Lívia Chong de Mesquita Marchi
Ser intensa tem seus privilégios, mas também tem seus lados negativos. Eu não me lembro de um minuto da minha vida no qual a intensidade não falou mais alto que a racionalidade.
No dia 10 de março de 2003 nasceu uma menina que seria o presente dado a sua família...Continuar leitura
Lívia Chong de Mesquita Marchi
Ser intensa tem seus privilégios, mas também tem seus lados negativos. Eu não me lembro de um minuto da minha vida no qual a intensidade não falou mais alto que a racionalidade.
No dia 10 de março de 2003 nasceu uma menina que seria o presente dado a sua família, mas ninguém imaginava as proporções que a sua história teria.
Eu fui uma criança feliz, rodeada de amigos, mas nem tudo são flores. Até os dez anos tudo era tranquilo e fácil, mas o amadurecimento não poupa ninguém. Tive que crescer muito rápido para equalizar todos os acontecimentos, minha inocência foi perdida no caminho, mas eu reencontrei tudo que eu precisava no papel e no lápis.
Quando descobri que eu poderia colocar tudo que eu sentia para fora com palavras, meu mundo mudou.
Escrevi e imprimi o meu primeiro texto aos seis anos, intitulado ‘Lívia e as amigas’ onde eu debatia o funcionamento das amizades e das não-amizades, foi um texto que se eu aplicar a minha vida atual continua fazendo sentido.
As palavras continuaram a ser minhas melhores amigas, até o momento em que eu só tinha elas. A turbulência começou aos meus 14 anos, o mundo parou de fazer sentido e tudo que eu mais queria era que ele parasse e eu pudesse descer. Foi aí então que a depressão começou a fazer parte da minha vida e num piscar de olhos, virou a única sensação que eu tinha. Eu não compreendia o porquê de sentir um vazio tão grande, uma tristeza que arrancou do meu rosto o tão único sorriso que eu tinha.
Foram longos meses de muitas lágrimas e descontentamento até que um dia eu simplesmente não conseguia sair de casa. Tão nova, tive que ver as lágrimas no rosto da minha avó, rezando e implorando para o seu Deus me salvar. Foi nesse momento em que eu me vi em uma ambulância indo em direção à primeira clínica, minha primeira internação.
Teria que ficar sozinha, afastada de todo o mundo que eu conhecia, sem conhecer ninguém e sob os cuidados de quem eu nunca confiei. Na minha primeira noite, minha mãe insistiu para que ela ficasse comigo, principalmente para ver onde ela estava deixando sua filha e foi a noite mais traumática da minha vida. Eu chorava, implorando para ir para a minha casa, mesmo sabendo que eu não tinha condições de ficar sem o cuidado de profissionais da área. Consegui ir para casa no dia seguinte, mas então veio a internação domiciliar.
Os dias pareciam não acabar, eu não ia mais à escola, me afastei de todos os meus amigos e comecei a viver em uma relação de dependência com os remédios do meu tratamento. Ainda não existia um diagnóstico certo sobre o meu caso, alguns profissionais diziam que era depressão, outros diziam que era o transtorno de personalidade bipolar. De qualquer jeito eu já sabia que a minha vida estava fadada a ser definida por um nome de uma doença.
Os dias foram passando, minha mãe começou a ficar em casa para cuidar de mim e diariamente íamos ao consultório do meu psiquiatra na época para que eu pudesse tomar um remédio que não era permitido ter em casa, e lá eu ficava, horas e mais horas sob o efeito de drogas desconhecidas por mim e fora da minha casa. Eu alucinava, conversava sozinha, ouvia vozes me dizendo que eu tinha que acabar com tudo aquilo. Vozes tão invasivas que eu já as tinha como melhores amigas e eu só aceitava o que elas diziam, foram inúmeras vezes que ao caminho do consultório eu tentava abrir a porta do carro e deixar com que a minha vida acabasse ali, então houve mais uma mobilização, minha avò materna começou a ir comigo no banco de trás do carro, me segurando enquanto eu me debatia e tentava sair de seus braços.
Era inevitável a minha ida para outra instituição, poucos meses depois lá estava eu, no Hospital Santa Mônica, sendo internada pela terceira vez. Minha mãe ficaria comigo durante a internação, isso me confortava, mas esse sentimento não era maior que o medo que reinava em mim. Lembro como se fosse hoje que eu cheguei no meio do dia ao meu quarto, tinha a minha cama e mais duas que depois seriam ocupadas por mais duas meninas mais novas que eu. Era uma ala somente para crianças, nós comíamos no quarto em uma pequena mesa de plástico com três cadeiras, mas éramos em seis no quarto, as três pacientes e as três acompanhantes. De manhã e de tarde fazíamos atividades terapêuticas com diversos psicólogos, onde éramos encorajados a dizer o que sentíamos, mas ninguém nunca disse para nenhum deles o que realmente sentíamos, tudo que disséssemos ia para nossa ficha, que era posteriormente passada para o psiquiatra que cuidava dos nossos medicamentos, ninguém queria passar nem mais um segundo lá, então a fala era sempre a mesma, “estou bem”, mas eram nos momentos de convívio entre nós que era revelada a verdade.
A primeira coisa que lhe é perguntado em um hospital psiquiátrico é o porquê de você estar lá, eu nunca sabia o que dizer, não sabia se aquelas pessoas que eu estava fadada a conviver todos os dias iriam dizer se eu dissesse a verdade, então eu só dizia que estava muito triste, mas isso não era suficiente para eles. Eram crianças, que como eu, não sabiam mais como conviver em sociedade, então eu fui me abrindo e no final eu descobri que a minha história era de longe a pior. Conheci o Rafa, um menino de 13 anos que sofre de esquizofrenia, seu pai havia falecido, era a única pessoa que cuidava dele, entendia ele, e depois de sua morte ele foi obrigado a conviver com sua madrasta que não pensou duas vezes antes de interná-lo e o largar lá com cuidadoras, era o seu terceiro ano no hospital.
Conheci minha melhor amiga lá também, Bianca, ela havia tentado suicídio e tinha uma longa lista de diagnósticos. Meus dias por lá eram monótonos, sempre as mesmas atividades com as mesmas pessoas, era uma prisão, nós tínhamos até horário para tomar banho de sol.
Passei 11 dias lá, sai já pensando em uma nova vida, não era tão difícil querer mais. Sai realmente com esperança de ter uma vida mais saudável.
Ao sair fui para outra escola, tinha repetido de ano por faltas, eu que nunca havia levado uma advertência na escola. Sempre estudei nas melhores escolas de São Paulo e me vi a caminho de uma escola estadual na Vila Prudente, zona leste da cidade, eu morava na casa da minha avó com a minha mãe na Praça da Árvore, zona sul. Minha vida mudou depois que eu criei coragem para voltar a estudar, eu era uma das meninas mais populares da escola, como nunca fui. Todos queriam ir para as festas que eu dava na minha casa, mas foi exatamente em uma dessas que a minha vida mudou de novo. Eu fui estuprada por um dos meus melhores amigos no sofá depois de ser drogada.
Demorou para que eu entendesse que aquilo realmente havia acontecido, quando me dei conta, estávamos afastados da escola por conta da pandemia de Covid-19. A dor de ser violentada é imensurável.
Os anos foram passando novamente e a minha tristeza aumentava com o passar do tempo, até que em 2021, meu último ano na escola, eu fui internada de novo, dessa vez no Bairral, que tecnicamente seria o melhor hospital psiquiátrico de São Paulo, mas na verdade foi o lugar onde eu passei uma semana em agonia. Meus medicamentos não foram trocados e eu estava em uma ala para mulheres dependentes químicos. Eu usava maconha como algo recreativo, então passei cinco dias lá até ser transferida para a ala de transtorno mental, onde eu não durei nem dois dias. Na noite em que eu cheguei naquela ala, uma mulher chegou muito perto a quebrar um violão na minha cabeça, felizmente ela o quebrou na minha a minha frente, até hoje eu não sei o motivo. Os telefones lá ficavam disponíveis o dia inteiro e eu ia de cinco em cinco minutos ligar para a minha mãe e dizer que eu queria ir embora. Ela foi me buscar depois de tanto eu a atormentar.
Passei uma semana em casa, já era segunda na qual eu não colocava um cigarro de maconha na boca, aquilo foi o suficiente para enlouquecer. Eu gritava com a minha mãe para ela me dar dinheiro para eu comprar drogas, chorava, não dormia, era um inferno até que ela me levou de volta ao Hospital Santa Mônica.
Minha quinta internação e como eu já era maior de idade, eu ficaria sozinha, só podendo fazer duas ligações por semana. Passei exatamente 30 dias lá, mas também passei por situações que eu nunca imaginei passar. Eu fiquei exatamente no mesmo quarto em que eu tinha ficado em 2019. Fiz muitas amizades e alguns amores, era como se tudo ficasse ampliado, todos os meus sentimentos, era muito fácil amar e odiar alguém.
Foi a internação mais efetiva, saí de lá realmente mais feliz. Não posso dizer que bastou aquilo para que a minha perspectiva do mundo mudasse, continuei sendo infeliz, mas na menor parte do tempo.
Hoje eu estou bem melhor, tive o diagnóstico certo de transtorno de personalidade borderline e me trato com terapia e medicação. A vida não é linda, mas é muito mais feliz e colorida do que antes.Recolher