P/1 – Pedro Paulo, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Perfeitamente, meu nome é Pedro Paulo de Salles Oliveira, nascido em 29 de junho de 1926, em Imbituba, Santa Catarina, filho de pai paulista e mãe gaúcha, portanto sou equilibrado.
P/1 – Como é que seus pais se conheceram se um era de Santa Catarina e...
R – Não, meu pai era engenheiro de uma companhia que fazia os quartéis no Brasil e saiu de São Paulo para ir a Santa Maria, na Boca do Monte, que ainda existe lá, hoje uma cidade universitária importante, em Santa Maria ele construiu os quartéis. Minha mãe fazia parte lá da sociedade política e tal, meus avós eram muito políticos, revolucionários, ele conheceu minha mãe e casaram-se lá e por circunstâncias de revoluções, de 24 e de 1930 ou antes, meus avós tiveram que fugir do Rio Grande do Sul porque eram revolucionários, idealistas, aquela história que continua até hoje e minha mãe estava grávida, então nós fugimos, eles fugiram comigo para Santa Catarina, porque então não era República Federativa do Brasil, era Estados Unidos do Brasil, então os estados eram autônomos e independentes quanto ao judiciário e quanto a polícia, então eles fugiram para Santa Catarina, minha mãe grávida com dezoito anos e eu fui então nascido em Imbituba, primeiro lugar que eles encontraram. Daí uma foto que vocês vão ver que lá estava o meu bisavô, que era também fugido, meus avós, meus bisavós e meus pais, é uma foto muito rara hoje, né, e ali em Imbituba então eles fizeram a sua vida, ficaram sem dinheiro, sem nada.
P/1 – Mas Imbituba eles escolheram aleatoriamente, não tinha ninguém lá.
R – Não, eles escolheram porque era uma das primeiras cidades que aparecia depois de Torres, que é a última cidade do litoral do Rio Grande do Sul, então chegou ali era Laguna e Imbituba, Imbituba eles encontraram um homem chamado Henrique Lage. Esse...
Continuar leituraP/1 – Pedro Paulo, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Perfeitamente, meu nome é Pedro Paulo de Salles Oliveira, nascido em 29 de junho de 1926, em Imbituba, Santa Catarina, filho de pai paulista e mãe gaúcha, portanto sou equilibrado.
P/1 – Como é que seus pais se conheceram se um era de Santa Catarina e...
R – Não, meu pai era engenheiro de uma companhia que fazia os quartéis no Brasil e saiu de São Paulo para ir a Santa Maria, na Boca do Monte, que ainda existe lá, hoje uma cidade universitária importante, em Santa Maria ele construiu os quartéis. Minha mãe fazia parte lá da sociedade política e tal, meus avós eram muito políticos, revolucionários, ele conheceu minha mãe e casaram-se lá e por circunstâncias de revoluções, de 24 e de 1930 ou antes, meus avós tiveram que fugir do Rio Grande do Sul porque eram revolucionários, idealistas, aquela história que continua até hoje e minha mãe estava grávida, então nós fugimos, eles fugiram comigo para Santa Catarina, porque então não era República Federativa do Brasil, era Estados Unidos do Brasil, então os estados eram autônomos e independentes quanto ao judiciário e quanto a polícia, então eles fugiram para Santa Catarina, minha mãe grávida com dezoito anos e eu fui então nascido em Imbituba, primeiro lugar que eles encontraram. Daí uma foto que vocês vão ver que lá estava o meu bisavô, que era também fugido, meus avós, meus bisavós e meus pais, é uma foto muito rara hoje, né, e ali em Imbituba então eles fizeram a sua vida, ficaram sem dinheiro, sem nada.
P/1 – Mas Imbituba eles escolheram aleatoriamente, não tinha ninguém lá.
R – Não, eles escolheram porque era uma das primeiras cidades que aparecia depois de Torres, que é a última cidade do litoral do Rio Grande do Sul, então chegou ali era Laguna e Imbituba, Imbituba eles encontraram um homem chamado Henrique Lage. Esse Henrique Lage foi um grande, era do Rio de Janeiro, radicado em Imbituba, que ele tinha companhia de, naquela época, companhia de navegação, mineração, cerâmica e fez o porto de Imbituba, onde ele espalhava pelo Brasil todos os produtos da região lá, especialmente a área carbonífera, que era uma área que estava o carvão, que fazia a força dos navios, né, navio a vapor, só que queimava carvão. Então lá encontraram todo o pessoal do Rio de Janeiro, que era uma sociedade lá e lá ficaram durante alguns anos até acomodar a vida, né, aí mudaram-se para Florianópolis, ficaram quarenta anos lá, só que meu pai voltou para São Paulo.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho atrás.
R – Fala.
P/1 – Seus avós, o que eles faziam, por parte de pai e parte de mãe?
R – Parte de mãe, de pai não conheci porque meu pai, quando tinha sete anos perdeu o pai e quando tinha nove anos perdeu a mãe, então era órfão o meu pai. E os pais da minha mãe, os avós da minha mãe, o avô da minha mãe que aparece nessa foto, ele foi o chefe da Revolução de 1930, veio com as tropas quando o Getúlio vinha de trem, que havia um trem que chegava no Rio de Janeiro, então Getúlio vinha de trem e ele vinha avançando com as tropas pelo litoral a pé e montado na sua mula, né, que ele tinha uma mula.
P/1 – Qual que é o nome dele?
R – É Felipe Neve Portinho.
P/1 – Ele era o chefe das tropas?
R – Ele era o chefe das tropas, ele e um outro que ficou político depois famoso, que era o Oswaldo Aranha e depois o outro que ficou famoso que era o Flores da Cunha, gente já do passado, né, esse Oswaldo Aranha foi quem abriu a Assembleia da ONU, o Brasil foi convidado.
P/1 – O que ele contava pro senhor da Revolução de 1930?
R – A Revolução de 1930 não, que ele participou efetivamente, antes disso, da de 1893 e 1924, foi chamado a Revolta dos Quartéis, essa gente tinha outro ideário, sabe, não era gente… Ontem vi uma declaração do Niemeyer muito interessante, ele foi visitar o sambódromo agora pronto, no Rio, e com 104 anos largou o seguinte: “Se eu soubesse que essa gente que está em Brasília ia para lá eu não tinha construído um plano piloto em forma de avião, eu construiria em forma de camburão”. Eu acho fantástico, porque toda a minha gente e depois também o lado paulista foi imolado em exílios e tudo por puros ideais, não tinha nenhuma outra coisa que senão o ideal. Então a revolução sangrenta de 1893 chegava a degola porque, por exemplo, foi uma revolução de muito sangue, você prendia só que não tinha comida para dar pros...
P/1 – Essa de 1893, qual foi o nome dessa revolução?
R – Ah, revolução depois da Farroupilha, eu não lembro, não me lembro a revolução, não lembro, agora, ela tinha uma parte sangrenta, né, porque era coisa de morte mesmo, não era brincadeira.
P/1 – O quê que ele contava?
R – Ele, eu não cheguei a conhecer muito porque ele faleceu em 1940, eu tinha dezesseis anos, morava em São Paulo e ele estava em Florianópolis. Mas o que se conta, o que meu avô, o genro dele, participou, me contou, foi o seguinte: que era uma revolução, uma parte era contra uma ditadura que tinha se instalado no Rio Grande do Sul, então por quê? Para fazer o voto livre já naquela época, então foi massacrado e aí meu avô conta que era jornalista, poeta, ele conta que não tinha comida para dar pros prisioneiros, porque só tinha comida para dar pros revolucionários, então o que eles faziam? Degolavam e ficavam com a cabeça, como fizeram com o Lampião no nordeste, por quê? Porque não tinha ainda a impressão digital, então para dizer que matava o cara eles levavam a cabeça, é um negócio impressionante, meu avô, tem um escrito dele ai que eu não encontro, que era a batalha, tem um nome lá, a Batalha da Degola, que ele viu degolar, ficou impressionado a vida inteira. Então esses foram os revolucionários, meus maiores gaúchos, que depois trouxeram Vargas para o Rio de Janeiro e minha vó veio junto com Getúlio Vargas no trem, com a mulher do Getúlio e a primeira fotografia do Getúlio, já vitoriosa a revolução, na Rua do Catete, no Flamengo, a minha vó está do lado dele, é uma fotografia famosa, tem aí, a “Istoé” tem, a “Veja” tem e tal.
P/1 – Essa da revolução de 1930?
R – Trinta, já é uma, eu já tinha quatro anos e nessa época a gente mudou para Florianópolis, você sabe, você conhece Florianópolis, é uma parte na ilha e outra parte no continente, que chama Estreito e nós morávamos no Estreito. Aí a Revolução de 1930 vinha vindo com os meus avós, meus bisavós, meu avô e bisavô, e ia chegar em… Aí o governo federal, como se tratava da primeira capital a ser tomada, mandou quatro navios de guerra para ficar entre o continente e a ilha e um cruzador que ficou fora porque não tinha suficiente fundo para ficar, então o que aconteceu? Meu pai ficou tomando conta da comunidade do Estreito, do lado de cá e os Destroyers na frente da gente lá. Eu não me lembro, que eu tinha quatro anos. E aí meu avô chegou de madrugada com um carrinho Fordeco, um furgãozinho da época, um Fordeco 1929, e de madrugada, isso meu pai conta, e de madrugada aconteceu o seguinte: ele recolheu todo o pessoal, com meu pai e tudo, só que os homens tiveram que se vestir de mulher porque com os binóculos e os holofotes dos...
P/1 – Incrível!
R – É, então eu fui, quando eu entrei, meu avô, e isso eu guardo, foi a primeira coisa da minha vida, ele era muito alto, falou: “Fica no meio das minhas pernas, Pepa”, Pedro Paulo, Pepa: “porque não vai acontecer nada”, ele se vestiu de mulher, ele e meu pai, botaram a mulherada no furgão e desceram, porque ali, São José, é bem na boca da ponte ali, né, e de repente, isso eu me lembro, uma luz muito forte, era os holofotes dos Destroyers para ver se era tropa ou não era para atirar ou não. Por sorte não atiraram, eu teria morrido ali. Aí nós fomos para o sul, lógico, porque do sul vinha a nossa gente. E ficamos lá numa igreja, no porão de uma igreja durante quatro dias, cheio de pulgas, esse queixo. Passada a revolução voltamos para Florianópolis, esse é a minha primeira pré morte que não houve, tem a segunda também.
P/1 – E aí lá em Florianópolis?
R – Ai, em Florianópolis eu fiquei morando na casa da minha vó.
P/1 – Quanto tempo?
R – Ah, pouco, né, porque em 1932 nós já viemos para São Paulo, porque meu, o irmão do meu pai era político aqui, depois chegou a governador, mas governador sério, né, não é como hoje.
P/1 – Quem que era?
R – Armando Salles de Oliveira, o nome daquela praça do empurra-empurra lá no Ibirapuera, aliás aquela estátua tem uma história também, né, ela levou trinta anos para ser feita.
P/1 – Com quantos anos você chegou aqui em São Paulo?
R – Quatro, cinco anos.
P/1 – Aí seus pais vieram porque tinha esse irmão já aqui.
R – É, e depois era a família dele que estava aqui, né, e não se envolvia em política, nem nada, ele achou melhor vir para cá, voltou pro seio da família.
P/1 – Em que lugar vocês vieram morar aqui?
R – Nós moramos primeiro na Rua Barão de Limeira, depois na Rua Vitorino Carmilo, que é por ali também, depois na Rua Cesário Motta, depois ficamos 32 anos perto do Clube Pinheiros, que eu falo em seguida, e depois eu mudei, fui pro Rio e tal e fui, mudou tudo. Mas na realidade tem uma crônica que eu fiz, tô, infelizmente tô escrevendo um livro, cada um escreve o que quer, né, (risos) e tem uma crônica que chama: “Um quarto para três”, quem vê o meu nome: “Ah, porque é quatrocentão, não sei o que”, acho que até pode ser, mas pobre, viu, pobre. E aí é primeira piada, eu sou casado de novo, que fiquei viúvo e tal, e a minha mulher fala o seguinte: “Você faça o favor de quando eu for comprar roupa com você, você fique fora porque você tem cara de rico e os caras aumentam o preço”. E é verdade, mas só cara, porque nós viemos para São Paulo meu pai não tinha emprego, tinha guerra, revolução, acabou com tudo, né, nós fomos morar num quarto em casa de uma tia minha, então a crônica chama...
P/1 – Essa da Barão de Limeira?
R – É, então a crônica chama: “Um quarto para três”. Eram oito pessoas num banheiro só, era dureza, quatrocentão pobre, depois fomos para um outro quarto no Rua Vitorino Carmilo, depois tínhamos morado num quarto de uma outra tia em São Vicente, em 1931.
P/1 – Você não tinha irmão, filho único?
R – Não, sou filho único, não mimado porque trabalho desde os quinze, dezesseis e então ficou esse negócio de quatrocentão aí por causa do Salles de Oliveira, né, que realmente é uma...
P/1 – Mas ele já era governador quando vocês chegaram?
R – Não, ele foi governador de 1934 a 1937, ai...
P/1 – Vocês chegaram em que ano aqui?
R – Trinta e dois, na revolução aqui, meu pai...
P/1 – Quando você chegou aqui ele não era ainda, depois de dois anos que ele ficou?
R – Não, ele era, ele foi o coordenador da logística da revolução contra o Getúlio, é curioso, né, de um lado meus avós pró e do outro lado minha gente contra, né, era muito complicado, devia ser, para o meu pai, né, e para minha mãe também. Foi assim, esse meu tio, que para nós é um ícone, um sujeito sério, correto, depois que o Getúlio deu o golpe, né, em 1931, porque o Getúlio vinha para fazer o voto direto secreto e não fez, deu o golpe. Porque o exército, que era, sem nenhum regionalismo, era a maioria de nordestinos, todos os generais, o Hélio Monteiro etc., parará, parará, parará, eram contra São Paulo, contra a ideia de São Paulo porque São Paulo era rico, que vai fazer? Então rico no Brasil é… O rico nos Estados Unidos ninguém liga, aqui o cara joga pedra. Então aconteceu isso, eles influenciaram para o Getúlio não fazer o voto livre, ai ele disse: “Agora então tem que nomear interventores nos estados e o problema maior é São Paulo”, que era sempre dividido. Aí ele fez uma pesquisa, verificou e tal e indicaram esse meu tio e ele foi interventor, porque era pró Getúlio também e tal e depois era uma eleição indireta, em 1935, eleição indireta pela assembleia e ele foi eleito governador, já era outra lei, né? E ele fez, ele foi tão incrível que ele criou a Universidade de São Paulo, a primeira coisa que ele fez, tem lá a estátua dele na entrada da USP, a coisa mais importante que ele fez no meu ponto de vista, o país não tinha nenhuma universidade, ele criou em 1934, aí criou a VASP, que hoje é falida e fez sessenta ginásios no interior e vinte aeroportos em três anos.
P/1 – Seu pai trabalhou no governo?
R – Não, meu pai não, meu pai não queria nada com política, não, ele foi funcionário público, assim fez, assim morreu, embora tendo sido instruído, ele era formado na Escola Eletrotécnica de Zurique, na Suíça, imagine você! E veio aqui para ser funcionário público federal e assim morreu.
P/1 – Ele era funcionário da onde?
R – Era funcionário federal da, bom, mudou muito o ministério, era Ministério do Trabalho, depois Indústria e Comércio, era Inspetoria Geral de Seguros e Capitalização, chamava o negócio. Agora, esse meu tio, esse meu tio era fora de série, fora de série, fez a ponte aérea, importou aviões da Alemanha, importou aviões JU52, que era o Juca, e fez a primeira ponte aérea do Brasil, Rio – São Paulo, ele importou avião, ele fez sessenta ginásios, ele fez vinte aeroportos, deixou pronto o projeto da Via Anchieta, o projeto do Hospital das Clínicas, o cara em quatro anos fez isso, ai apareceu muito. Poxa, é bom demais o cara, né? Aí influenciaram de novo, ele foi ao Doutor Getúlio e disse: “Olha, eu sou o governador e tal, mas eu vou ser candidato a Presidente da República” e o Getúlio falou: “Mas o senhor não pode, o senhor tá fazendo um excelente governo, me ajudando”, “Não, mas eu tenho compromisso com os meus amigos aqui, eu estou renunciando ao cargo” e renunciou. Um mês depois o Getúlio deu o golpe de 10 de novembro de 1937, golpe de estado e fechou tudo, fechou congresso, fechou, fechou tudo e aí apareceu de madrugada na minha casa, na Rua Cesário Motta um cara, de madrugada, a gente não sabia o que era, bateu na porta lá, que não tinha campainha, aquelas casas antigas, e meu pai foi lá… Não, foi de dia e eu fui pro portão, tinha um jardinzinho, fui pro portão, falei: “Pois não”, eu já tinha uns oito anos, por ai, nove, e ele disse: “Eu sou, aqui é a casa do senhor Alberto Salles?”, eu disse: “É”, “O que você é dele?”, “Eu sou filho”, “Quer chamar o seu pai?”, “Tudo bem”, chamei meu pai, aí chegou o cara e falou: “Olha, houve um golpe de estado e o senhor está preso”, meu pai nem era político, ficou preso, agora...
P/1 – O seu pai?
R – Meu pai, que não tinha nada a ver.
P/1 – Por causa do irmão.
R – É, lógico, tinha que, aquele troço, se eu tivesse do outro lado também faria isso, agora, tem uma coisa curiosa, a polícia daquela época...
P/1 – E você viu o seu pai sendo preso?
R – É, não, aí que tá. Preso em casa, domiciliar, que foi bom, né, porque meu pai preso seria ruim. Mas a curiosidade é o seguinte: como meu tio tinha reformado a polícia, melhorado os rendimentos, criado a guarda civil municipal, olha, esse tio era fora de série, os caras eram agradecidos por ele, mas tinham que obedecer, então eles faziam três turnos lá em casa, eles sentavam numa cadeira num terracinho e lá ficavam. Meu pai não podia sair, mas acontecia o seguinte: o que vinha cedo passava na padaria, comprava pão e leite e a gente tomava o café com ele, para você ver a ideia do cara, era prender, não era aborrecer, não era sacanear, então isso é um fato diferente, né? Ai o Getúlio deu esse golpe e prendeu o meu tio e ele foi para uma mina de ouro que tinha em Minas Gerais chamada Ouro Velho, disseram: “Bota ele lá nas casas das minas, não vai botar embaixo da terra, não, bota lá porque ninguém chega lá, é longe”. E ficou preso lá uns cinco meses, depois botaram num navio e mandaram para Europa, ele ficou exilado dez anos, depois de dez anos ele, aí foi a guerra na Europa, ele foi pros Estados Unidos, mas aí não tinha dinheiro, veio para a Argentina e da Argentina ele veio para São Paulo, aí adquiriu um câncer, naquele tempo incurável e o Getúlio falou: “Não, deixa ele voltar para morrer na terra dele”. Ele veio e aterrissou com o avião da Argentina no aeroporto de Congonhas, que ele tinha feito, sabe quantas pessoas tinham? Vinte mil, tenho fotografia, infelizmente não trouxe, vinte mil pessoas naquela época, 1945 e ele veio a morrer, eu estive com ele na, meu pai me levou, alto, bonito, morreu com cinquenta e oito anos, tendo vivido uma vida intensa de produção e tendo sido órfão aos doze anos, aos catorze anos, junto com mais cinco irmãos. Fantástico, né, isso é fantástico. Então é isso, essa é a minha gente daqui, a minha gente do Rio Grande do Sul é revolucionária, sempre foi e assim por diante, tem uma curiosidade com o Rio Grande do Sul ainda.
P/1 – Qual?
R – O Rio Grande do Sul era o seguinte: ou vai criar gado ou vai ser militar, ai deu Costa e Silva, Médici, os ditadores ai e outros que tais. E a minha vó tinha um filho mais, um irmão mais novo que era meio rebelde, ela falou: “Tu vai pro exército”, coisa de gaúcho: “Tu vai pro exército”, Quinca era o apelido dele. E esse Quinca foi pro exército, cavalaria, ele adorava cavalo, o apelido dele era Cachorrão, anos mais tarde eu fui encontrar o Cachorrão aqui em São Paulo, sabe o que que ele era? Ele tinha sido instrutor do João Batista Figueiredo, mas não é curioso? É, são coisas que, eu digo: “Mas Quinca, o que você está fazendo aqui?”, “Não, eu fui instrutor do João, ele quer que eu fique aqui na hípica e tal” e ficou anos aí na hípica, são coisas, e nunca pediu nada. Aí vem o orgulho paulista e gaúcho, nunca ninguém nosso pediu alguma coisa para ninguém, nem ditador, nem deputado, ninguém pediu nada nunca. Eu próprio, o Costa e Silva ditador, sabe, eu fico pensando hoje, todo mundo fica: “Ah, pararará, fortuna”, tudo bem, agora, eu sou funcionário de uma empresa, aí muda o presidente da empresa, eu vou sair da empresa? Eu vivo daquilo, pô, então ninguém pensou ainda, o ditador é o presidente da empresa que é posto lá, o outro é eleito, é tudo a mesma coisa, agora, se eles foram mal com gente, que mataram gente, outro problema, que eu não to de acordo. Agora, aí o Costa e Silva, foi uma das inaugurações que eu fiz, foi muita inauguração, eventos das Centrais Elétricas de São Paulo, onde eu trabalhei quinze anos, das Centrais Elétricas elas inauguraram dez usinas hidroelétricas em oito anos, um recorde. Então uma delas, era, o presidente da empresa Brasil era o Costa e Silva, o Costa e Silva chegou lá em Jupiá, que era o nome da usina lá no Rio Paraná, ele foi lá, aí eu tinha que receber, eu era o chefe do negócio lá, da área de relações públicas e ele chegou, eu falei: “Presidente, o senhor me permite falar uma coisa?”, “Pois não, pode falar, meu filho”, eu digo: “Eu sou o filho do Doutor Salles, aquele que trabalhou em Santa Maria da Boca do Monte quando o senhor era tenente lá”, sabe o que tinha acontecido? Quando o Costa e Silva, muito antes de ser ditador, ele veio para São Paulo chefiar a Quarta Região Militar e o endereço domiciliar era perto da minha casa, um dia toca o telefone, isso antes, um dia toca o telefone: “É a casa do Doutor Salles?”, eu falei: “É, quem quer falar com ele?”, “É o Costinha”, eu sei quem é Costinha, pô? Era ele e Dona Iolanda que iam lá em casa toda quarta-feira, muito antes da ditadura, né, jogar buraquinho a leite de pato lá em casa durante dois anos, passa o tempo, eu vou encontrá-lo em Jupiá, lá no meio do mato, falei: “Presidente, posso falar? Eu sou filho do Doutor Salles”, “Ah, meu guri, como é que vai? O que é que tu precisa”, “Presidente, eu não to aqui para precisar nada nem vou pedir nada, o que eu queria dar um abraço, recomendações e dizer que eu to muito bem aqui com o professor Lucas Nogueira Garcez, que é o meu chefe, tá aqui ó”, não é gozado isso?
P/1 – Vem cá, oi, termina.
R – Não, aí a outra sobre isso também, sobre o Rio Grande ainda, eu estou em Itaipu Binacional, que foi uma das coisas que eu fiz que me engrandeceu bem pessoalmente e lá vai o Figueiredo, que ainda não era presidente, era Chefe da Casa Civil, vou lá, quem é que recebe? Era o presidente da empresa, era o diretor da empresa, fui eu né, então não é fácil, tô sentado, de repente : “O Figueiredo ta ai”, “Ta bom, vou lá eu”.
P/1 – Você era diretor?
R – Eu era assessor do diretor geral de Itaipu na área de comunicações, então cerimonial essas coisas também eu tinha que fazer, aí faz: “Pois não, o senhor vai ser presidente, quero que o senhor seja”, aquela conversa, ai ele disse: “O senhor me conhece?”, eu digo: “Conheço sim, eu sou sobrinho-neto do Cachorrão”, ele falou: “Não é possível, vem me dar um abraço”, assim, no meio de todo mundo, eu fiquei tão, fiquei meio, ta puxando o saco, não é, aí ele disse: “O que é que tu precisa?”, eu digo: “Eu não preciso de nada, to muito bem”, repeti a história, então a nossa gente me ensinou a não pedir, deixar acontecer, se tiver mérito vai, se não tiver não vai.
P/1 – Vamos voltar agora para infância do senhor.
R – A minha infância, mulher, você acha que eu lembro de tudo? (risos)
P/1 – Vou tentar ajudar.
R – Vai, querida.
P/1 – Quando o senhor, desculpa.
R – Quando você.
P/1 – Quando você chegou aqui em São Paulo, você tem alguma lembrança do teu momento de chegada, qual foi a sua impressão?
R – Não, não tenho, não, eu presumo, naquele tempo as ligações com Florianópolis, que era meio fora, que era no litoral, com Rio Grande do Sul, São Paulo, tinha um trem, esse trem ia até o Chuí lá, que é a última cidade do Rio Grande do Sul, limite com o Paraguai, com o Uruguai, então esse trem foi o trem que trouxe o Getúlio e tal, integrava várias estradas de ferro. Mas pelo litoral não tinha nada, nem estrada direito. A estrada, a única que vencia a serra, eu tô contando isso para saber a dificuldade, ter o saber, a estrada única que vencia a serra de Joinville, em Santa Catarina, a Curitiba, que é o lugar para vir, era a Estrada Dona Francisca, inaugurada por Dom Pedro II para carruagem, ainda em 1932 a mesma estrada, aí você vê que era precário, então eu presumo que eu vim de navio, né? Tem outra história de navio que é a segunda morte, a segunda pré morte e viemos de navio, chegamos em Santos.
P/1 – Como foi essa viagem?
R – Ah, não lembro, essa não lembro, eu tinha cinco anos, não lembro, devo ter dormido, vomitado, aquelas coisas, normal. Em Santos eu tinha uma tia, tinha uma tia que era casada com um médico, um médico alagoano e ela era paulista e moravam em São Vicente. Até tem uma crônica que eu trouxe aí sobre São Vicente, 1931, voltamos a ser um quarto para três, moramos na casa dessa tia que tinha três filhos, eram cinco, mais três, oito com um banheiro, quatrocentão pobre, repito, então daí depois viemos para São Paulo, aí eu começo a me lembrar, sabe?
P/1 – Ai de São Paulo você lembra já essa primeira lembrança que você tem foi na Barão de Limeira?
R – Foi, Barão de Limeira fugaz, depois já me lembro bem da Rua Vitorino Carmilo.
P/1 – Como é que era essa região na época?
R – Era a Barra Funda.
P/1 – É, como é que era a Barra Funda na época?
R – A Barra Funda, para você ter ideia, hoje o Tietê, o Tietê é canalizado, a gente xinga por causa do mau cheiro, por que isso, porque aquilo, mas é canalizado. Naquele tempo não era canalizado, ele tinha muitas voltas, sabe? Na várzea do Tietê, que é a Barra Funda, daí o nome Barra Funda, e quando dava enchente no Tietê a água chegava na Barra Funda de cima, que era na Vitorino Carmilo, eu tenho uma fotografia com a água no degrau da nossa casa, enchia tudo. Então essa é uma característica da época da Barra funda. A outra característica era muito curiosa, quando o café perdeu o mercado internacional, caiu o preço, que a Colômbia começou a produzir, a África começou a produzir e os europeus e os americanos começaram a comprar mais barato. E o nosso café, que era a grande produção agrícola do Brasil, começou a ficar sem ter para quem vender e o consumo interno não era bom, então criaram o Instituto Brasileiro do Café, na época do Vargas e o que aconteceu com essa gente? Essa gente chegou à conclusão que só queimando café para não perder o preço, então nos armazéns da Barra Funda, na estrada de ferro onde chegava o café, toda noite era queimado café e agora vai a curiosidade, o cheiro, as chamas eram tão altas e a fumaça era tanta que chegavam na Barra Funda, eu me lembro como se fosse hoje o cheiro acre do café queimado e isso me produzia asma alérgica, era uma coisa fantástica isso, é uma história, isso é história.
P/1 – Incrível.
R – (tosse) Desculpe aí a tossinha, mas o que que vou fazer, depois vocês editam esse troço aí.
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – Eu entrei na escola, eu fui alfabetizado por uma prima minha e curiosamente dizia: “Ah, o menino é muito inteligente”, fui alfabetizado em três meses: “Foi alfabetizado em três meses” (risos) e daí? Fazia parte. E aí fui ao primário, entrei no Mackenzie, minha mãe, eu morava pertinho, eram cinco quadras e ela tinha sido educada num colégio centenário em Santa Maria que era também presbiteriano, era um colégio que ela teve uma ótima educação, ela disse: “Eu vou por o meu filho no Mackenzie”. Era duro porque era colégio pago e meu pai não tinha dinheiro, então eles reduziram tudo por minha causa, eu fiquei no Mackenzie primário e ginásio, me formei em mil novecentos e sei lá, 39, 40, por ai.
P/1 – Você ia a pé para escola?
R – Ia a pé.
P/1 – Como é que era o Mackenzie, os amigos, professores?
R – O Mackenzie era fantástico, porque você tinha lá uma aura, uma sensação de liberdade, coisa que os colégios nossos não tinham, era aquele imenso território do Mackenzie e os professores americanos tinham casa dentro do Mackenzie, até hoje tem lá as casas deles, então para nós sairmos da aula um pouquinho, ter o intervalo e ir para aqueles gramados era uma coisa inusitada para São Paulo, para o Brasil, porque é o espírito universitário americano trazido pro Brasil. E era tudo americano, tanto que nós tivemos inglês desde o quarto ano primário e tivemos francês desde o quarto ano primário, era uma coisa louca. O Mackenzie foi a base, a base da minha vida foi o Mackenzie e a minha filha, uma delas, se formou lá em Administração de Empresas muitos anos depois. Agora, o Mackenzie era fantástico, eu, eram dois períodos, você ia às oito horas, acabava meio-dia, voltava às duas, acabava às quatro, tomava o seu tempo e como bom presbiteriano tinha uma coisa interessante, o presbiteriano tem aquelas regras muito rígidas, né, a igreja dureza e eles tem a ideia que José, pai de Jesus, era carpinteiro, então eles davam aula de carpintaria para nós como base religiosa, era muito interessante, tem uma foto ai, não sei se trouxe, uma foto de eu serrando lá, para dar ideia da humildade cristã, fantástico, eu com oito, nove anos. É um negócio louco, é um mundo, né, eu adorava aquilo lá, adorava, o Mackenzie me deu tudo, tanto que eu fiz um pré faculdade, entrei direto, tal a base que o Mackenzie me deu.
P/1 – Você tem lembrança de alguma professora?
R – Tenho muitas, tem a professora, professor de… olha, tem professoras, principalmente as mulheres, né, era dona Irene Schlobach, ela dava Português, com esse nome alemão e os professores de Português do Mackenzie me deram a fantástica, desculpe a falta de modéstia, a incrível cultura de escrita e verbal que eu tenho, foi lá que eu aprendi a falar direito, a escrever direito, foi com excelentes professores de Português, tinha excelentes professores de Latim, ótimos professores de Física, que o ginásio era, não era tão distinto como hoje em séries, né, eram cinco séries, foi uma coisa maluca. Eu me lembro bem dos professores de Português e a curiosidade é a seguinte: eu tinha um professor de Português chamado Geraldo de Loa Cintra, era mocinho, dava excelentes aulas de Português, passado o tempo eu fui para faculdade, de repente quem sentava do meu lado? Geraldo de Loa Cintra, meu professor de Português no Mackenzie. Fantástico, né? Essas coisas são, acontecem, né, depois você corta isso aqui, porque eu fico suando. Ó, era assim, outros professores, de Latim era o Clemente Esteve Nonni, era um italianão, nem falava bem português.
P/1 – Qual o nome dele?
R – Clemente Estevanonni, um chato, grosso para caramba, mas ensinava Latim, hoje para mim é base tudo, sabe, foi base do português, foi muito bom, professores de Matemática ótimos. E tinha a Miss Daisy, era a professora de Inglês, me ensinou Inglês muito bem, professor de Francês fantástico, fantástico, eu não lembro o nome dele e era Escola Americana chamava, não sei se, descendo a Rua Itambé, vindo do cemitério ali, o primeiro, primeira construção do Mackenzie não é aquelas de tijolinho que a gente vê lá, é a Escola Americana, é a primeira construção, era fantástico, ali nós aprendemos tanto, tanto, tanto e primário, né? Você vê que o nível de educação era o que a minha mãe achava mesmo, estava muito adiante, me lembro bem da Rua Itambé, eu brincava com os moleques de rua.
P/1 – Quais eram as brincadeiras de infância?
R – De rua?
P/1 – É, de rua.
R – Eu era com os moleques ali… Uma curiosidade, naquele tempo não existia favela porque não tinha tanta gente chegando aqui, não existia, então eram casas altas com porão e as pessoas menos aquinhoados com dinheiro, mais, menos ricos ou pobres, eles moravam em porão. E eu tinha um vizinho que era sapateiro, era um espanhol que tinha vindo da Espanha, casado com uma negra simpaticíssima, três filhos, os três filhos chamavam Muriel, Dolores e Henrique, nomes espanhóis. Os três moravam num porão, não podiam ficar de pé direito e eu adorava ir lá, quando a minha mãe chamava para almoçar: “Vem almoçar, chega de bola”, aquelas coisas de mãe. Eu já tinha comido porque ela, a Dona, não me lembro o nome dela, ela fazia fantástico feijão na lata de querosene que era o fogão, sabe como era? Era uma lata de querosene, que era uma coisa do petróleo, que vendia, desse tamanho assim, fazia um buraco embaixo, botava carvão, em cima botava dois pedacinhos de ferro e a panela, ali era feito o feijão, eu adorava o feijão da mãe dos meninos. E na rua jogava bola de meia, me lembro bem da rua, era lampião de gás, tem também uma crônica aí, lampião de gás, era o gás de rua canalizado, não tinha eletricidade na rua, tinha nas casas só.
TROCA DE FITA
R – Uma cama de casal e uma de solteiro, os três filhos embrulhados ali, era fogo, viu, eu presenciei isso, foi aí que eu tomei contato com o mundo da classe média, eu tomei contato com esse mundo e me impressionou muito a vida inteira.
P/1 – E que outras brincadeiras?
R – Ah, futebol de rua.
P/1 – Com meia.
R – Não tinha bola, ninguém tinha dinheiro para comprar bola, então era meia mesmo e às vezes era, a rua era de paralelepípedos, que era pedaços de pedra colocados, ainda tem algumas ruas aí assim, e de vez em quando a gente dava com o dedão na pedra lá, era fogo, jogava descalço, como é que, ia jogar com o quê? Se fosse para casa com o sapato arrebentado minha mãe brigava comigo, então era descalço, era fogo. Mas foi um aprendizado muito bom com essa vida dura dessa gente, isso me chocou, colocou em xeque, que eu tinha uma vida melhor, né, comecei a pensar e sempre fui muito, muito humilde com relação, acho que o pessoal, nós temos muito o que fazer ainda para essa gente, é só não vir demais, né, porque aqui chega gente...
P/1 – Como é que era os hábitos na sua casa, quem que exercia a autoridade, seu pai ou sua mãe?
R – É, meu pai era funcionário público federal, ele era concursado, né, apesar do irmão ser governador não teve conversa. E ele era um homem muito educado, muito amável, educado na Suíça, ficou dez anos lá, bonito e muito bondoso, então fez muito bem o casamento com a minha mãe, que a minha mãe era gaúcha, que eles chamam no sul que é gaúcho bravo é de faca na bota, minha mãe era uma gaúcha de faca na bota, o pai dela era gaúcho de faca na bota, a mãe dela era gaúcha de faca na bota e meu bisavô e minha bisavó eram gaúchos de faca na bota, então a minha mãe era energia e meu pai era inteligência, foi isso, é bem isso. Então eu fui criado num ambiente fantástico, ela censurava, me punha no trilho, que moleque é moleque, né, mulher a gente da um jeito, mas homem é fogo, dez anos não da para aguentar, eu sempre fui rebelde, né, rebeldia boa, não era sacanagem, não era homossexualismo, que em guris da nossa idade quando a coisa começa, o sexo começa a aparecer, sempre tem um menino, é curioso isso ai, não sei se, pode editar, senão pode cortar, sempre tem um menino que é o mais bonitinho, mais arrumadinho e esse é objeto de desejo sexual do grupo, é assim, hoje tá muito solto, né, mas naquela época era isso, então ele era, não era abusado, né, eu ficava muito chocado com aquilo, né, porque eu vinha de uma educação meia rígida e me afastava daquilo e achava ruim, mas foi o primeiro lance de sexo que eu percebi na vida, também esse é um fato. O que mais você quer, mulher?
P/1 – A sua primeira namorada?
R – Ah, a primeira namorada, a primeira namorada é viva até hoje, minha amiga, linda mulher, sempre namorei gente mais alta que eu, que eu era baixinho, (risos) não sei por que, não é objeto de desejo, até tô casado hoje também um metro e setenta, um metro e setenta e quatro, a outra tinha um metro e não sei o que, é tudo maior. E ela é minha amiga até hoje, uma moça muito boa, eu não sei se eu posso contar isso, mas ela está cega, teve glaucoma que é um aumento da pressão nos olhos, né, e continua linda, mas já não ta nesse mundo mais, tem oitenta e poucos, essa foi minha primeira namorada, a qual nunca beijei, nunca peguei na mão, mas era namorado, sabe como é: “Quem você namora?”, “Ah, namoro a fulana aqui” e não namorava porra nenhuma. (risos)
P/1 – Era da sua rua?
R – Ela era minha vizinha lá de rua, né, porque aí já é uma outra época, nós mudamos pro Jardim Europa, meu pai conseguiu comprar uma casa lá, então o Jardim Europa era todo de terra, casas baixas. Nós fizemos lá um grande grupo de sessenta meninos e meninas ou rapazes e moças e conseguimos formar um clube de dança que dava dança todo sábado.
P/1 – Lá no Jardim Europa?
R – Jardim Europa, de terra ainda. E esse clube chamava Swing Club e todo sábado a gente dançava com toda a meninada, era uma beleza porque era tudo muito sério, muito direitinho, tinha de vez em quando um beijinho, pegar na mão e tal, mas não passava disso, né, mas era fantástico. Tinha 50 sócios, então cada um oferecia a sua casa e todos levavam doce ou salgadinho, aí eu comecei a ser músico, virei baterista de orquestra, então eu fiz o primeiro conjunto amador de São Paulo, de jazz, aliás, era um quarteto, tocava no rádio, aquele tempo não tinha televisão.
P/1 – Com quantos anos isso?
R – Ah, eu tinha uns dezesseis, dezessete anos, por aí, até vinte. Tenho muita saudade da bateria, sabe, adoro, adoro jazz até hoje, ouço muito, mas tenho muita saudade, eu perdi a minha caixa, minha caixa tinha autógrafo de Dorival Caymmi, que eu conheci também, então era, nesse Jardim Europa crescemos todos com honestidade, são meus amigos até hoje, os que não morreram. Tem uma então que de vez em quando vai na minha casa bater papo e tal, minha amiguinha, é como se fosse minha irmã, então o que aconteceu ali? Todos nós formamos um clube de dança, dois times de futebol, dois conjuntos de orquestra e um jornal que eu fazia na datilografia, que saía uma vez por mês, era uma folha de papel que todo mundo lia e que eu escrevia.
P/1 – Qual era o nome do seu jornal?
R – A Tesoura, era só para fazer fuxico (risos) e eu que escrevia, mas era interessante, né, eu tenho lá um exemplar, mas não sei onde é que param essas coisas… Então daí vem as amizades que foram depois pro Clube Pinheiros, onde eu estou desde de 1943, onde meu pai já tinha sido conselheiro e que eu sou conselheiro há cinquenta anos por eleição direta, me orgulho muito de falar isso, porque nomear, pô, nomeia qualquer um, mas eu não, eu, chega na eleição, agora tem eleição lá, são quatro mil votantes, sistema eletrônico, não tem conversa e você vai pedir o voto, não tem jeito, velho, moço, criança, pedindo voto numa boa, são quatro, cinco partidos, é espetacular e eu sou, tô lá e toda essa gente foi para lá. E aí começou uma nova etapa do Jardim Europa, nós que morávamos lá, a praticar esporte, era um clube alemão e meu pai disse: “Você vai para lá, agora é brasileiro, você vai aprender esporte, a gostar de esporte”. E realmente foi a outra grande formação da minha cabeça limpa, meu livro, ela perguntou o nome, eu não sei se eu posso dizer aqui, o nome é isso: limpo, tem uma parte limpo, a cabeça limpa, pura, não tinha droga, não tinha bebida, não tinha nada, era o esporte, a gente passava o dia no Pinheiros, o dia, quando, nas férias ninguém gastava porque minha casa era setecentos metros do clube, então o que eu fazia? Saia de manhã com meu cachorro, minha bicicleta, o cachorro era um policial chamado Dick, policial lindo e o policial ia comigo, chegava na porta do clube, deixava no bicicletário e ia praticar futebol, natação, que eu fui atleta do clube, nadei, voleibol, baixinho podia jogar voleibol naquele tempo e basquete e boliche etc. E o cachorro ficava na porta me esperando e os porteiros do clube davam água para ele e às vezes uma comidinha, ele deitava do lado da bicicleta e não saía de lá, quando era meio-dia eu ia almoçar em casa, ele vinha de novo comigo. Era muito interessante o Jardim Europa e o Pinheiros é um negócio, hoje são duzentos milhões, é o nosso orçamento anual.
P/1 – Mas como é que você conciliava tudo isso, que você começou a trabalhar, não foi, com dezesseis?
R – É, eu conciliava isso da seguinte maneira: férias era clube, ninguém saía de São Paulo porque não tinha dinheiro, férias era clube e clube sábado e domingo, não tinha jeito. Eu saía às oito horas de sábado, voltava às oito, aí comia no clube, tal, voltava às oito horas da noite, depois ia domingo de novo, ficava na piscina e todo esse grupo nosso era sócio do clube. E comecei a trabalhar com o meu pai, fazendo algumas coisas, imobiliária e tal, com dezessete, mas eu tinha aula de manhã, aí já não era mais Mackenzie, aí já era faculdade. Então era um pouco mais tarde, eu to pulando cinco anos aí, mas era, eu tinha aula de manhã no pré faculdade, aula de manhã, de tarde trabalhava com o meu pai e de noite fazia um negócio dureza, eu fui revisor da edição dos anais da Assembleia Legislativa de São Paulo na ano da constituinte Estadual, que era o quê? Eram os discursos dos deputados transformados em livros, eu tinha não sei quantos anos, então era de 1947, eu revisei sozinho, era de noite, fazia isso de noite, de manhã faculdade, de manhã clássico, de tarde trabalhava um pouco com o meu pai e de noite.
P/1 – O clássico você fez aonde?
R – Eu fiz no Colégio Panamericano, que era um colégio patrocinado pela Escola Paulista de Medicina, tinha clássico e científico, eu não me dei bem no científico, mudei pro clássico, aí foi beleza. Mas eu, essa revisão era assim: os deputados não tinham, não tinha computador, não tinha nada, tinha só algum depoimento oral, o resto era aqui ó. Então eles tinham obrigação de publicar no Diário Oficial do Estado os discursos, então qual eram os meus originais? Era o Diário Oficial do Estado, mal impresso, era ruim, eu fazia a primeira revisão com o Diário Oficial, depois ia para uma linotipo, hoje é impressão digital, hoje chega ali pss, pss… Não, naquele tempo era a linotipia chamava, você tinha aqui um teclado enorme, aqui era o teclado de computador, um pouco mais espaçoso, o cara sentava aqui e aqui do lado tinha uma panela, eu vou chamar de panela, um recipiente com chumbo derretido vermelho e embaixo fogo, então a linotipo, você batia aqui e ela ia caçando as letras matrizes de aço, de outro metal qualquer e aquilo vinha um braço, punha um líquido, saía o quê? Eram moldes da letra, aí esse mesmo braço punha a letra em uma letra, numa linha e ia empurrando, então você tinha no fim do dia uma página, no fim de uma hora uma página, essa página era passada, pesadíssima porque era metal, passada para uma caixa de madeira e encaixada a martelo para dar o nível, encaixada a martelo, ali estava o original que ia ser impresso, era de chumbo, de metal. Aí você passava para ver a prova, você tinha um rolo, passava na tinta, passava o rolo, tirava a prova, aí eu fazia a segunda revisão, depois, segunda revisão, ele substituía a linha, pá, pá, pá, pá, pá, aí ia para fazer a parte de impressão, que eram aquelas caixas montadas página por página e vinha a impressora horizontal, fazia plof, plof, plof, levava horas, semanas, sabe quantas páginas eu fiz sozinho? Quatorze mil, mil páginas por mês. Aí a costurar a brochura, que era o material impresso, daí ia colocar a capa, a capa hoje também não era digital, como é que fazia a capa? Era de couro, dura e vinha uma impressão a ouro, chamada tela dourada e imprimia na força mesmo, na porrada, blum! E punha lá: “Assembleia Legislativa”. Aí eu ia, punha no meu, já tinha um carro, comprei um carro a custa disso, botava no carro tudo, mil volumes, ia quatro, cinco vezes, levava para o correio da Assembleia Legislativa, não tinha correio espalhado como hoje, e lá o cara, eu ajudei o cara porque as folhas que eu não imprimia eu dava para ele embrulhar a carne, porque ele tinha um açougue além de ser funcionário da Assembleia. Então tudo ajeitado, pois eu fiz mil páginas por mês e isso eu ganhei um dinheirinho, meu pai ganhou também, para comprar um carro, foi meu primeiro carro, que eu tinha vinte e três anos, é um negócio complicado.
P/1 – Ai você prestou faculdade direto, como é que foi?
R – Fiz direto, entrei direto, fiz a faculdade.
P/1 – Faculdade do quê?
R – Direito na USP.
P/1 – Direito, mas tinha alguma expectativa para que você seguisse alguma carreira, por que você escolheu Direito?
R – Não, a ideia é o seguinte: eu estava, bombei, no sentido antigo, no científico, porque eu não aguentei, os meus professores nesse Colégio Panamericano, um deles é uma rua que você conhece, que é lá depois da Ricardo Jafet, que vai para Imigrantes, Abraão de Morais, está lá, era astrônomo, um puta cara inteligente, astrônomo, pô, tava lá em cima, tinha os cabelos revoltos, tal, dava aula de Física, eu não entendia porra nenhuma. Pô, entender Física do Abraão de Morais não dava. O outro que dava Biologia era professor da Faculdade de Medicina, aí melhorei um pouquinho, tal. Matemática era o Lacar, que foi grande mestre de Matemática da Politécnica, eu não aguentei. Ai um dia tava com meu pai no bonde, vínhamos juntos, que eu vinha pro colégio, ele vinha para repartição, ele disse: “Sabe o que eu to achando?”, eles, coitados, eles fizeram esforço para me aguentar nesse colégio: “Que a sua vocação é outra, você quer ser arquiteto, mas não vai ser”, “Por que, pai?”, “Porque”...
P/1 – Você queria ser arquiteto?
R – É, eu tinha a ideia sim e ele disse: “A sua vocação é Direito, é outra coisa”, eu falei: “Tá bom”, “Muda pro clássico”, ai eu mudei, beleza, e outros grandes professores também de Português, mudei pro clássico, água pro vinho, porque a parte Física, Matemática é mais folgada, né, aí passei direto na faculdade, na primeira vez, pá, sem cursinho, sem nada. Aí eu fui, fiz uma viagem para Argentina também, ai vem a Evita, eu tive com a Evita, é, tá pensando o quê? Sou bom, fizemos uma viagem de trem para a Argentina, o trem saiu de São Paulo, chegou lá em Montevidéu.
P/1 – Com a sua família ou com o pessoal da faculdade?
R – Da faculdade, é coisa de estudante, aí chegou lá, a gente deu o dinheiro e tal, custeou tudo, chegou lá, acabou o dinheiro em Buenos Aires, 1949, e ai? Um frio sacana, eu falei: “Como é que vai? Então vamos fazer o seguinte: uma parte vai falar com o Perón e outra parte vai falar com a Evita para arranjar dinheiro”. Tá bom, o que que tinha? Eu tinha uma placa de prata que nós tínhamos levado, era uma frase de um presidente argentino: “Nada nos separa, tudo nos une”, não sei o que, eu levei, bom: “Mas quem vai falar para Evita?”, aí a Evita era Ministra do Trabalho.
P/1 – Como é que vocês conseguiram chegar nela?
R – Ah, estudante brasileiro, eles eram ditadores, pô, eu não cheguei nela, vamos também devagar, (risos) não cheguei a esse ponto, o Perón talvez, (risos) o negócio é o seguinte, (risos) desculpe a piada, mas é bem atual, né, pegador, pegador, mas a Evita não... (risos) Ah, muito engraçado, agora veja um pouquinho, aí a gente tinha acesso porque a, né, “estudiantes brasileños”, não sei o que, a gente dava esse golpe lá. Fomos para a Evita, ela era Ministra do Trabalho e nós ficamos sentados numa sala enorme lá no Ministério do Trabalho e ela recebendo os índios para dar dinheiro pros índios, ela era danada mesmo, recebeu os índios e nós ficamos lá uma hora, olhando os índios e falando em chá hjg hdw, ninguém entendia nada. Aí me cutucaram: “Você é o falador”, “Como eu sou o falador?”, “Você vai fazer o discurso para a Evita”, “Porra, eu não sei nada, mal sei espanhol”, “Não, não interessa”. Me deram a placa e de repente eu me vejo na frente da Evita, bem na frente, menor distância do que aqui, ela de vestido azul de seda, rabo de cavalo, já estava doente provavelmente, não tinha uma cor, mas era, era franzina, bonitinha, mas não sei se era ordinária, que nem o Nelson Rodrigues, mas não era, não era, foi uma grande estrela lá e eu fiz um discurso para ela em espanhol, saudando, pralála, pralála, falei do Perón, o cacete, aquelas coisas. Arranjamos dezoito mil pesos, ela deu para nós, era dinheiro para caramba, um peso valia cinco reais, cinco cruzeiros, sei lá, aí nós fomos pro melhor hotel, nós estávamos num hotel vagabundo, na calle, uma merda de hotel, fomos pro melhor hotel, City Hotel, puta vida: “Vamos embora pro City Hotel”. Ah, foi fantástico, aí tapete, era um hotel americano, tapete e tal. Só que tinha uns caras muito sacanas, estudante é isso, né, de noite, essa é uma passagem curiosa, de noite todos que queriam que o seu sapato fosse engraxado, os hóspedes, deixavam o sapato na porta do quarto, um dia nós chegamos, aí foi tudo tomar umas bereba, né, foi formidável. Aí fomos lá, de repente eu chego meio de madrugada sozinho lá, tinha um companheiro meu debruçado em cima de um sapato fazendo xixi (risos) dentro do sapato (risos), olha, eu fiquei tão apavorado, eu disse: “Tá louco, Zé”, arranquei ele, foi mijando pelo corredor todo (risos), mas não é incrível? Esse é um fato, outro fato na Argentina é curioso também, antes de receber o dinheiro nós não tínhamos dinheiro: “Ah, vamos comer não sei aonde”, “Pô, ninguém tem dinheiro”, já tinha dividido a turma, eram dezoito, ficaram seis ou sete: “Não, eu, vamos comer por aí”, “Por aí por quê? Ah, a gente da um jeito”, entramos lá num, numa boate, sei lá o que que era e começamos a comer, comer, comer, aí eu falei: “Bom, agora tá na hora de pagar, como é que eu vou fazer?”, “Não, nós vamos pique-pique aqui, vamos embora” e ninguém sabia, argentino não sabe o que é pique-pique, não sabe o que que é, né, aí eu falei: “Tá bom, então eu vou puxar o pique-pique, mas eu vou ficar na ponta da mesa, sou o primeirão” e começamos: “E para boate nada! Tudo! Como é que é que é?”, sete caras: “Bebé” e todo mundo apavorado, que argentino é burro hoje, imagina aquela época, burro no sentido cultural, não sabia nada do Brasil, e nós falando uma coisa ininteligível, né, pique-pique, pique-pique, quando chegou o segundo pique eu já tinha saído, tinha bonde, eu peguei o bonde, fui embora, cada um saiu para um lado e não pagamos, foi o pendura mais fantástico internacional da escola da USP, São Francisco, o pendura: “Onde vocês fizeram pendura?”, “Em Buenos Aires” (risos), não é fantástico? Essas histórias são fantásticas. Posso contar da minha pré morte segunda? Por favor, isso é muito importante.
P/1 – Ai que engraçado!
R – Todos os anos os meus avós continuavam em Florianópolis, meu avô era inspetor do ginásio, era jornalista, poeta, editou livros com prefácio de Érico Veríssimo, umas coisas sérias, e ele todo ano, durante uns sete, oito anos, quando eu já era mais meninão, ele vinha, tomava um ônibus em Florianópolis, parava em Curitiba, que era doze horas que levava, estrada de terra, dormia em Curitiba, tomava outro ônibus lá, levava mais dez horas para chegar em São Paulo para vir me buscar para ficar nas férias com ele lá, aí voltava tudo de novo e ele ficava nas férias, sabe o que ele fazia comigo? Ele era poeta, ele tinha uma casinha na praia numa das praias ali, Praia do Leal e dizia: “Pepa, vamos para nossa casinha” e nós íamos de ônibus da cidade, aqueles ônibus vagabundos, né, ele com um cachorro embaixo do braço, já naquela época. Íamos lá e sabe o que ele fazia de noite? Ele sentava comigo na areia e falava sobre as estrelas, olha que coisa, e descrevia, dava o nome de tudo, ele sabia para caramba e tal, era uma coisa maluca esse meu avô, ele foi para um negócio, todo ano, durante uns seis, sete anos, doze horas, doze horas, doze horas e assim por diante. Então, mas eu tava contando era a minha morte. Uma dessas vezes, eu já estava grandinho, tinha uns treze anos e havia uns navios pequenos da companhia daquele Henrique Lage lá de Imbituba, que fazia toda a costa brasileira, chamado Usita, Itanhangá, todos chamavam Ita, daí a música do Dorival Caymmi, que não é do seu tempo, fala: “Peguei o Ita no norte para vir no Rio morar”. É isso aí. Então tinha uns menores que atracavam, chegavam até Florianópolis, porque não tinha profundidade, mas esses eram pequenininhos, para você ter ideia. Eu agora viajei nesses grandões aí, tem sessenta mil toneladas, esses navios de turismo, né, mais ou menos, ele tinha quatro mil toneladas, era um iate com dez camarotes e era durante a guerra e ele, os submarinos alemães andavam aqui pela costa afundando navios porque eles queriam impedir que o Brasil e a Argentina fornecessem alimentos para as tropas na Europa, então os submarinos alemães afundavam navio mesmo, mandava torpedo e pum, botava pro fundo, não interessa que era. Então esse navio saía de Florianópolis sem iluminação nenhuma, todo pintado de preto por fora e as vigias, a janelinha redonda, ela tinha um pano preto, a gente não podia abrir e ele veio só com os instrumentos náuticos lá da época, uma porcaria, não tinha radar, não tinha nada, veio até Paranaguá, parece que quebrou a hélice, parou um dia em Paranaguá, eu fiquei lá, era um navio chamado Aníbal Benévolo, um antigo comandante da Marinha e esse navio veio e me deixou em Santos na outra madrugada, até o meu tio foi lá me buscar, que ele morava em Santos e tal, eu tinha treze anos e viajava sozinho, quer dizer, um cara ajuizado (risos), Deus perdoe, ajuizado aqui ó! Então, mas aí o que aconteceu? Esse navio continuou a navegar pro norte, quando chegou em frente a Salvador, na mesma viagem que eu viajei, um submarino alemão plum, afundou ele. Portanto se não tivesse parado em Paranaguá, o submarino tava lá no sul e pegava nós, eu morria de novo, segunda pré morte, primeira pré morte Revolução de 1930, segunda pré morte treze anos, em 1948, sei lá o que, é assim, minha filha, assim foi. Então voltando a São Paulo, o que mais você quer saber?
P/1 – A gente tava lá na, voltando nessa viagem da Argentina e como é que foi o curso de Direito?
R – O curso de Direito foi bom, tive excelentes professores, todos muito bons.
P/1 – Algum que tenha te marcado, alguma matéria que você mais gostava?
R – Ah, eu gostava de todas, sempre Direito Penal a gente gosta mais, né, não sei por que, é mais vivo… Mas ninguém quer depois seguir Direito Penal, nem nada. Eu gostava de Civil, gosto muito da área imobiliária, acho muito bonito área civil, gostava de, processo não era muito bom, mas área civil… Aí chegou no quinto ano tinha, primeiro ano tinha um professor chamado Alexandre Correia, em 1948 ele já não usava meia, achava fantástico, era um cara inteligentíssimo, mas ferrava todo mundo, viu, daqueles bravos, pauleira com ele, não tinha conversa, era professor de Direito Romano, que é a base do nosso Direito, eu passei por ele, foi bem, tudo bem e tal, me impressionou muito esse professor e o outro foi o Professor Doutor Miguel Reale, que é pai desse menino que foi ministro aí. Ele, o Professor Reale dava para nós um negócio que a gente não sabia o que era, Filosofia do Direito, sei lá o que é isso, era quinto ano, dava aulas fantásticas, era pequenininho, usava até um saltinho para ficar maior, tinha uma vozinha assim fininha e tal, fantástico. Passa o tempo, eu vou trabalhar na Light, antiga Eletropaulo da época, e fico lá um ano como consultor e tal, já era advogado, de repente quem a Light contrata? Professor Doutor Miguel Reale, de quem eu vou, com quem eu vou trabalhar? Professor Doutor Miguel Reale, não é uma benção? É uma benção, o cara, ele era presidente do Instituto Internacional de Direito, de Filosofia do Direito, criou inúmeras coisas, acabou, o Novo Código Civil, ele já tava no fim da vida, ele fez o Novo Código, arrumou tudo, a lei que criou a Itaipu Binacional, que depois vamos entrar, Itaipu Binacional é uma empresa de Brasil – Paraguai, quem criou foi o Reale. Aí então os três chefes, depois do outro chefe, quando eu, a Cesp foi criada, Companhia Energética de São Paulo, tava em pleno desenvolvimento, era uma coisa, eu fiquei grilado, falei: “Eu to aqui na Light há doze anos”. Tinha chegado a chefe do setor de relações com o governo, que era toda, eu era chefe de cem caras com trinta e poucos anos, nem sei como é que foi isso, eu tinha cem caras que acompanhavam todo o desenvolvimento dos processos da Light no ABC, na Prefeitura de São Paulo e no Governo de São Paulo, porque o pessoal de Light era estrangeiro, não tinha contatos com o governo, então eu fui, ai apareceu a Cesp, eu falei: “Pô, eu vou para lá”, a hora você vai dizer, né, estamos no fim.
P/1 – Não.
R – Então é o seguinte, aí eu fui para Cesp, como é que eu fui para Cesp? Eu já era funcionário estável da Light, eu tinha mais de doze anos, naquele tempo tinha estabilidade, para me demitir eles tinham que me pagar vinte e quatro salários e eu falei: “Não, eu vou para Cesp”, meu pai doente, sabe, recebendo uma merda por mês.
P/1 – Você morava com eles ainda?
R – Morava, eu tinha uma, a casa lá na Bulgária era tão grande que quando eu casei nós fizemos uma outra casa atrás e fui morar lá.
P/1 – Aonde?
R – No Jardim Europa, Praça Bulgária chama ali, era, o terreno era tão grande que deu uma casa virada pro fundo fantástica, minhas filhas foram criadas lá, tudo, aí eu falei: “Eu vou para Cesp, como ir para Cesp? Vou me apresentar na cara de pau, quem é o presidente da Cesp? O Professor Doutor Lucas Nogueira Garcia. Ah, conheço, foi governador, foi secretário de obras, cara bacana, professor emérito da Politécnica”. Ai eu me lembrei que eu tinha, o Diretor Administrativo da Cesp tinha sido meu companheiro de diretoria no Esporte Clube Pinheiros, ai eu falei: “Tá bom”, eu conhecia das Perdizes, no tempo ainda de moleque, me apresentei, João Batista Passos Campos Maia, ó que nome comprido, eu falei, fui lá no Maia: “Ô, como é que vai você? Seu pai vai bem?”, “Vai, tudo bem”, “Ô, Maia, eu quero trabalhar aqui”, “Mas como? Eu não mando nada”, “Você é diretor administrativo, como é que faz, tem algum concurso, alguma coisa?”, “Não, vamos fazer o seguinte, vem aqui comigo no 19”, ele tava no 18, andar 19: “O que você vai fazer lá?”, “Vamos lá”, falou: “Eu quero falar com o professor Garcia”. Ele abriu a porta e entrou, ele tava lá sentado, uma figura de professor emérito da Escola Politécnica, que tinha sido governador por eleição, tinha sido secretário de obras e tinha construído, continuado a obra do meu tio, olha que coisa, ai eu entrei, fiquei com aquela figura, mas também não esperava tanto, né, aí o Maia: “Agora você fala para ele o que você quer”, “Ta bom, professor, tenho muito prazer em conhecê-lo”, na cara de pau: “Só que eu queria trabalhar com o senhor”, juro por Deus: “Pedro Paulo, mas que honra”, olha o jeito dele: “Que honra receber você aqui”, “Ah, professor, que isso”, “Não, o meu sogro foi Secretário de Estado do seu tio Armando, que eu sou um homem que tenho por ele eterna admiração”. Até aí tudo bem, já ouvi essa conversa: “Quando é que você quer vir para cá?”, “Ué, eu sou estável lá”, “Eu pago o teu passe”, “Professor, você não tá exagerando?, “Eu pago o seu passe”. Aí voltei engasgado porque eu não esperava isso, voltei e falei com o meu superintendente, falei: “Doutor, seu Amaral, aconteceu isso, isso”, “Vai logo, bobo, você tá aqui encalhado, você já não tem mais nada para subir, vai embora”, “Mas como é que eu vou embora? Eu sou funcionário aqui”, “Vai embora, faz o acerto que você tiver lá, fica lá um pouco e vê se gosta, eu fico pagando o seu salário”, olha, aí eu voltei, eu falei: “Ta bom, professor como é essa história de pagar?”, “Não, não, eu vou fazer o seguinte: enquanto você estiver aqui nesses seis meses emprestado eu vou pagar um outro salário para você”, você acredita?
P/1 – Ficou com dois.
R – Dois salários, isso é bondade, não é bondade? Porque nem conhecia o cara e o outro chefe meu foi muito bom também, né: “Faz de conta que você não tá recebendo nada e eu fico pagando você aqui”, foi formidável. Aí o Garcia fez uma carta pro presidente da Light pedindo emprestado por seis meses, ele falou assim: “Mas como é que eu vou trazer você para cá?”, “Ah, se o senhor quiser o senhor pede emprestado, o senhor é presidente, pô”, falou: “Eu vou pedir mesmo”, eu dei a ideia para ele, ele escreveu e eu fiquei seis meses lá. Para você ter ideia, na minha carteira profissional tinha um salário, eu não vou dizer a moeda que eu não sei, o salário era dois mil e duzentos e o salário pago pela Cesp pro mesmo cargo era quatro mil e oitocentos, dinheiro para caramba, eu nunca tinha visto isso, pois eu fiquei seis meses lá, ai falei: “Professor, não aguento mais, aqui tá muito bom, o senhor tá muito bom comigo, meus companheiros são ótimos, gostei muito da Cesp”, que era gente bacana, gente jovem, sabe, achei bacana, ele falou: “E o que você quer fazer?”, “Eu quero voltar para a Light”, ele falou: “Ta bom, a diretoria está reunida ali, você faz o seguinte: você abre a porta e fala para eles que você vai voltar para Light”, “Professor, para que isso? Eu to falando com o senhor”, “Não, faz o favor de falar”, eu abri a porta, estava a diretoria reunida, era gente importante aí, eu falei: “Meus senhores, eu queria agradecer a gentileza, estive aqui seis meses, foi muito bom e tal, mas to indo para Light”, levantou um e falou assim: “Você tá porque você quer porque você não vai voltar para lá, você vai ficar aqui”, foi assim, tudo aconteceu, meu segundo chefe, meu pai, professor emérito, engenheiro da Escola Politécnica, foi meu chefe dez anos, Professor Doutor Miguel Reale foi meu chefe, professor emérito, dez anos.
P/1 – Mas aí você ficou na Cesp?
R – Aí eu, não, eu fui lá e pedi demissão, não recebi nada, eles combinaram entre eles que iam me pagar, me pagaram e eu também não, fui para Cesp, meu pai tava morrendo, tava muito ruim e eu não tive coragem de contar para ele que eu tinha ido para Cesp porque naquele tempo era emprego segura, né, segura o emprego, hoje não, né, o cara vai andar por ai, dar uns pitacos lá e aqui para ver.
P/1 – Quais o grandes projetos que a Cesp fez naquela época?
R – A Cesp, a Cesp constituiu-se naquela época como uma reunião de onze empresas do Estado, cada uma tinha uma usina e juntou tudo, então ela tinha em construção a maior, Ilha Solteira, Jupiá, Xavantes, Água Vermelha, Promissão, Ibitinga, Paraibuna, ó, sete, quantas completou em oito anos? Sete, recorde mundial, fantástico, né, por isso que da tanta inauguração, cheio de fotografia de inauguração porque eu fiz todas, né, eu fui o planejador. Aí veio uma história, eu era advogado, depois, na Light, depois fui chefe de coordenação com o governo, daí eu descobri minha vocação, que era a área social e comunicação e aí passei para a comunicação, aí foi criada a nova estrutura de relações públicas com um novo nome, chamava Comunicação Institucional, que é hoje a minha, minha maior formação é essa, eu fui e me inscrevi, porque naquele tempo os que já estavam atuando em relações públicas, que era o meu caso, podiam se inscrever. Eu sou o número 61, hoje são dez mil e não sei quantos, eu fui o número 61 do Conselho Regional de Relações Públicas e ai, ai eu fui para frente, aí eu realmente me, cheguei a ter orgasmos intelectuais pelas coisas que realizei, inaugurei as dez da Cesp e é um planejamento complicado porque o pessoal fala: “Ah, comunicação”, não é comunicação, não, é planejamento, estratégia, comunicação, cerimonial, sobretudo estratégia, por exemplo, inaugurar uma usina de Ilha Solteira no interior de São Paulo, setecentos e cinquenta quilômetros de distância com um aeroporto muito mixo.
R – Eu era amigo de um antigo presidente do Instituto Brasileiro do Café, chamado Oswaldo Lisboa, ele tinha sido presidente no tempo do Juscelino, era um mineiro boa gente e esse mineiro era casado com uma paulista falecida e a filha dele morava e estudava em São Paulo com uma tia e era minha amiga daqueles rolos de Jardim Europa, muito boazinha e um dia esse Paulo, Oswaldo, Paulo, como é? Oswaldo Lisboa me telefonou de Lambari, em Minas Gerais onde ele morava e disse: “Olha, a Maria Eliza”, que é a filha dele: “Vem para cá com o rapaz que ela está namorando, que ela quer me apresentar, você não quer vir junto”, eu falei: “Pô, vou segurar vela”, bom, mas fui e ficamos em Lambari alguns dias e ela se chamava Maria Eliza e ele Henrique Sérgio, ele era namorado dela, ai o pai, que era Oswaldo Lisboa, falou: “Vamos a Cambuquira”, que é pertinho de Lambari: “Eu queria mostrar o Parque das Águas para você”, “Ta bom”, chegou lá ele falou assim: “Olha, não é nada disso, o que eu queria de você é o seguinte: você é uma pessoa de bem”, vê como as pessoas me acham: “Você é uma pessoa de bom senso, correto, de caráter”, epa, vai pedir alguma coisa: “Eu queria que você me desse uma informação sobre esse rapaz que ta namorando a minha filha, eu não sei quem é, assim, assim, assim”, eu falei: “Não, esse rapaz é muito bom, é filho de um diretor do Banco do Comércio e Indústria, é advogado formado, pessoa diretíssima”.
P/1 – Comind.
R – Comind, é, isso mesmo, muito direito, enfim, Tomás Gregório que era Comind, então, muito direito: “Como é mesmo o nome dele”, ele falou, eu digo: “Henrique Sérgio Gregori”, pois muito bem, ai eu dei a benção pros dois, ele voltou para lá e nesse dia ele disse que queria casar com a Maria Eliza em Campos Salles Lisboa, minha amiga, e o Oswaldo Lisboa concordou, ele era viúvo, casado de novo e eles vieram, se casaram e foram pro Rio de Janeiro, o Henrique Sérgio que ele estava em dúvida foi o presidente da Xerox do Brasil, não precisa mais nada e ainda fundou um banco, ele tava em dúvida sobre o cara (risos) e eu fui, pois muito bem, isso foi em Lambari, estrada de Cambuquira, São Lourenço, aquele lugar, Parque das Águas, ali, ai eles foram morar no Rio de Janeiro, tiveram filhos e tal, ela virou pintora e tal, tudo bem. Um dia eles queriam voltar a Lambari para ficar na casa do Oswaldo Lisboa e vieram de carro do Rio, chovia muito, eles chegaram em Caxambu, foram visitar o prefeito que era parente dela, isso 25 anos depois, no mesmo lugar que tinha aprovado o casamento e ela então, eles vieram, pararam e o prefeito falou: “Vamos jantar aqui enquanto passa a tempestade” e eles disseram: “Não, tudo bem, nós vamos para Lambari, vamos dormir lá, é trinta quilômetros só” e o prefeito falou: “Mas será que a estrada tá boa? Fiquem aqui comigo, durmam aqui, eu arranjo um hotel para vocês aí, não tem problema nenhum”, “Não, nós vamos para Lambari” e quem guiava era um motorista dos dois e eles foram pela estrada, no mesmo lugar que eu dei o aval, que ele pediu ela em casamento, o carro capotou, matou os dois, no mesmo lugar, não é fantástico? É uma história complicada… Mais duas histórias, no tempo da queima do café eu tinha um primo do meu pai que era de uma das empresas que queimavam café, que exportavam café, mas tinham que queimar, ele foi a Campinas para observar um lote de café a ser queimado e foi para lá, eu nem sabia que ele tinha que ir para lá, era uma, ai quando foi numa noite bateram lá em casa, telefonaram, já tinha telefone, mas telefone era difícil, já tinha telefone, falaram com o meu pai: “Betico”, o apelido dele: “Betico, a mulher do Santinho”, que era esse do café: “Ta indo com os filhos aí para sua casa, depois a gente conta”. Chegou às dez horas da noite, por essa hora, dois, uma menina e um menino da minha idade, eu tinha dez anos, doze anos, aí meu pai falou: “Não, é que o Santinho”... Quando chegou o trem de volta em São Paulo, ele tinha se suicidado dentro do trem com o cinto da sua calça, porque ele pensou que tivesse queimado uma partida errada de café e não era, foi questão de culpa, né: “Puxa, errei, vou dar um prejuízo enorme”, coisa que não acontece mais hoje, né, o cara some, fica por isso mesmo. Eu tive que entreter durante uma noite, porque aí veio o IML, delegacia, tal, uma noite na minha casa, eu com doze e os meninos com dez e onze, diante de um fato fantástico que era a morte do pai, eu não sabia o que dizer, mas eu tomei conta deles, não é curioso? Passa o tempo, Imbituba, todo o pessoal de Imbituba era do Rio de Janeiro, então eles eram empresários e tal e não vinha de navio nem ônibus, eles tomavam avião em Florianópolis, que era avião que pousava no mar, era alemão, pousava no mar e tal e eles vinham no primeiro avião que tinha decolado no aeroporto de, novo de Santa Catarina, de Florianópolis e vieram para pousar em São Paulo, eles iam ficar uns dias em São Paulo, os filhos já estavam aqui, da minha idade, Luiz Fernando e Luiz Gonzaga e esses filhos estavam aí, só que a gente não sabia, de repente a gente liga o rádio, numa tarde, na noite, sete e pouco, oito horas, caiu um avião que vinha de Florianópolis, um Lockheed, não sei o que, marcado avião da Pan Air do Brasil, tudo bem, não é nada conosco, não sabíamos, de repente toca o telefone: “Senhor Salles, aqui é Fulano de Tal, aqui de Imbituba”, demorava horas, não, perdão, perdão: “Aqui do Rio de Janeiro”, não foi de Imbituba, não, do Rio de Janeiro: “O que aconteceu?”, “no avião estava o Doutor Catron, Dona Ruth e seu Sávio, o marido dela e não se sabe onde está esse avião, desapareceu, eu vou mandar os meninos para ai, porque você é a única pessoa em São Paulo que é nosso conhecido”, pela segunda vez foram dois meninos para minha casa da minha idade. Aconteceu o seguinte: não tinha radar, não tinha GPS, não tinha porra nenhuma, o avião vinha com o altímetro e o norte na bússola, mais nada, lembra do Mamonas Assassinas, entrou na Serra da Cantareira? Pois esse avião trinta anos antes entrou na Serra da Cantareira, errou o prumo e meteu a fuça na Serra da Cantareira, só dois sobreviveram, o pai dos meninos, a mãe morreu... O que aconteceu aí? É alguém que tá aí me chamando.
P/1 – Os espíritos tão aqui (risos).
R – To falando neles, mas é gente boa, pode ficar tranquila.
P/1 – Você chamou eles apareceram.
R – Vem de branco, vem de branco. Então é o seguinte, essa é boa, da uma boa ilustração, então não se sabia o que tinha acontecido, não se sabia do avião, um dos aeromoços, um só, o avião, a parte de trás ficou meio intacta e ele conseguiu abrir a porta, sem ferimentos, por sorte. E começou a descer a Serra da Cantareira, não sabia onde ia porque de noite, pô, lá em Santana naquela época, conseguiu de madrugada chegar numa rua lá e dizer o que tinha acontecido. Aí dez horas depois é que foram achar o avião, no dia seguinte, um dos, o pai dos meninos tava sentado aqui, atrás dele, naquele tempo não tinha aqueles compartimentos do avião de hoje, que são integrados no avião, geladeira, aquecimento, aquelas coisas, né, era uma geladeira adaptada, grande, e quando bateu a geladeira ficou em cima dele, o avião era um de cada lado, eram dezesseis passageiros, um de cada lado, e a geladeira caiu em cima dele, ele ficou assim, quem que tava aqui na frente? A mulher dele, que levou oito horas para morrer embaixo dele e ele não podia sair, vendo a mulher.
P/1 – Ave Maria!
R – É e tudo em decomposição, né, oito horas depois, sangue, essa coisa toda, ele sobreviveu, ficou com uma perna mais curta e tal, mas sobreviveu e eu com os meninos, falar o que com eles? O que alguém com doze anos fala para um órfão? Segunda, terceira tragédia, não é incrível isso?
P/1 – Nossa!
R – Isso me aconteceu por três vezes, é muito curioso isso, eu, é a primeira vez que eu conto isso, eu escrevi a crônica, mas eu conto isso, que é exatamente isso. Então tem aí uma parte, Pinheiros para mim continua sendo, na Associação dos Aposentados eu fiquei dezesseis anos, tô saindo agora, que já não aguento mais, eles também não me aguentam, sempre fui ativo, sempre, não parei desde, eu aposentei em 1983, nunca mais parei, também fui diretor da Salles Interamericana de Publicidade durante uns dois anos, depois minha mulher ficou muito doente, eu tive que sair e foi o que fiz, nos locais em que eu compareci eu criei revista, jornal, no Pinheiros, na Eletropaulo, na Cesp, na Associação, edito até hoje um jornal mensal lá.
P/1 – Bacana.
R – É e fiz trinta e cinco filmes de, filme, filme mesmo, né, trinta e cinco milímetros, os diversos da época, que eram os famosos, Jean Manzon, o Primo Carbonari.
P/1 – Mas fez filme como?
R – Eu fazia o roteiro, eu escolhia as músicas, eles editavam de acordo com, é um pré-roteiro, não vou dizer que é um roteiro completo.
P/1 – Olha só.
R – Só o plano de corte que eles faziam e faziam de acordo com a..
P/1 – Jean Manzon, por exemplo?
R – Jean Manzon era amigo do peito, almoçava sempre com ele, fiz muito, fiz um de Itaipu com ele que não falava da usina, só falava do rio, a importância de um rio, fiz um com ele chamado: “Nasce uma usina”, fiz outro: “Compromisso social”, fiz outro: “Rumo ao pôr do sol”. Era uma coisa interessante, era uma peça da usina que era feita em São Paulo, depois montavam o vagão de estrada de ferro em torno dela, não ela botada dentro, ninguém, não tinha guindaste para botar, montavam o vagão, ia daqui, levava vinte horas para chegar na usina, aí chegava na usina a peça que era tão grande, ficava desse tamaninho porque a usina era enorme. E tem o rio, Rio Paraná também, a história do rio, o que que ele fornece pro países, foi feito com o Jean Manzon, tinha um Rosemberg lá do Rio, fiz muita coisa com ele, uma ilha no interior, ó, tem 35.
P/1 – Eram filmes institucionais?
R – É, filmes, naquela época não tinha televisão, então havia uma lei federal que obrigava que antes do cinema, antes da sessão, havia a obrigatoriedade de um documentário, assim eles davam chance para um documentário, então era isso que eu fazia e terminei Itaipu com televisão, né, são doze filmes sobre Itaipu, com a música que até hoje eu tenho em casa, então essa é uma vida, agora...
P/1 – O que você acha da experiência de dar esse depoimento?
R – Olha, eu achei uma coisa muito boa, faz bem, para deixar registrado em algum lugar o que você com humildade fez e ao mesmo tempo para pessoa, eu tava dizendo a ela o seguinte: que eu não sou nascido aqui, fiz coisa para burro para essa cidade, para esse estado e nunca tem um galego qualquer que chega na Câmara e fala: “Pô, esse cara trabalhou para caramba, vamos dar um título de cidadão paulistano para ele”. Eu conheço gente que fez um livro e se tornou cidadão paulistano, só por ter nascido do Rio Grande do Norte ou o cacete, sabe? É a única coisa que eu levo mal comigo, que eu acho que, até tem um companheiro lá que hoje tá muito mal no hospital, ele escreveu um livro, cidadão paulistano, por causa de um livro, pô, olha, então não é mágoa, ele disse: “Talvez isso seja bem pro ego”, não é isso, não, é uma questão de eu nunca tive chance de ser, de ter uma coisa que dissesse: “Muito obrigado”. Só isso que eu queria: “Muito obrigado”, você errou muito, lógico, todo mundo erra, eu errei, eu errei várias vezes, na vida particular errei muito, mas ninguém disse, chegou… Só o Costa Cavalcanti que era tido como um cara duro, de direita, que andava com revólver, ditador, foi o único que chegou para mim numa cerimônia e falou: “Muito obrigado”, o único cara, o resto, Pinheiros eu me matei, quase perdi o emprego por causa do Pinheiros e tudo de graça, aonde eu me meto de graça ai que ninguém fala mesmo, tive Rotary, tive Associação dos Antigos Alunos do Mackenzie, OAB São Paulo, Associação Brasileira de Relações Públicas, Sindicato dos Profissionais de Relações Públicas, Associação dos Aposentados, tudo de graça, ninguém me deu um papel dizendo: “Obrigada”, nada. Eu acho que o obrigado é uma obrigação de todos os dias, é ou não é? Não custa você falar: “Puxa, que bacana, você gravou bem, o som não tá bom, mas o resto ta muito bom, boa, boa”, você ouve isso em redação? Não, você ouve isso em produção? Não, tá? Só ferrar, só ferrar, só ferrar: “Porra, que texto de merda que você fez aí, não vem com esse texto aí que eu te demito”.
P/1 – Mas a experiência de contar um depoimento, ela, como é que você sentiu?
R – Ela compõe você com você mesmo, porque você não tá dando um depoimento porque as pessoas esperam, porque tem plateia, frescor, não, você tá dando porque você quer contar a sua vida, todas as vidas são importantes, a sua, a dela, quantas a gente não teria que contar? Quantas coisas de pai e mãe, de filho, de amigo, de namorado, de profissão? A gente teria muito para contar, é que as pessoas não perguntam, elas não se interessam pelo ser humano. Aqui é Museu da Pessoa, é importante isso aqui, isso aqui é importante. Eu nem, confesso, se não fosse o Fábio, quem me indicou, eu não sabia, agora, isso é importante, eu estar aqui, para mim pessoalmente, me da conforto e nem que a gente, a gente não ta aqui para botar farofa nem perder a humildade, eu fui o maior, nada disso, contar o que tá fazendo, o que fez, eu acho que isso aí é importante para a pessoa e isso aqui é muito importante para mim, no fim da vida é importante.
P/1 – Queria agradecer em nome do Museu da Pessoa o seu depoimento super bonito.
R – Olha, sou eu que agradeço, né, sou eu que agradeço, porque a quantos eu contaria a minha história? E tem um final feliz, a parte sentimental, que eu quero contar, foi muito difícil a minha vida, até mortes, e de repente eu to casado de novo, muito feliz, muito calmo, muito tranquilo, com uma brutal diferença de idade, coisa que segundo o Ronnie Von: “Há controvérsias sobre essa história”, outro que também fez...
P/1 – Quantos anos tem a sua esposa?
R – Trinta e seis, cinquenta anos de diferença, é nossa colega de Relações Públicas, formada, mas exerceu gerência de uma bruta empresa há muito tempo, com muito pouca idade também, tem muito valor, mas é uma coisa que eu também não sabia o que era, eu falei para você, só tinha brutalidade, dureza, aspereza, morte, doença. Eu acho que chegou, Deus falou assim: “Esse coitado ai, também é demais pro ombro dele, ta ficando velhinho, deixa ficar quieto” e me deu essa baiana que eu to casado, baiana paulista, né, porque tá aqui há vinte anos. E essa parte sentimental eu rumei depois de velho.
P/1 – Que bom.
R – Que era o que faltava, então eu queria agradecer vocês, viu, pela gentileza, pela amabilidade, por me deixarem falar besteira, por falar merda, saco, essas coisas que ninguém fala, que bosta, é isso mesmo, né, e achar também que eu passei por uma ditadura sem estar politicamente nela, porque o ditador era o chefe da minha empresa, o que que eu ia falar? Agora se ele fez mal para alguém, o emprego eu tinha que aguentar e com relação ao nosso setor, eles não tiveram nenhuma dúvida em ajudar, como diz o Lobão, o Lobão tem uma frase interessante, ele falou: “Pois é, os terroristas se lembram dos direitos humanos do lado deles, e os direitos humanos que foram mortos por eles?”. Olha, não fui eu que falei, ele falou isso. Segundo, meu tio foi exilado dez anos, nunca teve uma indenização, nunca fez mal a ninguém, acabou viúvo, meio na miséria, meus avós também, né, agora de vez em quando eu vejo um cara: “Não, ele foi impedido de exercer sua profissão, então vamos dar uma indenização para ele”, quanto é a indenização? Três milhões e quinhentos mil, eu não me conformo com isso, eu não me conformo: “Não, tem que pagar porque fizemos mal para eles”, tudo bem dar uma coisa, o meu INPS é menor do que o INPS da Dilma, eu não sei o que ela fez da vida, ponto, acabou, se quiser cortar esse final pode cortar.
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