Depoimento de Joice Catarina Sabatke
Entrevistada por Carol Margiotte
São Paulo, 04 de dezembro de 2018
Entrevista número PCSH_ HV711
Revisão e Edição - Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 - Joice, bom dia.
R - Bom dia.
P/1 - Obrigada por ter vindo aqui hoje.
R - Eu que agradeço.
P/1 - E para começar, o seu nome completo?
R - Meu nome é Joice Catarina Sabatke.
P/1 - O local e a data de nascimento?
R - Eu nasci em Curitiba, em 07 de novembro de 1975.
P/1 - E, Joice, você sabe por que os seus pais lhe batizaram com esse nome - Joice Catarina?
R - Catarina, por causa da minha bisavó e, pesquisando a história de família, eu vi que tem muitas Catarinas, da minha bisavó para cima, na Alemanha, na Polônia - era um nome muito comum na época. O Joice é um nome americano, que parece que estava em moda na época. Havia uma executiva da indústria em que o meu pai trabalhava, que era Joice - e acharam bonito. Enfim, esse nome é americano e o Catarina é europeu.
P/1 - E o seus pais contavam histórias de como foi o dia do seu nascimento?
R - O dia precisamente não, mas no ano em que eu nasci nevou em Curitiba.
P/1 - Que curioso.
R - É, e depois nunca mais nevou.
P/1 - E falando nos seus pais, Joice, qual o nome deles?
R - O meu pai chama-se Paulo Sabatke Filho e a minha mãe chama-se Zélia Aparecida Farias.
P/1 - E o que você conhece sobre a história deles?
R - Da história da minha mãe... Ela é de uma família, para o lado do pai do meu avô materno, eles são nativos do Paraná, índios mesmo. Então, a minha bisavó - eu me lembro - a bisavó Maria, era assim bem indiazinha do Paraná. E do lado materno, já eram descendentes de europeus. Eu lembro que a minha bisavó pelo lado materno era tipo espanhola, eu não sei, seria Griten, eu não sei qual que... Holandesa, alguma coisa assim, mas bem conservadinha, bem arrumadinha, eram dois mundos assim... A minha mãe traz isso. O meu pai, ele vem... Os Sabatke migraram para o Brasil em 1859. Eles viajaram sessenta e oito dias em um barco a vela com um outro grupo de imigrantes da Pomerânia, então eles são pomeranos, uma terra que não existe mais com esse nome, hoje é um trecho da Polônia - mas era Prússia na época, território prussiano. Então, eles fugiram da fome mesmo. Eram trabalhadores que trabalhavam por dia e vieram tentar uma vida melhor. Então assim vêm os Sabatke com o contingente de imigrantes que chegaram por São Francisco do Sul e se fixaram no alto da Serra Catarinense, ali na região de Mafra. E ali fizeram a vida, ali começa a nossa história.
P/1 - E você sabe como eles se conheceram, os seus pais?
R - O meu pai e a minha mãe se conheceram em Curitiba. A família da minha mãe tinha um comércio, um mercadinho, em um bairro, e ela trabalhava... Ela era a mais velha de sete irmãos, e ela varria ali. O meu pai tinha vindo do interior, morava na casa de um irmão e passava todo dia ali, indo para o trabalho. Então começou a ter uma paquera, e daí o resto é história.
P/1 - E aí, quando eles se casaram, eles foram morar aonde?
R - No mesmo bairro. Tem uma história bacana sobre o meu pai e a minha mãe, porque diz que o meu pai passava sempre vestido de branco - eu acho que ele só tinha duas roupas, duas calças brancas. Então, imagina, em um bairro em que era tudo chão batido alguém passa vestido de branco, e aquilo chamou a atenção. E logo que eles começaram a se conhecer, ele dizia que trabalhava na Faculdade de Medicina - ou que estudava. Eu me lembro de que ele tinha uma carteirinha de estudante de Medicina, da Universidade do Paraná. Mas o fato é que ele trabalhava na lanchonete da Faculdade, limpando o chão mesmo - limpando, atendendo - mas ele contou essa história para a minha mãe, que ficou assim muito impressionada. E um dia, ela foi ao Centro da cidade. Disse: “Vou lá ver aonde é que está o Paulo”. E chega lá, ele está pintando a fachada da Faculdade. Então assim... Esse é um detalhe engraçado. Mas passou um tempo... Eu acho que eles ficaram... Entre namoro, noivado e casamento deve ter decorrido uns dois anos. E quando se casaram, foram morar no mesmo bairro, ali a uns duzentos metros de onde ficava o comércio e a moradia da família da minha mãe. Tinha um outro terreno, que o meu avô tinha kitnets de aluguel, então eles construíram uma casa, que foi a primeira casa, e que foi onde eu nasci.
P/1 - O bairro se chama...?
R - São Pedro. Vila São Pedro, no bairro Boqueirão, em Curitiba. Até hoje é uma periferia da cidade.
P/1 - Eu queria que você falasse um pouco de como os seus pais são - fisicamente e de personalidade.
R - Então... O meu pai continua sendo aquele rapaz de roupa branca. Assim... Ele não seguiu a carreira de Medicina, ele é comerciante e é uma pessoa assim muito expansiva - o Paulão. Todo mundo o conhece, ele se firmou na área comercial, fez a vida dele, fez a nossa vida e hoje, na maturidade - ele está com sessenta e sete anos - se dedica à coletividade, é voluntário do Observatório Social do Brasil. Então, ele é presidente do Observatório da nossa cidade onde, com a influência, ele não só junta mais voluntários como também exerce influência positiva sobre a administração municipal, observando os gastos do dinheiro público, questionando, fazendo pedidos de esclarecimentos. Então, acaba exercendo uma influência muito bacana, de baixo para cima, para que a cidade vá melhor. Falando um pouquinho do Observatório: é uma rede que já tem cento e trinta e cinco Observatórios no Brasil. Santa Catarina está formando a primeira rede estadual de Observatórios e ele é um personagem importante nesse processo. Muito bacana essa história, então é muito legal, eu fico muito feliz. A minha mãe, ela é uma pessoa... Da mesma forma que ela tem uma história de vida que traz dois mundos, ela também traz essa diferença: você olha, é uma pessoa super delicada, parece que vai quebrar, mas ela tem uma força, ela é a grande administradora, sabe que ela segura uma serenidade, não tem... É uma emoção muito grande assim, porque quando eu estava juntando as fotos para vir para cá, não tem como... Ao longo da minha vida, sempre quem esteve ao lado, nas fotos, foi o meu pai - ele é onipresente nas minhas fotos. Talvez a minha mãe sempre estivesse tirando as fotos, e eu tenho que tirar mais fotos com ela, porque ela é linda. Então assim... Quando eu vejo a força que eu tenho, parece que é do meu pai, mas é da minha mãe. Então, ela representa algo que, para mim, é muito novo: que é o feminino que eu tenho descoberto há muitos poucos anos. Eu tenho mergulhado nesse mundo do feminino e ela vivencia isso com uma intensidade desde sempre, essa força do feminino, que está tão em moda hoje, mas ela sempre foi... E ela é isso, ela é uma administradora, ela tem o que ela conseguiu, aos pouquinhos, de uma forma lá... Desde quando varria aquele mercadinho. Ela conseguiu ir formando um patrimônio, que ela poderia não fazer nada e ela continua trabalhando, porque ela tem essa motivação, ela tem essa... É muito legal, é muito bacana.
P/1 - Quer tomar uma água?
R - Eu acho que preciso.
P/1 - Se quiser um lencinho também, pode ficar à vontade.
R - Eu sou pura emoção, e ela vem.
P/1 - Licença, Joice.
R - Me borrei toda?
P/1 - Não, é só um fiozinho.
R - Vamos lá.
P/1 - Vamos lá. E os seus pais, além da senhora, teve mais algum filho?
R - Pode me chamar de você. Sim, a minha mãe teve cinco gestações, então eu tenho quatro irmãos. Desses quatro irmãos, tenho um irmão vivo. Que é o Paulinho. Eu fui a mais velha e aí, depois, nasceu o Paulinho. Eu nasci em 1975, em 1979 veio o Paulo Neto - que é o Paulinho - e em 1980 ela tem mais uma gestação que, nas últimas semanas, ela teve pressão alta e a criança veio a falecer - a Paulinha. Ela nasceu, mas já não estava mais viva. Depois ela teve uma gravidez, que não passou do terceiro mês, e em 1983 ela teve o nosso irmão Renato. Renato nasceu com bastante complicação, mas conseguiram... Os dois sobreviveram ao parto e aos onze meses ele começou... Aos seis meses, ainda amamentando, ele começou a ter crises como se fosse epilético.
P/1 - Convulsões.
R - Convulsões. E daí foi uma longa jornada até... Ele veio a falecer em 1992, então estava com nove anos, foi bastante... Foi sofrido para ele e para nós também. Era uma época em que a Medicina não tinha tantos recursos. O máximo, quando se falava de cérebro, era um eletro. Então assim... Suspeitava-se do que ele tinha e se dava remédios muitos fortes para evitar as convulsões, então foi essa...
P/1 - E como você acompanhava essas gestações? Era uma criança, você era uma criança.
R - Era. A Paulinha, eu me lembro de que eu levei o caixão dela no colo - eu e meu pai fomos lá enterrá-la, a minha mãe estava internada ainda. A minha mãe pouco se lembra dessa época, porque eu acho que a memória apaga. Foi fogo. 1992, quando o meu irmão morreu… Em 1992 eu já estava... Tinha passado dos quinze anos de idade, estava perto dos dezoito. Então, tudo o que eu quis foi sair da casa dos meus pais, e daí, com dezoito para dezenove anos, com dezoito anos completos, eu passei na Universidade Federal, em Jornalismo. E fui fazer Jornalismo em Florianópolis. Então, foi uma forma de sair porque, realmente, era muito triste. Foi muito pesado, mas passou.
P/1 - Tudo bem se eu falar sobre a infância, Joice?
R - Tudo bem.
P/1 - Quando você quiser tomar água, você pode ficar à vontade, de verdade. Eu sou controladora da água, eu peço mesmo para as pessoas tomarem, é importante. E eu queria que você falasse um pouco como era essa casa lá no Boqueirão.
R - Da casa que eu nasci eu não tenho muita memória. Tem fotos assim, era uma casa pequena, que serviu quando a família era só eu, a mãe e o meu pai. Quando ela já estava aumentando, porque a minha mãe sempre quis ter muitos filhos - ela queria ter cinco filhos - a gente construiu... Uns cinco quilômetros para frente... Uma casa que foi a casa da nossa infância. Então, era em um bairro que estava começando - é no mesmo bairro - mas a vila chama-se Vila Santa Inês. Era uma casa quadrada, foi construída... Bem anos 70 mesmo, quadrada, com laje, e era em uma área elevada. Então assim... Tinha uma rampa para chegar ao platô da casa e depois tinha mais uma rampa para chegar na lavanderia, atrás. E uma coisa que eu lembro, que foi muito legal assim, é que tudo estava por fazer, então a gente... O que eu lembro de lá, assim, quando fez a calçada, eu não sei se a gente não tinha... Acho que a gente não tinha dinheiro para comprar os azulejos, então a gente comprou caquinhos de azulejos e fez tudo de caquinho. Hoje é moda, mas a gente fez tudo de caquinho. E eu me lembro que era uma festa nossa, nos fins de semana, quando ia lavar aquela calçada; daí passava mais sabão ainda e a gente descia escorrendo como se fosse um tobogã. E esse bairro era um bairro todo de chão batido também, com o esgoto sanitário... Ainda não tinha chegado lá, então a comunidade se juntou, conseguiram manilhas e fizeram mutirões para encanar, canalizar aquele esgoto. Eu me lembro da terra, a lembrança é de terra, de calor, de brincadeira na rua, essa é a minha lembrança de infância lá.
P/1 - E você lembra da mudança para essa casa?
R - Eu não lembro da mudança, eu lembro da obra. Que a gente ia bater laje; então, eu era pequenininha - devia ter dois, três anos - mas eu lembro assim de gente indo, era essa função do construir. Então foi muito legal. E lembro, também, da minha mãe dizendo que um dia ela queria tudo arrumadinho, ter chinelinho para nós na porta. Então assim... Foi muito importante.
P/1 - E como era a divisão dos quartos nessa casa?
R - Ela tinha o quarto do casal e mais um, que era o quarto das crianças. E como a gente era pequeno - eu e o meu irmão, e depois o outro irmão - a minha mãe abriu uma passagem entre o quarto do casal e o quarto das crianças para poder atender às crianças. Então era isso, era dessa forma.
P/1 - E tinha alguma divisão de tarefa em casa?
R - Olha, eu não lembro de divisão de tarefa. Eu lembro que quando o meu irm ão já estava... O Paulinho já estava com os seus três anos de idade, a minha mãe e o meu pai abriram uma lavanderia industrial nos fundos de casa, compraram equipamento para lavar lençol, cortina, e eu... O meu irmão eu não sei, mas eu ajudava, eu ajudava ali com as coisas, eu ajudava. A gente ia, à noite, para dentro das empresas onde a gente pegava serviço para fazer. Ia buscar lençol, retirar cortina, depois ia lá colocar de volta. Então, foi Companhia de Águas do Município de Curitiba, hotel, Batalhão do Exército, tudo isso a gente ia pegando. O meu pai vendia sabão industrial, então eu acho que ele fazia parte da venda, conseguia esses clientes e eu, a minha mãe e o irmão dela íamos lá para atender. E o pai, provavelmente, ajudava também, mas é muito... Eu lembro assim essa função da lavanderia nos fundos da casa.
P/1 - Mas você tinha alguma responsabilidade específica?
R - Olha...
P/1 - Com a lavanderia?
R - Com a lavanderia eu ajudava, ou talvez atrapalhava. Teve uma vez... Até lembrei semana passada disso, em uma dessas empresas - eu acho que é na companhia de águas - existia uma sala que tinha uma mesa de reuniões daquelas de três metros, brilhante assim, envernizada, e depois da nossa passagem lá para prestar serviço essa mesa apareceu riscada, provavelmente por uma chave de fenda, e provavelmente fui eu. Eu não lembro de nada disso, mas paguei o pato. Eu me lembro de o meu pai vindo conversar comigo e eu imaginava o prejuízo que era, eu tinha um saquinho de moedas: “Pai, isso aqui pode ajudar a pagar”. Então são essas as lembranças que eu tenho desse período, era muito legal. O que eu lembro dessas madrugadas, voltando do trabalho, é que a gente parava para comer x-salada, e aí era tão bom, foi a primeira vez que eu comi palmito na vida foi no x-salada, e era muito... Então tem esse gosto de x-salada.
P/1 - E como era a sua relação com o Paulinho?
R - De amor e ódio. A gente volta e meia estava brigando, acho que a gente brigou na infância tudo o que tinha para brigar, porque somos grandes companheiros.
P/1 - Quais as brincadeiras de que vocês mais gostavam de fazer juntos?
R - Brincadeira...
P/1 - Ou como vocês se divertiam como irmãos?
R - Acho que era brigando mesmo. Assim... Eu me lembro de que o primeiro dente que eu derrubei, ou que ele derrubou, foi um batendo no outro. Assim... Era briga mesmo, tinha uma diferença... Porque quatro anos hoje não é nada, mas era uma diferença grande naquela época. Então a gente eu acho que não tinha muita conversa não. Com o tempo, depois de grande, é que a gente começou a ter as mesmas conversas.
P/1 - E você chegou a conhecer seus avós?
R - Sim, tanto a mãe do meu pai, a mãe da minha mãe, os pais, eu tive convívio por pelo menos dez anos de vida com esses avós e foi...
P/1 - E você lembra quais os nomes, tanto do lado do pai quanto da mãe?
R - Sim, sim. Do lado do meu pai é Paulo Sabatke - e daí o meu pai é Paulo Sabatke Filho e o meu irmão é Paulo Sabatke Neto. E a esposa dele, Emília. Essa minha avó Emília era, assim, uma exímia jogadora de truco, eu acho que ela fumava também e, olha, era uma pessoa muito bacana, muito espevitada, eu acho que essa é a palavra. E do lado da minha mãe, é Laura - Laura Griten. E o avô é José Farias. Vô Jeca, que a gente chamava. Então, os avôs mais quietos e as duas avós mais ativas. A avó Laura empreendedora, ela ia para o Centro da cidade comprar coisas para os armarinhos do mercadinho dela, ela era a empreendedora - então a minha mãe traz isso dela. E a minha avó Emília é muito sociável, é muito matriarca da família, assim, puxando, então...
P/1 - E em que momentos vocês visitavam os seus avós?
R - A minha avó Laura, a gente morava perto, morava quase que no mesmo bairro. Então a gente visitava quase que todos... Todo final de semana era almoço na casa da avó, havia uma proximidade. E a minha avó também tinha... A filha mais nova dela é um ano mais nova do que eu, então a minha parceria de infância não era tanto o meu irmão, que tinha uns quatro anos de diferença, mas a Andreia, a irmã mais nova da minha mãe, que ela tinha uma idade muito próxima à minha. Então, a gente é muito próxima. Era todo final de semana e tinha isso. E já a avó Emília, a avó Mia, como ficava a mais de cem quilômetros lá a cidade dela, Mafra - Butiá do Lajeado, que é o Distrito - então eram, realmente, mais espaçadas as visitas, ou quando a gente podia ir para dormir no sótão lá da casa dela. É uma família bem numerosa, eram cinquenta primos até quando eu parei de contar, mas a família continua, é bem grande a família.
P/1 - Em que momentos todo mundo se reunia?
R - Era Páscoa, Natal, essas épocas assim. Então assim... Se reuniam.
P/1 - E tanto do lado do pai quanto da mãe tinha alguma tradição? Assim... Pensando mesmo nessa descendência, tanto da parte da mãe, que tem a bisavó que era índia...
R - Não, não tinha. Do lado da minha mãe não tinha nenhum ritual; do lado do meu pai, de vez em quando, tinha festa da igreja. Então eu me lembro de que a minha avó fazia a luski. Luski é uma comida enrolada com folha de repolho, ela usava folha de repolho e fazia um arroz com carne de porco enrolado assim e acomodava em uma panela, cozinhava no vapor - era o que a minha avó preparava para oferecer como prenda. E é isso tudo que eu lembro, porque eles foram perdendo também o idioma, não foi cultivada lá naquela região a tradição deles, então foi algo que foi se perdendo.
P/1 - E pensando nesse seu núcleo familiar, de pai, mãe e você e seu irmão, quais momentos em que vocês ficavam os quatro juntos? Ou se você tem alguma lembrança dos quatro juntos?
R - Trabalhando. Nós trabalhávamos juntos. Então, se você me pergunta, com certeza, a gente teve muitos momentos na vida, mas é basicamente trabalhando que a gente se juntava, a gente trabalhava junto.
P/1 - E o que é que a menina Joice queria ser quando crescesse?
R - Me perguntaram isso na quarta série, a professora. E é engraçado que foi uma professora tão importante, mas eu não lembro o nome dela. E ela fez a pergunta para a turma toda e eu disse que queria contar a história da família. E, desde então, eu tenho feito isso aos pouquinhos. A vida vai se apresentando e a gente vai ganhando a vida, vai fazendo a vida, mas sempre que eu tenho um tempo assim eu venho buscando um pedacinho, outro pedacinho. Então, o que eu contei no início ali, da jornada da minha família, eram essas pessoas. Ninguém sabia, eu comecei a juntar... Então é isso, perguntar de uma forma pura, era isso, eu queria contar a história da minha família, saber de onde a gente veio. Lá, menina, era o que a menina queria fazer. Então eu comecei a escrever, escrever e me tornei jornalista.
P/1 - Antes de a gente chegar nessa parte da Faculdade, você falou da escola. Eu queria que você fizesse esse resgate, se você conseguir, do primeiro dia ou desse comecinho na escola, se você se lembrar.
R - Sim, a primeira escola em que eu estudei foi nesse bairro, no Boqueirão. E era... Para chegar lá, tinha que passar da Vila Santa Inês, passar por um BNH - que eram aqueles conjuntos habitacionais gigantes - e chegar lá na escola. Então a escola, ela fazia divisa... Vinha o pessoal da vila, o pessoal do BNH e tinha o pessoal da favela, atrás - tinha um riozinho e uma favela. Então a escola juntava todo mundo. Escola Municipal Érico Veríssimo, nome bonito. Eu fiz o meu pré ali do lado e fiz a primeira e segunda séries. E foi uma escola de mundo assim, porque naquele contexto eu era privilegiada, eu morava na Vila em cima. Então assim... Era impressionante você se dar conta de que tinha amiguinhos que a mãe não tinha como ler o bilhete que a escola mandava porque não era alfabetizada. Então, dar-se conta daquela realidade foi muito importante; foi muito importante para a minha vivência aprender a conviver com pessoas tão diferentes. A convivência nessa escola - na primeira e segunda séries - foi importante, importante viver greve de professores. Eu me lembro do primeiro dia, na primeira série, minha professora, uma baixinha, cabelo curto, bem focada. E ela chegou e a primeira coisa que disse para aquela turma de sete anos de idade foi: “Não me chame de tia porque eu não sou irmã nem do pai, nem da mãe de vocês, eu sou professora e vocês estão aqui no primeiro de muitos anos de estudo. Eu vou escrever aqui no quadro quantos anos serão necessários para que você conclua os estudos até o final de uma Faculdade”. Eram dezessete anos de estudo pela frente e foi um choque de realidade assim muito grande: “Eu sei que muitos de vocês não vão concluir e tal, mas foi o que eu precisei estudar para estar aqui, então vocês me respeitem”. Botou uma moral muito grande. Então assim... Uma professora muito bacana. A professora de segundo ano, ela trouxe o lirismo para mim, essa dimensão do escrever assim. Eu me lembro de que foi em uma sala do segundo ano que eu escrevi a primeira redação, onde acontecia o seguinte: caía um avião e os membros da Aliança Democrática estavam todos lá: Ulisses Guimarães, Luiz Ignácio Lula da Silva e o que veio a ser presidente, o Tancredo Neves. Eles todos morriam. Agora me pergunta: de onde é que eu tirei isso? Graças a Deus nunca aconteceu essa história, mas é fato que a gente perdeu... Daqueles três, perdemos dois. Mas era uma esperança da democracia na época. Eu me lembro, falando de política, eu lembro... Eu no prezinho, tinha uma estagiária, uma professora muito bonita, uma estagiária no prezinho e discutimos sobre política. E ela era do PDS, eu era do MDB - que era o que juntava toda a força democrática na época. E debatendo, “Não, não pode ser”. E eu me lembro de que o PDS era uma coisa lá do interior, da terra da minha avó, que todo mundo era do PDS lá, aquela coisa. E essa professora, ela também fumava em sala de aula, ela fumava e fazia uns círculos - eu não sei como é que fazem isso - e a gente ficava: “Vai professora, faz bolinha, faz bolinha”. Então assim... Essa vivência foi muito interessante, muito rica em muitas coisas. E voltando para o segundo ano, essa professora não fumava, do segundo ano, mas ela deu essa abertura de eu me perceber como alguém lírico, de a gente trabalhar poesia. Então assim... Naquele cenário de escola pública de bairro, fazer isso e eu me perceber assim. E assim... De a professora olhar e dizer assim: “Joice, você é muito boa para estar aqui”. Eu não tinha consciência disso, o que é que era, enfim, coisas da vida. Naquele momento, a minha família... O meu pai conseguiu um outro emprego e a gente foi morar em uma área mais central da cidade, o bairro Parolim, depois Água Verde, que é quase no Centro de Curitiba. Então isso representou uma mudança na vida da família. Mudamos para lá, os cinco - o Renato estava conosco. Foi muito legal e isso durou uns dois anos que, daí, uma grande mudança quando a gente sai de Curitiba, o meu pai deixa de ser funcionário da Companhia (inint) [00:31:13] e passa a ser um distribuidor em Santa Catarina. Então, ele volta para o estado de origem dele, com trinta e três anos, três filhos e a esposa, e abre uma distribuidora da marca Gelato, uma marca de sorvetes - porque ele já trabalhava como funcionário da multinacional. A gente vai para lá e começa uma nova etapa da vida que já vai para trinta e três anos agora este ano.
P/1 - Em que cidade?
R - Itajaí. Primeiro a gente se mudou para Blumenau, que era onde já tinha uma estrutura, e ficamos seis meses lá. E depois ele analisou que, realmente, Itajaí era um polo logístico, então era melhor a gente estar em Itajaí. E assim, morar na beira da praia, tudo mudou, tudo mudou na nossa vida.
P/1 - E como isso era conversado em casa?
R - Há uma expectativa muito grande. Primeiro o pai foi em agosto ou setembro do ano e a gente ainda estava com escola, estava na quarta série já e eu lembro, quando eu fiz dez anos, ele mandou um telegrama, porque assim... O meu pai sempre foi representante comercial, então ele viajava, ficava sei lá quanto tempo fora, e daí eu tinha febre. E a forma de comunicação era telegrama. E quando eu tinha dez anos já existia telefone e tudo, só que ele fez questão de mandar um telegrama lembrando. Isso foi em janeiro, a gente já livre das aulas, a gente fez a mudança para Santa Catarina, se mudou, e a gente estava junto. Então assim... Mais uma vez a empresa juntou, o empreender juntou.
P/1 - E qual era a expectativa nessa sua cabeça de criança ainda?
R - A expectativa nossa maior era com a mudança para Santa Catarina, porque a gente ia mudar para Blumenau, um bairro chamado Badenfurt, que é afastado do Centro, que as pessoas, naquela época - eu acho que hoje continua - ainda falavam Alemão dentro de casa. Então a gente tinha toda essa expectativa de resgatar uma vivência que a gente não tinha tido e, junto com isso, a gente também queria trazer a avó para morar junto - a avó Mia já estava viúva, na época. Aí, a nossa maior expectativa é: vamos trazer a avó para morar com a gente. E a minha avó já tinha aceitado e tudo. E naquele janeiro, ela reúne os filhos dela, que moravam no interior, próximos dela, num domingo, ela se despede deles e todo mundo sabia que ela iria morar com o Paulinho - o meu pai é o Paulinho, lá no interior. E, no outro dia, ela não acorda. Então assim... Ela se despediu. Provavelmente ela sabia que já estava indo, então foi bem interessante essa passagem dela.
P/1 - E como foi no dia seguinte receber essa notícia?
R - Aconteceu que ela morreu dormindo. Ela era cardíaca já, era rebelde, não gostava de tomar remédio e a gente não imaginava que fosse. Mas assim... Ela fez tudo direitinho, ela se despediu dos filhos de uma forma que todo mundo foi para casa tranquilo, que ela ia estar indo para algo melhor, só não sabia o que era. Bem interessante. E naquele mesmo ano, que foi 1987, essa minha avó - a avó Emília - foi no início do ano. E, em setembro, foi a minha avó Laura. Daí essa sim foi um AVC fulminante, foi de uma hora para outra.
P/1 - Vou só tirar um pedacinho de papel aqui, Joice.
R - Sim.
P/1 - Licença. E como foi a casa nova? Como foi chegar na casa nova?
R - Então... No bairro, no Badenfurt, não tinha casas novas disponíveis. Um bairro antigo... Então a gente alugou a metade da casa da dona Lílian. Era uma viúva que tinha uma casa grande e ela alugava uns quartos para estudantes e a parte da gente ela alugou para nossa família. Então a gente fechou uma porta, colocou um compensado e morou em metade da casa. Foi muito legal, foi uma experiência diferente, uma experiência de vida diferente, o Badenfurt, para mim. O que eu lembro, lembro de muitas coisas, foi pouco tempo, mas foi uma experiência muito legal. Lembro das árvores frutíferas nas ruas, carregadas, coisa que a gente não tinha em Curitiba. Eu achava que goiaba era verde e dura, porque era como a gente pegava; a gente via uma goiabeira com um negocinho, ia lá e arrancava, não dava tempo de crescer; daí a gente chega no Badenfurt e estão aquelas goiabeiras derramando goiabas maduras, vermelhas e amarelas e brancas, e a gente se deliciando com isso. De ir pescar no rio Itajaí-Açu, ir lá pescar, então tem esse resgate assim de um bairro que é onde fica a Companhia Hemmer, de conservas, que é centenária. Tudo girava em volta daquela indústria, de fazer chucrute, de fazer essas coisas de comida alemã, então a gente viver aquilo foi muito bom.
P/1 - E é uma época também de pré-adolescência?
R - É, eu estava com dez para onze anos.
P/1 - E a sua mãe conversava com você sobre as alterações no corpo?
R - Não, a minha mãe é muito tímida, então eu me lembro... Nessa época, tinha muita divulgação do Ministério da Saúde sobre a AIDS, e aí tinha um que passava na TV, que dizia assim: “Então utilize a camisa de Vênus, a camisinha”. Eu disse: “O que é isso? Uma roupa?” E eu perguntei para a minha mãe: “Mãe, o que é camisa de Vênus, o que é camisinha?” E daí a minha mãe sentou comigo assim: “Filha, nós precisamos conversar”. E daí a conversa não andou. Então assim... A gente nunca teve grandes conversas, por conta da timidez da minha mãe. E eu entendia que não tinha que ficar fazendo muita pergunta.
P/1 - E como foi entender o que estava acontecendo com o seu corpo?
R - Demorou um pouco porque logo na sequência, quando a gente mudou para Itajaí - ainda não existia alarme eletrônico na época - o meu pai arranjou um dobermann, treinado pela polícia. E o dobermann, quando eu tinha 11 anos, em junho de 1987, ele me atacou. Então ele cortou o meu rosto todo. Aqui foram 50 pontos, aqui foram uns 15 pontos, eu saí com o rosto costurado. Viva, mas com o rosto costurado. E o médico falou para o meu pai, para a minha mãe, ele disse: “Olha, quando ela ficar mocinha, quando vier a menstruação, ela vai poder fazer... Daí para de crescer, o corpo dá uma estabilizada e ela vai poder fazer uma plástica. Então, ficar mocinha era a possibilidade de fazer a plástica. Então assim... Começou e daí isso foi até os 15 anos, porque demorava. nunca ficava mocinha, então (inint) [00:38:45] demorou muito assim, para mim foi... AÍ teve um dia em que eu disse: “Não, pronto, não espero mais. Pai, me leva lá para Florianópolis, vamos arranjar um cirurgião plástico”. A gente ficou andando o dia inteiro lá em Florianópolis e não achou o cirurgião. Quando chegou em casa, chegou a menstruação. Então, a minha relação sempre foi assim. E foi isso.
P/1 - Tudo bem a gente falar sobre esse ataque do cachorro?
R - Tudo bem, tudo bem.
P/1 - Não sei se você lembra como é que aconteceu.
R - Lembro, lembro.
P/1 - Como foi a decisão de o seu pai trazer esse cachorro também?
R - É porque como a gente estava empreendendo, então a gente morava no mesmo lugar em que era o depósito - tinha lá um apartamento improvisado, a gente morava ali. E a gente vivia preso o tempo todo, e conseguimos aquele cachorro. Aí, foi construído um canil para ele num canto. Era um dobermann, o nome dele era Chantal. De pedigree, treinado pela polícia, mas era um dobermann. E a minha tarefa na empresa - como eu tinha 11 anos - era cuidar do dobermann. Então eu passeava com o dobermann, tinha uma corrente específica para andar com o dobermann, com umas travas, um enforcador, então eu passeava com esse cachorro. Eu tinha 11 anos e o meu irmão, que era quatro anos mais novo, a função dele era lavar a tigela da comida do cachorro. Eu tinha que andar com o cachorro e alimentar o cachorro. E se fazia tipo um arroz com uma carne assim, e aquilo era a comida do cachorro. Todo dia a gente pegava aquela panela, e daí eu entrava no canil, pegava aquela tigela vazia, o meu irmão lavava, tirava os resíduos e eu colocava, servia de volta. E assim eu tinha desenvolvido uma amizade com o cachorro, porque eu, desde pequena, já brincava com cachorro, cachorros menores, e andava com o cachorro. O cachorro, não é que ele fosse dócil, mas era um cachorro comportado. E daí eu fiz errado, porque eu entrei no canil enquanto o meu irmão foi fazer a função dele, a panela de comida ficou ali, eu entrei no canil para brincar com o cachorro. Só que assim... Você não brinca com um dobermann, não se deve brincar com um dobermann, não é para isso, não é um cachorro para brincar. E o cachorro olhando a comida e, provavelmente, ele começou a rosnar, alguma coisa. E eu gritei. Eu lembro que eu gritei com o meu irmão: “Paulinho, traz esse pote”. Meu irmão estava demorando e, no que eu gritei, o cachorro me avançou. O bom que assim... De quando eu brincava com cachorro pequeno, eles também atacavam com a boquinha deles, então eu desenvolvi o reflexo de proteger a minha jugular, porque ele veio na jugular e pegou o rosto.
P/1 - E aí quem te socorreu?
R - Daí o meu pai estava dentro de casa ouviu, porque o meu irmão começou a gritar. E ele veio com um pedaço de madeira e... “Chantal!”. E daí ele... A cena era: o cachorro estava em cima de mim e, quando viu o pedaço de madeira, ia avançar nele também, ele soltou a madeira e disse: “Sai”. Aí, o cachorro saiu. Depois que eu fui socorrida - fui levada para o hospital - até cogitaram sacrificar o animal. Só que a gente tinha que ver também se não era raiva que o cachorro estava, então tinha que ficar em observação. Aí, nesse período em que o cachorro ficou em observação, a gente viu que a gente tinha feito errado com ele, então não sacrificou. Ele viveu mais uns nove anos conosco até o finalzinho da vida dele e nunca mais teve nenhum episódio de... Se respeitou o cachorro.
P/1 - Mas, e como foi com você e os machucados? Como foi se cuidar e...
R - O meu rosto ficou deformado, aqui deu uma queloide, que era o que eu queria fazer essa cirurgia plástica. Diziam que o Pitangui colocava as rugas atrás da orelha na época; eu queria que alguém colocasse aquela queloide atrás da minha orelha, mas tinha que esperar. Então o que eu fiz? Eu ia para a escola, estudava, lia... Acho que com 13 anos eu tinha lido toda a biblioteca infantil do Sesc. Escrevia e lia, eu lia e escrevia, então foi na escrita... Porque aí era só eu, eu me isolei. Eu ia para a escola, não praticava muitos esportes, nunca tive muito jeito para esportes. Antes disso, lá em Curitiba, eu fazia dança, parei com a dança também, não dei sequência. Então assim... Eu me fechei, é verdade que eu me fechei, mas... Eu era complexada também por ser baixinha. Aí eu devo ter enchido o saco da minha mãe, até que um dia, não sei quanto anos - se eu tinha 14 anos, que idade que eu tinha - ela até me levou a um psicólogo para ver. E aí o psicólogo explicou: “Não, tudo bem”. Sei lá, hoje eu sei que é possível sim que eu tenha crescido menos, a minha filha faz tratamento para crescimento, então é possível sim, mas também, depois que eu entrei no Jornalismo, eu vi que a maior parte das jornalistas são baixinhas também, então está tudo certo, eu me encontrei.
P/1 - Em que momento foi esse encontro, essa decisão: é Jornalismo?
R - Eu, desde a adolescência, queria fazer Publicidade. Eu queria... A vontade era de contar coisas para as pessoas. Só que Publicidade só tinha em Curitiba, não tinha Publicidade na minha cidade, não tinha em Florianópolis na época. Quando eu comecei a me preparar para o vestibular, comecei a considerar essas alternativas. Então, Curitiba era muito longe, não queria voltar para Curitiba, e também não queria ficar em Itajaí, queria sair, ter outros ares. A Faculdade era um bom motivo para sair da casa dos pais. Então eu disse: “Poxa, Jornalismo é comunicação, está na mesma área”. E aí eu fui fazer Jornalismo na Federal. Então foi assim que o Jornalismo surgiu, era a possibilidade de escrever, que era uma coisa de que eu gostava muito.
P/1 - E como é que seus pais receberam essa notícia, essa decisão?
R - A partir dos 16 anos - 15, 16 - eu comecei a fazer teatro na escola. E eu adorava teatro, eu gostava de ler, gostava de escrever, me liberava bastante essa parte do lúdico. Mas, para os meus pais, era um pesadelo ter uma filha artista de teatro. Então assim... O teatro representou uma abertura, imagina, para quem ficou dos 11 até os 15 trancada, e aí está assim: “Ok, agora fiz a plástica, é isso”. Eu me lembro de que eu cheguei... Depois da plástica, fui até o médico e disse: “Doutor, o meu rosto está assimétrico, um lado é diferente do outro, continua”. “Joice, o corpo de todo mundo é assimétrico”. Eu disse: “Ah”. Então assim... Quando eu me libertei disso, o que dava para fazer, eu fiz. E aí, coincide com essa época o teatro, entra o teatro na escola, eu começo a me desenvolver e a me encantar com isso. Começo a falar para a minha família: “Olha, eu vou fazer teatro na UNIRIO”. Nossa, era um pavor para eles imaginar a filha. E assim: “Se vocês não me ajudarem, eu vou trabalhar de bancária durante o dia, fazer teatro à noite”. Uma coisa assim. Aquele enredo não era meu, eu ouvi alguém falando e disse: “Eu vou”. Fez parte da minha adolescência, de forma que quando, no último ano antes do vestibular, eu falei: “Olha, eu vou fazer Jornalismo”, foi um alívio. Pelo menos era uma profissão estabelecida. Então, nunca se opuseram muito. Para quem a filha ia ser teatreira e virar jornalista já era um avanço. Então, foi assim.
P/1 - E quando você passou no vestibular?
R - Passei, foi um orgulho muito grande, porque nunca... Na nossa família, a gente não tinha histórico de universitário, de alguém que foi para uma Universidade - Universidade Federal. Como eu era muito estudiosa, eu fiz vestibular na minha cidade, que é uma particular, e fiz também para a Federal - e passei nas duas. Na minha cidade eu passei em primeiro lugar geral. Então, se eu quisesse, com a nota que eu fiz, Odonto... O que eu quisesse fazer, eu poderia ter feito. Então, foi muito legal de chamarem para dar entrevista na TV local, aquela coisa toda. E eu decidi ir para Florianópolis e foi uma boa coisa que eu fiz, porque abriu mesmo o horizonte, de ver outras realidades, foi muito legal.
P/1 - E para os seus pais como foi essa decisão?
R - Eu já fui trabalhando antes, eu fui mostrando. Quando eu tomei a decisão de ir para o Jornalismo, eu fui conhecer pessoas que faziam jornalismo local, ali, na nossa localidade - era uma escola que estava começando, ainda tinha problemas estruturais, não tinha laboratório, enquanto a Federal já tinha muitos anos, já tinha começado em 1979 o curso. Então assim... Era um curso de referência, então se era para fazer e não tão longe assim, os meus pais me ajudaram, me deram estrutura, me ajudaram a alugar apartamento, depois eu comprei apartamento com a ajuda deles, então sempre me deram todo o apoio assim para esse estudo.
P/1 - E vocês chegaram a comemorar essa passada no vestibular?
R - Teve sim, teve mais por conta das festas, que são típicas. Acho que até hoje tem, de quebrar ovo na cabeça, jogar farinha, então eu cheguei toda suja em casa. E eu me lembro até de que eu tinha cabelo comprido e eu tinha decidido, dentro do meu projeto jornalístico... Na época, as jornalistas que apresentavam, elas estavam todas de cabelo curto, e daí foi a hora que eu disse: “Não...”. Estudei bastante: “Eu vou cortar o meu cabelo também; quando terminar o vestibular eu vou”. Aí cortei, fui lá no cabeleireiro, já tinha conversado com ele, o corte Joãozinho, cortei e fui lá ver o resultado. Porque eu sabia que tinha passado, e tomei ovo na cabeça. Quando eu cheguei na casa da minha mãe, toda suja, ela não se chocou com o fato de eu estar toda suja, mas o cabelo, ela assim: “Meu Deus, cortaram o seu cabelo”. Mas tinha sido eu que tinha cortado o cabelo mesmo.
P/1 - E como é que foi a Faculdade, Joice?
R - Foi muito interessante. Saí para outra dimensão, no sentido assim, de interação. Os conteúdos ideológicos, que não faziam parte da minha vida; a minha vida era muito simples. A nossa vida era trabalhar, vender, comprar, tocar a vida. E daí você vai para uma Faculdade... Não sei se toda Faculdade é assim, mas lá na Federal é assim muito conteúdo ideológico mesmo. Então, ter acesso a isso era uma coisa para a qual a gente não estava preparado, o segundo grau não preparava para aquilo, então foi interessante e foi interessante que, na minha turma de Faculdade, tinha pessoas mais velhas, os calouros que entraram comigo, os demais calouros. Eu tinha dezoito, mas tinha gente com trinta anos de idade, tinha gente com quarenta anos, família. Então quando vem aquele conteúdo eles questionam também o porquê de estar sendo colocado. O que era? Então assim... Foi debatido e os professores tiveram que justificar por que eles estavam doutrinando a gente, vamos dizer assim. Estavam colocando os conteúdos. Então foi interessante isso porque a gente recebeu e começou a filtrar: “Espera aí, mas isso é uma coisa que ele está querendo colocar, isso não é a única verdade, é a verdade dele”. Então assim... Ter debates com professores, de o professor dizer claramente: “Olha, por que o senhor e a senhora estão fazendo Jornalismo aqui na Universidade Federal?”. Aí a turma fica assim: “Porque vocês querem aparecer”. O jornalista: “Então, enquanto vocês estiverem aqui dentro da Universidade, que é bancada com o dinheiro público, vocês vão ouvir o que nós temos a dizer e vamos botar as opiniões de vocês no bolso. Quando vocês saírem desta Faculdade, com o diploma, aí sim vocês vão ter as suas verdades”. Então é interessante. Porque eles tiveram que se colocar claramente. Então eu vejo egressos da mesma escola, ou de outras escolas, que talvez não tenham tido a mesma oportunidade desse desenvolvimento desse pensamento crítico. E daí sai reproduzindo também, como se fossem únicas verdades, aquilo que eles ouviram. Porque embora carece, a gente carece de um pensamento de base, então foi muito legal. E a Universidade Federal me deu muitas oportunidades que eu não teria em lugar nenhum, ainda caloura, para o jornal do curso. Eu tive a oportunidade de passar dois dias com o Betinho, o Herbert de Souza, no auge da Campanha da Fome, que os vinte e três milhões de pessoas famintas no Brasil... Então ele estava fazendo aquela ‘cruza’, ele portador de HIV, debilitado, uma pessoa iluminada, foi muito legal. Eu passei dois dias com ele, ele tinha ido para Floripa para receber o Doutor Honoris Causa (inint) [00:53:45], pela UFSC, pela contribuição dele. Então assim... E em uma das cadeiras teóricas, a gente tinha acabado de utilizar o livro dele Como fazer análise de conjuntura, que ele tinha escrito anos antes. Foi muito legal ver como ele estava atuando, o legado, uma equipe de cinegrafistas o acompanhava para estar gravando as mensagens que ele queria passar - era o Ibase, eu acho que era o Instituto, eu não sei onde esse conteúdo foi, porque de vez em quando eu procuro e não vejo - mas ele tinha um pensamento e passava, era uma pessoa... Foi muito legal assim.
P/1 - E você tinha alguma responsabilidade no evento? Tinha que fazer alguma coisa?
R - Eu fiz o perfil dele, foi a primeira grande reportagem que eu fiz foi o perfil do Betinho. Foi entrevistá-lo, ficar dois dias com ele entrevistando.
P/1 - E tem alguma coisa que ele tenha dito, alguma pergunta que você fez que tenha sido marcante por alguma razão?
R - Eu me lembro de que uma coisa que ele dizia, que era muito interessante... porque ele era portador de HIV... Dizia assim: “Como eu sou hemofílico e peguei HIV em uma transfusão, então é como se eu fosse santo, mas eu não sou santo”. Então ele tinha questão assim... E mesmo os críticos do Betinho, na época, diziam assim: “O Santo Betinho”. Mas não. Ele queria tomar uma cerveja, ele queria... Então assim... Uma pessoa extremamente humana, muito bacana, foi muito legal ver isso.
P/1 - E como foi esse processo de escrever o perfil dele?
R - Foi difícil, foi difícil. Por quê? Primeiro que eu não tinha experiência, era a primeira. Segundo que eu gravei demais, eu tinha um gravadorzinho - aqueles da Sony, com fitinha - e acho que foram umas duas, três fitas gravadas. Então assim: “Vai decupar tudo aquilo? Como é que vai ser?” E o mais difícil ainda foi que, como boa caloura, eu fiz o copião do texto. E daí eu fui pedir para um e para outro professor, e aí tinha o professor de uma linha de pensamento e o professor de outra. Então, o que eu escrevia para um não servia para o outro. Mas foi muito interessante, foi um desafio, está publicada essa matéria, eu devo ter ela guardada, mas essa construção foi muito difícil. Porém, me fortaleceu também por entender que quando eu estou diante de alguém, sim, eu posso ter o registro completo, mas eu tenho que ter um roteiro daquilo para trabalhar e que eu devo seguir o meu pensamento, e não ir pela cabeça de outros; então, foi bem legal.
P/1 - Você lembra do título que você deu para essa...
R - Não lembro.
P/1 - A gente pode...
R - Tem que resgatar.
P/1 - A gente pode pegar depois. E você lembra da repercussão desse material publicado? Seja na família ou com os amigos?
R - Foi, assim, no curso: “Pô, uma caloura fez essa matéria?” Isso teve esse destaque de a gente ter se colocado diante desse desafio de fazer - fomos eu e o meu amigo Lúcio, que foi um amigo meu durante o colégio todo, um grande amigo, a gente fez teatro junto e a gente entrou na Faculdade juntos, assim... Foi um irmaozão meu, e ele estava junto nessa jornada, nessa reportagem comigo. E na família eu não me lembro porque eu fui desenvolvendo, era como se fosse um mundo paralelo. Então eu não me lembro nem se eu mostrei para os meus pais essa matéria, eu não me lembro.
P/1 - E a sensação sua de ver o primeiro material assim publicado, você...
R - Foi legal, foi bem legal. Porém, mais orgulho que essa eu tenho de uma outra reportagem que eu fiz, talvez antes... Não, foi depois. Ou foi antes? Foi no mesmo semestre. Que era uma reportagem... Toda semana a gente tinha que escrever um texto para a disciplina de redação, e o professor falou assim: “Escreva sobre alguma coisa da cidade de onde vocês vieram”. E daí eu pensei: “O que eu vou falar?” Eu disse: “Eu vou falar da Trude, do bar da Trude”. Que era um bar onde a gente ia na época do teatro, um bar na beira do cais - Itajaí é uma cidade portuária - e me chamava atenção. Além de ser um bar bem alternativo, bem antigo, no salão de trás ele tinha as bandeiras dos navios que pararam lá, que a tripulação foi fazer festa lá. E a Trude devia ter, sei lá, uns oitenta anos. E eu sentei ali com a Trude, voltei no final de semana e sentei e conversei com ela sobre a história. Como é que era... Ela comentou que, nos anos 60, os intelectuais da cidade também iam ao bar dela e citou alguns nomes. E entre os nomes citados estava o do Governador do Estado de Santa Catarina naquela época. Aí eu não tive dúvida: cheguei segunda-feira lá no curso de Jornalismo, levantei o telefone, liguei para o Palácio do Governo e falei assim: “Eu gostaria de falar com o Governador Antônio Carlos Konder Reis”. “Quem é?” “Joice, do Jornalismo, da Federal”. Ele atendeu e eu coloquei o objeto da entrevista e ele confirmou: “É, realmente, nós íamos, e tal”. E é óbvio que eu usei aquela declaração. Foi lindo no texto. Quando eu entreguei para o meu professor ele, primeiro, não acreditou na temática que uma caloura traz, em um bar de marinheiro. E depois não acreditou que eu tivesse falado com o Governador. Disse: “Falou?” “Falei”. E foi para o jornalzinho também.
P/1 - Que legal.
R - Então, foi bem legal de entrar por essas... Você vê que são duas histórias de vida.
P/1 - E em que momentos você voltava para casa, Joice, durante a graduação?
R - Quase todo fim de semana, porque são noventa quilômetros. Na época, eu já tinha carro também, então eu... Nossa, e sentia tanta saudade que no meio da semana eu ligava chorando. Mas era o meu objetivo e os meus pais me ajudaram. Diziam: “Não, fica aí, vai, desenvolva”. Sempre deram esse apoio.
P/1 - E qual era a expectativa, ou os planos, para quando terminasse a graduação?
R - Não tinha muitos planos. Eu tinha um namorado na época, lá na cidade de origem, lá em Itajaí, e eu ia indo. Acho que sempre pensei em empreender na área, ter um negócio na área de comunicação, sempre pensei. Porque era muito restrito o campo de atuação como jornalista de redação, a gente tem um jornal pequeno, que não seguia o Manual clássico do jornalismo, é bem popular, bem tendencioso, não era onde eu queria me ver trabalhando - o Diarinho. Então eu imaginei sempre alguma coisa de assessoria, sempre imaginei empreender, tanto que no final da Faculdade, dentro da Universidade, o SEBRAE lançou o curso que é o Crie - era uma base para criação de empresas, acho que o público preferencial ali eram os servidores públicos. Floripa tem muito servidor público e estavam na faixa dos quarenta, cinquenta anos de idade e já estavam prestes a entrar para a aposentadoria, mas ainda muito jovens. Então, seria um estímulo para eles empreenderem. Mas eu soube do curso e fui lá fazer - eu era caloura, estava com vinte anos, fazendo curso de criação de empresas. Eu sempre me preparei para criar uma empresa, empreender sempre foi alternativa A, eu não sabia bem no quê, e daí a coisa foi se desenhando. No final do curso eu desfoquei para a área de televisão, encaminhei-me para a área de rádio, fiz... Eu trabalhei em rádio, o meu primeiro emprego, com carteira assinada, foi em rádio, como repórter e produtora, já no primeiro ano de faculdade. Ok, fiz rádio, trabalhei um pouco com internet, estava começando em 1995 a internet, comecei a trabalhar, disse assim: “Mas isso aqui...”. Eu queria tudo, mas tudo junto, e daí eu vi que era produção de conteúdo hoje, mas era produção editorial, era o que eu gostava de pegar. Assim... Pega uma ideia e faz uma revista, faz um informativo. Eu gostei sempre, muito, da área impressa, porém mais do que isso, sobre a geração do conteúdo direcionado. Sempre gostei. Tanto que o meu Trabalho de Conclusão foi um jornalzinho para consumidores de área mineral, porque a gente tinha uma distribuidora de água mineral que eu ajudei a tocar antes de ir para a Faculdade. Eu gostava de públicos específicos. O que eu vou falar para um público específico? Sempre gostei. E daí chegou no último ano, também eu terminei com o meu namorado, porque eu tinha uma ideia na cabeça que assim... Era Floripa, São Paulo, Nova York - eu tinha traçado isso para mim, já que eu já tinha conseguido me ambientar em Floripa agora. E o meu namorado era de uma família ligada à Universidade local lá da cidade: “Olha, eu quero ficar aqui”. Disse: “Então está, beleza, a gente continua amigo, mas eu sigo o meu caminho”. Então eu terminei e o meu pai acho que meio que se apavorou, aí ele sacou o que estava acontecendo e um dia chegou lá no meu apartamento e disse assim: “É o seguinte: eu te dou três anos para você brincar de ser jornalista, depois você volta para a empresa”. Aquilo, assim, eu via aquilo, mas aquilo não me caía bem. Eu disse: “Como que ele vai me dar três anos? Como assim?” E daí que eu começo a minha jornada e fico doze anos fora, ao todo? Eu pego e vou para Porto Alegre, arranjo um casamento, caso, arranjo um namorado e em um ano a gente decide, sem noivar, sem nada, eu caso...
P/1 - Como assim?
R - “Não, não pode morar junto?” Eu caso, vou para Porto Alegre, vivencio aquele momento maravilhoso que foi o PT chegar ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul, uma experiência muito legal de estar lá e ver isso, e ver a construção do que depois seria o Governo Federal. Atuei como assessora no 1º Fórum Social Mundial, atuei no Sindicato dos Cotistas, então foi assim o lado B. E daí até que, assim... Trabalhei, trabalhei até a ponto de ver que não era para mim, não era aquilo. A minha ideia era mudar o mundo, não era ganhar o poder. Isso em 2001. Em 2001, a minha face da esquerda, de um jeito assim, de eu assim... O sonho acabou em 2001. E também aí acaba o casamento por questões ideológicas, eu vou para São Paulo seguir o meu rumo e aí, sim, eu faço carreira em revista, trabalho na Veja, trabalho na Editora Europa.
P/1 - Posso voltar?
R - Pode.
P/1 - É porque, como assim: “Decidi casar”? Como é que você o conheceu?
R - No movimento estudantil. Na UFSC eu vivi intensamente a vida acadêmica até a metade e, na metade do curso, a Universidade federal sediou o Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação. Então, como escola-sede, a gente atuou como anfitrião, mas eu não conhecia muito o movimento estudantil de comunicação. E daí eu passei... A gente interagiu muito naqueles dias e eu acabei fazendo parte da Executiva Nacional. Eu dava oficina de comunicação estudantil em vários lugares do Brasil, de ir para Alagoas dar oficina, foi muito legal, e a gente formou uma turma que é amigo até hoje, jornalistas que estão em vários cantos, amigos até hoje, foi muito legal. ENECOS foi um capítulo na minha história muito bacana. Então lá, na ENECOS, eu conheci muitas pessoas, entre elas o Ronaldo. A gente se conheceu em julho de 1996, a gente começou a namorar em setembro de 1996 e a gente se casou em janeiro de 1998. Então assim... A gente morava a quatrocentos quilômetros um do outro - eu morava em Porto Alegre, ele morava em Florianópolis - se via a cada quinze dias, ou viajava para os Encontros. Então era Rio, Pernambuco, onde tivesse Encontro da ENECOS a gente estava, porque aí ele se tornou Coordenador Nacional e eu me tornei Diretora de Comunicação da ENECOS naquela gestão. Chamava “O giro vivo do volante” - é um trecho de um poema de Fernando Pessoa. Então assim... É muito legal.
P/1 - E como foi compartilhar para a família que ia ter um casamento?
R - Aí, eu fui assim... Hoje eu olho assim que... Por telefone. Eu liguei para o meu pai, disse: “Olha, vou casar, vou casar e eu não quero uma festa muito grande, eu quero convidar só os primos legais”. Meu pai disse assim: “Mas como? Ou você não convida ninguém ou você convida todo mundo”. Uma festa de trezentas pessoas no final, mas tudo meio atravessado. Então a gente decidiu, sei lá, em setembro de 1997 e realizou a festa em janeiro de 1998, tudo muito rápido.
P/1 - Mas os seus pais conheciam ele já?
R - Por alto. Não existia uma convivência assim. Hoje eu sei, a gente tem que viver as coisas todas. Não existia uma convivência, nem eu com ele tínhamos uma convivência. Pensa, você vê a pessoa a cada quinze dias, no final de semana. Mas assim... Por que eu decidi casar? Porque estava se aproximando o final da Faculdade, porque aí eu ia ter três anos para brincar de ser jornalista, então estava se aproximando. Eu disse: “Poxa, e aí?” Daí eu disse: “Mãe, eu vou para Porto Alegre e vou morar junto com meu namorado”. E a minha mãe disse: “Por mim tudo bem, mas o seu pai eu acho que não vai gostar desse negócio de morar junto”. Disse: “Então está bom, eu caso. Não é esse o problema? Eu caso”. Então foi isso.
P/1 - E como foi o casamento?
R - A festa?
P/1 - Tudo.
R - A festa foi linda, meu Deus. Foi muito engraçado, foi muito massa, e o padre quase fugiu da festa também, porque assim... A gente... A distância, então o curso de noivos eu fiz em Porto Alegre, aí eu marquei ali no meu bairro e fiz as conversas - íamos eu e minha mãe conversar com o padre. E o padre muito despachado, um velhinho muito despachado - o padre Mário - e topou tudo. Quando eu disse que o namorado estava longe, ele achou que era embarcado em barco, que viria... Então: “Você poderia...”. Enfim, mil ideias. Só que assim... Chegou na véspera do casamento - era final de ano - o padre Mário tinha ido para Porto Alegre para visitar um amigo dele que estava quase morrendo. E não aparecia esse padre. E a gente não sabia se a Cúria - uma coisa que ele falou - se a Cúria ia liberar para ele fazer o cerimonial, o casamento canônico, lá em cima, no castelinho, onde foi feita a festa. Porque a gente queria fazer tudo prático assim, não ter igreja, mas queria o padre. E daí o padre apareceu na véspera do casamento dizendo assim: “Olha, eu estou aqui, só que não vamos poder fazer o canônico lá em cima, vai ter que fazer na capelinha”. Mas eu com rolo no cabelo, a gente casou. Fez a cerimônia do casamento na capelinha, só com os padrinhos. Acho que nem a minha mãe e meu pai estavam juntos. Só para, realmente, fazer a bênção das alianças, enfim, fazer o canônico, como eles chamam. E depois, à noite, a gente fez com os convidados lá em cima, ele explicou para todo mundo, enfim, um negócio meio atravessado, tudo foi meio atravessado. E a lua de mel foi legal, a gente foi para Fortaleza, Jericoacoara. E daí quando a gente volta para a vida comum, em Porto Alegre, as diferenças começam a aparecer. Então, se eu tivesse essa maturidade que tenho hoje, é possível que não tivesse durado seis meses aquela união. Mas, puxa, você faz uma festa desse tamanho, mobiliza todo mundo, ganha presente, para dizer que não deu? Aí então, foram quatro anos que eu fiquei com ele.
P/1 - Mas em Porto Alegre vocês foram morar aonde?
R - Ele já morava no mesmo lugar em que mora hoje em dia, chama Tristeza o bairro. O bairro chama Tristeza. Ele mora na Tristeza. E eu fui lá morar com ele.
P/1 - E como foram os primeiros dias? O...
R - Foi triste, viu? Foi triste porque eu era muito apaixonada, eu acredito que ele também. Olhando para trás, eu acredito que ele era muito inseguro e nós não conseguíamos lidar com isso. Então assim... Quando eu... Eu, com 22 anos, recém-formada, eu queria mais era trabalhar. Eu não tinha emprego na redação da Zero Hora naquele momento, não tinha problema. Eu fui trabalhar numa redação de interior, viajava sessenta, oitenta quilômetros por dia para ir trabalhar, feliz da vida. E logo consegui uma colocação na Zero Hora, e o jornalista que tinha sido o meu chefe lá no primeiro emprego, na rádio em Florianópolis, estava chefe lá. Então foi legal porque foi uma pessoa que ajudou muito. Só que assim... O ciúme já começou a aparecer e aquilo foi minando de um jeito, que chegou uma hora eu pedi demissão da Zero Hora. Porque eu trabalhava quase todos os finais de semana, eu cobria esporte, mas no final de semana em que eu ficava em casa, ele não falava comigo, de ciúme. E não tinha fundamento aquilo, mas só que foi minando, minando, que não teve jeito. Então, quando não tem jeito... Até que chegou uma hora, ele pediu um tempo. Depois de três anos e pouco de casados ele pediu um tempo. E daí eu fui ficar um tempo na casa de uma amiga em comum, uma conhecida, e em questão de um mês, realmente, paramos para conversar. Continuava firme na mesma posição, que não tinha acerto, então aí eu peguei as minhas coisas e fui embora. Mas eu fui para São Paulo.
P/1 - Mas como ele traduzia nele a questão dos ciúmes? Como ele compartilhava esse sentimento?
R - Não, não compartilha. A pessoa não compartilha. O erro era todo meu, não compartilha, a pessoa... É muito doido, porque é uma pessoa muito inteligente, então assim... Naquele momento, eu dizia: “Eu preferia, nesse contexto, que fosse um pedreiro”. Daqueles que batem na mesa, a mão na mesa assim: “Mulher minha não trabalha fora, mulher minha...”. Pelo menos as coisas ficariam claras. Só que daí, quando a pessoa tem inteligência, mas não tem inteligência emocional, ela pega e torce aquele discurso todo para que você se sinta culpada de ser quem você é. Isso foi... Machucou muito, mas passou. Machucou muito. Para você ter uma ideia, doze anos depois eu voltei a falar com ele e aí, com uma clareza maior, eu vi onde as coisas... Então, o que eu realmente... Eu tinha essa inteligência emocional, a pessoa é muito inteligente mas ela não acessa o próprio coração, ela fica muito no campo do racional. Só que assim... A pessoa dizer assim: “Não, porque você é de direita!” Nem eu sabia que eu era de direita. “Então está, então beleza, eu sou de direita”. É esse o problema?” E não é. Mas é muito legal. Dessa história ficou uma história muito bacana, que a gente sonhava ter uma filha chamada Gabriela e não aconteceu. Só que duas meninas nasceram e elas se chamam Gabriela. Ele tem uma filha Gabriela e eu tenho uma Gabriela - elas têm três meses de diferença, a minha é mais velha.
P/1 - Como assim?
R - É uma história legal. Elas se conheceram. Isso em 2012. Elas se conheceram, tinham quatro anos de idade, depois nunca mais se viram e acho que nunca mais vão se ver, mas...
P/1 - Mas como foi um compartilhar para o outro isso? É uma coisa tão próxima, tu tem...
R - Eu não sei. Porque a gente tinha esse plano. A gente casou, a gente ia ter filhos um dia. Claro que, quando a união já estava indo por água abaixo, eu disse: “Vamos falar sobre filhos”. Ele disse: “Não, eu não vou ter filhos com você porque senão eu vou ficar cuidando das crianças em casa e você vai sair, trabalhar de tailleur, então eu não vou ter filhos com você”. “Beleza, então está tudo claro, está tudo claro para onde é que vai isso, que eu sou isso mesmo então. Se não está bom...”. Claro que não é tão simples assim, mas pelo menos, naquele momento, ele deixou clara a perspectiva que ele tinha. Então eu segui adiante, houve o rompimento e se passaram... Do rompimento, que foi em 2001, para o nascimento da filha - foi 2008 - foram sete anos. Nesse período cada um viveu outros relacionamentos, enfim, e nunca nos falamos, nunca mais assim, nunca... No começo, quando eu estava em São Paulo, no aniversário, a gente se falava eventualmente por telefone, mas nunca mais nos atualizávamos, nem de rede social. E eu avisei no grupo... Porque a gente tinha esse grupo da ENECOS... Quando eu engravidei, eu avisei: “Olha, é uma menina, vai ser Gabriela”. E elas têm três meses de diferença, então...
P/1 - Meu Deus, incrível!
R - Então é isso.
P/1 - E como é que você soube que ele também...?
R - Pela mãe dele. Porque em 2011 eu separei do pai da Gabriela e eu resolvi começar a reorganizar as coisas, todo mundo... E esse era um capítulo da vida que estava muito... Eu saí, fiquei pouco tempo em Porto Alegre, ainda tinha coisas para curar. E eu entrei em contato com a mãe dele e ela falou assim: “Joice, depois que vocês se separaram, nunca mais ele... Só agora, com a filha, que ele encontrou o amor de verdade”. Eu disse: “Filha?” “É, a Gabriela”. disse: “Gabriela? Como assim?” E aí eu levei um ano para tomar coragem para falar com ele pelas redes sociais, ele foi bem receptivo, e a gente marcou na Feira do Livro de Porto Alegre de se encontrar, e elas se conhecerem.
P/1 - E como foi esse reencontro, esse encontro?
R - Encontro. Foi muito legal, foi muito legal, só que era aquilo ali mesmo, não tinha mais.
P/1 - Sua vinda para São Paulo?
R - Então... Foi em junho de 2001. O rompimento aconteceu em abril de 2001 e em junho de 2001 eu vim para cá. E era assim: ou eu tomava remédio para continuar em Porto Alegre, Porto Alegre, inverno, ou... E daí um dos meus clientes... Eu já tinha a empresa Comunicação Fácil lá, já tinha empreendido, o escritório estava começando a andar legal, só que eu estava quebrada - emocionalmente quebrada. Não tinha condição de seguir lá. Então, um dos meus clientes era a Aldeias Infantis SOS Brasil - é uma ONG que provê lares substitutos para crianças que já passaram daquela idade alvo para serem adotadas. Havia duas aldeias em Porto Alegre - uma em Porto Alegre e uma em Santa Maria - e o escritório das Aldeias em São Paulo estava passando por uma reestruturação na parte de comunicação. E abriu uma vaga. Eu disse: “Eu vou para lá”. Então eu vim para trabalhar nas Aldeias. Trabalhei, colaborei nessa reestruturação, e daí eu já me senti outra. Primeiro que o clima aqui é mais seco no inverno - lá era muito molhado, muito úmido - então, isso me ajudou também a espairecer as ideias. E o grupo de apoio aqui, os amigos da ENECOS e os formandos da UFCS, que já estavam aqui. Então assim... Foi uma base de apoio muito boa, muito, muito boa. Então, logo por indicação de amigos também - o Ricardo - eu fui aceita na Veja para trabalhar um especial chamado “Brasil que dá certo”. Trabalhei lá com o editor Alexandre Secco, foi uma experiência bem impactante, foi muito legal estar na Veja, foi muito legal também notar que eu não queria estar na Veja. Então eu terminei o trabalho e parti para outros desafios. E, por indicação da Bia Barbosa, fui para a Editora Europa, passei em uma seletiva lá para editora do título principal deles, que é a Revista Natureza. E fiquei editora por quatro anos na Revista Natureza, uma revista voltada para paisagismo. E foi muito legal porque, para desenvolver aquele conteúdo, eu tive que aprender a lidar com plantas. E aprender a lidar com plantas, eu fui para o universo da minha mãe. Porque a minha mãe sempre foi dedo verde. Então assim... Às vezes, eu pegava avião aqui e ia passar o final de semana lá para mexer no jardim dela. Então foi muito legal, foi muito bacana.
P/1 - Quer falar sobre alguma reportagem que você fez, tanto na Veja quanto na Natureza, que...
R - O que me chamou a atenção, no período de Veja, é como as pessoas, ao mesmo tempo que elas querem aparecer na Veja, pela repercussão, elas têm medo. Então você ia entrevistar alguém, a pessoa não queria dar declaração, ela não queria aparecer porque... Depois eu via que você, como repórter iniciante, encaminhava um texto para o editor e o editor trabalhava aquele seu texto, às vezes podia torcer as coisas, e, de repente, uma fonte que te passou uma informação vira uma vilã, e aquilo acaba... Uma frase da Veja pode acabar com a vida de alguém. Podia, ela já foi mais influente do que é hoje. Então, foi uma exigência: “Espera aí, não é isso que eu quero”. E quando eu fui para a Natureza, a Natureza é uma revista gráfica de jardins, mas ela fala da alma das pessoas, então, a relação do leitor e da fonte com essa revista é totalmente diferente, é outro mundo, é muito legal. Foi muito bacana, em quatro anos a Editora Europa me permitiu viajar para muitos lugares - para a Holanda, para a Inglaterra para ver o que havia de bonito e trazer isso. E os leitores também, o afetos dos leitores alimentava a alma. Até hoje eu tenho uma leitora de Itupeva, a dona Terezinha Killer, que ela me manda cartões de Natal, ela manda...
P/1 - Que gracinha.
R - Quando soube que eu estava grávida, começou a mandar... No aniversário da minha filha sempre vinha um cartão, um brinquedo, um mimo para ela. E eu já fui visitar umas duas vezes a dona Terezinha. Eu tinha ido lá fazer a matéria uma vez na casa dela, ela tem um jardim de avó mesmo. Assim... A relação com as plantas. Então, esse afeto é muito bacana, é muito legal. A experiência na Editora Europa foi muito legal, os donos da editora, o (Aider) [01:23:01] e a Tânia, eu só tenho a agradecer pela oportunidade.
P/1 - E como você compartilhava com os seus pais essas conquistas dentro do Jornalismo? Porque você tinha o tempo, não é? Segundo o seu pai, você tinha um tempo.
R - Eu extrapolei um pouquinho. O que era para ser lá em 1997 três anos, que venceu em 2001, eu fiquei mais um tempo - fui até 2005, fiquei como jornalista. Então, eu não sei como é que eu compartilhava, não estava... O meu foco estava nesse aprendizado, nesse momento eu não sei como é que... Eu vou até perguntar para eles como é que eles percebiam. Eu acho que com orgulho. Que pai não vai ter orgulho?
P/1 - E a decisão de sair de São Paulo?
R - Foi difícil. Ali, na editora, a gente tinha oportunidade, além de fazer um conteúdo, de estar gerenciando os títulos. Então, todo mês a gente tinha uma análise de resultado e a gente via que o Canal Banca estava despencando na ordem de 1% ao mês para nunca mais voltar. Era uma reestruturação, o impacto das novas tecnologias, tudo isso estava acontecendo. Então, foi um dilema, eu fiquei assim por um ano, tipo: “Eu mudo de editora? Vou para uma editora maior? O que eu faço?” Eu pensei: “Mas se eu mudo, só mudo. O mercado, ele está... É uma mudança de mercado. O que eu faço?” E daí, paralelo a isso, começou a surgir... Eu estava com trinta anos, eu estava chegando aos trinta anos de idade, então, à medida que iam enxugando as redações você ia acumulando mais trabalho. Então, várias vezes, em uma sexta-feira, meia noite, eu parava no bebedouro para tomar água, no meio de um fechamento, e dizia assim: “Como é que eu vou ter família? Como é que eu vou ter filho? Não é possível, eu não vou poder produzir tanto assim. E se eu não produzir tanto assim, eu vou perder o
que eu atingi”. Então eu dizia: “Então se é para ser assim, interrompemos aqui, agora e...”. E, no auge desse desgaste, eu tirei umas férias, fui com o Leandro, meu namorado na época, que eu conheci aqui em São Paulo, a gente foi para a Argentina. Ele é argentino, a avó dele morava lá ainda e a gente foi passar uns quinze dias na Argentina. Só que antes disso, a gente passou um final de semana em Itajaí e o meu pai pediu para conversar. E ele disse: “Olha, eu estou começando a sucessão, então eu estou...”. Ele falou assim: “Olha, essa empresa, eu consegui construir a sede própria, a minha aposentadoria saiu, eu casei de novo e o seu irmão está advogado, você está jornalista”. E assim... Esses meninos da Nestlé, que é nossa parceira internacional, agora eu só falo de KPI de gestão e eu não tenho saco para isso. Então assim: “Ou eu boto um administrador, ou eu vendo, ou vocês assumem. Vocês decidem”. E daí eu: “Ok, vamos pensar”. E daí, eu fui para essas férias e quando voltei, conversei com meu irmão. Disse: “Paulinho, se é gestão, se é isso, KPI é uma coisa de comunicação, a gente pode ajudar”. Então, nesse sentido, eu voltei com essa decisão para São Paulo, e foi na hora certa que eu fiz. Foi muito difícil, levou uns dez anos para assimilar, mas hoje, cada vez mais eu vejo que foi a coisa certa, na hora certa: não deixar ficar no mercado até a beira do abismo, não. Então é isso.
P/1 - Como é o nome desse seu namorado na época?
R - O pai da Gabriela é Leandro.
P/1 - Leandro.
R - É. Daí ele se mudou para Santa Catarina comigo, porque desde o início eu falei: “Eu sou do Sul e voltarei para lá um dia”. Então ele se mudou para lá, a gente morou na beira da praia e a gente decidiu ter a Gabriela em 2007 para 2008. Daí ela vem, a gente não está mais junto, mas ele é um baita pai assim, mora na cidade ao lado, em Balneário Camboriú, fica com ela duas, três vezes por semana e a gente vai criando assim, dentro da forma que a gente acredita.
P/1 - E como foi descobrir a gravidez?
R - Foi uma gravidez planejada e foi muito legal. Foi em janeiro que a gente descobriu, foi muito legal, foi muito bacana.
P/1 - E quando ela veio?
R - Em setembro. Eu tinha me preparado para fazer um parto normal, mas aí, nos quinze dias que antecederam, a médica achou melhor ser cesárea eletiva. E foi bom que foi assim, porque ela veio perfeita. Só que ela não acordava para mamar e isso gerou um pânico na equipe, ela ficou uns oito dias na UTI. Porque quando a criança não se alimenta, ela não tem glicemia suficiente para... Então foi: “O que é que essa menina tem?” E essa pergunta: “O que é que essa menina tem?” durou uns quatro anos, foi uma provação muito grande. E depois desse período, a gente descobriu, por uma entrevista no Jô Soares, uma especialista de Ribeirão Preto. Eu a levei lá e descobrimos que a Gabi tem um negócio chamado panhipopituitarismo congênito - a glândula pituitária, que nós temos aqui, é uma ervilhazinha; só que, na Gabriela, ela veio alongada, se formou durante a formação do corpo, e de vez em quando ela funciona e de vez em quando não funciona. O que é que significa? Os hormônios, de vez em quando têm o processo normal e de vez em quando não. Nessa fase da vida, o hormônio do crescimento é muito importante, então a Gabriela, com quatro anos de idade, estava com idade óssea de um ano e meio, ela tinha corpo de um bebezinho, estava esquisito mesmo. E aí, com a orientação dessa médica e dos outros médicos que nos acompanhavam e passaram a acompanhar a gente, começou... Entrou com injeções de hormônio, que ela toma toda noite até ficar mocinha. E hoje em dia está perfeita, super bem.
P/1 - Joice, você falou, quando você estava falando do seu pai, que ele te chamou para conversar. Uma fala dele foi: “Eu casei de novo”.
R - Os meus pais se separaram em 2001. Foi um casamento sempre turbulento o deles, sempre turbulento. O meu pai é muito chamativo, muito vaidoso, sempre com namoradas, com aventuras, e a minha mãe sempre se castigando por isso, sofrendo. E aí, chega em 2001 ela decide... O meu irmão estava se preparando para casar em 2001, em 2002 - 2002, eu acho, o meu irmão ia casar - e ela tirou dali a motivação que faltava para ela colocar um ponto final. Então ela se separa do meu pai em 2002.
P/1 - E como vocês recebem essa decisão, os filhos?
R - De ele casar?
P/1 - Não, da separação dos seus pais.
R - Ela foi... A última vez que eu pedi para o meu pai ficar em casa, eu tinha 14 anos. O meu pai ensaiou... e isso muito tempo ensaiou... Teve vez que ficou fora e depois voltou... Se impor novamente, então, para nós, assim... Já era uma coisa... Para você ter uma ideia, quando o meu irmão faleceu - Renato - durante o velório dele, os meus tios, da parte do meu pai, me chamaram em um canto da casa e disseram assim: “Olha, a única coisa que mantinha os seus pais juntos era o Renato, então agora que ele se foi, vocês têm que juntar, manter seus pais juntos”. Cara, ouvindo aquilo assim: “Vocês não têm noção, eu já tentei tudo, eu já desisti disso”. Então... Só que eles são bons sócios, até hoje eles são bons sócios, eles entenderam que eles se juntaram para que a vida progredisse, então assim... Eles se respeitam, eles continuam sócios, isso é muito legal, e a sociedade hoje vai melhor do que na época em que o casamento estava misturado com isso.
P/1 - Eu queria que você falasse um pouco sobre as descobertas da maternidade.
R - Então... Eu, quando não era mãe, dizia assim: “Um dia, se eu tiver filho...”. Porque havia possibilidade de não ter também. “Mas se eu vier a ter um filho, eu vou ser... Do jeito que eu sou uma workaholic hoje, eu vou ser uma mãekahorlic assim. E daí a Gabriela vem com essa particularidade de saúde, os quatro primeiros anos ela quase morreu umas três vezes, ela sobreviveu umas três vezes, porque a gente não sabia o que era, então ela quase não tinha imunidade, pegava tudo e mais um pouco, todas as coisas que podia pegar. Então, isso me desafiou muito, porque ao mesmo tempo também eu não queria largar, não podia faltar ao trabalho. Eu já estava em uma posição de dirigir a empresa, então mesmo meio quebrada, o lado mãe tinha que continuar. Então, eu não consegui ser boa mãe nem boa profissional por muito tempo. Mas então assim... A descoberta da maternidade é que não existem planos, eu acho que a maternidade, ela me colocou em contato com o sagrado, provavelmente. A arrogância que a gente tem quando a gente acha que a gente é o centro, e daí a maternidade tira a gente desse centro e diz assim: “Primeiro que você vai ser mãe quando Deus quiser, não é quando você quer; por mais que a essência tenha evoluído, é quando Deus quer. E as coisas vão acontecer conforme Deus quer”. E eu sou eternamente grata a Deus por tudo que aconteceu, da forma como aconteceu, grata por tudo que eu tenho, a Gabriela é uma menina linda, é uma alma antiga, ela traz sabedoria. Quando eu fui separar as fotos para trazer para cá eu fui, fui na minha vida, aí quando aparece Gabriela é assim, é demais, eu acho que eu trouxe dez fotos minhas e vinte da Gabriela. Eu disse: “Eu vou contar da minha vida, não é da dela, ela conta a dela depois, quando chegar a hora”. É um privilégio ser mãe dela.
P/1 - E como é a sua relação com ela hoje?
R - É muito bacana, ela está com dez anos, então ela tem umas sacadas muito legais, ela é muito perceptiva, ela vai mudar de escola agora na quinta série e ela disse assim na semana passada: “Mãe, quando começar a quinta série lá no Salesiano vai ser como se eu nascesse de volta, não é mãe?” Então ela tem uma luz assim.
P/1 - Eu queria que você falasse como é sua rotina hoje.
R - Minha rotina é muito legal, porque lá na Catarinense, que é nossa empresa hoje, eu tenho uma equipe que me apoia, eu coordeno a área comercial e de pessoas, então são umas quarenta pessoas, a maior parte são homens, vendedores, motoristas, camaristas, uma equipe bem agitada, a gente movimenta alguns milhares de litros de sorvete e de açaí por mês, carretas. Agora no mês de dezembro vão ser trinta e oito carretas, é um trabalho bem pesado, mas eu tenho uma equipe que pega muito junto, muito legal, e com isso eu consegui, aos poucos, ir liberando a minha rotina para dar, conseguir equilibrar a atenção com a Gabriela. Consegui dedicar para o meu corpo, eu corro, descobri a corrida, a corrida me descobriu há uns anos atrás, então assim... Treinar, eu já fiz 21 quilômetros, a minha meta aí para os próximos dois anos é atingir uma maratona. Então eu consigo ter tempo para escrever, claro, daí eu acordo de madrugada, quando está todo mundo dormindo, para escrever. E é isso. Até o projeto de contar histórias de pessoas surge nesse momento em que a vida está mais leve, tudo está fluindo.
P/1 - Mas como foi esse encontro com a corrida?
R - Como é que foi? Eu pedalava. Quando eu separei do Leandro, lá em 2011, fui buscar coisas que me faziam bem e descobri a bicicleta. Então, pedalar à noite por pastos, assim... Trilhas em pastos, sentindo o cheiro do orvalho da noite, era muito legal. Só que aí, depois que você está pedalando lá uns vinte quilômetros, a minha mente voa muito, ela divaga. E quando você está pedalando, você tem que estar atento. Então eu comecei a levar muitos tombos, me machucar cada vez mais - num desses tombos eu fiquei com o ombro comprometido. Eu disse: “Eu não posso ficar parada”. Aí eu comecei a correr, porque as pernas eu podia usar. Então eu comecei... Fui para um grupo de corrida, comecei a treinar e daí vi que era isso mesmo. Então, aposentei a bicicleta e estou na corrida, porque aí vai no passo. Então assim... É bom, porque ajuda a organizar a minha cabeça também; eu vou respirando direitinho e as ideias vão se organizando.
P/1 - Sobre o que você está escrevendo hoje?
R - A última crônica que eu fiz foi sobre os vinte e um quilômetros, é isso. Até dessa crônica surgiu a ideia de contar outras histórias de corredores. Conforme você vai se entrosando na corrida, vai conhecendo mais gente que corre e cada um corre por um motivo. Então, a ideia que eu tenho é assim... Até, quando eu escrevi, coloquei lá um entretítulo: Maratona de Histórias. Eu acho que dá para juntar mais quarenta e uma histórias e falar sobre os motivos que levam a compartilhar aprendizados; a corrida é muito democrática.
P/1 - E qual é o seu motivo?
R - O meu motivo é para aliviar mesmo. Aliviar, organizar, aliviar. É muita pressão com que eu lido, todas as pressões. Então eu consigo levar de forma bem mais leve.
P/1 - E como é ser mulher liderando uma equipe de tanto homem?
R - É complicado. Agora é tranquilo, mas já foi complicado. Porque eu achava... Porque não existe... Que escola que ensina isso? Nenhuma escola ensina e eu achava que tinha que ser na mesma linguagem que eles, que eu tinha que ser mais um dos caras. E não. Na verdade, você tem que se colocar como você é. Você é mulher. Mas até eu chegar nessa sabedoria, foi um longo aprendizado. Então hoje eu me sinto confortável. Consigo colaborar. Eu vejo assim, que o que eu coloco acaba acrescentando para eles, mas enquanto estava na mesma sintonia, tentando ser mais um dos caras, aí eu estava errando, estava errando com eles, porque a voz de uma mulher ela pesa muito. A gente acha que não, mas a fala de uma mulher pesa muito em um grupo de homens, ainda mais se você tem uma posição de liderança. Então, quando você chama a atenção dele é como se a mãe e a mulher tivessem chamado a atenção, juntas. Então você tem que ter uma sabedoria para lidar com esse poder.
P/1 - Teve algum caso que te fez trazer essa reflexão sobre...
R - Eu acho que é um somatório de casos, não me lembro de um específico, ninguém morreu no meu reinado, mas assim... É um somatório de aprendizados: o que fazer, o que não fazer, e daí a coisa vai indo.
P/1 - Joice, eu vou para as perguntas finais. Mas antes, eu não sei se ficou alguma lacuna, alguma história que eu não estimulei que você contasse?
R - Não, você é uma excelente entrevistadora.
P/1 - Eu queria saber como é que foi para você hoje contar a sua história para a gente?
R - Muito especial, porque normalmente sou eu que estou fazendo as perguntas. Então, se colocar, estar vulnerável, se permitir - eu sou chorona, vocês podem ver - então assim... Se permitir contar, entrar no fluxo da memória, é muito legal se colocar, se colocar na posição. Obrigada.
P/1 - Para encerrar então, eu queria saber quais são os seus sonhos?
R - O meu sonho, a minha missão é dar voz a quem quer ser ouvido. Porque tem muitas coisas que a gente carrega na cabeça e não fala para ninguém - nem para a gente - e a partir da hora em que você verbaliza aquilo, aquilo vem com força. Então, se eu puder... Que Deus me permita dar voz a quem quer ser ouvido. Obrigada.
P/1 - Então, em nome do Museu da Pessoa, Joice, muito obrigada por esse presente que você deu para a gente hoje; foi lindo te ouvir. Muito obrigada, mesmo.
R - Obrigada.
[01:42:12]
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