MONSENHOR CALLOU E MINHAS DATAS
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Sou obrigado a dormir com meu cachorro no sofá da sala, a partir das 5h30 da matina. Todos os dias. É a vingança canina, por não dividir com ele a cama de casal, seu projeto maior de vida. Sem o sofá compartilhado, todos os vizinhos se acordarão com seus latidos de pedidos de socorro.
Ao me levantar hoje, às 7 horas, do sofá conjugal, dou de cara com um pequeno quadro, ao pé da estante, que sobreviveu ao despejo recente de uma infinidade de objetos “desúteis”, como diria o grande poeta mato-grossense, Manoel de Barros. Mas como me desfazer do meu passaporte para o céu? Explico.
O passaporte é o nome que atribuo ao documento emoldurado, trazido de Roma por tio padre – monsenhor José de Anchieta Callou (1893-1968), vigário geral da diocese de Garanhuns, Pernambuco –, com o selo do Vaticano em marca d'água, assinado por Joseph Mignone, arcebispo titular da Nicomedia, em 1950.
Destinado a Pedro Callou (meu pai) e família, a Bênção Apostólica atribui a indulgência plenária. Isto é, a absolvição coletiva de todos os nossos pecados, em caso de morte, sem prévia confissão individual. O quadro ficava ao lado da fotografia de monsenhor Callou, numa parede de memória fotográfica familiar, que reduzi ao essencial, ficando meu passaporte à espera de um outro lugar. Ademais, o documento foi presente desse tio avô, que sempre mereceu minha admiração.
De postura conservadora, comum aos sacerdotes que antecederam a Teologia da Libertação, monsenhor Callou era uma personalidade atenta à educação de jovens, chegando a assumir o cargo de Inspetor Federal de Ensino, alcançado por concurso público. Não à toa, trouxe às pencas sobrinhos do meio rural sertanejo, onde também nasceu, para estudar no Diocesano de Garanhuns, que dirigiu por anos, ou no Santa Sofia, considerado um dos melhores colégios de Pernambuco, à época.
Ao olhar...
Continuar leitura
MONSENHOR CALLOU E MINHAS DATAS
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Sou obrigado a dormir com meu cachorro no sofá da sala, a partir das 5h30 da matina. Todos os dias. É a vingança canina, por não dividir com ele a cama de casal, seu projeto maior de vida. Sem o sofá compartilhado, todos os vizinhos se acordarão com seus latidos de pedidos de socorro.
Ao me levantar hoje, às 7 horas, do sofá conjugal, dou de cara com um pequeno quadro, ao pé da estante, que sobreviveu ao despejo recente de uma infinidade de objetos “desúteis”, como diria o grande poeta mato-grossense, Manoel de Barros. Mas como me desfazer do meu passaporte para o céu? Explico.
O passaporte é o nome que atribuo ao documento emoldurado, trazido de Roma por tio padre – monsenhor José de Anchieta Callou (1893-1968), vigário geral da diocese de Garanhuns, Pernambuco –, com o selo do Vaticano em marca d'água, assinado por Joseph Mignone, arcebispo titular da Nicomedia, em 1950.
Destinado a Pedro Callou (meu pai) e família, a Bênção Apostólica atribui a indulgência plenária. Isto é, a absolvição coletiva de todos os nossos pecados, em caso de morte, sem prévia confissão individual. O quadro ficava ao lado da fotografia de monsenhor Callou, numa parede de memória fotográfica familiar, que reduzi ao essencial, ficando meu passaporte à espera de um outro lugar. Ademais, o documento foi presente desse tio avô, que sempre mereceu minha admiração.
De postura conservadora, comum aos sacerdotes que antecederam a Teologia da Libertação, monsenhor Callou era uma personalidade atenta à educação de jovens, chegando a assumir o cargo de Inspetor Federal de Ensino, alcançado por concurso público. Não à toa, trouxe às pencas sobrinhos do meio rural sertanejo, onde também nasceu, para estudar no Diocesano de Garanhuns, que dirigiu por anos, ou no Santa Sofia, considerado um dos melhores colégios de Pernambuco, à época.
Ao olhar para o passaporte emoldurado, lembrei que havia sonhado naquela noite com tentativas fracassadas de entrevistar duas freiras para uma pesquisa acadêmica. Os interlocutores das religiosas tergiversavam ou criavam dificuldades de acesso às minhas fontes. Senti-me o próprio agrimensor atormentado de O castelo, de Kafka. Tudo isso aguçou minha lembrança sobre o vigário de Garanhuns. Se, no sonho, as tentativas de acesso à informação eram negadas, na vigília foi diferente.
Numa espécie de diversão matinal, comecei a relacionar datas. Exercício que não tem fim. Realizem para ver o que acontece! Isto me levou a descobertas inusitadas. A primeira foi a de que a Bênção Apostólica não contemplava nem a mim, nem a minha irmã mais nova, pois nascemos depois de 1950, portanto após data da assinatura do documento. Será que o Direito Canônico permite essa espécie de herança católica?
Ao lado disso, fui pesquisar quem era o pontífice, em 1950, cuja fotografia consta no documento: Pio XII. O papa de Hitler, segundo John Cornwell, ou Os judeus do papa, de Gordon Thomas, numa leitura oposta à de Cornwell, discutida por André de Oliveira Pereira em Nazismo, igreja católica e Pio XII: o silêncio papal conforme a obra “O papa de Hitler”, de Cornwell.
Fiquei em apuros: aceitar a Bênção Apostólica de Pio XII, que permaneceu em silêncio diante da retirada de judeus da Praça de São Pedro no Vaticano para os campos de concentração nazista, ou rejeitá-la, porque isto também me trouxe à memória a tristeza dos seiscentos mil mortos do genocídio brasileiro em curso. Que validade terá meu passaporte no céu, diante deste fato, ainda mais quando sua data antecede o meu nascimento? Não à toa, inconscientemente, quem sabe, o quadro ficou sem parede no meu apartamento, depois da reforma. E assim permanecerá, até uma decisão final sobre o seu paradeiro.
De data em data, esse acontecimento me levou a um outro, em 1957: o assassinato do bispo de Garanhuns, dom Francisco Expedito Lopes, pelo padre Hosana de Siqueira e Silva, considerado o primeiro homicídio dessa natureza, na Igreja Católica no Brasil, e raríssimo no mundo.
Na infância, ouvi diversas pontas de conversa sobre esse escândalo. Mas como sou de uma época em que crianças não presenciavam, e muito menos se metiam em conversas de adulto, só me restaram fragmentos do fato. Ora, vejam vocês, a curiosidade permaneceu até hoje.
Com a xícara de café na mão, lembrei-me do livro A bala e a mitra, de Ana Maria César, publicado em 1994, com grande repercussão na mídia, que recupera o crime do padre Hosana. Absolvido em 1959, Hosana foi assassinado brutalmente em 1997, então com 84 anos. Até hoje, este assassinato não foi esclarecido.
Enquanto A bala e a mitra não chega às minhas mãos, localizo duas pesquisas acadêmicas sobre o tema, e encontro, logo no primeiro capítulo de Política, religião e educação: relações de poder em Garanhuns (1955-1957), de Pedro Evânio Resende Cristino Júnior, a seguinte citação:
"No dia 1º de julho de 1957, dia do Preciosíssimo Sangue de Jesus Cristo, após receber sua suspensão, foi à casa do BISPO, tocou a campainha, o Sr. João estava ocupado demorou a ir atender. O Sr. Bispo então foi atendê-lo. Ao abrir a porta recebeu a descarga de vários tiros. Dom Expedito avisa ao Sr. João que fora baleado e pede para ele chamar o Monsenhor Callou".
Passados tantos anos, só hoje tomei conhecimento de que foi monsenhor Callou o primeiro a socorrer o bispo dom Francisco Expedito Lopes, cravejado por três balas, e a quem solicitou a Extrema-Unção. Quem quiser que desqualifique datas como fonte de conhecimento. Eu, a cada dia, aprendo mais com elas.
Decisão final: o quadro da Bênção Apostólica continuará comigo, mas para jamais me esquecer das vítimas do holocausto e dos seiscentos mil mortos do genocídio brasileiro.
(Praia do Pina, Recife, outubro de 2021)
Recolher