Venho de uma família de numerosas mulheres interessantes e poucos homens superestimados. Assistia encantada, desde criança, o contar e o acontecer da vida delas, pois, nos longos e recorrentes encontros, costurava-se uma larga manta de retalhos de histórias, tecidos por cada uma delas, e pelas que vieram antes delas, de modo que eu me deitava descansada nos colos disponíveis, compartilhando o deleite daquela conversinha de cozinha: a tia que fugia de casa para cantar em comício músicas que ela mesma compunha; a caçula que escapara da seca bebendo o leite surrupiado pelas mais velhas, da vaca parida do vizinho, cujo bezerro elas amarravam de madrugada; a bisavó cabocla braba, que se desgarrou da tribo com que viajava, foi criada pela mulher do caçador que a encontrou e, posteriormente, serviria de ventre para uma tiragem comprida de filhos, dos quais só conheci Tetê - a primeira - e a mais nova, minha avó.
Tão ricas eram as histórias delas que eu não entendia por que se pautava todo o valor nos opacos homens do nosso sobrenome. Da porta pra dentro: magia, aventura, risadas, um universo! Da porta pra fora: os homens. Dentro de casa: criaturas singulares e divertidíssimas, criativas, sagazes. Na rua: a mulher de fulano, a tia de fulaninho, a mãe de seu fulano de tal.
Decidi como gesto de rebeldia que eu faria diferente. Que eu seria eu sozinha. Que eu não seria mais uma parente de doutor fulano. Levei no capricho: decidi que eu jamais seria como as minhas tias e primas e avós. Saí do sertão, comi toda vida que vi, conheci as pessoas e as coisas que fazem as pessoas, conheci o trabalho dos homens e também o fiz. Ocupei os espaços aonde minhas tias jamais iriam. Fiz de tudo e, entre tudo, também tive um filho.
Certo dia, me vi no ofício fundamental da maternidade - que não eram fraldas por trocar nem limpar a comida amassada no chão, tampouco jamais preparei mamadeiras. Sentada no batente da cozinha, eu contava ao menino histórias....
Continuar leitura
Venho de uma família de numerosas mulheres interessantes e poucos homens superestimados. Assistia encantada, desde criança, o contar e o acontecer da vida delas, pois, nos longos e recorrentes encontros, costurava-se uma larga manta de retalhos de histórias, tecidos por cada uma delas, e pelas que vieram antes delas, de modo que eu me deitava descansada nos colos disponíveis, compartilhando o deleite daquela conversinha de cozinha: a tia que fugia de casa para cantar em comício músicas que ela mesma compunha; a caçula que escapara da seca bebendo o leite surrupiado pelas mais velhas, da vaca parida do vizinho, cujo bezerro elas amarravam de madrugada; a bisavó cabocla braba, que se desgarrou da tribo com que viajava, foi criada pela mulher do caçador que a encontrou e, posteriormente, serviria de ventre para uma tiragem comprida de filhos, dos quais só conheci Tetê - a primeira - e a mais nova, minha avó.
Tão ricas eram as histórias delas que eu não entendia por que se pautava todo o valor nos opacos homens do nosso sobrenome. Da porta pra dentro: magia, aventura, risadas, um universo! Da porta pra fora: os homens. Dentro de casa: criaturas singulares e divertidíssimas, criativas, sagazes. Na rua: a mulher de fulano, a tia de fulaninho, a mãe de seu fulano de tal.
Decidi como gesto de rebeldia que eu faria diferente. Que eu seria eu sozinha. Que eu não seria mais uma parente de doutor fulano. Levei no capricho: decidi que eu jamais seria como as minhas tias e primas e avós. Saí do sertão, comi toda vida que vi, conheci as pessoas e as coisas que fazem as pessoas, conheci o trabalho dos homens e também o fiz. Ocupei os espaços aonde minhas tias jamais iriam. Fiz de tudo e, entre tudo, também tive um filho.
Certo dia, me vi no ofício fundamental da maternidade - que não eram fraldas por trocar nem limpar a comida amassada no chão, tampouco jamais preparei mamadeiras. Sentada no batente da cozinha, eu contava ao menino histórias. Aliás, deixa eu te dizer uma coisa: esqueça aqui mesmo os chavões tradicionais da maternidade. O dever que vem de ter sob seu olhar uma criança trata-se das histórias que se precisa contar. Às vezes a mesma. Muitas vezes. Com detalhes. Sem detalhes. Em fases. Em versões. À exaustão.
Com agulha e linha na mão, abri meu robusto armário de tesouros e tirei a herdada manta das histórias delas. Contei sobre da cabocla Elvira e todas as outras. E, faltando lembrança na hora, comecei a contar as minhas próprias histórias. Chegara minha vez de costurar. Nelas, fui a alpinista de montanhas de siriguelas, a espiã em missão secreta, a menina sequestrada por Bob Dylan, a mãe do menino que queria voar. A mãe. Do menino.
A mulher sem nome na história de alguém. O tempo das pessoas e o dos calendários jamais convergiu, porque conservo profunda a sensação de vir de muito antes, mas também de mal ter chegado - nessa cidade e nessa vida. Pois foi então nesse dia que eu voltei aos encontros daquele tempo na casa delas. Pois foi também nesse dia, contando a história da mãe do menino - eu, que queria ser diferente - que comecei a me tornar as minhas tias.
Recolher