveu viver com o seu marido, vocês ficaram morando um tempo na comunidade.
R – Sim, não foi muito bem… Assim... Foram uns meses e depois a gente passou a morar em Parintins, na casa da mãe dele. Porque a mãe dele, a família dele tem casa em Parintins.
P/1 – E ele é indígena?
R – Ele é indígena.
P/1 – Qual é o grupo indígena a que ele pertence?
R – Eles são Sateré-Mawé.
P/1 – E você viveu assim costumes diferentes quando você… Mesmo que tenha sido alguns meses, mas como foi essa adaptação?
R – Costumes diferentes, porque ali onde eu morava, na casa da tia dele, todos eles falavam a língua materna e eu não entendia. Quando eles falavam Português eu entendia porque era a minha língua. E quando era na língua deles eu ficava só olhando, querendo entender o que estavam conversando, não é? Então ali era uma coisa interessante, porque eu queria aprender, não é? “Será que eu consigo...?” (risos), eu perguntava para mim mesmo. “Será que eu consigo falar um dia como eles?” E ali o costume era diferente, porque ali eles gostam de comer saúva. Eu nunca gostei, eu experimentei mas não foi… E a minha filha gosta demais de comer saúva.
P/1 – A mais velha?
R – A mais velha. Os costumes deles são totalmente diferentes dos nossos, porque assim... Onde eles moram, eles têm só aquele barracão lá, aquele barracão feito de palha, então tipo uma ocazinha lá e a alimentação que eles trazem para casa... Porque lá eram várias pessoas de uma só família quase, ali naquele pedaço. Então, todo mundo se ajuntava ali para comer o que trazia, alimento, ali, todo mundo se reunia lá mesmo para comer todo mundo junto. E era assim uma coisa que a gente não tem esse costume como a gente tem na nossa casa, de sentar ali, na mesa, colocar o prato, almoçar. Então, já era assim... Aquilo ali fazia ali mesmo, cada um já ia tirando para cá, outro para ali, assim… Um sentava ali, outro para cá, outro para ali. Era assim, não é? E também na hora de dormir, porque nos barracões onde a gente passou um tempo a morar dormiam várias pessoas; na casa... Eram várias pessoas na casa e era todo mundo junto ali, um para cá, outro para ali, não é? E não é como a gente, cada um tem o seu quartinho, não é? Assim... O modo deles de trabalhar com farinha, a gente trabalha de uma maneira… Eu aprendi com a minha avó a trabalhar com farinha, porque eu ajudei a minha avó por um tempo a trabalhar com farinha, mas eu nunca gostei de trabalhar com farinha porque é muito pesado. Só de pensar em carregar mandioca dá aquela preguiça, ai, dói as costas. Eu falei para a minha avó: “Vó, eu não quero isso para a minha vida, não. Um dia estar na roça carregando mandioca, eu não quero. Porque é muito pesado, dói as costas”. Eu falei. “E eu nem quero que a senhora fique carregando mandioca também”. Porque ela tinha dois filhos que moravam com ela e eles é que carregavam mandioca. E ali, na área indígena, já é diferente. Porque a gente, branco, a gente não carrega como as indígenas fazem. E as indígenas, elas trabalham ali por dois, por marido e mulher ao mesmo tempo. E a gente não, já é mais o marido que trabalha, mais do que a mulher. Na área indígena não, é a mulher que carrega a paineira de mandioca nas costas e elas que fazem farinha, enquanto o marido, muitas vezes, só está na rede deitado, sentado ali, ou então vai caçar, não é? É a mulher que dá conta de tudo, cuida dos filhos, faz farinha para cá e para ali, e é uma coisa diferente da nossa.
P/1 – E com você, como foi?
R – Ah, eu… Naquele tempo eu fui experimentar carregar mandioca doeu o pescoço e pronto, aí eu fiquei doente, não é? Mas eu nunca gostei de carregar mandioca, de estar trabalhando na farinha. Eu gosto de descascar uma mandioquinha aqui, uma mandioquinha ali, eu gosto de ajudar, mas estar lá mesmo…
P/1 – E os filhos, você teve lá mesmo na comunidade?
R – Não. Meus filhos, não. Eu passei um tempo morando na cidade com os meus filhos. Desde que eles nasceram, eles foram se criando em Parintins já, longe da convivência deles, não é? E os meus filhos, algumas coisas eles entendem, mas não falam porque eles não conviveram ali totalmente desde crianças. Já quando foram para lá, já estavam grandinhos, os dois.
P/1 – E hoje você tem quantos filhos?
R – Eu tenho cinco filhos.
P/1 – Fale os nomes deles todos.
R – Eu tenho cinco filhos, tenho uma filha e quatro meninos. A minha filha mais velha, ela tem… Está completando quatorze anos, o nome dela é Glauciene. O meu filho mais velho tem onze anos, o nome dele é Glauber. Tem o João Paulo, ele tem nove anos, vai fazer dez também. E tem o Miguel, que tem sete aninhos e o meu pequeno, de cinco aninhos, que é o Glaucio Filho, meu filho menor.
P/1 – Quem escolheu os nomes dos seus filhos?
R – Foi o pai deles. O pai deles que escolheu, até da minha filha mais velha foi ele com a mãe dele e a irmã dele que mora em Manaus, a Deuciene. Como o nome dela é Deuciene, aí ela pensou: “Mamãe, porque a gente não coloca o nome da Glauciene ou Glaucia ou Glauciene ou Glaucimara?” Que é pegar o nome de pai e mãe, não é? Aí eu deixei para eles escolherem, aí escolheram e ficou Glauciene, já pegou o nome do pai dela e o nome da tia dela, que é Deuciene, não é?
P/1 – E não teve nome indígena? Eles não quiseram colocar?
R – Não, até porque foi o pai que escolheu, então os nomes que eles escolheram ficaram esses mesmos.
P/1 – Eles põem nome indígena ainda quando nasce?
R – Sim, eles põem um nome indígena.
P/1 – E não colocaram nos seus filhos?
R – Não, nos meus não. Até porque naquele tempo em que os meus filhos estavam pequenos, eles moravam em Parintins. E lá já não é totalmente como é no interior, é diferente, não é?
P/1 – Você disse que tem um dos filhos seus que começou a falar algumas coisas…
R – Olha, o meu pequeno de cinco anos, a avó dele ensina para todos eles, mas é o que mais presta atenção e o que a avó fala, ele repete. Ele fala para mim: “Mamãe, eu já sei falar Sateré”. Porque Sateré é a língua. Ele fala: “Mamãe, terocapé” “ O que é, meu filho, terocapé?” “Embora já?” “É mesmo, meu filho, tu já sabes?” “Eu já sei”. “Quem te ensinou?” “Foi a vovó”. É mesmo? Que bom que tu sabes. E fale mais alguma coisa que a sua avó lhe ensinou”. “Mame, o que é pirá? É peixe”. Pirá é peixe, ele sabe, ele fica me fazendo, às vezes, perguntas. Porque algumas coisas eu já entendo, não é? Eu não sei falar, mas algumas coisas eu entendo bastante. Palavras pequenas eu entendo, eu só não sei pronunciar, porque é um pouco difícil, mas eu entendo. E assim ele faz perguntas e presta atenção, ele é uma criança bem ativa, o meu filhinho de cinco anos.
P/1 – E você disse que quando chegou então aos dezoito anos você teve… Esse professor, ele já tinha sido seu professor antes? Esse que falou que era a sua última chance.
R – Professor Janderlei? Sim. Porque eu entrei para fazer o quinto ano… Não, foi para concluir… Não, foi para fazer o quinto ano, aí eu desisti. Por dois meses para finalizar eu desisti. Aí eu desisti, ele veio conversar comigo, foi o tempo em que eu fui para Parintins e não voltei mais, já lá na área indígena. Aí, depois, fiz minha matrícula de novo, passei a estudar, quando foi no meio do ano, desisti de novo, fui para Parintins. E era assim, ia para lá, depois quando ia para Parintins desistia, aí assim ia acontecendo, não é? Até que o professor falou: “Maria, você tem que decidir: você quer estudar ou não?” Sabe, o professor, ele ainda puxou um pouco a minha orelha dizendo se eu queria estudar ou não: “Porque você, quando está para finalizar, você desiste”. Ele falou. “O que é isso, menina?” Ele falava: “Continue seus estudos, não desista”. Aí, sempre assim, ele conversando, aconselhando, incentivando ao mesmo tempo ali, falava para mim. Aí, quando surgiu o Projeto Igarité na Vila Batista, já para fazer o sexto ano, ele chegou comigo, conversou, explicou... Até, inclusive, eu me lembro até hoje da primeira reunião que fizeram na Vila Batista com o Projeto Igarité, que estavam querendo levar para lá. Fizeram a reunião na comunidade, com todos, reuniram lá junto com o Tuchaua, aí o professor explicou um pouco o Projeto, como é que ia funcionar e tudo mais, e ele perguntou dos alunos - porque tinha vários alunos ali que estavam longe da escola, que não estavam estudando, entre meninos de treze, meninos de quinze, dezessete anos, estavam longe da escola, sem fazer nada - aí ele conversou com os pais, os pais autorizaram, acharam interessante também, porque coisa nova na comunidade, que não tinha ali, gostaram, aí começaram a matricular os seus filhos, não é? Aí foi que formou a turma naquele tempo. Naquele tempo, nós éramos apenas treze alunos no Projeto Igarité. A gente conversava entre nós, ali, aquela turma que já tinha formado: “Como será que vão ser as nossas aulas no Projeto Igarité? Será que vai ser legal?” A gente ficava assim, fazendo pergunta: “Será que vai ser legal? Como é que vai ser? O que a gente vai fazer? Será que é difícil?” A gente perguntava um para o outro e ansioso, ao mesmo tempo querendo saber, não é? Aí, era aquela animação toda.
P/1 – O que vocês achavam que era… Porque... Como era na sua escola, e o que vocês estavam achando que ia ser diferente, que ficou aquela ansiedade?
R – Aquela ansiedade era de saber como é que ia funcionar e, ao mesmo tempo, eu pensava assim: “Poxa, será que é difícil? Será que eu vou conseguir?” Eu pensava, eu pensava isso. Aí, o professor Janderlei falou: “Não é difícil, vocês vão gostar demais quando vocês estiverem dentro da sala de aula assistindo às aulas, vocês vão aprender coisas novas, coisas que nunca vocês tiveram na vida, vocês estão tendo uma oportunidade agora de aprender coisas novas”. Aí então, com aquele entusiasmo, indo para lá todo mundo, indo para a escola. O que eu achei interessante ali foi de entrar o primeiro dia na escola, ansiosa, querendo saber, ver, e aí o professor ligou a tela... Primeiramente, cantou o hino lá e o que eu achei interessante ali dentro da sala de aula, que eu gostei muito, foi que a gente trabalhava em grupo, coisa que nunca naquela época, nunca a gente estudou em grupo assim, não é? E eram quatro grupos: Grupo de Coordenação, Socialização, Síntese e Avaliação. Ali todo mundo trabalhava junto, não só como aluno mas juntamente com professor, professor ministrante. Também adorava que… Eu achei interessante assim que depois que eu entrei, de estar lá vendo tudo, eu não achei difícil, eu até gostei que estava aprendendo coisa nova e ali também, trabalhando em grupo. Cada um de nós ali tinha um grupo: quem era de Coordenação era; quem era de Socialização era; de Síntese; de Avaliação. E o professor… A gente tinha o Memorial…
P/1 – Antes de você falar do Memorial, você disse que achou que ia ser difícil, mas não era.
R – É, foi…
P/1 – E por que não era difícil? Como era... Que você achou até bem…
R – Ah, eu achei interessante porque ali as matérias que a gente estudava no Projeto Igarité não eram como a gente estudava naquela época em sala de aula, não é? Porque assim,... Eu achei que foi uma coisa interessante porque a gente estuda a matéria até finalizar. E ali a gente vai aprendendo coisas que a gente não sabe e coisas boas que a gente muitas vezes guarda até hoje, que são legais, as matérias, estudando, não é? Então, já foi uma coisa diferente que eu achei, porque a gente estuda a matéria até finalizar.
P/1 – Você disse que até hoje guarda?
R – Sim, algumas coisas eu guardo de lembrança porque assim... Naquela época em que a gente estudava… Quando a gente estuda numa escola municipal, a gente estuda não é a matéria toda, estuda, tipo, segunda-feira: um tempo disso, um tempo daquilo e um tempo de outra coisa. E lá não, a gente vai estudando a matéria toda até finalizar. E o interessante é que a gente tem um acompanhamento lá até finalizar, não é? E foi isso que eu gostei demais, a gente estuda a matéria até finalizar. E ali, também, meus alunos, a minha colega Maria Odene, ela… Era assim, naquele entusiasmo, naquela alegria, todo mundo ali, a gente ia em sala de aula todo dia, animada, não é? E foi assim, eu fui me animando, porque eu achei interessante, aí foi o que eu pensei, eu falei: “Não, chega de toda vez desistir. Daqui eu vou até finalizar agora, porque já desisti muito”. E eu gostei de estudar no Projeto Igarité, não foi difícil porque os conteúdos... A gente tinha os conteúdos, textos, tudo que a gente fazia, então a gente foi aprendendo coisas novas e eu não achei difícil porque todas as atividades que a professora passava a gente tinha capacidade de responder, tinha capacidade, tinha aquela condição de responder. E a gente fazia cartazes para apresentar tudo isso e eu fui gostando de criar cartazes, porque na minha escola era difícil até a gente criar cartaz, cartazes para apresentar. E a gente era uma sala, a única sala em que a professora gostava de interagir com a gente. E quem sempre mais interagia éramos eu, a minha colega Maria Odene e o nosso colega Eurilson. A gente é que sempre interagia.
P/1 – O que te animava para interagir assim?
R – Eu achava animado quando era para cantar, quando era… Muitas vezes ler um pequeno trecho ali, não é? Muitas vezes ali com vergonha, um pouco… A professora sempre dizia assim: “Calma gente, respirem fundo, vocês vão conseguir”. Eu achava interessante quando eles iam para a frente, os meninos que sabem falar a língua deles criavam música ali na língua deles, com violão, iam apresentar e a professora gostava demais disso. Então, poemas que a gente criava e a gente ia para a frente ler e a professora sempre aplaudia, gostava da gente, não é? E achava a nossa sala, apenas de treze alunos... De treze alunos continuaram só nove alunos, os outros foram desistindo. E assim... Eu já ia ficando triste, porque eu tinha colegas que iam desistindo antes de finalizar o ano, aí tinha uns que concluíam, lá no sétimo ano já iam desistindo. E foi, foi, continuou só a gente. Eu ficava triste porque eles desistiam, não continuavam com a gente mais.
P/1 – Só três desistiram, não é?
R – Isso.
P/1 – Maria, você falou das equipes. De quais equipes você participou e o que você gostou bastante?
R – Da equipe que eu participei, participei da equipe de Coordenação. De Coordenação porque eu achava interessante que o professor escolhia: “Vocês vão escolher de qual vocês vão querer participar”. Ele falava assim: “A parte de Coordenação vai fazer isso, isso, isso e isso, vocês vão ter que chegar mais cedo na sala, vocês vão organizar, vocês vão fazer isso e aquilo, tudo mais”. E a gente naquela animação, não é? Saía de casa um pouco cedo, antes de dar o horário de começar a aula chegava lá, arrumava a sala, fazia em círculo, coisa diferente porque fazia em círculo lá, a gente fazia o círculo, arrumava, organizava e quando vinham os nossos colegas, entravam, já estava tudo arrumado, organizado lá e o professor via também. Aí, a equipe de Socialização chegava lá, já estava tudo... Produzia alguma coisa ali para falar, apresentar lá entre nós mesmos, que a gente conversava, estava sempre em roda de conversa ali. A Síntese também, não é? Organizava alguma coisa para apresentar. E a equipe de Avaliação... Era engraçado, a gente achava uma coisa que, ao mesmo tempo, era engraçado, mas a gente estava aprendendo. Porque a equipe de Avaliação chegava na sala, às vezes, bagunçando com a gente assim: “O que é isso? Vocês não arrumaram direito, vocês não fizeram aquilo…”. Mas era bagunça, não é? Mas assim... Era coisa legal porque ali todo mundo estava sorrindo, estava brincando ao mesmo tempo, se divertindo juntamente com o nosso professor, que também sempre foi um ótimo professor, não é? Professor Janderlei.
P/1 – Você ficou na equipe de Avaliação alguma vez?
R – Sim, cheguei a ficar porque sempre a gente trocava.
P/1 – E como era essa avaliação?
R – Essa avaliação... A gente avaliava os nossos colegas, avaliava a nossa sala, avaliava todas as equipes, avaliava até o nosso professor. Porque a gente dizia assim: “Professor, a gente não vai só nos avaliar, avaliar os colegas, mas a gente vai lhe avaliar também”. A gente ria dele, balançando com ele. “Sim, vocês podem me avaliar”, ele dizia. “Tudo bem, não tem problema, não”. Então: “Professor, hora marcada”. “Professor, tal coisa”. Sempre assim, sabe? E era interessante porque ali todo mundo ficava ansioso, todo mundo chegava no horário certo, todo mundo tinha suas obrigações em casa, mas naquele pontual ali, todo mundo chegando cedo na sala, naquela animação. Sempre foi assim, não é? Eu gostei de estudar no Projeto Igarité porque sempre a gente estava naquela animação, naquela alegria, todo mundo sorrindo, juntamente com os professores ministrantes, que conversavam com a gente. Inclusive, eu tive um professor que morreu - era o professor Dino - uma coisa assim... Porque ele era o nosso professor, tal.
P/1 – Ele era ministrante?
R – Ele era ministrante. Ele faleceu, aí a gente soube que ele faleceu, a gente ficou triste porque ele era um ótimo professor. Mesmo a gente não estando ali, presente com ele, ele estando ali na tela, mas a gente gostava muito daquele professor.
P/1 – Aproveitando, conte para a gente como era essa relação de vocês com os professores que estavam na tela.
R – A nossa relação com os professores da tela era uma relação muito boa porque mesmo a gente não estando ali presente - estava na tela - mas era muito bom, porque eles explicavam bastante. E quando a gente não entendia algumas coisas a gente pedia, ia lá, enviava para ele, pedindo para ele repetir, repetir explicando novamente, e aí ele perguntava se a gente tinha entendido, a gente dizia que sim. Quando não, pegava o microfone que tinha lá ou, quando não tinha, a gente enviava mensagem para ele, ele explicava de novo. Era assim, era interessante essa parte.
P/1 – E essa parte da tecnologia, de escrever, microfone?
R – Ah, foi coisa nova porque ali a gente nunca tinha pego. E escrever, falar, estar ali participando. Foi interessante porque foi uma coisa nova na nossa vida, para todos. Porque o professor sempre dizia: “Olha, vocês vão aprender a manusear, vocês vão aprender a mexer aqui”. Ele sempre ensinava, tudo ele ensinava para a gente: como liga aqui, como desliga, como que faz aqui, como que faz ali. “Vocês vão aprender muita coisa legal”. Então, foi muita coisa nova ao mesmo tempo para a gente aprender, que hoje em dia eu já sei usar. O computador, já sei como é que liga, como é que desliga. Muita coisa boa que aconteceu na nossa vida ali naquele período, no Projeto.
P/1 – Você lembra de um momento, Maria, que até hoje foi bem marcante? Tudo isso que você contou foi marcante, foi importante. mas teve um momento, um trabalho, uma situação que você podia contar para a gente assim que foi a que você mais ou gostou, se dedicou, que foi marcante, e até hoje é uma lembrança forte?
R – Ah, uma coisa marcante foi que como a gente trabalhava em equipe, como a gente tinha quatro equipes, foi coisa que eu guardo até hoje que, para a gente aprender a se organizar melhor, não só dentro da escola como na nossa vida pessoal, se socializar melhor com as pessoas... E eu guardo comigo isso, porque depois que eu concluí, eu pensei, eu falei assim: “Professor, um dia eu vou ser uma professora”. “Você gostou?” “Gostei, porque a gente aprende muita coisa legal, muita coisa boa aqui, a gente pode dividir com as pessoas”. E já ali, trabalhando com as crianças, a gente vê já hoje em dia... Trabalho com aquele carinho, com aquela felicidade, tendo aquele gosto de trabalhar com as crianças, já é muita coisa… Muita coisa mudou assim, porque o que eu aprendi ali, trabalhando em equipes, eu trabalho ali com as crianças, primeiro e segundo períodos.
P/1 – Você trabalha... Porque, você trabalha em quê com as crianças?
R – A gente trabalha com as crianças ali, a gente faz a mesma coisa que a gente fazia no Projeto. A gente faz em sala, a gente reúne as crianças, faz a roda ali, a gente coloca ele ali, sentadinho, conta uma história, conversa com ele, faz eles se abraçarem, darem aperto de mão, beijo no rosto e essas coisas que são coisas legais. Eles ficam rindo, meio com vergonha ali, mas eles fazem, não é? Então, é uma coisa assim muito legal, porque ali está todo mundo sorrindo, está feliz, então é uma coisa assim que é muito bom, não é?
P/1 – Você trabalha em Educação agora?
R – Sim.
P/1 – Em que período você trabalha? Com que modalidade?
R – Idade de quatro anos.
P/1 – Educação infantil?
R – Educação infantil.
P/1 – Eu queria ver se você conseguia lembrar, Maria, de um momento assim, como o que você contou uma história, por exemplo, de que o seu pai foi caçar o jacaré. Você contou toda a história como aconteceu. Tem alguma situação no Igarité que você podia contar para a gente, assim, uma situação que aconteceu com você, com os seus colegas ou na equipe, ou numa apresentação de algum trabalho, como foi, como você se sentiu? Ou se teve alguma saída, qualquer coisa que você quiser escolher, que você conte essa história para a gente, para a gente ver bem como era lá. Eu lhe dou um tempo para lembrar.
R – Deixa eu lembrar aqui. Um momento assim… Um momento ruim ou um momento bom?
P/1 – O que você preferir. Se for bom é melhor, não é? Porque você disse que tinha tanta coisa boa. Ou de superação. Sabe, que você conte a história de como aconteceu.
R – Naquele tempo em que eu estudava no Projeto Igarité, eu até tive um pouco de dificuldade, não foi na escola, mas foi ali na vida pessoal, não é? Porque assim... Eu tinha os meus filhos, tinha os meus dois filhos pequenos e o meu marido trabalhava. E era muito corrido para mim porque ele trabalhava de manhã, de tarde e à noite e eu ficava em casa fazendo as coisas, vendo o horário, agoniada. E ele chegava da escola, às vezes cansado para ficar com criança em casa ainda, para eu me arrumar, para ir para a escola. Aí, eu fiquei um tempo triste, porque ele falava que não dava para eu estudar, porque tinha filho pequeno e ele trabalhava demais, era cansativo para ele. E eu pensei em desistir mas, ao mesmo tempo, pensava: “Não vou desistir”. E eu ficava triste por isso, ele dizia: “Tu não vais mais estudar, não dá, porque eu chego cansado, tem as crianças. Eu chego em casa e quero, pelo menos, descansar, almoçar, descansar um pouco”. E ali, às quatro, ele já tinha que sair de novo. Eu cheguei a conversar com o professor Janderlei, eu falei para ele: “Professor, eu vou desistir”. Ele falou: “Por que, mulher, tu vais desistir?” “Professor, não dá mais para eu continuar, eu tenho os meus filhos pequenos”. “Mas não desiste, mulher, continua”. Aí eu contei a situação para ele, ele chegou para mim e falou: “Não desiste, continua, a gente enfrenta dificuldades na vida, a gente tem várias lutas na vida, mas tudo isso um dia vai passar e você vai ser, um dia, uma vencedora, você vai conseguir”. Porque o professor, quando eu chegava com ele, às vezes, triste, conversando com ele, contando situações para ele, ele sempre era uma pessoa de estar ali, do lado da gente, sempre apoiando, dando força, não é? Sempre incentivando também. Era assim. Só que aí teve um período em que eu viajei para Parintins. Eu passei o quê? Quase dois meses em Parintins. E o professor foi atrás de mim, me chamou a atenção, conversou comigo, falou assim: “E então, mulher, vais estudar ou não vais? Vais desistir? Não desiste”. Eu falei: “Professor, eu ainda tenho chance de continuar?” “Sim, é só você fazer as provas que você tem como recuperar os dias perdidos”. “Então, professor, dá para o senhor tirar as avaliações…?” Eu já estava ficando triste, já estava há dois meses sem ir à escola, aí o professor falou assim: “Sabe de uma coisa? Eu vou tirar todas as avaliações para você e você vai fazer em casa”. Bom, como eu já tinha também o livro que dava para ajudar um pouco, estudar algumas coisas lá, ele falou: “Eu vou tirar as avaliações para você, trago aqui, você faz e depois me entrega. Aí, vai estar tudo ok de novo na sala de aula”. “Então, tudo bem, professor”. Ele veio até Parintins, tirou as avaliações, trouxe para mim, eu consegui responder, graças a Deus, a todas as avaliações, entreguei para ele, ele corrigiu, falou que estava certo e falou: “Está tudo ok, você pode voltar para a sala de aula e começar a sua aula normal”. Eu já estava ficando desanimada, não é? Depois eu voltei a me animar de novo. Aí ele disse: “Na quarta, você já está novamente em sala de aula”. Porque barco só tem às terça-feiras - vai domingo e terça-feira tem o barco de volta. Peguei e falei: “Eu vou para o interior, vou estudar de novo. Cheguei no interior, quando eu entrei na sala de aula, os meus colegas ficaram alegres porque eu voltei: “E aí, mulher, por quê? Tu já queres desistir?” Começaram a perguntar, aí eu falei: “Poxa, não é porque eu quero desistir, eu quero que vocês entendam o meu lado, porque eu tenho filho pequeno, que eu não tenho com quem deixar. E o pai deles trabalha bastante - de manhã, à tarde e à noite - é cansativo e fica difícil”. E, às vezes, eu pegava o meu filhinho de colo, levava comigo assim mesmo, levava quando era horário de aula, às vezes estava dormindo, colocava no carrinho do lado, fazia dormir, colocava no carrinho e lá não era só eu, éramos eu e mais duas colegas minhas, tinha uma também que estava com bebezinho pequeno e a outra com bebê de colo que já estava grandinho. A gente levava para a escola com a gente os nossos filhos, desde pequeno. O meu filho, o João, que foi quem acompanhou mesmo, veio acompanhando até depois que ele cresceu mais um pouco - o João Paulo foi que veio acompanhando mais um pouco. E muitas vezes eu deixava e ele ficava meio impaciente, não querendo ficar, ficava bravo comigo. Levava comigo para a escola. Mas é um pouco difícil porque com criança no colo precisa de atenção e tira atenção da gente, a gente não presta atenção direito. Aí fazia dormir, colocava… O professor sempre dizia: “Meninas, conversem com o marido de vocês porque não dá para vocês trazerem para a escola, atrapalha vocês”. Dava um jeitinho daqui, um jeitinho dali, a gente deixava e um dia trazia, um dia não trazia, e assim a gente ia. E fomos levando e até hoje a gente conseguiu concluir o nono ano, graças a Deus, no Projeto Igarité.
P/1 – Você fez o sexto, sétimo, oitavo e o nono?
R – E o nono.
P/1 – Quatro anos?
R – Quatro anos. Nessa aperreia, mas a gente conseguiu chegar.
P/1 – E você falou do Memorial, não é? Quando você ia falar do Memorial, eu falei: “Espera aí que a gente já vai voltar para o Memorial”. Você falou: “Ah, tinha o Memorial…”. Do que você gostava no Memorial?
R – Do Memorial... Porque a gente registrava tudo o que acontecia durante o dia, até a gente chegar na escola - tudo a gente deixava registrado. Não deu para trazer nenhum Memorial daquele tempo porque o professor Janderlei não trabalha mais lá, ele trabalha em outra comunidade e o nosso Memorial está todo na escola. Eu pensando que estava na casa dele, fui até a casa dele, pedi permissão, levei a chave, abri, revirei tudo quanto é livro dele, gaveta, não encontrei. E quando cheguei em Parintins, ele falou: “Maria, está lá na escola, nas gavetas, o Memorial de vocês”. ”Poxa, professor, eu nem pensei nisso, agora já era”. Mas assim... A gente registrava desde o nosso acordar até a escola, a gente registrava tudo.
P/1 – E o que significava para você esse registro?
R – Ah, esse registro o que significava? Ali registrava o nosso dia a dia, não é? O nosso dia a dia ali. Ficou uma lembrança porque aquilo ali ficava registrado o nosso dia a dia, o que acontecia. Todo dia registrava, todo dia registrava. E a gente só não guardou esse Memorial com a gente mesmo porque o nosso professor, chegou no final do ano, ele disse: “Cadê o Memorial de vocês?” Ele pedia todo dia o nosso Memorial, ele olhava direitinho lá, quem não tinha feito ele mandava fazer dentro da sala de aula, porque tinha que registrar e, no final do ano, quando finalizou, ele pediu o nosso Memorial, a gente levou para ele e ele guardou, ele falou que está guardado na escola lá.
P/1 – E, Maria, você lembra de alguma coisa que você escreveu lá?
R – Eu lembro, porque assim... O que a gente registrava ao nosso acordar, pela manhã, o que primeiramente a gente faz, a gente tem o costume de orar quando a gente acorda e depois a gente registrava assim: “Hoje eu acordei, fui fazer o meu café, fui escovar o meu dente, tomei um banho, arrumei meus filhos para ir para a escola e fez isso, fez aquilo…”. E são coisas que a gente lembra, que a gente fazia, registrando ali, naquele Memorial. Então, não tem como a gente esquecer, não é?
P/1 – Tinha algum sentimento que você costumava pôr ali? Escrever ali?
R – Algum sentimento? Não, nessa parte eu não lembro se eu cheguei a escrever. Mas ali tem bastante coisa registrada, porque a gente registrava.
P/1 – E do que você aprendeu, você colocou alguma coisa escrita ali, tipo, “aprendi tal coisa…”?
R – Sim, a gente colocava lá no nosso Memorial, porque a gente registrava aquele… O que aconteceu durante o nosso dia, ou como foi a nossa aula, o conteúdo, o que foi que a gente aprendeu, o que foi que a gente fez, aí toda vez a gente registrava no nosso Memorial, não é?
P/1 – Maria, você disse que tinha alunos indígenas, não é?
R – Sim.
P/1 – E que eles levavam a língua deles. Eles falavam na língua deles?
R – Sim.
P/1 – Eles falavam nas duas línguas?
R – Nas duas línguas.
P/1 – E o professor falava também na língua Sateré, não?
R – Não, porque o Professor Janderlei foi o professor desde o sexto ano até o terceiro ano, ele foi o nosso professor.
P/1 – Até o ensino médio?
R – Até o ensino médio.
P/1 – E como os alunos conseguiam falar a língua deles lá? Em que momentos? Como funcionava isso?
R – Eles não tinham dificuldade porque eles falam as duas línguas, não é? Então, eles não tinham essa dificuldade. Agora, para a gente que não sabe falar como eles quando estão conversando ali, falando alguma coisa e a gente não entende, é difícil, não é? Mas ali, para se comunicar com eles, é normal. Como a gente aqui conversando, todo mundo está se entendendo, não é?
P/1 – Agora, você disse que ao mesmo tempo eles podiam… Eu entendi isso, eles podiam se manifestar também em algumas atividades e trazer a língua…
R – Sim.
P/1 – Como era isso?
R – Porque a professora, quando ela pedia... Porque como é Sateré-Mawé, a professora sempre pedia alguma música, queria que eles cantassem na língua. Então eles criavam, produziam ali até cartazes mesmo e com palavras e música na língua, eles levavam o violão, era uma coisa interessante, e era muito legal. Ela gostava muito, mesmo ela não entendendo, mas ela gostava demais de ouvir. E não era só ali, como a gente via das outras comunidades que participavam - dos Yanomami alí para a banda do Santa… Ali a outra também, que são indígenas também, sempre eles participavam na língua deles, não é? É interessante porque mesmo que a gente não entenda a gente acha legal, a gente acha bonito ouvir, mesmo que não esteja entendendo, mas é um coisa legal, interessante.
P/1 – Como é que vocês ouviam a apresentação dos outros grupos?
R – Dos outros grupos? O que era indígena e o que não era indígena, porque os indígenas apresentavam na língua deles - era música, eram palavras na língua deles. E os outros alunos, era muito legal porque eles apresentavam todo mundo ali naquela alegria, naquele entusiasmo, brincando, e era legal porque…
P/1 – Eles vinham até a sala de vocês? Como é que vocês viam as outras apresentações?
R – Não, porque todas as salas têm câmeras ali, todo mundo está se vendo na tela. Se a gente está aqui, eles estão vendo a gente lá da sala deles também e a gente os está vendo aqui. Assim que era. Interessante, não é? Porque a gente via todos os nossos colegas ali. Mesmo não estando presente, a gente via lá na sala deles, como era a sala, como estavam ali, como estava organizado, não é? Quem estava organizado melhor ali em grupo... E tudo isso a gente fazia a dramatização, tudo isso era muito legal, mímica, era muito interessante. E ali, eu lembro até hoje assim as mímicas que a gente fazia, as dramatizações que eu achava muito legal, que a gente achava graça, não é? Às vezes a gente tinha vergonha de apresentar, mas a gente ia lá, não é? Era legal.
P/1 – Tinha o tempo todo, todas as aulas, todo mundo? Uma sala via a outra ou só tinha alguns momentos?
R – Não. Ali todo mundo via a sala dos seus colegas, via os professores, os outros alunos viam a nossa sala também, mas era naquele momento de apresentação, naquele momento de apresentação. Todo mundo ali, naquele momento, estava se vendo. Quando ia interagir, ali aparecia na tela a sala deles, o professor deles lá e o professor fazia perguntas e um apresentava. Era assim, era muito legal.
P/1 – E tinha momentos que não, aí era só a sala de vocês mesmo.
R – Aí, quando era nossa vez, todos eles, os outros alunos… Porque ali, todo mundo está se vendo, todo mundo está conectado, ficava se vendo lá e viam a nossa sala, achavam legal e a gente tinha colegas que nos mandavam beijo, mandavam abraço para a gente, que tinham gostado, elogiando a gente pela apresentação que a gente fazia. Era legal. Interessante.
P/1 – Muito bom. Você ficou quatro anos no Igarité, que você falou.
R – Sim.
P/1 – O que foi mudando, melhorando, ou não melhorando? Como foi esse caminho de quatro anos no Projeto? Sempre o mesmo professor…
R – Sempre o mesmo professor, não mudou nada ali, só mudou… A gente só ia mudando de série e continuando com o mesmo professor. E ali, quando a gente concluiu o nono ano, passou a estudar no ensino médio tecnológico, não é? Foi mais uma coisa interessante para nós, porque… E já no primeiro ano, segundo, terceiro ano, que já era mais puxado, a gente tinha… A dificuldade para a gente ali era só a energia. A energia ali, quando tinha combustível, funcionava. Quando não, o motor quebrava, aí tinha que mandar consertar, a gente ficava, às vezes, semanas, dias sem aula, tudo isso…
P/1 – Isso no ensino médio?
R – Isso no ensino médio. Até no Projeto Igarité também, mas ali até que assim... No Projeto Igarité também chegou a acontecer várias vezes, mas a gente não faltava muito como já no ensino médio, porque no ensino médio parece que tudo... Do nada, aí estava acontecendo. Era isso, quando era o outro motor lá, e era assim. O professor sempre estava ali fazendo de tudo para que não faltasse energia, que a gente não ficasse um dia sem estudar, não é? Mas era… Aí, a dificuldade já foi que a energia, quando quebrava o motor, ia para Parintins, passava semanas e aí a gente perdia os conteúdos, as matérias mesmo. Às vezes já era para finalizar, às vezes já era no começo, já pegava lá no final, ou então no meio. Aí, era assim, não é?
P/1 – Maria, ainda no Igarité, até o nono ano, o que você cada vez foi aprendendo mais? Você lembra? Porque foram nove anos... Teve alguma coisa que você foi cada vez melhorando mais, cada vez…
R – Sim, assim... Porque a gente vai melhorando, cada dia que passa ali dentro da sala de aula a gente vai se soltando mais, se envolvendo com as pessoas, vai perdendo a vergonha e todo mundo ali, conversando; então, é uma coisa assim que é muito legal, não é? Então, os colegas que tinham vergonha iam deixando a vergonha, já iam até a frente interagir, aí depois começaram a gostar e toda vez, quando tinha interatividade, todo mundo já queria ir lá para a frente participar e era aquela coisa legal, não é?
P/1 – E você tem como dizer para a gente como é que você foi se sentindo? Porque você desistiu várias vezes e como é que você foi se sentindo assim, até chegar no nono ano, nessa parte assim?
R – Como eu fui me sentindo nessa parte… Fui me sentindo assim... Que algo ali na minha vida estava mudando, não é? Estava mudando para melhor, porque quando eu estudava lá no quarto ano foi difícil para mim que enfrentava dificuldade, não é? Era problema de família, era problema na sala de aula e lá, no Projeto Igarité, já foi algo diferente, foi algo diferente. Então, tudo ali foi coisa nova para a gente, coisa boa que a gente aprendeu.
P/1 – Mas você... Você foi falando: “Estou me sentindo…”.
R – Bem melhor, porque ali foi coisa nova para todos nós, foi algo novo para todo mundo ali, os colegas que também estudavam, fomos aprendendo coisas boas, coisas que a gente guarda, coisas daquele tempo que, com o tempo, a gente vai esquecendo também, não é?
P/1 – Você foi tendo seus outros três filhos depois que você saiu do Igarité?
R – Olha, quando eu tive o meu filho, João Paulo, foi nesse período... Quando eu tive o meu filho, João Paulo, é que eu fiquei os dois meses sem ir para a escola.
P/1 – Era o terceiro, não é? O João Paulo foi o terceiro…
R – Foi o terceiro. Aí eu fiquei longe da escola, eu até pensei que já ia ficar como desistente, mas aí o professor me ajudou, foi o tempo também em que eu fiz as minhas provas e tem também… Como é que fala?
P/1 – ENEM?
R – Não. Provão, não… É tipo… Como é que fala, meu Deus? Que a gente faz lá na…
P/1 – Avaliação?
R – Não, além da avaliação. Aí, o professor passou… Plano de estudo! Sim, aí a gente fez o plano de estudo e assim... O professor sempre procurou ajudar a gente assim, de uma forma que nenhum pudesse desistir, sempre ajudando ali que todo mundo pudesse chegar até o final, todo mundo junto. Então, incentivando, ajudando, dando as avaliações para fazer o plano: “Olha, quem não fez avaliação mas tem o plano de estudo eu posso dar para você, para você fazer e trazer para mim”. Sempre assim.
P/1 – O que era o plano de estudo?
R – O plano de estudo eram várias folhas, várias questões para você responder sobre várias coisas. Tipo, se fosse uma matéria de Ciências ou Geografia ia dizendo tudo lá. Aí, você ia ler, ia responder o que você entendeu, era assim o plano de estudo, não era uma coisa difícil.
P/2 – Hoje, você faz um trabalho na educação infantil, não é? Você trouxe alguma coisa que você viveu no Igarité agora para a educação infantil?
R – Que eu trouxe de lá do Projeto Igarité?
P/2 – Sim.
R – Como eu falei, aprender a organizar, não é? Organizar as crianças, colocá-los para apresentar. Mesmo na idadezinha deles, de quatro anos, cinco anos, a gente faz desenho, letras, a gente leva eles para a frente para apresentar para os colegas ali, coloca eles para cantar também, não é? E assim... É interessante que as crianças de quatro aninhos com as quais a gente trabalha, elas aprendem com facilidade a conhecer as letras, conhecer o alfabeto completo, conhecer de um a dez, conhecer as vogais e são crianças que eu não acho que sejam difíceis de trabalhar, são crianças que, trabalhando na educação infantil, já foi um aprendizado e tanto para mim… Como eu aprendo com eles, eles aprendem comigo, não é? Coisas que a gente vai aprendendo com o tempo. Então, eu levei coisa do Igarité - aprender a organizar, apresentar, tudo isso a gente trabalha ali com eles.
P/1 – Maria, você disse que… Antes você tinha dito que também o jeito de colocá-los em círculo, fazer eles se abraçarem…
R – Isso.
P/1 – Você disse que aprende com eles e eles aprendem com você…
R – Sim.
P/1 – De onde você entendeu assim... Quando é que você começou a entender assim que professor aprende com aluno e aluno aprende com professor?
R – Assim... Porque a gente quando entra na sala de aula, a gente vai ensinar para os nossos alunos o que a gente aprendeu para eles e o que eles têm. Então, a gente vai aprendendo, aos poucos, com eles, também a melhorar, a gente aprende a ter paciência com eles, porque não é fácil lidar com criança, não é? Mas é coisa legal de trabalhar com criança.
P/1 – Onde você aprendeu a trabalhar com eles?
R – Olha…
P/1 – Desse jeito.
R – Desse jeito?
P/1 – Com essa troca, de onde você tirou isso, entendeu?
R – De onde eu tirei isso, porque… Ah, eu tirei isso assim, já do meu estudo, do Projeto Igarité, porque a minha outra colega lá, que ela não estudou no projeto Igarité, ela não tem a facilidade que eu tenho. E o professor fala mesmo para mim que eu já levo mais jeito do que ela, de conversar, de organizar com eles, então é uma coisa que eu trago comigo desde lá do Igarité, que eu aprendi a organizar, colocá-los para apresentar, cantar, falar, não ter vergonha. Então, tudo isso já é uma coisa que ali eu ensino o que aprendi, não é? E já não é difícil para mim. Enquanto a colega... Porque ela é a professora titular e eu sou a monitora, auxiliando… Ele diz que eu já levo mais jeito, não é?
P/1 – Maria, você lembra quando você entrou na sala de aula para dar aula a primeira vez… A primeira vez que você entrou para dar…?
R – Uhuuu…
P/1 – Conte do começo ao fim esse dia.
R – Esse dia foi…
P/1 – E o que, sei lá, na hora você pensou? “Vou fazer assim porque ali eu aprendi assim”? Ou não? Enfim, conte como foi.
R – Quando eu entrei, no primeiro dia, em sala de aula, eu entrei assim com aquele receio, aquele medo, sei lá. Assim... Porque eu comecei a trabalhar… A primeira vez que eu comecei a trabalhar foi no Projeto Mais Educação. E não era com crianças pequenas de quatro anos, já era com crianças maiores, de nove, dez, onze anos, sete, oito, porque ali eu trabalhava com o quarto, quinto ano e trabalhava terceiro e segundo ano. Então, eu juntava as três turmas, quatro turminhas ali em uma sala, dava vinte e um alunos e não foi fácil para mim entrar assim pela primeira vez, não é? Eu falei assim… Me perguntava: será que eu vou dar conta? Será que eles vão me obedecer? Ficava perguntando para mim mesma. Aí entrei na sala de aula, deram boa tarde - porque eu trabalhava à tarde, o colega trabalhava de manhã e eu trabalhava à tarde. Aí, quando a coordenadora lá da escola chegou comigo e falou: “Maria, você quer trabalhar no Projeto Igarité?” Aí eu fiquei pensando, eu ficava pensando: “Poxa, será que eu vou dar conta?” Ficava perguntando para mim mesma…
P/1 – No Igarité ou no…
R – No ensino infantil, ensino fundamental já, não é? Porque já era de séries. Aí eu falei assim… “Não vai ser difícil, não”. Ela falou :“Você trabalhar isso já vai ser uma experiência para você na sua vida”. Aí eu falei: “Tá, vou lá”. ‘Então, me dê o seu contato, seus documentos”. Aí eu fui na SEMED, tive que assinar e tudo mais. Quando foi no primeiro dia na sala de aula, até que no primeiro dia… Eu entrei com aquele medo e aquele receio de que eles não iam me obedecer, de que ia ser uma coisa assim que não fosse dar certo, não é? Foi legal que os assuntos dos professores... Aí eu me reunia com os professores das séries e perguntava como é que eles estavam trabalhando com eles, porque o Projeto Mais Educação é um reforço para o aluno, é um reforço. Então ali eu me sentava com os professores, aí o professor me passava aqueles alunos que tinham mais dificuldades, porque aqueles que já estavam mais avançados não iam para o Projeto, só aqueles que estavam mais atrasados. Então eu sentava com eles, me passavam atividade, qual era a atividade que eles estavam trabalhando... Matemática, Ciências, Português. Então, lá que foi… Eu achava difícil, mas quando eu entrei não foi tão difícil assim, não é? Só é difícil quando o aluno não quer fazer ou o aluno é muito levado, porque ali eu enfrentava um pouco de dificuldade, não era tanta dificuldade porque aquele aluno era muito levado, danado na sala de aula. Não parava, era agitado, para cá, para ali, mas fora os outros, passava atividade para eles, explicava, ensinava a ler, as letras e tudo mais. Daí, fui gostando de trabalhar.
P/1 – Você acha que, naquele momento, você lembrou de alguma coisa que tinha vivido no Igarité que você podia aproveitar para esse trabalho do Mais Educação? Você lembrou de alguma coisa naquele momento? “Vou fazer assim ou não…”.
R – Eu lembrei daquele momento do Projeto Igarité, porque ali a gente aprendeu a colocá-los para a frente, para perder a vergonha de ir para a frente, interagir, ler para os colegas ouvirem, ensinando também, fazendo cartazes. Porque a gente fazia cartazes com eles, em grupo, colocava também em círculo as cadeiras na escola, não é? Tudo isso aí já eu trabalhava com eles, fazia também eles se abraçarem, darem as mãos. E tudo isso eu colocava para eles, para eles participarem. Já é uma coisa que vem lá desde que eu estudei, aprendi ensinando em sala de aula para eles.
P/1 – E deu algum resultado?
R – Deu porque quando a gente chegava na sala de aula, eles chegavam na sala de aula, eles mesmos iam arrumando as cadeiras deles lá em círculo, tudinho, cada um sentando na sua cadeira e diziam: “Professora, vamos brincar de… Vamos cantar uma música ou vamos fazer tal coisa”. Era assim. Eles queriam mesmo interagir: “Professora, hoje é a minha vez, eu que vou ler”. Mesmo eles tendo dificuldades, mas eu indo com eles para a frente, eles iam para a frente ler, fazer a leitura deles. Interessante.
P/1 – Você lembrava de você nessa época?
R – Eu lembrava. Eu lá na sala de aula estudando, não é? Mas é bom, porque a gente vai aprendendo aos poucos, vai ganhando experiência. E é coisa boa.
P/1 – E o final? Como é que terminou esse…?
R – No final, foi legal. Finalizou, aí eles perguntavam para mim: “Professora, no outro ano ainda é a senhora que vai trabalhar com a gente?” Falei: “Não sei se vai ser eu”. “Professora, vai ser…”. Aí tudo assim. Aí, finalizou o ano não foi mais eu… Foi o tempo que veio o seletivo, não é? Fez o seletivo, eu passei, não esperava que fosse passar no seletivo, passei, graças a Deus passei no seletivo, fui contratada por dois anos, este ano está finalizando o meu contrato.
P/1 – Contrato com a educação infantil? O que você tem de sonhos, agora, daqui para a frente?
R – Daqui para a frente é fazer faculdade, que eu falei que vou fazer agora no final do ano, se Deus quiser. Já era para eu ter começado particular, não é? Até porque o que pegou foi por causa do meu trabalho. Aí, eu pensava... professor Janderlei chegou comigo: “E aí, mulher, tu não vais fazer faculdade não? Tem prova tal e tal para fazer. E aí? Tu não vais fazer?” Sempre assim o professor Janderlei, mesmo estando distante mas ele é um professor que sempre está ali, a gente conversa com ele, liga para ele, vai na casa dele, ele é um professor que… Todos os alunos… Ele tem dois alunos que estão fazendo faculdade em Parintins - um é professor de Matemática, já está também estagiando; o outro é Biologia. E o outro, que está em Parintins, se eu não me engano ele estava fazendo para Biologia também, o Erilson, não é? Então já são alunos dele que já estão aí nesse caminho. E como ele diz: “E aí, mulher, tu não vais fazer não?” “Vou, professor, calma aí que eu chego lá”. “Pois é, faça mesmo, não ficar... Só finalizar o terceiro ano e ficar por aí mesmo e pronto, acabou aí”. “Vou fazer”. Ano que vem - eu estou me preparando - se Deus quiser quero fazer o vestibular e continuar.
P/1 – O que você quer estudar?
R – Vou fazer em... Já que eu estou trabalhando na área de Educação e eu gostei de trabalhar na área de Educação, pretendo estudar para ser uma professora. E é isso aí, fazer uma faculdade, me especializar na área e trabalhar com criança. Foi uma coisa boa para mim, porque assim... Ali, como eu falei para a minha colega lá, eu falei: “Professora Jô…”. Eu falei: “A gente que não está em sala de aula não vê a dificuldade que o professor tem em sala de aula, a gente não vê como é aquela pessoa, como que aquela pessoa está lidando com aquelas crianças ali, naquele momento. Eu falei: “Quando a gente entra em uma sala de aula é que a gente vai perceber como aquela pessoa tem dificuldade, tanta dificuldade com aquelas crianças”. Ela enfrentava uma dificuldade assim porque era só ela para vinte e um alunos. E é uma boa turma, vinte e um alunos é uma boa turma de criança. Aí eu, conversando com ela, ela falou: “Eu estou enfrentando um pouco de dificuldade mas, graças a Deus, você fez o seletivo, passou e está me ajudando bastante na sala de aula”. Aí eu falei para ela: “Hoje em dia, eu, em sala de aula, já sei como é uma professora em sala de aula. Como que uma professora em sala de aula se sente ao lidar com criança ali todo dia, não é fácil”. Então, foi uma coisa assim que a gente aprende, não é? Que a gente que está fora, a gente não sabe como é. Para a gente que está lá fora: “Essa professora aí, aquela professora ali…”. Não sei o que é aquela coisa, não é? Mas vá ficar no lugar daquela pessoa lá pelo menos uma semana, um dia sequer. Veja se você vai aguentar, porque tem pessoas que dizem assim: “Eu não quero ser professora porque eu não vou saber lidar, não tenho paciência, ou a minha cabeça vai doer demais”. Quando eu entrei em sala de aula, no primeiro dia, eu fiquei com muita dor de cabeça.
P/1 – Por quê?
R – Muita dor de cabeça porque as crianças de quatro aninhos, elas gostam de cantar, de falar e a gente que não está acostumado com aquele barulho, aquela coisas ali, sei lá, a minha cabeça, o meu ouvido, fiquei um pouco assim, por um tempo, meio surda de um lado, não é? Mas, depois de um tempo, aí foi. Com o correr do tempo aquilo passou, eu acostumei, a gente acostuma com o tempo. E estou aí na área de Educação, trabalhando.
P/1 – Muito bom, vocês querem perguntar mais alguma coisa?
P/3 – Eu queria saber como foi a reação da sua família toda e o seu sentimento, na conclusão e na mente, depois de ter terminado o ensino médio, e como é que eles… O que eles acham dos seus planos para o futuro. Filhos e maridos.
R – O meu marido, ele ficou feliz por mim, não é? É como eu falo para ele: “Isso não vai servir só para mim, vai servir para a nossa família, para o futuro dos meus filhos”. Eu falo que quero dar um futuro melhor para os meus filhos, de um dia fazer uma faculdade e ter de onde tirar para pagar um dia uma faculdade, um curso para os meus filhos, não é? Quero dar o melhor para eles, lá no futuro. Então, com a dificuldade que a gente passa ali, mas a gente consegue. Meus filhos ficam alegres, ficam felizes, ele também. Só no estudo, na faculdade, que ele fala para mim assim: “Tu vais te ausentar dos teus filhos, do teu esposo, tu vais estudar?” “Sim, eu vou me ausentar, mas isso eu quero o melhor não só para mim como eu quero para a minha família. Eu vou em busca de uma coisa melhor”.
P/1 – Qual foi a sua emoção quando você concluiu o ensino médio? Vamos falar quando você concluiu o nono ano no Igarité. Qual foi a sua emoção? Sua sensação?
R – A minha sensação foi… Fiquei muito feliz, porque depois de ter há tanto tempo desistido da escola, de chegar ao nono ano, eu me senti feliz, fiquei agradecida ao professor também, de sempre estar apoiando, de sempre estar aconselhando ali, ajudando, incentivando a gente, me senti muito feliz.
P/1 – Você se lembra do dia da formatura?
R – Do dia da formatura? (risos) Foi uma correria que… Mas foi muito legal, porque nós fomos lá, apresentei… Foi muito legal de participar, é uma coisa muito legal mesmo, a gente ali, junto com os colegas, se formando ali, concluindo o ensino fundamental. Foi muito legal. A gente fica feliz e agradecida pelos professores, de poder ajudar a gente. Eu falei: “Poxa…”. Pensei: “Poxa, se eu não continuasse a estudar? Será que hoje em dia eu estaria aqui?” Mas é uma coisa muito legal, se sente muito feliz e agradecido aos professores.
P/1 – E quando você concluiu o ensino médio, o que passou na sua cabeça?
R – Ah, quando eu concluí o ensino médio eu fiquei feliz também. O que passou pela minha cabeça foi que, já que eu concluí o ensino médio, terminei, daqui para a frente é continuar estudando, fazer um dia uma faculdade. Nem fiz ainda, mas já estou trabalhando, não é? E pretendo fazer faculdade e continuar. É isso aí.
P/1 – Maria, a gente só não registrou a atividade do seu marido. Você falou que ele trabalhava de manhã, à tarde e de noite. Então é importante você dizer no que ele trabalhava.
R – De transporte escolar, sempre trabalhou. No ano de 2006 ele começou a trabalhar no transporte escolar. Primeiro, ele trabalhou… Começou a trabalhar de… Fez o curso de ____01:55:59____, aí ele passou a trabalhar.
P/1 – Maria, agora, só para finalizar, você lembrando… “Eu, que estou fazendo esse caminho…”. Mas, se você puder falar alguma coisa, você lembrando de quando você ia, atravessava o rio, às vezes a pé, com medo do jacaré e depois a sua passagem por uma experiência em tecnologia, como você vê isso assim para as crianças mesmo da sua região? Dá para juntar tudo isso e responder para a gente?
R – Olha, já vendo aquelas crianças em sala de aula ali, lá da comunidade, por toda a dificuldade que eu passei, nenhuma delas ali na comunidade passa, não é? Nenhuma. Ali, aluno só não vai para a escola porque não quer. Porque ali a escola praticamente está quase dentro de casa, não é? Então eles não têm aquela dificuldade para vir de remo, andar a pé uma boa distância, pegar uma canoa, atravessar por água. Nenhum deles está passando pelo que eu passei um dia na vida, não é? Não tem aquela dificuldade.
P/1 – Está melhor, não é?
R – É.
P/1 – Está bom, querida, você quer falar alguma coisa, registrar, que eu não lhe perguntei? Não precisa ter alguma coisa, só se eu não perguntei e você queria muito falar alguma coisa que eu não perguntei.
R – Eu acho que não.
P/1 – E como você se sentiu contando a sua história aqui para a gente? O que você achou?
R – Eu me senti bem melhor de poder contar o que eu passei durante esses anos. Porque é uma coisa muito gratificante pelas dificuldades, pela… Por tudo que aconteceu na minha vida, eu me sinto gratificada por hoje em dia estar trabalhando em sala de aula, ter finalizado os meus estudos, foi muito bom. Eu agradeço ao meu pai e agradeço aos meus professores. E a Deus também, em primeiro lugar. Porque a gente deve agradecer por Ele nos dar vida e saúde e de estar abençoando a gente todos os dias, não é? E devemos entregar sempre as nossas vidas nas mãos de Deus, porque só Ele nos dirige e nos comanda, não é?
P/1 – Então, parabéns pela sua história, viu, querida? Foi ótimo. Conseguiu, com muita luta. Parabéns mesmo, obrigada pela sua história.
FINAL DA ENTREVISTA
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