Projeto Conte Sua História
Depoimento de Leandra Migotto Certeza
Entrevistada por Lucas Torigoe
São Paulo, 6 de novembro de 2019
Realização Museu da Pessoa
PSCH_HV843 _ rev.
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Qual é o seu nome, então, Leandra, inteiro. Onde você nasceu e em que data?
R – Eu sou Leandra Vigotto Certeza, nasci na cidade de São Paulo, no estado de São Paulo, no dia 8 de janeiro de 1977.
P/1 – Você quer fazer audiodescrição?
R – Eu sou uma pessoa de pele clara, cabelos castanhos, olhos castanhos. Tenho uma deficiência física que tem características no meu corpo todo, no rosto, e hoje, nesta entrevista, estou vestida com um vestido colorido, de flores, laranja, e eu estou sentada na minha cadeira de rodas. E eu tenho 96 centímetros de tamanho, não é? Eu meço 96 centímetros. É importante essa descrição, para as pessoas com cegueira, deficientes visuais que estão me assistindo, poderem ter uma noção de como é a minha aparência.
P/1 – Me diz uma coisa: em que hospital você nasceu, como é que foi esse dia? Os seus pais contaram essa história para você?
R – Então... A história é a seguinte: na verdade, quando eu estava ainda na barriga da minha mãe, e mais no final da gestação, foi detectado que eu tinha uma deficiência. Não se sabia ao certo o quê, porque como foi 1977, poucas coisas ainda estavam sendo estudadas na área. E eu nasci na Beneficência Portuguesa, mas depois fui para o Hospital São Luiz, porque lá que eu fui ter um diagnóstico mais preciso e um atendimento melhor também, em virtude de um médico, amigo de muitos anos da família, que pesquisou em livros ainda, porque não tinha tido nenhum cas o de uma pessoa com a minha deficiência. Eu tenho osteogênesis imperfecta, que é mais conhecida como má formação óssea; significa que é uma formação óssea com imperfeições. É uma deficiência no colágeno, que os meus ossos não conseguem absorver e reter o cálcio. Em virtude disso, o crescimento é afetado e aí existem vários tipos e graus dessa deficiência. O meu é uma mistura de tipo três com tipo quatro, mas tem variações. E, também, isso nem é muito importante. Importantes são as características: eu tenho 96 centímetros e todo o meu corpo foi afetado por essa deficiência, então os ossos são desproporcionais. E, quando criança, principalmente bebê, já no útero da minha mãe, eu nasci com os dois braços e as duas pernas fraturados, o corpo todo fraturado e eu fiquei uma semana entre a vida e a morte, na UTI, e depois, também, os médicos achavam que eu não sobreviveria. Porque não era, realmente, conhecido. Havia muitos receios e, já naquela época... Foi muito triste, porque cometeram uma violência ao ponto de secarem o leite da minha mãe, achando que eu não fosse sobreviver. Imagina isso para uma menina de 17 para 18 anos, que acabou tendo que interromper muitas coisas da sua vida para uma gestação já complicada e de colocar uma filha no mundo que não se sabia qual seria o futuro, não só da sobrevivência, mas se sobrevivesse, como seria? Porque os médicos diziam que eu poderia fraturar em qualquer momento. E foi isso que aconteceu. Minha mãe, quando ia trocar a minha fralda, quando ia me dar banho, quando ia me segurar, tinha que ser com um cuidado muito grande, porque eu era muito pequena, mesmo, do tamanho de uma boneca, e muito frágil. E a fragilidade física se transformava também, acho, numa fragilidade emocional para quem cuidava, não é? Porque como fazer para que aquele ser sobrevivesse sem machucar e, automaticamente, eu me machucava, porque tinha fraturas espontâneas? Porque como os ossos ainda estavam em formação e, por eles serem muito fracos, é como se fosse uma esponja, não é? Os meus ossos são como se fossem, realmente, cheios de buraquinhos. Então, ele quebrava sozinho. Às vezes espontaneamente, ou num toque. E eu chorava muito. Meus pais diziam que, quando bebê, eu vivia o tempo todo, mais, chorando. Que era muito difícil. Com o tempo, foi passando e eu fui ficando mais forte, não é? Acredito também numa força minha, mesmo, de querer viver, sobreviver. A deficiência, como vocês percebem, não afeta, em nenhum momento, a parte intelectual, é só a parte física, mesmo. E é uma mutação genética, no meu caso. Não se sabe ao certo se é uma herança genética ou não. Mas não importa, porque também na família não tem outros casos com a mesma deficiência, mas no meu caso foi uma mutação, aconteceu. Uma hora acontece, para depois ser reproduzido com hereditariedade. Então, no caso, se eu tivesse filhos - caso eu pudesse ter, que não tenho condições físicas - mas a probabilidade seria de 100%, de que uma pessoa também tivesse a mesma deficiência. Então, é um caso que, na época, foi muito pouco conhecido e estudado. Hoje, não. Hoje já é bem mais conhecido, tem muitas pessoas com a mesma deficiência, que têm uma vida totalmente independente, e as crianças tomam medicamento. Na época em que eu nasci não existia medicamento. Os medicamentos eram muito poucos e era uma experiência. Eu tomei cálcio com óxido de magnésio, que foi um dos medicamentos que talvez tenham ajudado, que foi uma experiência da Unicamp na época, que provavelmente ajudou, porque eu consegui ficar um pouco mais forte. E aí, com o tempo, eu fui melhorando. Eu fui sentar mais tarde, eu fui ficar recostadinha mais tarde. Tudo era mais difícil, não é? Minha mãe tinha que ter muito cuidado. Mas os meus braços eu sempre desenvolvi bem, tive mais fraturas nas pernas do que nos braços e eu sempre fui muito esperta, muito viva, sempre sorri muito. Apesar de chorar, sempre sorri. Eu tenho fotos que mostram eu sempre sorrindo, desde bebê. E eu sempre fui viva, gostava de música, de história, eu lembro da minha avó contar história para mim, eu bebêzinha. Meus pais sempre tiveram muita atenção, muito carinho, assim, comigo, desde o começo. Foi um choque, um baque, assim, foi muito difícil, mas eu nasci de uma família de classe média baixa, que tinha pessoas na família do lado da minha mãe com instrução, que puderam, também, ajudar na pesquisa, no que pudesse ser feito através de médicos, eu tenho uma tia médica, que também ajudou, e isso foi muito bom. Muitas pessoas com osteogênesis, ou outras deficiências, que nascem em situações piores, não têm essa oportunidade.
P/1 – Sua mãe, qual o nome dela?
R – Cristina. E meu pai, Nélson. E foram pessoas muito jovens, pais muito jovens, que tiveram que batalhar muito para que eu permanecesse viva, com saúde e com toda a atenção que eles puderam dar. E eu fiz fisioterapia e reabilitação desde muito cedo. Eu fui nessa instituição, uma das mais conhecidas na área, na época, e fazia a piscina, a hidroterapia, depois a fisioterapia. Então, desde pequena, eu fui muito estimulada a desenvolver o máximo que eu poderia, assim, fisicamente. Com cinco anos, eu comecei a caminhar. Mas assim... Com ajuda: primeiro, barra paralela; depois um andador e depois muleta. Eu comecei a caminhar. E com seis anos, para sete, eu cheguei até a caminhar sem a ajuda de muleta, na escolinha, porque eu comecei a minha vida escolar num prezinho - aquele antigo pré, que a gente fazia alfabetização com cinco, seis anos - numa escolinha pequena, particular, conhecida de pessoas da família também, porque as pessoas não me aceitavam em escolas públicas porque tinham receio que eu fosse me fraturar, não sabiam como lidar, porque eu sempre tive a estatura muito menor, então a aparência sempre foi bem diferenciada, não é? Então, isso, acho que também dificultava ainda uma sociedade que não estava preparada para essa diferença e que tinha dificuldade de aceitar.
P/1 – Vamos voltar. Eu quero escola, na sua infância, tal, mas eu queria, antes disso, só traçar um pouco da sua família. Você falou um pouco dela. Me conta, então, como é a família da sua mãe. Esse é o lado que é o Migotto, é isso?
R – Isso. A família da minha mãe vem de mais quatro irmãos e são pessoas que sempre trabalharam. A minha mãe, como eu falei, estava estudando e, quando eu nasci, ela parou de estudar para cuidar de mim, depois não retomou. Os irmãos estudaram e tiveram, também, suas carreiras e aí, depois, minha mãe foi trabalhar como comerciante. Porque o pai da minha mãe era comerciante, a mãe da minha mãe - minha avó - era formada em Secretariado, e depois trabalhou com meu avô - depois dos filhos criados - que ela teve cinco. E a família do meu pai é: meu pai e mais um irmão. E meu avô era bancário e minha avó, dona de casa. E também sempre trabalharam, batalharam muito e me aceitaram também, tanto da família da minha mãe, como do meu pai, desde o começo, com receio, porque não sabiam, realmente, o que fazer, não é? Porque era uma coisa que, para eles, era novidade e eu acho que o medo maior era da sociedade. Eles gostavam, queriam, mas não sabiam como eu iria ser aceita pela sociedade.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – Os meus pais? Eles se conheceram numa cidadezinha de Minas Gerais, em Lambari, uma cidadezinha, assim, de águas termais. As famílias também se conheceram e eles se conheceram e, por coincidência - é engraçado - tem familiares que já se conheciam há um tempo e depois que eles foram saber que tios deles, das duas famílias, se conheciam, porque tinham casas e iam para o mesmo lugar.
P/1 – Mas as famílias do seu pai e da sua mãe são aqui de São Paulo?
R – São de São Paulo. É porque lá, essa cidade, é uma cidade que, por acaso, as duas famílias sempre tiveram casas de veraneio e iam lá. Tem uma história.
P/1 – Você já foi lá?
R – Sim. Eu fui, na verdade, criada lá, desde a barriga da minha mãe.
P/1 – Lambari?
R – É. No sul de Minas Gerais.
P/1 – E a sua mãe, você falou que ela estava estudando com 17 para 18 anos, que é a fase do vestibular.
R – Isso. Ela estava fazendo Comunicação também. E meu pai se formou engenheiro. Meu pai é engenheiro e trabalhou durante todo o tempo que eu fui bebê, trabalhava muito, andava de moto, pegava chuva de moto, batalhou bastante para cuidar de mim também, quando pequena. E foi uma vida muito difícil no começo, não é? Com ajuda da família, mas que foi difícil, porque tinha que levar para tratamento de reabilitação, hospital, toda hora eu fraturava e meu pai estava no início da carreira, então tinha que trabalhar e estudar, porque depois ele fez dois cursos - ele se formou em Engenharia e Eletrônica, fez uma Faculdade e um curso técnico. Então, ele também sempre batalhou muito, e minha mãe o tempo todo comigo - 24 horas - porque era uma atenção, assim, necessária, mesmo, não é? E, como eu falei, não tinha muito medicamento, então não se sabia se os ossos iriam ter uma qualidade melhor e se eu conseguiria ter uma vida com um pouco mais, não de tanta dor, porque não tinha o que se fazer. Quando fraturava, muitas vezes não engessava, só colocava uma faixa, porque o gesso poderia ser pesado para o osso, porque o osso, realmente, era muito frágil. Então, era tudo muito, ainda, experimental.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho um irmão, que nasceu sem deficiência. Ele se chama Daniel e nasceu quando eu tinha seis anos. E foi, assim, um momento muito especial para mim, porque eu fui meio que também... Minha mãe muito jovem, então minha mãe era mais como se fosse uma irmã, assim, e eu fui criada, muito, também, pelos meus avós, porque as minhas duas avós precisavam estar junto da minha mãe, para dar uma força, não é? Então, na infância, a maior parte do tempo com as minhas avós e aí, quando meu irmão nasceu, eu que cuidei dele como uma mãezinha. Assim... Pegava no colo, dava suquinho, sempre como se fosse um bonequinho e a gente teve uma relação, assim, muito legal, no começo. E aí, quando ele cresceu, começou a andar e demandar mais atenção, eu ainda precisava de muita atenção. Então, eu ainda estava começando também a andar, eu andava no colo. Desde pequena, sempre fui carregada. Eu era bem mais leve do que sou hoje - estou bem acima do peso – mas, naquela época, era levinha, e menor. Assim... A estrutura. E então, era levada como uma boneca, sabe, para todos os lados. Eu falei muito cedo. Minha mãe disse que, com dez meses, eu já comecei a falar. Então, as pessoas assustavam, viam: “Nossa, uma bonequinha que fala!” Porque eu parecia menor, mas já tinha quase um ano, já falava e sempre fui muito esperta, assim, muito ágil com as coisas. E sempre gostei muito de falar. E de brincar. E aí eu brincava muito. Nessa escola, com cinco anos, eu era a única aluna com deficiência no meio de toda garotadinha, assim, e eu andava no chão, de bundinha, me arrastando pelo chão, brincando com todo mundo no tanque de areia. Subia no trepa-trepa, na balança, as professoras me carregavam, me colocavam no escorregador, e então eu tenho uma imagem da minha infância, muito boa, apesar de todas as dificuldades.
P/1 – Você ficou até que idade em Lambari, então?
R – Na verdade, em Lambari eu só passava as férias. Eu sempre vivi em São Paulo. Era só férias, mesmo.
P/1 – Mas essa primeira escola que você frequentou...
R – Foi em São Paulo.
P/1 – Qual é o nome?
R – Era uma escola particular, pequena, de bairro, e era uma escola que uma amiga da família tinha, e aí me aceitou. Porque, como eu falei, a maioria das escolas não aceitavam, escolas públicas, não é?
P/1 – Você se lembra do nome dela?
R – Jardinzinho de Santana.
P/1 – Na Zona Norte?
R – Não, aqui na Oeste. Foi todo mundo na Oeste. Minha avó morava para cá, a família do meu pai é que morava em Santo Amaro, não me lembro agora onde, mas, mais ou menos perto, também. Não era tão longe. E a família da minha mãe, Zona Oeste. E aí, meus pais moraram num apartamento na Zona Oeste e depois foram para uma casa em que eu morei minha vida toda - mais de 35 anos - também na Zona Oeste, Butantã.
P/1 – Esse primeiro apartamento, então, é onde você passou...
R – Onde bem bebezinha. Com cinco anos eu saí de lá para ir morar nessa casa, quando meu irmão nasceu. Cinco para seis anos meu irmão nasceu, eu tinha mais ou menos essa idade.
P/1 – Você se lembra de como era esse apartamento?
R – Era um lugar bem apertadinho, pequeno, assim. As lembranças que eu tenho, mais, era de eu brincando com boneca e com meus brinquedos, telefone, eu adorava telefone, porque eu sempre gostei de falar, e então eu pegava o telefone e dizia que ia ser telefonista. Isso é uma coisa que a família sempre conta, porque naquela época não tinha celular, não tinha internet, era telefone, e então eu queria ser telefonista, eu queria falar. E eu acho que essa coisa do mundo imaginário, da percepção da deficiência, eu lembro, de pequena, brincar com as minhas bonecas e não me sentir diferente. Falar com as bonecas, mas, ao mesmo tempo, saber... É muito louco isso, porque claro que eu sabia da minha deficiência, da minha diferença, mas, ao mesmo tempo, eu não sentia que ela pesava, talvez. Eu queria viver, estar sempre em contato com a Natureza, com crianças, brincar, eu sempre gostei muito de gente, sempre gostei muito de bicho. Então, eu lembro que nesse apartamento não tinha cachorro, mas depois, na casa, a gente foi ter cachorro. Mas no apartamento, as lembranças que eu tenho eram do meu quarto todo cheio de boneca, de brinquedo, de casinha. Então eu montava a cozinha, a sala, as bonecas, colocava boneca para dormir e brincava, mesmo, nesse espaço, assim. Era um quarto só meu, era um mundo, assim. Então, essa é a maior lembrança. E da escola. Como eu falei: nessa escola foi muito bom, porque eu cantava músicas do Toquinho – Aquarela - e então a minha vida intelectual começou, acho, naquela época, quando eu descobri músicas de Vinícius de Moraes e Toquinho, e achei tudo maravilhoso. Era um professor que tocava na época, violão, e ensinava para a gente. E, na escola, eu não sentia, realmente, discriminação e preconceito. Talvez porque eu não estivesse percebendo isso ainda. Eu era uma criança como qualquer outra criança. Que tinha dificuldades. Eu, na hora, encontrava as dificuldades físicas, mas a vontade de fazer as coisas, como todas as crianças, era muito grande. Então, eu brincava no tanquinho de areia, a criança pulava por cima de mim, poderia me quebrar, mas eu não tinha noção de que isso pudesse acontecer. E as professoras me carregavam como uma boneca, para lá e para cá, e eu era muito mimada, muito queridinha, muito a especial, a bonequinha. Isso, por um lado, foi muito importante para a minha autoestima, para o meu crescimento, mas depois, talvez, me trouxe alguns problemas, assim, emocionais e de desenvolvimento para uma independência maior, emocional mesmo, não é?
P/1 – Você ficou nessa escola que você falou, então...
R – Só dois anos, infelizmente, porque era só o começo, não é? Os primeiros anos, o Pré 1 e o Pré 2, na época. E o que aconteceu? Aí é que tudo começa a ficar complicado. A deficiência realmente pesa, e aparece como uma barreira que até então eu não via dessa forma. E aí eu vi o quanto a sociedade é cruel e o quanto as pessoas estão despreparadas, e o quanto é muito difícil. Porque minha mãe não achou escola para me colocar no primeiro ano do ensino fundamental. Hoje é o primeiro ano... Antigamente, do antigo primário, porque as escolas não aceitavam. Simplesmente, nenhuma escola pública aceitou. Nenhuma. E nenhuma escola particular, também. Nem escolinha de bairro. Nenhuma escola aceitou. Então, eu tenho lembrança de estar dentro do carro da minha mãe e ela bater à porta das escolas e eu esperá-la sair e dizer que não tinha sido aceita. E eu já tinha seis anos, já era alfabetizada. Como eu falei, eu sempre fui muito inteligente, me alfabetizei sozinha na escolinha, brincando de recortar revista e desenhar. Sempre gostei de desenhar. Outra coisa é que logo que eu aprendi a falar, aprendi a desenhar e também aprendi a ler histórias. Minha avó contava histórias para mim, desde bebezinha. E uma outra tia, que sempre foi artista plástica, desenhista, eu participava das aulas dela de pintura em porcelana, então eu sempre gostei de pintar. Então, essa coisa da Arte, sabe, sempre esteve muito presente, desde a minha infância mesmo, acho que isso me ajudou muito. E quando eu fui buscar essas escolas, que nenhuma aceitou, foi muito difícil. Realmente o que aconteceu foi que minha mãe acabou me colocando numa sala especial, que antigamente existiam salas especiais dentro das escolas, porque era um modelo de deficiência de escola especial, que hoje não existe mais. Hoje você tem que ter uma escola regular inclusiva, com todos os alunos, não é? Até mesmo em termos de legislação, hoje não é mais permitido, mas naquela época eram salas especiais, da escola especial. Porque essa sala era vinculação, na época, e era dentro de uma escola pública, ali no Colégio Rodrigues Alves, que ficava na Paulista. E a lembrança que eu tenho de lá é muito traumática e triste. Eu, com sete anos, era levada por uma perua escolar, entrava por uma entrada lateral, que não era a oficial da escola e, de lá, a gente passava por uma grade, literalmente, não era nem um portão, era uma grade de ferro muito assustadora para uma criança de sete anos aquilo, era como se eu estivesse entrando para uma prisão, para um espaço em que eu fosse ficar segregada. E era isso que acontecia. Eram duas salas que ficavam num espaço reservado, dentro de um colégio grande, que fazia barulho. Eu lembro que as crianças brincavam e faziam barulho no pátio, e eu não podia estar lá. Eu era levada diretamente para essa outra sala, que era uma sala que só tinha alunos com deficiência. E das mais variadas deficiências. E até então, eu tinha tido contato com pessoas com deficiência na instituição de reabilitação onde eu passei a maior parte do tempo. E lá foi muito difícil, foi um processo doloroso, porque eu via as mais variadas deficiências físicas: pessoas sem os dois braços, sem as duas pernas, boiando na piscina. Isso era uma coisa que me impressionava bastante. Então, foi um contato duro com essa realidade que, dentro dessa escola, eu também tive. E aí, incluíam pessoas com deficiências intelectuais que, na época, eram chamadas deficiências mentais, que hoje também não se fala mais assim, fala deficiências intelectuais, misturadas, e também séries. A professora tinha o primeiro, o segundo e o terceiro anos dentro de uma mesma sala, que ela tinha que dar aula para três séries diferentes. Era uma super-heroína essa professora, porque ela tinha que fazer uma coisa muito complicada, difícil. Porque, para manter... E eu já era alfabetizada e lembro que a professora falava A, B, C, D e eu já sabia ler e escrever e já lia livrinho de história. Então, era muito triste, porque eu era menosprezada, não é? Ficava numa situação... E tinha pessoas com paralisia cerebral que babavam, que tinham dificuldade de fala, tinha pessoas cegas, surdas, com deficiência intelectual, tudo no mesmo espaço. E hoje, acho que não tenho essa visão, mas naquela época, para uma criança de sete anos, era assustador porque eu não me sentia parte daquele espaço, não é? Eu tinha condições de me desenvolver mais. E outra coisa: aquelas crianças todas não eram desenvolvidas. Muitas ficavam ali para passar o tempo, porque não era passado muito conteúdo, mesmo. Então, eu saía dali sem aprender nada. E, na verdade, porque também aprendia alfabetização, que era uma coisa que eu já sabia. Então, eu tive que passar o primeiro e o segundo anos nessa escola e foram os piores anos da minha vida. Assim, da minha vida infantil, não é? Depois, adulta, teve outros piores, também. Mas esses foram os piores, porque eu vivi de uma maneira muito segregada. Quando eu queria sair daquele ambiente, eu tinha que conversar com as tias da escola para me levar no colo, para passear fora dali. Eu lembro que abria a grade e eu saía para ir passear. E eu tinha contato com outros alunos. Quando a gente fazia o lanche, que tomava o lanche na cantina da escola, era um outro espaço segregado. Então, a sensação é como se a gente tivesse alguma doença contagiosa. Um absurdo! Que a gente fosse uma pessoa que não pudesse conviver com as outras pessoas sem deficiência.
P/1 – Você falou para os seus pais isso?
R – Sim, mas na verdade não resolvia, porque era o que existia no momento. E para eles, também, foi passado que aquilo era o certo. Então, eu não os culpo, porque era um modelo social que todo mundo achava que aquilo era o correto. Porque as pessoas achavam que colocar as pessoas com deficiência para serem só cuidadas, ajudadas de maneira assistencialista, sem desenvolver os seus potenciais, as suas capacidades, era o correto. Que hoje não se pensa mais assim, não é? E aí, eu saí dessa escola. Porque eu lembro que eu, realmente, falava que era ruim e eles sabiam, e minha mãe continuava procurando escola. E ela não encontrava. Aí, por acaso, ela achou uma escolinha de bairro, de novo, muito pequena, uma casa que era bem perto do bairro, da casa da minha mãe. A casa da minha avó era a primeira escolinha. Essa da minha mãe era no bairro, aqui mesmo, no Butantã. E era uma escola pequena, que ela foi conversar com a diretora e a diretora... Lembro de que minha mãe conta que falou que teria receio. Claro, eu seria a primeira aluna com deficiência e também uma deficiência que poderia causar algum problema. Porque você imagina se eu tivesse que fraturar uma perna ou um braço, por um coleguinha que brincou comigo, ou porque eu caí sozinha, não é? Ou uma fratura espontânea, que também poderia acontecer. Então, eu entendo também o receio dessas escolas em aceitar, porque não existia todo um preparo, uma visão que existe hoje. Mas, finalmente, eu fui aceita. Porque eu acho que o amor e a atenção e a possibilidade de uma nova experiência, essa diretora da escola aceitou. E no terceiro ano primário, eu tinha, já, nove anos, eu fui para essa escola. E era uma escola regular, que não tinha outros alunos com deficiência. Aí eu era a única aluna com deficiência, mas eu ainda era carregada, porque ali eu já não andava mais. Eu cheguei a andar, mas depois parei, porque eu tinha medo de cair. Eu andava de muleta, mas uma vez caí na sala da casa da minha mãe e aí fiquei com muito medo. E me causou um trauma muito grande e aí foi mais difícil retomar. Nessa escola, eu ainda andava um pouco, mas era mais carregada. Então, minha mãe me levava, me colocava na carteira, eu lembro que ela fazia isso e depois me pegava na carteira. Na hora do intervalo, alguma professora ou tia da escola, ou até uma outra aluna que já era mais fortinha, maior, me pegava e me colocava numa outra cadeira, para eu poder ir ao parque, ou brincar com elas, ou ir até o banheiro. Então eu lembro de que eu era levada, também, no colo, até o banheiro. É importante falar essas coisas porque isso mostra a infantilização, a falta de independência e de autonomia e de privacidade da pessoa com deficiência. Imagina eu, uma menininha, já, numa pré pré-adolescência, com nove anos, ter que ser levada no colo até o banheiro. Hoje em dia, criança com deficiência tem cadeirinha de roda, pequenininha. Criança com deficiência que realmente precisa, usa cadeira de rodas desde os três, quatro aninhos, pequenininha, e se vira e vai e tem essa independência. Isso é superimportante.
P/1 – Eu ia perguntar: não existiam esses equipamentos adaptados?
R – Não, não existia. Cadeira de rodas era uma coisa que não existia a cadeirinha de criança que tem hoje, não é? Existiam cadeiras de rodas horríveis, pesadas, para adultos. Cadeiras de rodas que não eram fáceis de manuseio naquela época. A gente está falando de 1980, não é? Uma época em que ainda não tinha, realmente, muita coisa. No Brasil. Nos Estados Unidos talvez tivesse mais coisas, mas aqui ainda era assim e aí, mesmo nessa escola, com todas essas dificuldades, eu lembro de que eu fui muito feliz. Porque eu adorava... Aí, sim... O conteúdo era de acordo com a minha idade, eu aprendi muita coisa, fiz grandes amizades. Fiz uma amizade, que até hoje eu tenho contato com essa menina, a Renata, desde os meus nove aninhos de idade. Porque ela ficou muito minha amiga. Eu e ela éramos as melhores da sala. E aí eu sempre sentava na primeira fila, óbvio, para poder enxergar, não é? Se eu ficasse atrás, não dava. E os professores, também, me paparicavam muito, gostavam muito de mim e aí tinha aquela coisa que eu te falei, de que, em Matemática, eu era péssima. E aí, a professora de Matemática gostava de mim, tudo, mas me dava nota baixa. Então, acho que por esse lado também eu tinha um processo de inclusão, mas também de autoproteção e de superproteção. As coisas aconteciam ao mesmo tempo. Eu lembro que eu cheguei a ir uma vez para a Diretoria porque eu xinguei uma coleguinha que a gente detestava, brigava com ela - eu e uma outra turma - e assim... A diretora me levou para a Diretoria, literalmente, no colo, para me dar bronca, não é? Então, isso é importante, porque essa sensação de igualdade também eu fui aprendendo desde o começo. Aquelas pessoas daquela escola entendiam isso. Sabiam que eu era frágil, que eu precisava de cuidados especiais, mas também sabiam que minha cabeça... E que eu era uma pessoa como qualquer outra, como uma criança de nove, dez anos. Aí eu fiquei lá até os 14 anos. Foi uma época muito boa e só saí porque, infelizmente, a escola teve que fechar, por causa do maldito Plano Collor, que tirou o dinheiro da diretora da escola, que a intenção dela era até o Colegial. E depois ela teve. Depois, graças a Deus, ela conseguiu. Inclusive ela tem hoje. Agora não está mais nas mãos dela, mas quando ela criou, era um Colegial aqui nesse bairro, um grande colégio. Que começou numa escola pequenininha e hoje é um colégio grande, de bairro, mas um colégio aqui, muito bom.
P/1 – Como é o nome da escola?
R – É o Colégio Oportunion. Na época chamava Escola Nova Pedrita. Era uma escolinha pequenininha e aí virou Colégio Oportunion, que é um colégio de bairro aqui da região do Butantã. E essa diretora, depois, eu a encontrei, porque o Colegial, depois que eu me formei, tudo, ficou uns anos sem a escola e aí teve... Eu fui, já na época da Faculdade, quando eu fazia um trabalho para a Faculdade, nesse colégio, e reencontrei professores.
P/1 – Você está falando da sua terceira escola, é isso?
R – É. Então... Eu estava contando ainda do antigo ginásio, que eu comecei dos nove anos, terceiro ano, até os 14. O fato importante que eu quero falar dessa escola é que, quando foi a formatura, com 14 anos, foi num momento muito difícil, porque eu era adolescente e todas as meninas colocavam vestido, usavam maquiagem, sapatinho um pouco alto e tinha o corpo de uma menina de 14, 15 anos. Muitas, na época, já tinham corpo de mulherão, não é? E eu sempre com esse corpo diferenciado. É importante colocar essa questão da imagem, mesmo, sabe, do corpo. Porque eu só fui perceber... Isso foi... Mais doer em mim, muito presente, com essa idade. Porque aí eu não era aquela beleza plástica, eu não correspondia àquele corpo de uma adolescente, de uma mulher normal. As minhas formas eram diferentes. Eu era infantilizada, uma criança. Então, eu lembro que as minhas roupas também não eram de uma adolescente. Eram roupas mais infantis. E eu não gostava disso. Eu sempre queria mudar, colocar outras roupas, queria passar um batom, sabe? Usar bijuteria, não é? Me colocar de uma maneira mais de acordo com a minha idade. Isso é importante comentar, porque as pessoas com deficiência têm que ser vistas e tratadas pela sociedade pelo que elas são, com as suas idades. Não se pode infantilizar, porque isso fragiliza e tira a autoestima das pessoas com deficiência. Não é porque elas não estão naquele padrão que a sociedade considera, que elas não vão deixar de desenvolver a sua sexualidade, a sua sensualidade, ter uma vida prazerosa e de acordo com a sua idade. Que, isso, realmente, é muito autoestima. E essa escola, na formatura, foi um momento difícil porque elas iam pôr vestido e eu falei: “Bom, que vestido eu vou usar? Não tem vestido para ser comprado ou alugado, do meu tamanho”. Aí, a minha tia que costura, essa mesma tia que é médica, costura. Ela costurou meu vestido. Ela fez um vestido do meu tamanho, com bodyzinho, bonitinho. Um vestido de acordo com os modelos de vestido de formatura, clarinho, todo arrumadinho e eu fui maquiada, com o cabelo arrumado, a minha outra tia me ajudou nisso. Com sapatinho, eu lembro disso, que também não era infantil, de meia calça. Uma coisa que, para mim, era bem diferencial, porque foi a primeira vez que eu me coloquei numa roupa mais de acordo. E aí ainda ficou aquela coisa: “Mas como é que vai ser na hora que todo mundo for chamado para ir receber o diploma? Eu não posso ir até lá”. Então, resolveram que as professoras viriam até mim e eu daria o buquê de rosas para a diretora da escola. Então, por um lado, isso foi muito bonito, o gesto da escola de me incluir, mas aí isso provocou, acho que começou aí, talvez até antes, essa coisa de eu me achar especial. De eu me achar, também, uma pessoa mais do que diferenciada, especial no sentido de mais. De ser muito. De ser uma heroína, de ser muito especial. E que aí o mundo teria que fazer as coisas conforme eu precisasse. E que, por isso, eu não teria que batalhar pelas coisas. Então, essa igualdade de ser humano, de estar numa condição de deficiência e ser um ser humano ainda não existia na minha cabeça. Então, eu não me encaixava, porque era muito complicado. Antes as pessoas achavam que eu não era nada. Eu me sentia assim: não posso estar naquele lugar, as escolas não me aceitam, as meninas olham torto para mim porque eu não namorei ainda, todo mundo já da va beijo na boca, já tinha paquera. Então, as meninas já tinham uma outra relação. Festinha, ir para a festa, eu não ia, na maioria das vezes. Eu não me lembro. Minha adolescência foi muito doída. Muito difícil, mesmo. Porque eu lembro de estar em rodinhas, com as minhas amigas, e conversando, e quando eu passava férias nessa cidade do interior, ia na pracinha e todas as minhas amigas os meninos cumprimentavam, falavam oi. Quando chegavam perto de mim viravam o rosto, como se eu fosse um bicho, como se eu tivesse uma doença contagiosa. Então, aquilo me marcou muito, sabe? Imagina para uma menina pré-adolescente, adolescente, depois adulta, essa questão da imagem, do corpo, da sexualidade, era muito presente. Então, era difícil, foi um momento de muita dor, de muita introspecção, assim, e aí eu acho que eu me salvava nessa questão de me achar especial. Então, eu achava que as pessoas têm que gostar de mim porque eu sou superinteligente, porque eu sou descolada, porque eu falo e isso, talvez, tenha mexido um pouco com a minha autoestima, de me colocar demais, para não ser de menos. E eu vivi numa gangorra. Eu sempre vivi entre oito e oitenta. Ou eu era super, ou eu era considerada nada. Então, isso foi complicado. Depois que passou essa fase dessa escola, eu fui estudar num colégio o Colegial - o primeiro, o segundo e o terceiro anos, naquela época, que hoje é o ensino médio, num colégio também regular. E que aí, no começo, não tinha alunos com deficiência, acho que no primeiro ano, não. Mas depois, nos outros anos, apareceram alunos com deficiência. E aí, nessa época... Mas antes de ir para essa escola, eu quero contar um pouco da minha reabilitação. Com 14 anos, eu voltei a andar. Porque eu precisei. Eu vivia muito carregada no colo. Como comecei a ficar pesada e não tinha cadeira de rodas ainda e a cadeira de rodas ainda não era uma coisa que as pessoas com deficiência usavam, como eu falei, era uma cadeira muito pesada, muito difícil de locomover, eu usei um carrinho de bebê, mas desses carrinhos... Não desses que a gente vê hoje, de bebezinho, mesmo. Era um carrinho maior, americano, que minha tia trouxe para mim dos Estados Unidos, mas era uma coisa infantil, que eu era carregada num carrinho. E eu já tinha 14 anos. Catorze para quinze anos. Então, era uma situação de limitação e de imagem muito difícil, sabe? De preconceito comigo mesma e de achar que eu não estava encaixada. Não era uma criança para ser levada num carrinho. A cadeira de rodas, hoje, para uma adolescente com deficiência, é toda descolada e a pessoa tem fácil mobilidade, ela pode estar nos lugares. Hoje, o adolescente com deficiência tem uma inclusão melhor. Aquele que tem condições financeiras, claro. Lembrando que eu estou falando de uma questão de classe média baixa, classe média média, que sempre foi a minha condição. Lembrando também que eu estou falando de uma questão de eu ser uma pessoa branca, de eu vir de uma família com pessoas com estudo, porque a gente tem que colocar isso em perspectiva, que as pessoas com deficiência, negras, de periferia, em situações muito mais... De maior vulnerabilidade, passam por situações muito piores. Depois eu conheci amigas, daí já na época em que eu trabalhava na área, que me contaram histórias muito mais difíceis. Então, se eu achava a minha história complicada, eu percebi que o buraco era muito mais embaixo e que as situações eram bem mais difíceis, mesmo. Que muitas não saíam de casa por não ter nem esse carrinho que, na época, eu tinha, não é? Me emociona muito falar nisso porque eu tenho, ainda, amigas que me deram, assim, muitas esperanças e expectativas e, realmente, me ensinaram. Acho que eu aprendi muito com essas pessoas, a dura realidade. E aí eu transformei meu trabalho em falar sobre essas questões.
P/1 – Quais foram os primeiros livros que você leu? Você lembra?
R – Os livros?
P/1 – É.
R – Os primeiros livros?
P/1 – Quem te deu?
R – Ah, então... Isso é legal falar, porque eu sempre gostei muito de ler. E a minha avó contava histórias, como eu falei, desde pequena. Contava histórias, contos de Grimm, historinhas mesmo, do folclore brasileiro, historinhas assim. Eu sempre fui, muito, de imaginar. Eu lembro que ela contava histórias e eu imaginava. E essa coisa da imaginação e da história sempre esteve muito presente. Tanto que, depois, eu fui descobrir que minha maior vocação mesmo, é escrever. Eu sempre escrevi poesia, desde os sete, oito anos. Tenho caderninhos ainda dessa época, sempre gostei de desenhar e escrever, desde que eu aprendi a ler. Eu li um livro… O meu primeiro livro foi a história de um cachorrinho que era abandonado. Então, essa coisa do abandono, da exclusão, da diferença, sempre esteve muito presente, até nessas histórias infantis. Eu lembro disso. E eu me identificava. Então, eu acho que tive essa identificação. Quando adolescente já não foi, porque não tinha Barbie com deficiência, não tinha imagem de mulheres com deficiência na televisão ou na revista. Não existia essa coisa da imagem. Então, eu acho que o choque maior da adolescência foi justamente por isso. Na infância, existia ainda uma proteção e eu vivia num mundo muito protegido. Eu sempre tive tudo. Eu não precisava pensar na boneca, que a boneca já estava na minha mão. Assim como eu não precisava pensar no remédio, no atendimento médico, na reabilitação, porque eles sempre estiveram presentes. Então, quando eu voltei a andar, com 14 anos, eu fui para uma outra clínica de reabilitação particular, que eu tive que reaprender a ficar em pé. As minhas pernas atrofiaram, ficaram tortas por ter parado de andar e os meus pés viraram muito para o lado, assim. Então, eu tive que colocar os pés mais para frente e ficar nesse andador, em pé. A fisioterapeuta que me atendeu, na época, a Tânia, uma grande companheira, uma pessoa maravilhosa, que eu devo toda a minha reabilitação a ela, porque além de ser uma ótima fisioterapeuta, ela foi uma psicóloga para mim, porque eu conversava dos meus problemas, as minhas dificuldades e ela me colocou de novo em pé. Eu voltei a andar no andador e, depois, com a muleta novamente, porque tudo aquilo que eu tinha andado naquela primeira clínica de reabilitação, eu perdi durante os sete anos em que eu fiquei sem andar, em que eu era só carregada no colo. Aí, quando eu voltei a andar, foi muito bom porque eu comecei até a andar sem muleta, dava pequenos passos sem muleta. Porque os meus ossos já estavam mais fortalecidos. Então, até os 14 anos eu tive muitas fraturas. Mas a partir dos 14, até com a primeira menstruação, os meus ossos - porque aí todo metabolismo da mulher muda, não é? – realmente se fortaleceram mais. E isso acontece na maioria das pessoas com deficiência, principalmente as mulheres. Tem um período em que a gente fica meio que livre das fraturas. Agora eu já estou no período que é perigoso de novo, não é? Porque eu já estou para pré-menopausa e aí as fraturas voltam. Mas, naquela época, eu fiquei muitos anos sem fratura, que foi muito bom, porque aí eu consegui ter uma vida mais livre, não tão pesada e com tantos receios e medos de me machucar, porque eu já não quebrava tanto, constantemente. A última fratura foi nesse braço, que ficou torto, inclusive, porque eu caí, assim, brincando, no chão e, como eu quebrei numa região muito complicada e eu não quis fazer cirurgia, ele ficou torto. Eu sempre fui uma pessoa, como dá para perceber, assim, também, muito autoritária, muito voluntariosa, que fui muito brava com médicos e fisioterapeutas. Tive um enfermeiro que eu puxava os pelos dele, porque ele colocava o gesso e doía. E eu sempre fui muito de batalhar pela minha vida, assim, e querer me livrar da dor. Eu acho que é importante falar isso, porque eu acho que essa raiva e essa força de vontade e até mesmo esse jeito mais, assim, agressivo, me ajudaram a me manter forte em momentos de muita dor, de muito preconceito. Quando eu voltei a andar foi importante porque, nessa escola em que eu fiz o colegial, eu precisei estar mais livre para poder me locomover, não é? Eu ia para a escola de muleta. Meus pais trabalhavam, eles tinham comércio, uma loja perto dessa escola e eu lembro de que eu ia até a escola de muleta, dava volta no quarteirão, fiz amizade com as pessoas lá, hoje ainda tenho uma amiga, até hoje, dessa época. Uma grande amiga minha, Patrícia. Amiga irmã, minha irmã, assim, que foi uma das que mais me incentivou a voltar a andar, a me locomover e, dentro da escola, ter uma vida mais independente. E eu lembro de que, nessa sala de aula, existia um menino surdo, que tinha tido surdez por causa de meningite e tinha, depois, uma outra menina também com surdez e tinha um rapaz com paralisia cerebral. Esse rapaz com paralisia cerebral foi uma das pessoas com quem eu tive mais sensibilidade e que me ensinou muito, porque eu já estava com 15 anos -15, 16 anos - e eu tinha tido experiências com outras pessoas com deficiência, que não foram boas. Porque foram experiências de segregação. E nessa escola, foram experiências de inclusão. Porque eles estavam ali e eram respeitados. E eu nunca esqueço de uma aula que um professor muito atencioso, muito legal, deu, que a gente tinha que ler um trecho, eu não sei, eu não lembro, eu tinha que ler um texto ou era uma resposta de uma questão, alguma coisa assim, em que cada um lia e, quando chegou a hora desse menino ler, ele tinha muita dificuldade de fala, uma dificuldade enorme de fala, mas grande mesmo. Ele falava bem devagar, com uma fala bem difícil de entender e o professor teve todo o cuidado de esperar e de dar a voz a ele, para ele falar. E todos nós escutamos e aí, acho que a partir daquele momento, o Eduardo, nunca esqueço, se sentiu muito mais incluído. E ele é um cara muito inteligente, superinteligente, porque ele tinha paralisia cerebral, não afetava nenhum comprometimento intelectual, então foi muito importante a gente viver. E nessa escola, tinha escada, degrau. Eu subia porque, de muleta, conseguia subir, sabe, eu tinha força para subir, não é? Foi uma fase em que, fisicamente, eu fiquei bem. Então, eu conseguia subir escada, conseguia subir degrau, carregava mochila, pasta, andava até de saltinho, sabe, de saia. A deficiência, o corpo, era uma coisa que não pesava tanto. E eu queria mais era viver. Eu queria mais era curtir, sabe, os meus momentos, assim, de adolescente mesmo. E lembro que, dessa escola, eu prestei vestibular e entrei na Universidade Anhembi Morumbi, na época, para fazer Comunicação Social e também porque era próximo de onde meus pais trabalhavam. Então, ficava fácil para eles me levarem até lá. E aí, na Faculdade, eu vivi um outro momento, assim, muito bom, mas que já foi de uma militância social e ativismo, assim, mais forte, não é? Porque a Faculdade não tinha adaptação e era também um lugar que não tinha tanta escada, mas também não tinha adaptação. Por exemplo: vaga para estacionar o carro, uma vaga reservada na porta não tinha. Então, era muito complicado, quando eu chegava, para parar o carro. Eu tinha que parar o carro na vaga dos professores. Meus pais me levavam e depois uma grande amiga também, a Caline, que é uma amiga irmã minha, também, que me ajudou muito, me deu carona durante todo o tempo da Faculdade, para ela parar o carro era uma briga, toda vez. E eu só fui conseguir aquela vaga no último ano da Faculdade. Tanto que o banheiro adaptado também só fui conseguir no último ano. Mas foram batalhas que venci, que consegui, que conquistei aquele espaço, e eu entrei nessa Universidade como sendo a única aluna com deficiência. Eles disseram que antes tinha tido uma outra aluna, há uns anos, mas que também não tinham feito nenhuma adaptação.
P/1 – Em que ano você entrou?
R – Eu entrei em 1996. Antes - mas eu estou esquecendo – eu fiz cursinho. E é importante falar dessa época, porque foi uma época, também, muito significativa, porque esse cursinho era pequeno, aquele antigo cursinho médio, que nem existe mais, e era ali perto, também, da casa dos meus pais - todo esse tempo eu morei com meus pais. E esse cursinho tinha uma escada logo na entrada. Então, eu tinha que subir essa escada e uma menina estudava nesse cursinho também e ela também tinha deficiência. Só que ela vivia num carrinho, não era cadeira de rodas, e olhe que nós estamos falando de 1996 e as pessoas com deficiência ainda viviam em carrinhos. Ela tinha distrofia muscular, uma dificuldade muito grande, uma distrofia muscular muito alta. Ela tinha dificuldade para escrever, ela era com a musculatura toda molinha mesmo, que é característica da distrofia muscular, mas uma menina muito inteligente, muito, muito legal, assim, e ela tinha que ser carregada pela mãe, que já era uma senhora de idade, para subir. Em nenhum momento fizeram rampa, mexeram, sabe? A sociedade nunca se importou. Era aquele modelo assim: “Ah, você tem uma deficiência, você tem uma dificuldade? Se vira. Você quer estar aqui, você quer entrar nesse espaço? Dane-se, se vira, o problema é seu, é você quem tem a deficiência, não é a sociedade”. Que esse modelo já não é mais o modelo de hoje. Então, naquela época, as pessoas com deficiência tinham que, literalmente, gritar, batalhar mesmo para conquistar o espaço. Era difícil. E eu subia a escada. Essa coisa de subir o degrau, a escada: “Que legal! Foi muito bom”. Mas isso, depois, para mim, foi difícil porque afetou a cabeça do meu fêmur, da perna direita, porque eu forçava muito. E, na época, também, os médicos não sabiam muito se isso iria ser ruim ou não. E minha família, meus amigos, as pessoas achavam: “Ela anda, ela vai, então que bom que ela consegue!” Mas isso, hoje, a gente fala para a garotada não ir além dos limites. A garotada que tem deficiência, principalmente a mesma que eu, não ir além dos limites. Porque isso, depois, prejudica. Isso é uma coisa que me dificulta muito na vida, hoje. Se eu não tivesse forçado tanto, subido escadas que não seriam necessárias, se tivesse tido uma rampa, eu poderia andar, mas não subir o degrau, que era mais difícil. Esse cursinho eu fiz durante um ano e fiz amizades também, que eu tenho até hoje, eu sempre gostei muito de fazer amizades, e de pessoas muito especiais. Essa questão da inclusão nas escolas era difícil. O cursinho, também, eu e essa menina éramos as únicas alunas com deficiência. Existia um outro menino, com outros problemas, assim, emocionais, que também se sentia excluído. Então, eu sempre me aproximei das pessoas que se sentiam excluídas. Voltando só um detalhe importante, falando dessa questão da exclusão: no começo, no antigo primário, na minha escola só tinha brancos. Tinha um aluno negro. Eu era amiga dele, óbvio. E era uma pessoa um pouquinho mais obesa, sim, mas a maioria das pessoas brancas, naquele padrãozinho, tal. No cursinho, também. Só foi ter essa menina com deficiência e esse menino com problemas, assim, emocionais, que se tornou um grande amigo meu, inclusive foi a pessoa por quem eu fui apaixonada, minha primeira paixão, assim. Mas voltando a essa questão do olhar das pessoas, eu acho que também é importante falar que, mesmo lá atrás, nessas escolas em que eu me sentia incluída, o olhar das crianças, às vezes, era um olhar de discriminação. É que eu não percebia, porque ele vinha junto com um monte de sentimentos, mas, às vezes, tinha crianças que quando a gente pedia para fazer um desenho do amiguinho, o meu desenho sempre era um amontoado de rabiscos. Não era uma forma bonitinha, era uma forma disforme. Eu lembro disso e então acho que isso ficou na minha cabeça, sabe, mesmo? Isso foi me acompanhando com o passar do tempo, que eu só fui perceber depois, lembrando, feito análise. Então, por que falar dessa questão? Que essa autoestima da pessoa com deficiência, muitas vezes está nas pequenas coisas, nos pequenos gestos, pequenos olhares. E que crianças e adolescentes, adultos, mas que crianças também têm. Que, muitas vezes, a criança não percebe, mas está discriminando, não é? Então, é uma coisa que precisa ser trabalhada, sabe? Eu acho que precisa ser estudada pela Pedagogia, para que as crianças aprendam a conviver com a diferença. Porque a diferença faz parte da vida, não é? E as pessoas também podem ter uma deficiência. Podem ter um acidente e ficar sem parte de uma perna, de um braço ou ficar sem se locomover ou ficarem cegos ou surdos. Então, acho que desde pequenas, as crianças têm que saber conviver com isso. E aceitar. Não ter essa discriminação e esse preconceito. Agora, tem crianças que não, tinha crianças que sempre me aceitaram muito bem, sempre se aproximaram de mim. Aí, no Colegial, voltando, foi um momento em que eu comecei, realmente, a desbravar novos mundos, a dar volta no quarteirão, a pegar ônibus. Eu lembro de que eu cheguei a pegar ônibus. Com dificuldade, com ajuda também dos meus amigos. E eu comecei a perceber que eu podia ir além do mundo em que eu sempre vivi, meio que numa bolha, meio que superprotegida.
P/1 – Você fez Comunicação Social por quê?
R – Obviamente porque eu sempre quis falar, sempre quis uma profissão que falasse, que trabalhasse com o público, porque eu sempre gostei muito de gente e eu queria ser jornalista, eu tinha um sonho de, realmente, fazer um jornalismo de televisão, de aparecer na televisão. Eu sempre fui muito exibida, vaidosa. Então, eu queria ser a jornalista de estar na rua, mesmo. E era uma coisa que era, assim, uma ilusão, não é? Achar que... Eu não via pessoas com deficiência como jornalistas. Hoje você vê pouquíssimas. Tem só aquela repórter do Fantástico, a Flávia, é a única que aparece, não é? Se a gente for parar para pensar, que aparece, mesmo, é a única. Tem atrás das câmeras, atrás dos microfones dos rádios, hoje em dia já tem mais repórteres com deficiência, mas que estão a campo, assim, hoje tem mais também. Tem _____________ [54:14], outros colegas meus, mas, naquela época, não tinha ninguém. E eu tinha esse sonho, sempre gostei de trabalhar com as pessoas, de falar, de gostar de História. Eu lembro de que, na escola, eu era uma das melhores alunas de História. Depois, na Faculdade, eu era a melhor aluna em Sociologia, Filosofia e Comunicação, Teoria de Comunicação. Bom, a Faculdade acho que foi um momento, assim, de muita, muita liberdade, mesmo. Foi ali que eu comecei a me soltar. Foi ali que eu comecei a ter mais amigos e a desbravar, mesmo, sabe? Das meninas me levarem para todos os lados. Então, eu andava e conseguia entrar no carro e sair sozinha. Às vezes, a pessoa me ajudava, mas eu mesma subia. Então, isso me facilitava a locomoção. Eu falo isso porque hoje eu só ando com a cadeira de rodas. E, na maioria das vezes, com a cadeira de rodas motorizada. Porque eu já não tenho mais a agilidade física que eu tinha. E, naquela época, foi muito bom ter. Porque senão eu não teria feito tudo que eu fiz: sair para as festas, ir para a balada, ir para o cinema, sair com as amigas. Na própria Faculdade, eu lembro que tinha que andar dois quarteirões - tinha outra unidade que era mais de um quarteirão - carregando mochila nas costas. Porque a sala de aula era na outra unidade; eu fazia aula de Informática na outra unidade. E eu lembro de que, nessa época, na Faculdade, eu estagiava, fazia natação e ia para a Faculdade. Os dois primeiros anos foram de manhã e os dois últimos anos foram à noite. À tarde, na Faculdade, estudando ou fazendo estágio na própria Faculdade. Então, agora, eu queria contar um momento muito difícil que aconteceu na Faculdade, que foi na época do estágio. Porque eu fui até o setor de estágio da Faculdade perguntar se eu podia fazer estágio, como todas as outras pessoas faziam. A diretora desse setor de estágios me recebeu falando assim, olhando para mim com uma cara de espanto primeiro, não é? “O que você está fazendo aqui?” Essa foi a pergunta. “Oi, tudo bem? Quem você é? O que você está fazendo aqui?”. Estranho, né, porque eu estava indo ao setor de estágio como qualquer outra aluna. O que eu estaria fazendo ali? Ia à procura de um estágio. Mas não. Para mim, não poderia, não é? Aí, quando eu falei: “Sim, eu estou aqui em busca de um estágio dentro da própria Faculdade”... Porque, na época, tinha Departamento de Comunicação na própria Faculdade. Ela disse: “Não, mas não tem estágio, não”. Isso eu fiz no terceiro ano, eu fui procurar. “Não, não tem estágio. O que eu posso ver... Eu vou ver o que eu consigo”. No fim, ela me arrumou uma coisa que nem era um estágio na minha área, para atender telefone e passar lista de escola da Faculdade, uma coisa assim. E que eu tinha que subir uma escada, eu lembro que era um lance muito alto, acho que mais de dez, doze degraus, todo dia, para ficar nessa sala, à tarde, depois da escola. Então, isso era no segundo ano. Porque foi o primeiro e o segundo anos de manhã, eu estagiava à tarde. Eu tinha que fazer isso, como se fosse um estágio, para ganhar desconto na bolsa da escola, do valor da mensalidade. E a pessoa que me recebeu, realmente, não tinha interesse em me dar um estágio na área. Depois eu fui descobrir, no outro ano, que já existia um Departamento de Comunicação, que fazia o jornalzinho da própria Faculdade. Que tinha um setor lá, de rádio, da própria Faculdade. Por que não me colocou naquele setor? Então aí foi que eu fui descobrir que, realmente, a discriminação e preconceito vinham da sociedade. Porque eu estava na Faculdade, já tinha noções de todo mundo, todas as minhas amigas faziam estágio, eu tinha total condição intelectual e formação para aquilo. Por quê? Porque a minha imagem era diferente? Então, isso foi uma coisa que me bateu muito forte na época da Faculdade. Outra questão foi que, no segundo ano, me colocaram numa sala em cima. Acredita nisso? Eu já tinha passado um ano naquela Faculdade, sabiam que eu tinha dificuldade em subir escada, por que minha sala foi parar no segundo andar? Aí eu tive que pedir para mudar de sala e isso ocasionou problema porque os alunos falaram: “Poxa, vamos mudar de sala por causa dela”. E foi naquele momento também, que eu percebi que incomodava. Que eu mudava os ambientes. Que eu era responsável por mudanças. E aí eu me sentia culpada por isso, sabe? Era um momento de muita dificuldade, porque falava: “Puxa, para poder participar, a sociedade tem que se adaptar às minhas questões”. Mas hoje eu acho isso natural. Naquela época, eu não achava. Porque foi uma sensação de culpa que eu carreguei durante muitos anos. Acho que isso da culpa foi um processo bem difícil. Eu fiz análise, comecei a fazer terapia freudiana, com 14 anos, quando eu voltei a andar. Por vários problemas. E essa análise me ajudou muito. Porque foi o que me salvou, para conseguir me aceitar e, como dizia minha terapeuta, me sentir confortável no meu corpo. Me sentir tranquila em poder existir. A minha existência espiritual, intelectual, neste corpo. E mostrar para a sociedade que é possível ser feliz e viver uma vida como qualquer outro ser humano estando numa condição de deficiência. E aí, eu acrescento: não só uma condição de deficiência, mas uma condição de imagem diferenciada, porque essa imagem de quem não é aquela Barbie perfeita, assim como uma mulher mais obesa, negra, que usa piercing ou tatuagem ou tem o cabelo colorido, passa, eu, pela minha imagem diferenciada, também passei por esse estigma e por essa discriminação, por esse preconceito. E por essa dificuldade de autoaceitação. Porque quando eu estava em um lugar, a primeira coisa que as pessoas faziam era virar o pescoço e olhar para mim: “Nossa, ela é diferente”. Então, eu ia num barzinho com os amigos, por que eu não podia simplesmente estar ali bebendo e me divertindo, sem ser a atração do espaço? Sempre virava o centro das atenções. E aí, voltando àquela questão, isso também era muito ruim, porque eu achava que eu era o centro das atenções, isso me colocava numa posição de superioridade, que eu não tinha. Então, isso era bem complicado. Era assim. Eu acho que, na Faculdade, foi um momento de muitas descobertas e que eu consegui...
P/1 – Boas e ruins, não é?
R – É, boas e ruins. Porque depois, um outro aluno com deficiência estudou lá, que eu ajudei esse menino a se sentir mais à vontade na escola. Ele tinha distrofia muscular, ele fazia Jornalismo lá também, Comunicação, só que ele era um ano menos do que eu, eu já estava para me formar, ele ainda estava lá, e o banheiro ainda não era adaptado. Porque, como eu andava, eu usava o banheiro, porque eu não andava de carreira de rodas. E esse menino usava cadeira de rodas, ele precisava de um banheiro adaptado. Então, eu tive que conversar na diretoria, para fazer um banheiro adaptado. E eu lembro que foi só nos últimos dias, mesmo, antes de me formar, o banheiro estava pronto. E a vaga para parar o carro estava demarcada. Então, essas foram conquistas minhas. Batalhas, assim, que eu consegui colocar uma consciência na cabeça das pessoas daquela Universidade, que o espaço precisaria estar aconchegante, acolhedor para aquela diferença humana. Que acho que é isso que as pessoas têm que pensar hoje, sabe? Que os espaços têm que ser acolhedores para todas as pessoas, porque a diferença, como eu falei, faz parte da vida, não é? E foi muito importante, no trabalho de conclusão de curso, porque eu não participei da formatura da Faculdade. A gente foi no auditório apresentar, com as minhas amigas, e eu digo que foi um momento crucial, assim, de virada na minha vida, em que eu me senti incluída, mesmo, sabe, num mundo de possibilidades. E aí tem o fato que começa a minha carreira profissional na própria Faculdade. Quando eu começo a fazer esse estágio, que não era um estágio, era uma coisa que me deram para fazer lá, eu, por acaso, conheci um grupo de alunos com deficiência, que iam até a Faculdade fazer um trabalho porque eles tinham aula de Informática no laboratório da Faculdade, em parceria com uma grande instituição de pessoas com deficiência intelectual. Que, na época, fazia essas parcerias, não é? Tinham as escolas dentro das próprias instituições, que eram mais institucionalizadas. Na Faculdade, eu estava contando, mesmo, de um momento muito importante, em que eu consegui conhecer um projeto que a Universidade desenvolvia, com uma grande instituição, voltada para as pessoas com deficiência intelectual. Era uma parceria que tinha dessa instituição, de colocar os alunos em contato com cursos profissionalizantes. Então, o laboratório de Informática, da Universidade, cedia esse espaço para essa instituição realizar o curso lá. A maioria dos jovens era com deficiência intelectual. Síndrome de Down ou outras deficiências intelectuais que eles apresentavam no aprendizado, mas a maioria, Síndrome de Down. Esse projeto foi muito interessante, eu fiquei muito amiga, na época, da professora e coordenadora desse projeto, a Patrícia, até hoje a gente ainda se fala, se encontrou muitos anos depois e ela deixou que eu conhecesse esse trabalho e fizesse uma reportagem, porque tudo começou quando eu fui nesse setor de estágio solicitar um estágio, que eu queria estagiar na área de Comunicação, queria escrever. Então, eu perguntei se o jornalzinho da própria Faculdade, que eu sabia que existia, poderia ter uma reportagem, uma matéria, e aí a moça da Faculdade falou não, que não tinha essa possibilidade, essa coordenadora. Então eu quis entrar em contato, para escrever para outro lugar. Como já, naquela época, existiam revistas segmentadas, direcionadas às pessoas com deficiência, essa primeira revista, que foi uma das primeiras aqui em São Paulo - foi, realmente, uma das primeiras - no Brasil foi uma das primeiras, mas eu acho que já existia alguma coisa que falava das pessoas com deficiência. E é engraçado porque essa revista, na época, tinha um nome chamado Gente Especial, que era um nome discriminatório, no sentido de que hoje não se usa mais falar que as pessoas com deficiência são especiais. Mas, naquela época, era importante, porque era um diferencial de gente especial, de colocar aquelas pessoas num lugar de visibilidade. Mas a revista, em si, era muito boa. Tinha reportagens interessantíssimas, com cunho até político, das pessoas terem uma autonomia, aparecerem mesmo. Então, tinha reportagens e entrevistas muito interessantes, com especialistas, e que davam voz para as pessoas com deficiência. Descobri essa revista por acaso, foi numa feira de reabilitação e inclusão, que naquela época já existia, era a famosa Reatech, que é aquela Feira Internacional de Reabilitação e Inclusão, que começou em 1998. E eu conheci essa revista, acho que nessa Feira. Achei interessante, porque ela recebia cartas e participações dos leitores e eu sempre fui muito metida e me metia nas coisas, fui muito de buscar e ir atrás, e eu me lembro de que escrevi falando que queria colocar um poema meu nessa revista. E foi publicado esse poema, Caleidoscópio, que foi aí que tudo começou na minha vida profissional, com essa questão do Caleidoscópio, que depois se transformou no meu blog Caleidoscópio e nos meus projetos, que têm nome Caleidoscópio.
P/1 – Como é que é esse poema?
R - Eu não o sei de cor, mas depois eu posso até falar e mandar. Mas era assim: mais ou menos falava que eu descobri que as pessoas são formadas por diversas formas, e que nós somos pessoas caleidoscópicas. Somos pessoas formadas por diversas partes. Que a perfeição e a imperfeição estão, ao mesmo tempo, nesse corpo. Então eu acho que foi aí que eu comecei a ter um contato maior e mais forte, mesmo, com a realidade da condição da deficiência. Em que eu saí de um mundo mágico de idealização de ser uma pessoa especial ou de não ser nada discriminada, pelo contato mais de ser uma pessoa que tinha uma forma diferenciada e uma diferença de estar no mundo, que era formada por partes diferentes, como no caleidoscópio, que a gente olha, tem cores diferentes, tem formas diferentes. Bom, quando eu mandei esse poema, ele foi publicado e aí eu mandei novamente uma carta falando: “Eu quero conhecer a Editora”. Falei com o diretor, o dono da revista e ele falou: “Mas que Editora? Eu faço essa revista na minha casa”. Eu: “Nossa, como assim?” Era uma revista, literalmente, feita em casa, com um computadorzinho. Mandava para uma gráfica, tinha uma tiragem minúscula, era uma coisa de vitorioso, assim. O cara muito especial. Até hoje uma pessoa muito importante, tem uma visão social bem interessante. A mulher dele era dentista e também tinha contato com pessoas com deficiência, ele também tinha. Só que, onde ele fazia a revista, era um sobradinho, com escadas. Então, eu lembro que foi muito engraçado, porque eu cheguei toda arrumadinha, de saia, de sapato alto, com a minha bolsinha, com a minha pastinha, subimos as escadas e depois tive que subir mais escadas, porque onde era feita a revista era no quarto dele, que tinha um lance de escada. Então, puxa, para falar sobre deficiência, inclusão, num espaço que não era acessível. Porque naquela época, esses conceitos ainda não eram muito... Não existiam. Se falava sobre a pessoa com deficiência, mas não a pessoa com deficiência falava por si. E ele também numa condição que era a única que ele tinha, a revista era feita na casa dele. Então, ele não teria como fazer, quebrar, fazer uma rampa na casa, era uma coisa complicada, mas eu lembro que, quando eu entrei naquele espaço, que eu vi aquelas imagens diagramadas da revista, eu falei: “É isso que eu quero fazer, é com isso que eu quero trabalhar. Eu quero escrever e ver a minhas palavras, os meus textos ali, na telinha do computador, bonitinho, com a foto”. Então eu falei: “Posso fazer uma reportagem para a sua revista?” Mas ele falou: “Eu não posso te pagar, eu não tenho como te pagar”. Na época, eram colaborações. Falei: “Não, tudo bem, eu faço porque eu quero ter essa reportagem na revista”. E foi aí que, conhecendo esse projeto na Faculdade, eu fiz uma reportagem sobre esse projeto e fiz tudo na raça e na coragem, porque eu estava começando ainda, eu não tinha muito técnicas de entrevista ou até mesmo de escrever o texto e eu fiz tudo, desde viver um laboratório, porque eu fiquei no espaço com eles, convivi com aqueles alunos, fiquei mesmo ali anotando tudo que eles faziam, como eles faziam, como eles falavam, como eles se comportavam, conheci os alunos, participei das atividades e depois eu coloquei tudo isso no papel, fiz um grande rascunho. Eu lembro de que fiz isso com um computador antigo - a gente está falando de 1997, ainda era a internet discada - então era tudo muito precário, dentro da loja da minha mãe, numa salinha que eu tinha que subir uma escada para fazer. Então, acho que esses detalhes são muito importantes, porque foi tudo com muita raça, coragem e dificuldade, porque eu queria que aquele texto estivesse publicado e que eu contasse aquela história. O fotógrafo que fez as fotos dessa minha reportagem era professor de fotografia, que fez gentilmente, sem cobrar nada. Eu lembro que eu saía da Faculdade de manhã e, à tarde, eu ia visitar esse projeto. Eu fiquei uma semana indo no laboratório, atravessando a rua e indo até lá, ficar com eles. Nessa experiência, eu fiz amizade com uma menina que, na época, era uma garota, ela estava começando a fazer esse curso de Informática e depois ela se tornou uma jornalista. Uma menina com Síndrome de Down, que, infelizmente, faleceu há uns anos, mas que teve uma carreira muito bonita como repórter, com Síndrome de Down. E eu gostava muito dela, foi muito especial. Me emociona. A Júlia. E a mãe dela, também conheci. E a gente ficou amiguinha. Naquela época, amigas, não é? Companheirinhas de trabalho. E depois a gente se encontrou em outros eventos em que ela já era repórter de site que fazia notícias e a gente se via em eventos. E ela lembrou daquela época, sabe? Foi muito importante ver o quanto, também para ela, foi muito difícil e o quanto ela conquistou. Foi bem interessante. E essa reportagem saiu nessa revista e foi a minha primeira reportagem. Chamava Geração Computador, que falava que os alunos com deficiência intelectual poderiam estudar, trabalhar, tinham condições de estarem no mercado de trabalho. Tinham potenciais, aprendiam. Lá eles aprendiam a fazer cartão de visita, envelope de carta, digitar - tinha o curso de digitação. Estavam começando a se preparar para o mercado de trabalho. Tanto que depois, a Júlia continuou, então foi bem interessante.
P/1 – Você tinha uns 20 anos?
R – É. Eu tinha. Eu entrei com 19 na Faculdade, essa reportagem eu fiz quando eu tinha exatamente 20 anos. E aí, nessa mesma época, é interessante falar também que foi na época da Faculdade que eu comecei a ter contato com outras pessoas com deficiência, porque além dessas pessoas com deficiência intelectual, que foi o meu primeiro contato, que eu não tinha tido ainda, porque eu vivia numa instituição de reabilitação de pessoas com deficiência física. Então, síndrome de Down, para mim, ainda era uma coisa muito recente. Eu estava aprendendo, também, a lidar com essas pessoas. A não tratar de forma infantil, a também saber os limites, mas acreditar nos potenciais. A gente está falando de uma época em que pouco se falava, não é? Porque essas pessoas tinham uma discriminação e um estigma muito grandes. Eram considerados retardados, mongoloides. Eram expressões que se usavam, que hoje a gente acha terrível, mas é importante falar que era assim que se falava. Eram os inválidos, os excluídos. As pessoas que não tinham que estar naquela sociedade. E eu comecei a conviver com essas pessoas e aprender muito. E quando eu comecei a ter contato com outras pessoas com deficiência, foi nos esportes, porque eu participei, também, de uma outra Associação, do Clube dos Paraplégicos de São Paulo, na época, que ainda existe, mas aquela época estava mais forte, hoje em dia está com muitas dificuldades. E eu fazia natação, porque conheci duas meninas que tinham uma loja no shopping e elas tinham nanismo. Elas ainda existem, ainda existe essa loja e elas que me apresentaram para esse clube de natação, porque uma delas fazia natação - a Adriana e a Mila. São minhas colegas ainda e eu comecei a fazer natação e ganhei campeonatos. Porque eu já fazia natação desde a época da reabilitação, mas aí eu fazia como esporte. Então, eu lembro de que eu fazia cem metros, duzentos metros, em uma hora, e aquilo, para mim, era o máximo. Era uma questão também de superação física, do meu corpo aguentar e eu ia para a piscina de muleta, eu me trocava no vestiário sozinha, eu tinha toda essa independência. E aí eu viajei, participei de campeonatos em outros lugares. Eu nunca esqueço de que eu participei de um campeonato regional de natação, na cidade de Agudos, e que a vereadora da cidade tinha deficiência. Aquilo me impressionou, porque eu falei: “Puxa, olha só onde a gente pode chegar”. E era uma vereadora sem os dois braços e sem as duas pernas. Ela vivia assim na cadeira de rodas, com uma faixa aqui segurando o corpo e que os acessórios a ajudavam e ela, naquele dia, foi a que promoveu aquele campeonato. Foi muito, muito impactante para mim ter participado. Naquela Associação, eu fiz grandes amizades, a gente fez uma super turma, que eu tenho até hoje amigos também, e elas faziam ballet, tinha uma companhia de dança nessa turma. Além da natação, tinha outro pessoal que fazia dança. Aí eu fiquei amiga desse pessoal e comecei a sair. Então, assim... Nessa época, eu saía não só com os amigos da Faculdade, mas com essas pessoas com deficiência, dessa Associação. Que a gente começou a ir para a balada e aí eu comecei a sair muito, lembro de que eu ia de muleta. E também comecei a frequentar muito o Sesc, porque o Sesc é a minha segunda casa, sabe? Em 1998, eu comecei a frequentar o Sesc e ia muito aos shows. Eu ia em shows quase todos os finais de semana - sexta, sábado e domingo. Às vezes, até quinta. E, na época da Faculdade, a gente matava aula para sair também para as baladas, ia para o barzinho em frente. Então, essa adolescência que eu não vivi, eu vivi no começo da juventude, na fase adulta. Então, aí eu bebia de ter porre mesmo, de passar mal, de cair dançando, de escorregar, porque o chão estava cheio de cerveja, ou de ficar tonta e cair. E tudo isso é importante falar, porque foram momentos em que eu me senti igual a todas as pessoas. Não era porque eu tinha uma deficiência, uma diferença, que eu não poderia curtir a minha vida adoidado, de música, e eu sempre gostei de dançar, de estar nas festas. E isso eu ia andando, porque nessa época, eu não andava de cadeira de rodas, ainda. Então, eu pegava táxi bêbada, com os amigos, eu era carregada, subia escadas com pessoas bêbadas que me carregavam, fazia loucuras que hoje eu não faria nunca mais, não é? Mas naquela época, era muito legal, era gostoso ultrapassar esses limites, sabe? Essa curtição, assim, era muito bom. E com as amigas desse grupo do clube dos paraplégicos foi interessante, porque eu vi que as pessoas com deficiência podiam sair, podiam ir para a balada, como outras pessoas com deficiência saíam. E eu nunca esqueço de que eu participei, uma vez, de uma grande festa que teve. Já a essa época eu estava trabalhando, mas eu participei de uma grande balada, com muitas pessoas, com deficiência, juntas. E que naquele espaço, todo mundo olhava que aquelas pessoas dançavam, eram felizes, se divertiam. E eu viajei também. Além dos campeonatos, a gente também viajava com os amigos desse clube e eu nunca esqueço uma vez também que nós viajamos e fizemos festas e eu era muito dada, sempre fui muito paqueradora, queria namorar todos os meninos, queria ficar com todos os meninos e ficava, me mostrava, me arrumava e ia na cadeira de rodas com eles, sentava no colo dos meninos de cadeira de rodas, dançava. Tem vídeos, assim, que ainda guardaram, de eu fazendo essas loucuras. Isso era muito importante, porque hoje em dia eu vejo que ter passado por tudo isso me trouxe uma autoestima fundamental para eu me sentir bem com meu corpo e ter feito trabalhos, depois, sobre sexualidade, sobre questões também da imagem da mulher com deficiência. Então, ter passado por esses momentos, foi muito bom. Sem dúvida, foram momentos de muita alegria. E que a gente passava por perrengues de ir em lugares que não eram adaptados e ter dificuldades, mas junto era essa coisa da turma também, era superimportante. Depois dessa fase, aí já logo quando eu estava na Faculdade, eu fui arrumar estágio mesmo, na minha área. Aí eu trabalhei... Porque, na época, o Centro... Aquele Ciee, de empresa e escola, estava começando com essa coisa de dar estágios para pessoas com deficiência. Isso era uma legislação. E aí, depois é que teve a Lei de Cotas, mais ou menos naquela época. E eu fui para fazer um estágio numa área de livros jurídicos. Eu era revisora de livros jurídicos numa Editora de livros jurídicos. Não era o que eu gostava. Eu fui fazer isso porque foi o que apareceu, não é? Então, eu tinha que começar a fazer algum trabalho, para depois tentar ir para a minha área. Como qualquer outra pessoa, não é? Só que também eu percebi que existia uma certa discriminação por parte daquelas pessoas que me aceitavam ali, porque queriam que eu ficasse num canto, sabe? Que eu não participasse do convívio com eles. Que eu ficasse quietinha, revisando ali. Imagina! Falar para eu ficar quieta não era o que poderia se fazer, porque eu gostava muito de falar e de me meter nas coisas e eu sempre tive essa coisa de Jornalismo, de ir em busca da notícia, das coisas, eu já tinha feito essa reportagem, então eu não queria, sabe? A minha vida, eu queria que fosse mais agitada. E eu lembro que, nessa época, depois, eu trabalhei com a revisão de uma revista que eu fazia na casa do cara, que era dono dessa Editora, que eu tinha que subir uma escada. E aí era uma escada muito grande, eram dois lances de escada, era terrível, muito cansativo, doía muito minhas pernas, minhas costas. Eu fiquei fazendo isso uns seis meses. Eu me arrependo muito porque me prejudicou fisicamente, muito. É importante falar isso porque as pessoas com deficiência não têm que passar por essas situações. Elas têm que trabalhar, sim, mostrar seu potencial, estar dentro da sua área, mas o ambiente tem que ser acessível, porque senão elas vão se prejudicar. E eu passei por essa situação. Aí depois, também, eu fui trabalhar, fiz estágio na Faculdade. Lembro de que antes, também, na Faculdade, eu fiz um estágio na Bienal do Livro, em que eu atendia o pessoal na recepção. Eu lembro que, para isso, as minhas amigas da Faculdade me pegavam no colo e me colocavam na cadeira. Então, isso com muita dificuldade. E eu tinha que andar, também, por ali, na Bienal, que era um espaço muito grande, mas eu atendia o público. E era um momento difícil, porque eu tinha que ter contato com público em geral e as pessoas já viravam para mim e pediammm uma informação e se assustavam em ver a minha imagem. Então, esses momentos, assim, de começo de um trabalho mais de visibilidade, foram bem difíceis. Depois dessas experiências, eu fui trabalhar numa empresa. Aí, sim, eu fui contratada por CLT, pela Lei de Cotas, para trabalhar numa empresa de Recursos Humanos, uma grande empresa de Recursos Humanos, em que eu andava também para ir até lá, meus pais me deixavam de carro num pedaço da rua e eu tinha que andar carregando bolsa, geralmente com sapatinho de salto, carregando pasta, andava um pedaço e trabalhava nesse escritório, em que eu subia na cadeira, que não era uma cadeira adaptada também, com dificuldade. Esse trabalho não era na minha área. Eu estava num Departamento de Treinamento de uma empresa de Recursos Humanos. Não tinha nada a ver com o que eu tinha me formado. Eu estava ali porque era a oportunidade que tinham me dado, era uma indicação de pessoas que eu tinha conhecido e eu acabei ficando nesse trabalho, achando que eu poderia ter uma oportunidade de depois passar para a área, não é? Então, isso é outra questão que eu coloco: as pessoas com deficiência não têm que começar assim. Elas têm que começar já a trabalhar na sua área, caso elas tenham uma formação. Se não têm uma formação, começar a trabalhar, não está legal ali, vai e procura outra coisa. Não fica naquele emprego porque: “É a única oportunidade que eu vou ter na vida, coitadinha de mim, então Nossa, abriu a porta para mim, eu vou aceitar”. Na época, eu aceitei porque ainda não existia essa conscientização, não é? E foram momentos muito difíceis. Eu queria fazer um bom trabalho no que podia fazer, mas eu não tinha possibilidade de crescer. Comecei a fazer meu trabalho - olha que absurdo! - atendendo telefone para dar endereço dos postos que essa agência de trabalho tinha nos lugares. Eu não tinha feito quatro anos de uma Faculdade e escrito uma reportagem ainda, para atender telefone. Mas foi isso que eu tive que fazer. E eu nunca esqueço que uma vez eu estava fazendo isso, de atender os telefones e fazer uma lista dos endereços... Como fala?... Conferir a lista dos endereços, que a menina tinha falado que eu tinha que fazer isso. A menina que trabalhava junto comigo, minha colega. Quando eu acabei, eu mostrei para a coordenadora do Departamento e ela falou: “Não, espera um pouquinho. Deixa eu ver primeiro, para ver se está certo”. Quer dizer: não confiou no meu trabalho, na minha capacidade intelectual, que não tinha nada a ver com a minha deficiência. Então, eu percebia também que as pessoas tinham muita inveja de mim e muita raiva e muito ciúme, porque eu estava ali meio que para atender a uma expectativa de ter que colocar a pessoa com deficiência, mas que todo mundo falava: “Ai, que bonitinha! Ela também consegue, ela trabalha”. E aí as outras pessoas falavam: “Mas como ela vai estar fazendo a mesma coisa que eu? Ela é diferente? Ela vai ter a mesma capacidade? Ela vai ser especial?” Eu lembro que o olhar das pessoas, no ambiente de trabalho, era muito difícil. Tanto que teve um momento, que eu nunca esqueci também, que foi bem discriminatório, em que todas as meninas do Departamento passavam por um rodízio que tinha que ficar no outro Departamento, que era a Presidência da empresa, na recepção. A gente tinha que ficar ali atendendo. Quando chegou na minha vez de ficar nessa bancada para atender as pessoas na recepção, falar bom dia, boa tarde, falar onde era, onde estava tendo a reunião tal ou outra, aí falaram para mim: “Você não precisa ir”. “Como eu não preciso ir?” “Você não precisa, fulana vai, fica aí no seu canto, não precisa”. Eu peguei e simplesmente fui, já que era a minha vez de ir, eu peguei, tomei o elevador da empresa, fui até o andar, subi na cadeira, com muita dificuldade, e fiquei sentada ali. Quando passou a gerente do meu Departamento, falou: “Mas o que você está fazendo aqui?” Eu falei: “É a minha vez de ficar aqui. Não tem um rodízio com as meninas do Departamento?” Todo mundo ficou olhando. Quer dizer, era sempre aquela sensação de exclusão. Aí tem mais um fato, que é muito importante contar, que foi nessa mesma empresa, que eu vivi uma das piores discriminações, Nossa, que me emociona falar, que foi bem difícil mesmo. Essa empresa colocava pessoas no mercado de trabalho pela Lei de Cotas. Ela tinha o Departamento Especial, que tinha essa função de só encaminhar as pessoas com deficiência. Então, eles queriam também me colocar numa outra função, porque eles viam que eu estava ali, que não era aquela função. Só que eles fizeram esse processo de forma muito atabalhoada e muito sem autonomia minha. Fizeram meio que eles decidiram por mim. Um belo dia, falaram: “Vem para cá, vamos no meu carro, porque eu vou lhe levar para você ver uma vaga de emprego na empresa”. Eu falei: “Mas espera aí, que vaga?” “Não, nós vamos lhe falar, você vai gostar, você vai ver, vamos lá. Vamos lá que é uma vaga maravilhosa, que é de Comunicação”. Só falou isso: Comunicação. Até aí, Comunicação pode ser tudo, não é? E não era isso que eu queria. Quando, de repente, eu estou no carro, fui literalmente sequestrada, porque nem falaram qual era a vaga, o valor do salário, nada, me colocaram nesse carro, me levaram, demorou para chegar, porque essa empresa não era em São Paulo, era na Grande São Paulo, já começa por aí, que eu teria que atravessar a cidade e passar mais de duas horas num transporte. Perguntaram se eu queria isso? Não, já me colocaram. Então, quando eu cheguei na empresa, que eu vi o logotipo dessa empresa, eu disse: “Espera aí, mas eu não quero trabalhar nessa empresa. Por uma questão pessoal, de valores, eu não quero trabalhar nessa empresa, porque essa empresa não está de acordo com os meus valores políticos, ideológicos. Eu não quero trabalhar nessa multinacional que eu não gosto, que eu não quero, simplesmente não quero”. “Ah” – podem falar – “puxa, mas você não vai aproveitar uma oportunidade?” Mas as pessoas com deficiência não podem escolher? Não podem ter autonomia e escolha? E terem consequências por suas escolhas? Porque, é claro, talvez, se eu tivesse aceitado aquele trabalho, naquela época, não sei, eu teria tido uma condição financeira melhor do que eu tenho hoje, mas eu não queria e, naquela época, eu, com 22 anos, não tinha, realmente, interesse em trabalhar nessa multinacional. E o que eu iria fazer? Escrever cartinhas para os funcionários, fazer uma comunicação entre funcionários dentro de um Departamento, para saber se a batata frita estava bem frita ou não. Sabe, gente, esse tipo de coisa? Que eu não queria. E quando eu participei da seleção desse trabalho foi um momento muito difícil, porque a selecionadora já me colocou numa situação: “Puxa, mas você vem para cá”. E aí, quando eu estava ali, eu fui dando negativas para essa pessoa, que eu não queria, porque eu fui colocada naquela situação. Me colocaram numa situação constrangedora, eu passei por duas entrevistas: com a coordenadora do Departamento, depois com o coordenador dali, acho que o Gerente-Geral, nem sei quem era, era um cara com o mais alto coisa lá dentro da empresa e: “Que legal, você consegue vir aqui?” E era difícil porque eram duas horas para estar lá e aí eu fui falando: “Não, eu tenho dificuldade”. Eu até aumentei as minhas dificuldades físicas para poder dizer não, porque eu não queria trabalhar naquela empresa. Porque era para aquela empresa que eu não queria, não importasse... E também naquela função, porque eu queria trabalhar com Jornalismo, não queria trabalhar com cartinha e comunicação interna de funcionário. Não era para isso. Não era porque Comunicação, que eu ia fazer qualquer coisa. E não era porque era registrado e tinha um bom salário. Na época, isso não tinha importância para mim. Então, eu acho que isso é muito importante colocar. Aí, depois, eu saí dessa empresa de Recursos Humanos, porque eu já tinha procurado outros caminhos. Aí eu achei um site na internet e aí, sim, minha vida profissional começou muito bem, não em termos de dinheiro, mas em termos de realização profissional. Eu fui trabalhar numa Editora pequena, também familiar, numa casa de bairro, mas que tinha um site na internet, que depois se transformou em revista. E era um site sobre pessoas com deficiência, que tinha reportagens que divulgavam depoimentos de pessoas com deficiência, reportagens de todas as áreas e falando de todas as deficiências. Era muito, muito interessante. Eu descobri esse site, mandei uma mensagem, telefonei, falei: “Estou indo aí amanhã, viu?” “Não, mas...”. “Estou indo aí, vocês vão me conhecer e eu vou trabalhar aí”. Aí eu lembro de que, na época, os donos da empresa falaram: “Nossa, você é bem determinada, não é?” Fiz amizade logo com eles, pessoas maravilhosas, que logo me aceitaram e eu fui a primeira repórter e editora dessa pequena Editora, desse pequeno site revista com deficiência, porque as outras pessoas que já trabalhavam lá eram pessoas sem deficiência. E os donos também eram pessoas sem deficiência, mas que a dona, a especial, é dentista e tinha contato com pacientes com deficiência, através de um projeto de atendimento de pessoas com deficiência que ela tinha, como dentista. Mas foi a partir daí que a ideia de fazer esse site e essa revista... A gente está falando, isso já é ano 2000. Não, 1999. Final de 1999 para 2000 eu saio dessa agência de empregos e vou trabalhar nessa Editora. Mas antes disso, nesse mesmo ano, foi um ano em que eu trabalhei muito, que eu fiquei muito cansada, fisicamente, eu trabalhei no Sesc como monitora educacional. Aí eu trabalhei duas exposições: do Sebastião Salgado, no Sesc Pompeia, e também do Serroni, de cenografia, no Sesc Vila Mariana. Lá eu já estava com a cadeira de rodas, porque os espaços eram muito amplos e aí eu já não estava mais conseguindo andar muito, eu estava com mais dificuldade, mais cansaço, com os ossos mais fracos e mais pesada. E também, para ganhar agilidade, eu já tinha a cadeira de rodas. Então, quando eu estou nessa Editora, que é uma editora que tinha um site que depois se transformou numa revista voltada para pessoas com deficiência, lá eu comecei a escrever, mesmo, a trabalhar com reportagem. Eu ia aos eventos. Eu pegava um táxi, eu saía com a muleta ou, às vezes, de cadeira, quando eu trabalhava em espaços muito amplos, como foi no Sesc, que eu fui monitora educacional, mas eu saía para fazer as reportagens, gravava num gravadorzinho naquela época, tirava foto com máquina fotográfica na minha altura, e assim... Quando eu agendava a cobertura desses eventos, eu não falava que tinha uma deficiência. Eu falava: “Sou jornalista, tal”. Aí, quando eu chegava ao evento, a pessoa da assessoria de imprensa falava: “Mas cadê a jornalista da sua Editora?” “Não, sou eu.” “Mas cadê a jornalista? Você veio...” “Eu sou a jornalista”. Então, as pessoas não acreditavam que eu era uma jornalista que estava ali, ainda mais porque eu estava num evento que falava sobre pessoas com deficiência. Mas, geralmente, é aquilo que eu falei: as pessoas com deficiência eram faladas por outras pessoas, eram reportadas, tinham as suas histórias contadas por pessoas que não tinham deficiência. Então, não tinha jornalistas com deficiência naquela época. Eu fui uma das pioneiras, em São Paulo, a trabalhar nessas revistas segmentadas. Que aí eu trabalhei nesse site e revista e depois em outros. E, quando eu trabalhei no Sesc, eu também fui uma das poucas pessoas a ser monitora educacional. Naquela época, eu fui a única nesses dois espaços, em que eu atendia o público. Então, acho que é interessante, porque eu atendia escola, atendia as pessoas que iam ver a exposição e fazia toda a orientação do espaço. E os alunos paravam para me ouvir. Falavam: “Nossa, ela é a pessoa que vai explicar as obras?” E lá foi um momento muito importante, porque eu convivi com alunos que também estavam fazendo estágio lá, esse trabalho educacional comig o, o pessoal da USP, com quem eu fiz muita amizade, pessoal que eu saí nas festas. Então, também, foi um momento muito bom, do qual eu gostei bastante, sabe? Foi bem interessante. Vou contar da experiência que eu tive como monitora educacional, no Sesc - tanto na Pompeia, como na Vila Mariana. Foi muito importante porque, naquela época, eu trabalhei explicando as obras, orientando os professores e os alunos, sobre aquelas exposições. Mas também, para mim, era um momento de conseguir fazer aquele trabalho e mostrar que eu tinha capacidade física. Porque as pessoas achavam que eu não fosse dar conta. E eu conseguia andar com a cadeira de rodas pelo espaço amplo, empurrar com dificuldade, subir rampa, descer rampa, passar o dia todo lá, porque eu trabalhava no período da manhã, mas como eu gostava muito do trabalho, por incrível que pareça, mesmo de forma voluntária, eu ficava à tarde. Tinha dias em que eu ficava no período da tarde também, para fazer amizade com o pessoal e porque eu queria fazer mais monitoria. Isso no Sesc Pompeia. No Sesc Vila Mariana também teve algumas vezes, mas quando eu estava no Sesc Vila Mariana, eu já estava trabalhando na Editora, então aí, eu não conseguia ficar muito tempo, porque eu estava em dois empregos. Então, é importante falar que eu trabalhei muito. Posso não ter tido uma situação financeira e não ter pensado na minha carreira, como no meu futuro, mas eu fiz coisas pelas quais eu fui apaixonada, de que eu gostei, que eu vivi e que me senti muito bem. No Sesc, por exemplo, fiz amizade com os outros monitores que, em sua maioria, eram pessoas que trabalhavam na área ou que estudavam História na USP, então a gente fez uma turma bem legal, bem interessante, que eu também tenho amizade até hoje, que eu aprendi muito com eles. E, para trabalhar nessa exposição no Sesc, teve um curso antes, que explicava toda na exposição do Sebastião Salgado, eu conheci o Sebastião Salgado e era interessante porque eu falava de uma outra realidade de exclusão, porque era a exposição Êxodos, em que ele mostrava a África, a Ásia e o Brasil, que era uma exposição muito bonita dessas fotografias e que era bonita, mas ao mesmo tempo, de uma realidade trágica, não é? Principalmente na África. E que eram momentos difíceis e emocionantes e que a gente passava a mostrar aquelas imagens. E a conviver com a realidade daquelas pessoas que iam visitar, porque o Sesc é um espaço aberto ao público mesmo, em geral, pessoas que estavam na rua, entravam, e as escolas. E acho que foi importante para mim, porque eu me coloquei como uma vitrine: uma mulher com deficiência, uma imagem diferenciada e que eu não sentia tanto o peso da minha deficiência, porque estava ali fazendo aquele trabalho com uma paixão, com uma vontade e com sonho, sabe? Com a utopia de querer salvar o mundo, e isso era muito, muito, muito importante. E que me valorizaram, que me deram essa oportunidade. O Sesc sempre foi um espaço de muitas oportunidades, não é? No Vila Mariana, a gente trabalhava com criança, então era divertido ver as crianças olharem para mim com aquela carinha de espanto e eu brincando com elas nos espaços de cenografia e carregando-as de um lado para outro no espaço. Os monitores, que eram meus colegas também, acreditavam na minha capacidade e era um momento de muita, muita alegria e aceitação da minha condição e da minha potencialidade, que eu poderia fazer as coisas. Quando eu estava na Editora, já escrevendo nessa revista, eu vivi momentos de dificuldade, sim, em alguns eventos, para fazer coberturas e que era complicado porque eu tinha que me apresentar como jornalista, como eu falei, e as pessoas não acreditavam, mas na maioria das vezes foram momentos muito bons. Eu participei ali de momentos históricos do movimento das pessoas com deficiência. A libra, a língua brasileira de sinais, foi criada naquela época - 2000, 2001, 2002 que começou. Leis de inclusão de pessoas com deficiência foram criadas também naquela época. E a gente fazia reportagens, participava desses eventos. Eu participei de um evento, que foi ali na Faculdade de Direito da USP, do Ministério Público, sobre direitos das pessoas com deficiência. Então, foi ali que eu comecei a conhecer outras pessoas com deficiência que já estavam no ativismo social, na militância política, há muitos anos. Foi ali que eu percebi que o movimento das pessoas com deficiência começou em 1988, até antes, na década de 80, final de 70, mas que em 1988 a Constituição tem algumas questões que colocam que todas as pessoas são iguais perante a lei, incluindo as pessoas com deficiência. E um grupo de pessoas com deficiência, na época, que batalhava por isso e que a gente fala que são os dinossauros da inclusão, que começaram, foram essas pessoas que colocaram ali a visibilidade que não existia. Porque a imagem da pessoa com deficiência no Brasil ainda é muito assistencialista, do cuidado, do especial. e não do direito humano, da autonomia, da independência. E, naquela época, mais ainda. Hoje já se mudou um pouco. Então, ter trabalhado nessa revista - que no começo era um site, depois virou uma revista - foi uma fase muito importante na minha vida, em que eu me desenvolvi e em que eu fui uma grande jornalista, e que eu gostava também do que fazia. Eu entrevistei pessoas importantes em várias áreas, inclusive a Dorina Nowill, que é a fundadora da Fundação Dorina Nowill, para pessoas com cegueira. Uma senhora que, na época, eu fiz uma entrevista com ela, que foi maravilhosa, ela me ensinou muito. Uma pessoa fantástica, que me recebeu superbem na casa dela e que ela foi uma das pioneiras também, e aí eu aprendi muita coisa. Esse momento foi um momento em que eu entrei para a área da deficiência, para a militância e também para as questões técnicas que eu aprendi sobre as outras deficiências que eu não conhecia. Eu conhecia mais sobre deficiência física, então conheci sobre deficiência auditiva, visual, intelectual. Entrevistei muitas pessoas e aí, Nossa, toda essa minha época aí daria um livro, que é o livro que eu estou escrevendo, porque estou fazendo a autobiografia. Passada essa época, que foi muito importante, eu fiquei muitos anos sem trabalhar. Eu fiz vários freelancers, escrevia reportagens e a maioria voluntária. Hoje eu avalio que não deveria ter feito isso, porque era o meu trabalho e eu deveria receber por esses trabalhos. Mas que, na época, não era valorizado e também eu não cobrava por isso, eu não acreditava que isso tinha uma importância. Sabe, isso é uma coisa que eu me autocritico e também coloco para as pessoas com deficiência pensarem nas suas carreiras, nas suas autonomias, em encararem o emprego, o mercado de trabalho, como todas as outras pessoas. Não para mostrar que tem capacidade. Porque muitas vezes, para você mostrar que é tão capaz quanto uma pessoa que não tem deficiência, você passa por situações e acha: “Não precisa me pagar”. Ou então: “Está bom assim mesmo, eu faço qualquer coisa”. Ou: “Não, eu faço isso só porque eu quero mostrar que eu tenho capacidade, que eu sou mais”. E não pensa na situação que você é um trabalhador como qualquer outro, que tem direitos, que precisa estar registrado. Eu trabalhei muitos anos sem registro. Eu não encarava o trabalho como uma forma de, depois, pensar numa aposentadoria ou de pensar numa independência financeira e de pensar no trabalho como uma forma de ganhar dinheiro para me sustentar. Eu vivia sustentada pelos meus pais. E isso era muito ruim, essa dependência da família era muito grande ainda, na minha cabeça. Então, esse foi um dos maiores erros que eu tive, assim, de não pensar nisso. De viver mais no sonho, na utopia de achar que eu ia fazer grandes coisas e também não encarar o trabalho como uma necessidade. Acho que também por eu ter uma baixa estima, de pensar: “Puxa, mas será que, realmente, eu posso entrar no mercado de trabalho como as outras pessoas sem deficiência?” E aí eu fiz algumas reportagens e voltei a trabalhar, mesmo, registrada, só em 2006. Aí eu entrei para a Lei de Cotas, porque nessa outra Editora que eu tinha trabalhado antes, não era Lei de Cotas, porque a Lei de Cotas estava começando ainda, não era uma realidade. E era uma Editora pequena, na qual eu trabalhei sem registro. Quando eu fui trabalhar nessa outra Editora, eu fui selecionada pela Lei de Cotas, só que para uma função que não era nada na minha área. Eu fui selecionada para ser telefonista, para falar receita de bolo, para falar de revista de fofoca e ficava com a minha mesa numa parede. Eu ficava virada para a parede, num Departamento em que todo mundo se falava, trabalhava junto e eu era excluída. Fisicamente, no ambiente excluído e numa função subalterna, uma coisa que não era para aquilo que eu tinha me formado, quatro anos, e já tinha trabalhado na área. Então, seis anos depois de formada, eu fui trabalhar como telefonista, numa situação muito ruim. Só que por que eu aceitei esse emprego? Primeiro, porque eu estava há muito tempo sem trabalhar e queria voltar ao mercado de trabalho, era pela Lei de Cotas e eu tinha a ilusão de que: “Nossa! Pela Lei de Cotas, então eles vão fazer um trabalho interessante de inclusão”, e não foi feito. E também porque eu achava que era uma grande empresa, uma das maiores Editoras de revistas do Brasil que, na época, estava ainda mais ou menos, hoje em dia estão em crise, mas, na época, estavam mais ou menos e eu achava que, dentro dessa Editora de revistas, eu ia ter possibilidade de mudar para uma outra editoria lá, para uma outra revista, porque tinha uma revista sobre educação, que eu sempre gostei muito e que eu queria estar nesse espaço. Também isso é uma forma errada, porque quando a pessoa com deficiência procura um emprego, ela não tem que pensar assim: “Eu vou por esse caminho, para depois desviar o caminho”. Ou então: “Alguém vai me dar aquela oportunidade, porque vai ter pena de mim ou porque vai ver que eu tenho capacidade”. Não. Você já tem que, se você tem uma formação, prestar um concurso ou fazer o processo de seleção para aquela vaga, naquela área que você quer, que você tem interesse, não é? Não é só pelo salário, mas que você vai gostar daquele trabalho ou que você vai, também, se sentir bem naquele ambiente, de uma maneira inclusiva e foi o que não aconteceu nessa empresa. Foi terrível, eu vivi momentos de muita exclusão, muita discriminação, assim, pelos próprios colegas e até de assédio, que eu poderia até ter processado, por que eu tive assédio. Uma das minhas supervisoras queria que eu fizesse um empréstimo no nome dela, no Banco. Uma coisa assim, uma coisa louca, coisa de contar as histórias em filme, porque é bem louco, mesmo. Foi um momento difícil que eu fiquei com problemas físicos por causa disso, eu acabei tendo muita dor aqui nas minhas costas e no lado direito das minhas pernas, porque irradiava para a perna, coluna, e aí eu tive que ser afastada do emprego, por uma questão física. E até por isso eu não voltei, porque não tinha mais condições de trabalhar. E aí, isso me ocasionou vários problemas, porque eu saí daquela empresa sem receber todos os direitos, aquelas coisas todas, muitos problemas. Nessa época, eu já namorava o meu atual companheiro, o meu marido e a gente já estava, na verdade, juntos há um tempinho, já, a gente se conheceu em 2005 e esse emprego foi em 2006, estava há mais ou menos um ano que eu estava com ele e a gente queria ter o nosso espaço, queria morar juntos e eu ainda não tinha condições, porque não tinha condições financeiras. Bom, eu só voltei a trabalhar - fiquei muitos anos sem trabalhar - só voltei a trabalhar em 2010, numa outra Editora, aí sim uma Editora ainda familiar, pequena também, mas em que eu era registrada. Então foi muito bom. E aí eu trabalhei como repórter, jornalista e também como coeditora de uma das revistas sobre educação inclusiva. E era maravilhoso, porque eu fazia reportagens, mas também editava o texto dos colegas e fazia coordenação editorial dessa revista. E era acessível, tinha como eu ir com a cadeira de roda, tinha a rampa, a parte do refeitório também era um pouco mais acessível, assim, que a gente ficava, mas eu também tive discriminação dos próprios colegas de trabalho, momentos, mas assim, colocando na balança foi um momento bom, em que eu tive experiências interessantes, outras experiências normais de trabalho, mas eu acho que... Normal, assim, que eu digo, de discriminação, porque as pessoas viam que eu estava ali e que eu era boa no que eu fazia. Então as jornalistas... Eu lembro que tinha algumas jornalistas, em especial, que falavam: “Nossa, mas como ela consegue fazer isso? Como ela conseguiu? E que ousadia dela estar ali”. Porque eu sempre dei opinião sobre as coisas, eu sempre falei sobre as reportagens, eu sempre pautei o que ia ser falado, os temas, tal, e com muita opinião: eu sempre fui uma pessoa de opinião forte. “Nossa, mas como ela sabe mais do que eu?” Eu percebia que as jornalistas tinham inveja, muitas vezes, de muitas coisas, porque eu já trabalhava na área, então eu trouxe todos os contatos daquela outra Editora para essa e eu ajudei muito o pessoal dessa Editora. Eu fiz muita coisa errada, porque eu passei tudo para eles, de mão beijada. E aí, com isso, eu acabei problemas com essas colegas de trabalho e fofoca, aquela coisa, mas eu até costumo falar: “Puxa, interessante, mas eu vivi um momento de inclusão porque, como toda Editora, todo ambiente de trabalho, por puxar tapete por fofocas de colegas de trabalho, a dona da Editora me mandou embora”. Mas, assim, até eu falo... É interessante, porque é bom por esse lado, foi um momento como qualquer outra pessoa. Mas eu queria contar dois casos especiais, de duas reportagens que eu tive que fazer nessa Editora e que eram em escolas, porque eu fazia reportagens sobre as escolas e tinha que falar da acessibilidade dessas escolas. E essas escolas não tinham acessibilidade. E eu tive que mascarar essa reportagem, mentir. Hoje em dia, eu me arrependo. Mas, na época, eu fiz porque fui obrigada a dizer que as escolas tinham acessibilidade. Uma tinha escada e eu, como jornalista, quando fui, precisei ser carregada para poder ir nessa escola, que era uma escola que era inclusiva e tinha alunos separados numa outra sala. Isso a gente já está falando de 2010. E ainda existia esse tipo de escola. E uma outra escola, que era pequena, que era uma escola para crianças menores, de alfabetização, escolinha de bairro, mas que também tinha escada e que eu tinha que valorizar os pontos bons e não os da falta de acessibilidade. Hoje, se eu fosse fazer uma reportagem, eu não iria não mencionar, eu falaria que a escola não era totalmente acessível. Mas, na época, eu tive que fazer. Mas era interessante porque eu ia lá fazer a reportagem, orientava o fotógrafo, ia no carro, sabe? Eu subia, andava com a cadeira de rodas, mas conseguia. As pessoas me ajudavam. Então, eu gostava muito de fazer reportagem em campo, mas a maior parte do tempo eu passava na Editora. Eu ficava no espaço físico, mesmo, trabalhando lá. E, nessa época, eu tinha o transporte da Prefeitura, que levava e trazia, e isso me facilitava também, não é? Na época da primeira Editora, não. Meus pais me levavam para a escola, então tinha essa coisa da dependência. Em relação à experiência profissional, depois dessa Editora, infelizmente eu não voltei a trabalhar, assim, todos os dias, mais de oito horas por dia, porque eu comecei a ter dificuldades físicas. Aí eu fui ganhando peso, fui ficando com os ossos mais fracos por causa da idade, então eu não consegui mais voltar, eu só fiz vários freelas, trabalhos autônomos, mas foi essa a minha última experiência profissional, mesmo, oficial. Voltando só um pouquinho, eu queria contar de 2007, que eu ganhei um prêmio quando eu levei o meu projeto de fotografias, um projeto meu e de uma grande fotógrafa, Vera, fotos sobre pessoas com deficiência, para mostrar a sexualidade e a sensualidade. Eu fui convidada a participar de um Congresso, na Faculdade de Lima, no Peru, depois de eu ter participado de um outro Congresso, aqui no Brasil. Eu conheci uma ONG, aqui no Brasil, de direitos humanos, participei desse Congresso durante três Congressos e aí fiquei amiga de uma pessoa, a Maria Ester, que é uma jornalista lá do Peru e ela me chamou para levar esse projeto das fotografias, que foi uma ideia dessa fotógrafa, de tirar fotos de pessoas com deficiência em poses sensuais. Essas fotos estão no meu blog e eu costumo divulgá-las. E aí eu ganhei esse prêmio internacional e depois, aqui também, eu falei desse projeto em outras oportunidades, em outros Congressos. Só voltando um pouquinho, nessa Editora em que eu trabalhei, na primeira, eu cheguei a ir, de táxi, sozinha, muitas vezes, para fazer reportagem, que para mim era uma coisa muito importante essa autonomia. E nessa outra Editora, depois, em que trabalhei, em 2010, eu viajei de avião, sozinha, para ir fazer reportagens também. Então, coisas muito importantes, porque eu ia totalmente... Pegava, geralmente, um táxi que não era acessível, que na época não tinha táxi acessível, e colocava a cadeira de rodas. Chegava lá para o avião, dobrava a cadeira de rodas, não era motorizada, era manual, e tinha vezes até que a cadeira de rodas ficava em outro avião e eu tinha que esperar a cadeira de rodas vir, porque eles não colocavam no mesmo avião. Um absurdo, não é? Um despreparo total da companhia aérea. E aí, era uma situação, também, muito constrangedora. Fora que, para subir na aeronave, eu tinha que ser carregada muitas vezes, porque não tinha aquele ambulift, que é aquele tipo de elevador que encaixa já no ‘coiso’ do avião, que ele pega no aeroporto a pessoa com cadeira de rodas e coloca. Teve uma vez até que eu fiz essa passagem nesse ambulift com uma pessoa muito importante, que é uma médica importantíssima, que foi uma das coordenadoras da Secretaria Nacional da Pessoa com Deficiência e nós duas estávamos ali e, onde se viu, esse espaço totalmente sem segurança, sem cinto para a gente ficar. A cadeira de rodas rodava ali. Então você vê o quanto foi difícil, muitas vezes, a locomoção para o trabalho e quantas barreiras eu passei, enfrentei e fui em vários hotéis que não tinham acessibilidade, porque eu viajei, pelo meu trabalho, muitas vezes. Viajei para Brasília, para Minas, Florianópolis também. Minas foi duas vezes. E viajei também aqui para o interior de São Paulo e para Lima, no Peru; foi essa a única viagem internacional que eu fiz e eu fui para Lima sozinha também. Fiquei num hotel. Nessa época, eu já estava namorando o meu atual marido, ele ficou bem preocupado, mas eu queria ir sozinha, me virei lá, sem saber Espanhol, falando um portunhol bem ruim, mas a minha amiga me ajudou bastante e, nessa Faculdade, em que a gente foi fazer um trabalho, uma apresentação, tinha escada também e eu era carregada, todos os dias, dentro dessa Faculdade, para poder falar. Eu fiquei uma semana lá em Lima, conheci muita coisa lá, foi bem interessante, uma experiência ótima, mas sempre tive cara e coragem para me virar e para estar nos lugares, mesmo no eavião, com todas as dificuldades. As pessoas ajudavam, mas eu acho que eu também não tinha muita noção do perigo, sabe? Eu não pensava que poderia ser tão arriscado assim. Eu ia e encarava, não é? Então, essas foram experiências bem importantes e aí, como você comentou, queria saber um pouco da minha vida sentimental. Eu conheci meu marido em 2005 e, na época em que a gente começou a namorar, ele era amigo de um grande amigo meu, de uma Associação, e eu fiquei, primeiro, amiga desse amigo dele. A gente era muito amigo, eu participava das reuniões da Associação sobre inclusão, porque nesse período em que eu não trabalhei oficialmente, eu ia em muitos eventos. Minha mãe me levava, eu pegava táxi, eu ia sozinha para fazer reportagem para sites, de graça, para vários sites que eu fiz reportagem, eu nunca fiquei parada. Esse tempo em que eu não trabalhei oficialmente, eu sempre fiz outras reportagens de graça, mas queria escrever, então, eu tenho mais de cem textos publicados. Eu sempre gostei. E nesses momentos, numa dessas reuniões, eu conheci o Marcos e foi uma pessoa pela qual eu me apaixonei, assim, perdidamente, e ele também. E a gente logo ficou junto, no cinema, mas eu já tinha tido outros namorados, mas namorei muito tarde, fui dar o primeiro beijo na boca aos 21 anos, que é uma coisa muito marcante para uma pessoa. Imagina! A garotada começa a namorar cedo. Na minha época, não era tão cedo, mas também não era tão tarde porque, como eu falei, era muito difícil, os meninos não se aproximavam, e o meu primeiro namorado foi uma pessoa com deficiência também, com osteogênesis, com a mesma deficiência que eu. Mas depois, quando eu conheci o Marcos, eu já estava mais amadurecida nessa questão de relacionamento, mas eu nunca tive um relacionamento com uma pessoa sem deficiência. Isso é importante colocar, porque eu tinha um alto preconceito, eu sentia que eu nunca ia conseguir namorar uma pessoa, um rapaz sem deficiência. Porque eu achava que não, ele nunca ia olhar para mim. E a discriminação, como ia ser? Eu nunca poderia ser mulher suficiente. Afinal, eu não sou uma mulher que tem um corpo padrão. Então, a minha dificuldade de se aproximar, realmente, de pessoas sem deficiência, sempre foi muito grande. Eu tive uma única paixão platônica. Na verdade, platônica, mas ele sabia que eu gostava dele, mas não rolou nenhum beijinho, assim. A gente saía nas festas, foi na época em que eu trabalhava no Sesc, mas não aconteceu, porque eu tinha receio de chegar, porque eu tinha medo que a pessoa fosse me discriminar, ou eu tinha medo de não ser capaz de estar à altura daquela pessoa. Hoje eu me critico, eu vejo: “Puxa, que machismo da minha parte comigo mesma, não é?”. Hoje, que eu estudo o feminismo, que eu trabalho nessa área, eu vejo como estava errada. Mas, na época, a gente não sentia, não sabia como era isso. E quando eu conheci o Marcos foi importante, porque ele, mesmo sendo uma pessoa com deficiência, me aceitou exatamente como eu era e ele também se aceitava. Então, acho que isso foi importante, porque ele sempre foi bem resolvido. Ele sempre se virou, andando de muleta, sempre pegou ônibus, sempre morou sozinho, sempre foi muito independente e ele sempre gostou, olhou para mim, se apaixonou, ele fala que não foi só pelo meu corpo, foi pelo meu jeito de falar, foi pela minha alegria, foi por eu ser simpática e ele também fala pela minha inteligência, assim, que eu conversava, que eu contava as coisas e sempre, ele fala, pelo meu jeito carinhoso, assim, sabe, que eu sempre fui com ele. Então, acho que foi mais por esses aspectos, do que por uma questão física, não é? Mas claro que a atração física aconteceu, a gente começou, também, a ter uma vida sexual. Eu só fui ter uma vida sexual com 28 anos! Muito tarde, não é? Mas, para mim, foi um marco, assim, na minha independência emocional, sabe? Que eu consegui aceitar o meu corpo, mesmo. E aceitar quem eu sou, que eu tenho prazer e que eu posso ter prazer nesse corpo e que esse prazer é meu e não importa como ele acontece. Que só importa entre eu o Marcos, entre quatro paredes, e que a gente não tem que dar satisfação para ninguém, não é? E que isso é que é importante: a gente tem que ser feliz. Mas quando a gente saía à rua, todo mundo olhava: “Ai, que bonitinho! Ai, ele dá beijo na boca! Aí, que gracinha! Que casal 20! Que lindo!” Sempre de uma forma muito preconceituosa, sabe? Muito estigmatizante, muito, assim, exótica. Porque tem essa questão. As pessoas com deficiência ainda são vistas... “Puxa, você também transa? Ah, como que é a sua vida? Ah, como é que é seu corpo? Você trabalha? Nossa, que comida você come?” Já cheguei a ouvir esse tipo de coisa: “O que você come?” Eu falei: “Eu como comida. Não como ração de bicho”, sabe? Mas esse tipo de pergunta, realmente, geralmente acontece para as pessoas. E aí, eu gostava de sair, a gente sempre saiu muito, curtiu e namorou muitos anos. E agora, a gente está casado, assim, oficialmente, morando juntos, há cinco anos. A gente morou num apartamento dois anos e agora estamos há 3 meses nesse apartamento. E eu sou uma pessoa muito feliz, e hoje a minha vida é mais, assim, de acordo com as minhas possibilidades físicas. Eu aprendi a me respeitar, aos meus limites, a minha condição física, e aprendi, também, que as pessoas não precisam gostar de mim para eu ser feliz. e que as pessoas não precisam me aceitar. Mas eu não posso, em hipótese alguma, ser proibida de estar nos lugares. Então, assim... A questão do preconceito, você pode ter o seu preconceito dentro de quatro paredes, você pode socar o seu travesseiro e falar: “Eu odeio, eu odeio aquela pessoa. Aquela pessoa não tinha que existir, eu tenho vontade de matar aquela pessoa. Isso é um absurdo”. Mas saiu da porta da sua casa, você está convivendo em sociedade, então você tem a obrigação constitucional, legal, moral, de respeitar o outro ser humano, seja ele quem for, seja ele qual for a sua orientação sexual, a sua etnia, a sua cor da pele, a sua condição socioeconômica, a sua deficiência. Eu aprendi isso na marra, vivendo discriminação. Então, aí, eu comecei a falar sobre isso, fiz muitas palestras, a minha vida continuou profissionalmente, mas fazendo trabalhos esporádicos, de acordo com as minhas condições. Hoje eu estudo Jornalismo Literário, quero escrever livros, biografias e autobiografias de mulheres com deficiência. Estou estudando feminismo, na intersecção com a questão das mulheres com deficiência, escrevo para um site sobre feminismo, que eu gosto muito, que é a rede As Minas. E também para o Sem Barreiras, que é outro portal que eu escrevo como cronista. Eu gosto muito de crônica e gosto muito de escrever histórias. Estou escrevendo a minha biografia e quero ter um selo que vai se chamar Caleidoscópio, com a coleção Janelas, que vai falar sobre as mulheres com deficiência e contar suas histórias. E é isso que eu costumo falar nos eventos de que eu participo, sabe? Que a diversidade faz parte da vida e que as pessoas estão aí para serem respeitadas enquanto existências que são. São pessoas, são seres humanos que têm direitos e deveres, que não podem ser tratados de forma assistencialista, piegas, que não podem ser tratados com discriminação, mas que também não são super-heróis. Eu descobri que não sou uma super-heroína, que não sou exemplo de vida para ninguém, não sou exemplo de superação. Esse estigma de que a pessoa com deficiência é sempre um ser sobrenatural, um exemplo de vida, que é melhor do que o outro... Eu não sou melhor ou pior do que ninguém. Eu sou eu. Eu tenho defeitos e qualidades. Eu sou uma pessoa com muitos defeitos também. Eu posso ter passado por situações de discriminação e enfrentado barreiras, superado alguns preconceitos, eu realmente talvez tenha uma história interessante para contar nesse sentido de que, legal, eu fui corajosa, fui vitoriosa, mas eu também sou uma pessoa difícil de lidar, de gênio difícil, não é? Tenho erros, tenho defeitos, errei durante toda a minha vida também, cometi erros e sou uma pessoa, como qualquer outra, que está de mau humor um dia, que no outro dia está legal, não é? Que posso não gostar de uma coisa de que você gosta, posso não gostar de uma pessoa ou outra, tenho posicionamentos políticos, tenho ideologias, tenho formas de ver o mundo, sabe? Tem coisas em que eu acredito e coisas em que eu não acredito, sou de uma boa discussão, gosto de discutir, sabe? Então, não é porque eu tenho uma deficiência, que eu posso ser colocada dentro de uma caixa, de um cubo e aí, ser aquilo que as pessoas querem que eu seja. Não, eu sou um ser humano, como todas as outras pessoas. A minha condição de deficiência me fez ver a vida de uma outra maneira. Claro, me fez ver a vida de uma maneira muito mais... Como é que eu posso dizer?... Concreta. Mas, também, espiritual. Mas me fez ver a vida com mais delicadeza, com mais tranquilidade, me fez ver a vida também, assim, com mais calma, sabe, em pensar que é só uma passagem, a gente está aqui e que não é tão pesado assim e, ao mesmo tempo, a deficiência também é um aprendizado, porque se eu não tivesse tido uma deficiência, eu acho que não teria me aproximado dessas minorias, porque a gente só fala que é minoria e que, na verdade, é maioria, da diferença. Eu sei muito bem quando uma pessoa homossexual, gay, trans, lésbica, fala, da dor que está sentindo. Quando uma pessoa fala de racismo, eu sei o que é. Não estou vivendo, não tem aquele lugar de fala no sentido, mas eu sei o que é a discriminação pela qual essa pessoa passa. Porque o meu lugar de fala é enquanto uma mulher branca, heterossexual, de classe média, mas com a deficiência. Então, acho que é importante esse lugar de fala, essa experiência e essa vivência. Para mostrar para todas as pessoas que não têm deficiência e para mostrar para as pessoas que têm discriminação, que ainda são preconceituosas: “Puxa, para que a gente perder tempo com isso? Vamos pensar no lado bom, não é? Eu sou uma pessoa legal também de conviver e por que eu não posso estar naqueles espaços? Aquilo te incomoda? Então não olha, sabe? Não participa. Mas não precisa me proibir de estar nos espaços”. Eu acho que porque isso muitas vezes já aconteceu, sabe, das pessoas olharem e falarem: “Puxa, mas ela vai estar aqui? Ah, não, mas essa imagem com ela aqui fica feia”. Eu já escutei isso de pessoas, sabe? Eu gostaria de falar que hoje eu vivo um momento da minha vida em que eu busco mais tranquilidade, mais paz, mais aceitação da condição da deficiência, mas não como um peso, não como uma barreira, mas sim como condição natural do ser humano, e eu acho que é isso que importa. Eu acho que não precisar provar nada para ninguém e não precisar matar um leão por dia por existir, sabe? E os espaços, cada vez mais acessíveis, que a gente vê hoje; e as possibilidades das pessoas com deficiência usarem a tecnologia; pessoas surdas, hoje, com audiodescrição, conseguem ver as peças de teatro, filmes; pessoas surdas e cegas com audiodescrição; surdas, com a libra. Então, essa tecnologia, esses recursos que estão disponíveis, além de elevadores, rampas, espaços realmente acessíveis, em todos os lugares. Nos centros culturais, em teatros, em cinemas, em danceterias, em motéis, sabe? Todos os espaços, além de escola, trabalho, porque ter uma deficiência não coloca a pessoa numa situação nem de superioridade, nem de inferioridade. E ela tem que trabalhar, estudar, casar, ter família, ou não casar. As pessoas com deficiência são de mais variadas etnias e orientações sexuais. Também as pessoas com deficiência adquirem uma deficiência ou nascem com uma deficiência. Então, acho que é importante respeitar essas condições, como mais uma parte do ser humano. E pensar que, a qualquer momento, uma pessoa também, com uma idade avançada, pode precisar de uma ajuda técnica, pode ter um problema e vai usar uma cadeira de rodas, não é? Ou vai usar um outro equipamento, que vai auxiliar a pessoa a continuar. Uma pessoa que tem um acidente não vai deixar de trabalhar ou vai deixar de ter uma vida ativa porque ficou com uma deficiência. Claro que não. Então, a sociedade, hoje, sim, tem que estar mais aberta para essa visão da pessoa com deficiência como um direito. Afinal de contas, as pessoas com deficiência têm direito de estar na sociedade. Em falar nisso, eu gostaria de ler um trecho de um livro que fala, exatamente, isso: sobre o processo de exclusão:
“Exclusão não é um estado que uns possuem, outros não. Não há exclusão em contraposição à inclusão. Ambos fazem parte de um mesmo processo: o da inclusão, pela exclusão. Face moderna do processo de exploração e dominação. O excluído não está à margem da sociedade, ele participa dela. E mais: a repõe e a sustenta. Mas sofre muito, pois é incluído até pela humilhação e pela negação de uma idade, mesmo que partilhe de direitos sociais no plano legal. A inclusão pela humilhação se objetiva das mais variadas formas. Desde a inclusão pelo exótico, até a inclusão pela piedade, personagem coitadinho. E não tem uma única causa. O estigma de ser uma pessoa com deficiência se interpenetra com outras determinações sociais, como classe, etnia e a capacidade de autodiferenciação dos indivíduos, configurando variadas estratégias de objetificação da reificação das diferenças”.
Essa é uma citação da professora Bader Burihan Shawaia, do livro Paralisado Cerebral, da Suely Satow, que é uma pessoa com deficiência física, que me ensinou muito. Ela me ensinou que o mais importante é a gente não só se aceitar, mas deixar com que a nossa experiência de vida não seja uma maneira de se punir por ser diferente. Porque muitas vezes, as pessoas acham: “Ah, mas a pessoa com deficiência tem que ocupar aquele espaço porque a gente tem que dar essa oportunidade para ela, porque ela é diferente”. É uma visão caricaturada, muito, da religião: “Vamos ajudar os coitados”. E não é isso. A pessoa com deficiência tem o direito de escolha e autonomia. Ela pode escolher, de repente, ter uma vida mais reclusa. Ou ela pode escolher ter uma vida mais agitada, não é? E ter ou não uma deficiência não a impede de ser um ser humano com qualidades e defeitos, como eu já bem coloquei aqui. A Suely, por exemplo, é uma pessoa que gosta muito de falar sobre as questões da vida e que também gosta de ficar no canto dela. E gosta de escrever, de ler. E ela não tem que estar o tempo todo também falando de questões de deficiência. Eu aprendi isso, sabe? Que a gente não tem que ficar levantando uma bandeira toda hora, só por existir. Claro que é importante a militância social, é importante ocupar os espaços, mas que isso não se transforme numa forma de você não ter só prazeres nas pequenas coisas da vida. Eu acho que esse prazer de estar na praia, de estar no pôr do sol, de comer uma comida gostosa, de estar com quem você ama, é uma vivência, é uma experiência que todos têm que ter, independente da sua condição. E eu acho que é esse o espaço que eu estou buscando hoje, sabe? Que a deficiência não seja um fardo, mas ao mesmo tempo sim, seja uma forma de reflexão sobre a finitude e a imperfeição, mesmo, do ser humano. Porque todos os seres humanos são imperfeitos no sentido de que ninguém é um robô, ninguém é uma máquina, ninguém está pronto, todos nós aprendemos, todos os dias. E também todos nós vamos morrer, não é? É a única certeza que nós temos. Então, eu acho que para quê perder tempo discriminando e maltratando outros seres humanos por uma condição diferenciada, se tudo é tão rápido e tão efêmero? Então, é isso. Eu acho que eu queria deixar essa missão aqui, essa mensagem para as pessoas que estão me vendo: o mais importante, mesmo, é a gente ser feliz, do jeito que a gente é. E também, se não quiser ser feliz, tudo bem. Eu acho que o importante é ter essa liberdade. A liberdade, como uma amiga me diz, é uma coisa que a gente agarra, que a gente conquista e ninguém pode tirar da gente, sabe? A liberdade de estar no mundo como a gente é. E para mim, foi importante participar, eu acho que é um momento de reflexão, em que eu revi toda a minha vida e que eu já queria, há muito tempo, deixar essa mensagem, esse depoimento para as pessoas que vão assistir. Porque os anos vão passar, eu vou embora daqui da Terra e eu espero que as próximas gerações vejam, conheçam e saibam da minha história. Que é a história de uma vida como de qualquer outra pessoa, porque cada história é importante e que todas as histórias são importantes e que todas as vidas importam, sabe? Eu acho que isso é o mais importante, de colocar isso: que nenhuma vida é melhor ou pior do que a outra; especial ou que não vale nada. Todas as vidas têm valor. Desde as pequenas, no sentido de você achar que aquela pessoa não tem aquela capacidade, porque você acha que ela não tem, mas quando você dá oportunidade, ela mostra que tem capacidade, até aquelas pessoas que você fala: “Nossa, mas esse daí já está bem na vida, é super, é um gênio”. Mas você não sabe as dificuldades por que aquela pessoa passou. Então, acho que explorar essas capacidades, essa é a dádiva. Como é que eu posso dizer, assim? Esse é o legal do ser humano: a inteligência de poder explorar as várias capacidades. E a gente viver nesse mundo, do jeito que ele é. Com imperfeições, com dificuldades, mas também com muita coisa boa, com muita alegria, com muito pôr do sol, com muito mar, com muita Natureza, sabe? Com muita vontade de viver. Eu sempre tive muita vontade de viver. É isso.
P/1 – Obrigado, Leandra! Foi ótimo!
R – Obrigada!
P/1 – Parabéns!
R – Gente, eu corri, mas acho que falei tudo, não é?
P1 – Não. Tudo a gente nunca fala, na verdade.
R – Não, mas eu falei a maioria delas.
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