P/1 – Hugo, só para deixar registrado, você fala pra mim o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Hugo Rosário Saporito.
P/1 – Em que data o senhor nasceu?
R – Vinte e nove de abril de 1924.
P/1 – Em São Paulo?
R – São Paulo.
P/1 – E qual que é o nome do seu pai...Continuar leitura
P/1 – Hugo, só para deixar registrado, você fala pra mim o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Hugo Rosário Saporito.
P/1 – Em que data o senhor nasceu?
R – Vinte e nove de abril de 1924.
P/1 – Em São Paulo?
R – São Paulo.
P/1 – E qual que é o nome do seu pai inteiro?
R – Meu pai? Era Francesco Saverio Saporito.
P/1 – Ele nasceu onde?
R – Na Itália.
P/1 – Em que cidade da Itália ele nasceu?
R – Calábria.
P/1 – E a sua mãe, qual que é o nome dela?
R – Minha mãe italiana, também, mas veio de lá com cinco anos, praticamente, ficou brasileira, né?
P/1 – Qual que é o nome inteiro dela?
R – Angelina Giapetta Saporito.
P/1 – E o seu pai contava como que era na Itália a vida dele? O quê que eles faziam lá?
R – Meu pai veio para cá com 15 anos. Na Itália, ele não tinha praticamente o que comer, naquele tempo. Você imagina que… nem sei o ano que ele nasceu. Então, ele mais um amigo dele com 15 anos, vieram para o Brasil.
P/1 – Porque não tinha nada lá para fazer, né?
R – Não tinha nada para fazer.
P/1 – Eles vieram de navio para cá?
R – De navio. Navio e sei lá onde.
P/1 – Ele não falou pra você como foi a viagem, então?
R – Não. Foi uma viagem de terceira classe, qualquer coisa. Eles não tinham condição, eu vim aqui contar história e depois, você corta o que quiser. E naquele tempo, São Paulo, ele veio quando tinha 16, 17 anos, que ele ficou aqui na casa desse amigo que o pai desse amigo dele já estava morando aqui, eles vieram junto, mas estavam morando aqui, aí ele começou a
trabalhar, naquele tempo, São Paulo não tinha luz elétrica nas ruas, era lampião a gás, então, ele de noite ascendia o lampião e de manhã, apagava o lampião, era um emprego já que ele tinha. Depois, quando eram sete, oito horas da manhã, não sei que horas eram, naquele tempo, tinham os balaios grandes, redondos, que o pessoal punha aqui para vender, então, ele enchia de frango, de ovos e saía para vender na rua isso aí, porque São Paulo era desse tamanho, né, São Paulo era… para você ter ideia, eu nasci na rua Quirino de Andrade, no centro da cidade, não tinha maternidade, nasci em casa, normal e ele começou… foi indo assim. Em São Paulo tinha mercadinho, não tinha mercadão, tinha mercadinho. Mercadinho que vendia todos os gêneros alimentícios e ele foi trabalhar no mercadinho numa firma que eu não me lembro o nome. Como o meu pai foi muito inteligente, graças a Deus, aí ele foi trabalhar no mercado. Depois de um determinado tempo, ele alugou um box no mercadinho, para ele sozinho. Era na… hoje, avenida…a aquela que vai para o Mercadão, como é que chama? Que sai do túnel, lá, Anhangabaú. Mercadinho Anhangabaú, chamava. E ele ficou lá, mas era alugado. Depois, a pessoa que tinha alugado para ele quis de volta o box, aí ele comprou outro box no mercado, no outro mercado e ficou no box do mercadinho trabalhando. E aí, em 1933, foi inaugurado o Mercadão e ele tinha direito a um box porque ele já era do mercado. E ele ficou com um box no Mercadão. Mas naquele tempo, o Mercadão não tinha movimento, porque São Paulo era tão pequeno, que tinham dois ou três mercados, tinha um mercado na General Carneiro, quando termina a General Carneiro, tinha um mercado lá, eles inutilizaram aquele mercado para todo mundo ir para o Mercadão e os consumidores não queriam andar aquele pedaço da General Carneiro até o Mercadão, e o Mercadão foi um fracasso naquele tempo, aí não vendeu nada, começou a ter problemas. Aí, ele foi para a feira. Ficou com o Mercadão, teve um tio que ficou no Mercadão tomando conta e ele foi para feira, uma banquinha na feira e foi para a feira, naquele tempo, os caminhões eram Ford Bigode, ele foi para a feira e foi tocando o negócio assim. Depois, aí naquele tempo, não tinha supermercado, não tinha nada, feira era supermercado, as bancas de feira eram um sucesso fantástico e eu fui com ele para a feira, fui trabalhar com ele na feira.
P/1 – Pequenininho ainda, foi trabalhar já?
R – Eu?
P/1 – É.
R – Não, aí já tinha… eu não me lembro o ano, 33 o Mercadão, acho que devia ter 15 ou 16 anos quando eu fui com ele para a feira. E a feira foi um sucesso. O que se vendia de mercadoria lá era uma coisa incrível, inacreditável, nosso ramo era cereais, arroz, feijão, batata, cebola, essas coisas tudo aí, e daí, nós partimos para outra luta. E ele ficou com o mercado, eu tenho dois irmãos solteiros, tenho um irmão e uma irmã e ele foi para o mercado, ele ficou com o mercado… espera aí, deixa eu lembrar. Eu estava na… fui para a feira com ele, é, na feira foi o nosso sucesso, exatamente. Daí, eu acabei indo para o atacado e segui a linha do atacado e fui embora, fui pra frente e tô aqui.
P/1 – Mais ou menos isso, né?
R – Mais ou menos isso.
P/1 – Tá.
R – Compramos propriedades, enfim… passamos uma vida boa, não rica, nem milionária, mas boa, não faltou nada. Aí, eu casei, tive duas filhas que são maravilhosas, uma mora aqui, a outra mora no Ibirapuera, tenho seis netos, dois bisnetos e dois genros. Família inteirinha…
P/1 – Agora, vamos voltar um pouquinho e me fala assim, você nasceu naquela rua no centro?
R – Quirino de Andrade.
P/1 – Quirino de Andrade. Você tem irmãos também? Você já falou, né? Quantos irmãos você tem?
R – O meu irmão chegou a fazer até o segundo ou terceiro ano da faculdade de Direito.
P/1 – Tá. Qual que é o nome dele? Do seu irmão?
R – Ivo.
P/1 –
E o outro?
R – Dina, é mulher.
P/1 – E vocês cresceram no centro, então?
R – No centro de São Paulo. Eu morei na Xavier de Toledo, morei na Bráulio Gomes, da Bráulio Gomes, eu não me lembro que rua foi, Álvaro de Carvalho, sempre no centro e da Álvaro de Carvalho, nós fomos para a Mooca, que tinha terreno comprado lá e construímos uma casa grande lá na rua Puis, na Mooca, fomos morar na Mooca. Dessa Rua Puis, nós tínhamos terreno também na Avenida Paes de Barros, e construímos na Paes de Barros uma belíssima residência, muito boa. Dois apartamentos, um embaixo… salão de festas, enfim… tudo que tinha necessidade. E de lá, aí eu vim aqui para os Jardins, morei não alugada, mas aqui da Hebraica, rua Alceu de Assis, tava procurando aqui, um dia eu passei aqui na coisa e vi que esse prédio tava terminando e os apartamentos vendiam, aí parei, gostei, o apartamento grande, naquele tempo, os netos eram tudo pequenos, você sempre se ilude e acabei comprando aqui o apartamento, que é onde eu moro agora, que é no nono andar. E fiquei. Ficamos aqui, os filhos casaram e aqui a vida continua assim. Agora… a minha vida é mais ou menos isso.
P/1 – Tá, mas eu queria só entrar em detalhe de algumas coisas. Na época da infância, no centro, como é que era o centro de São Paulo? Me conta um pouco melhor, porque tem gente que não viu, como é que era?
R – O centro de São Paulo era um centro maravilhoso, que nunca ouvi falar em assaltos, aliás, eu soube de dois assassinatos só, um foi um italiano que picou a mulher dele, pôs numa mala e ia mandar para a Itália, mas pararam em Santos e o outro, aquele que você deve ter ouvido falar, aquele na Avenida São João, aquele prédio redondo que tem lá, o cara matou a mãe, se matou e matou o irmão, como é que chama aquilo ali? Tem um nome aquilo ali, Castelinho. Já ouviu falar no Castelinho? Foram os que eu ouvi na minha infância, assim, vou dizer infância, 18, 20 anos, 22, 23 por aí. Então, a gente andava tranquilamente, parava os carros na Praça da Sé, andava no centro da cidade, enfim, se ia no teatro, parava na porta do teatro o carro, quando você voltava, estava lá. Foi bom, foi uma maravilha. Depois começou a complicar, né, aí…
P/1 – E São Paulo era da garoa mesmo ou…
R –
São Paulo era maravilhoso, rapaz, São Paulo era terra da garoa mesmo. Você podia assistir um jogo de futebol, gosto muito, gostei muito, enfim…
P/1 – O senhor torce para que time?
R – Eu sou Palmeiras. Eu sou sócio do palmeiras desde 1937, direto. Se tornou do conselho lá, eu não vou precisar, mas uns 40 anos, sou conselheiro lá, fui diretor financeiro lá, enfim… é isso aí e lá embaixo, na Santa Rosa, eu fiz parte sempre do sindicato, federação do comércio e a vida foi essa.
P/1 – Eu vou entrar em alguns detalhes agora.
R – Agora você pergunta e eu vou te respondendo.
P/1 – Tá bom. Como que era a feira do seu pai? Você já ia lá ajudar ele, né? Vocês vendiam o quê? Cereais?
R – Cereais, arroz, feijão…
P/1 – Batata, cebola?
R – Batata, cebola, tudo que era artigo de primeira necessidade, a gente trabalhava. Nas feiras tinha tudo, né, verdura, galinha, frango, tinha as sessões especializadas para isso.
P/1 – Como é que vocês serviam o arroz?
R – Na concha. Abria o saco de arroz… vinham sacos de arroz de 60 quilos, aí você punha uma tabua, montava o toldo, tudo direitinho, você punha uma tabua e punha os sacos e começava a vender. A embalagem era saquinho de papel de um quilo, dois quilos, cinco quilos, dez quilos e foi assim.
P/1 – E colocava a concha e pegava?
R – A gente pesava, inclusive, começou com as balanças de peso, né, tinha balança que não era balança automática, no meu tempo, comecei com balança de peso, tinha peso de meio quilo, um quilo, dois quilos, cinco quilos dois pratos, já chegou a
ver?
P/1 – Já, já vi.
R – Depois que começou a balança com… a Filizola que começou, chamava Filizola, com os ponteiros e assim, foi indo, foi crescendo, São Paulo foi crescendo. Você comprava na rua Santa Rosa, pesava com aquelas balanças que tinham, hoje é a de médico, naquele tempo, pesava os sacos de 60 quilos e assim.
P/1 – Mas vocês compravam todos esses cereais de quem? Como é que era isso?
R – Comprava dos atacadistas da rua Santa Rosa. Aí, depois, com o tempo, é que nós começamos ficando empresários…
P/1 – Da Santa Rosa também.
R – Da Santa Rosa. Eu, depois, tive empresa em Uberaba, que eu trabalhava com… empacotei arroz, que chamava grão de ouro na época e tinha em Uberaba, um armazém lá, comprava arroz em casca, preparava, embalava e mandava para São Paulo. E foi indo assim.
P/1 – Você e a sua família, ao mesmo tempo que tinha a feira, vocês tinham box no Mercadão, né?
R – Sim.
P/1 – Você trabalhou lá também?
R – No Mercadão?
P/1 – É.
R – Trabalhei. Eu só trabalhava. No Natal… o Mercadão foi um sucesso fantástico. O que se vendia lá de nozes, castanhas, figo era uma loucura. Mercadão.
P/1 – E o quê que a banca do senhor vendia e do seu pai?
R – Eram gêneros alimentícios, mas nas festas, passava a vender azeitona, nozes, bom enfim, tudo que era de Natal, porque o Natal naquele tempo era uma festa espetacular, né?
P/1 – Mas no período normal, vendia o quê? Queijo, carne… o quê que vendia?
R – No período normal, era arroz, feijão, batata, cebola, alho, gêneros alimentícios no geral.
P/1 – Então, vendia muito parecido
ao que era da Santa Rosa, é isso?
R – Exatamente.
P/1 – Mas o quê que muda?
R – Comprava da Santa Rosa e vendia. Santa Rosa era atacado e Mercadão era varejo. Entendeu?
P/1 – Entendi. E como é que era o movimento do Mercadão na época do seu pai?
R – Aí, foi crescendo, né? Chegou uma época muito boa, tanto é que nós conseguimos, compramos mais um box. O mercado para nós foi muito bom.
P/1 – E quem que comprava no Mercadão de vocês? Era o público em geral, como que era?
R – Era geral. Vinha até gente… armazém até vinha comprar lá, se vendia queijo, não tinha banca especializada em produtos, você podia vender o que você queria lá no… pessoal vinha lá e comprava. Tinha gente que vinha lá e comprava cinco quilos de azeitona, por exemplo, três formas de queijo, o Mercadão cresceu de uma maneira espetacular. Eu parei, justamente, quando a Marta assumiu, que transformou esse mercado no que tem hoje, porque não era assim, o mercado. Ele era outro tipo de mercado.
P/1 – Como era? Explica isso.
R – Eram boxes menores, você tinha os boxes e não tinha esse movimento que tem hoje.
PAUSA
P/1 – Você tava falando da diferença que era antes e depois da Marta, né?
R – Depois da Marta. Ela reformou e o mercado ficou desse jeito que está hoje, vale uma fortuna lá um box. Só que eu já não tinha mais, eu já tinha saído.
P/1 – Mas antes, como que era? Era menor, né, o box?
R – Os boxes eram menores e
o movimento era menor também. Hoje tem um movimento fantástico o Mercadão. Quem não conhece o Mercadão hoje?
P/1 – E você acha que é mais turístico hoje?
R – Ele é turístico, né? Quem vem de fora faz questão de conhecer o Mercadão, que é tão falado, o sanduiche de mortadela, que aliás, era em frente ao meu box, o Mané, o Sanduiches Mané.
P/1 – Quem que começou esse sanduiche?
R – O pai deles já começou… porque o Mané devia ter… ele já morreu, estão os filhos lá. Ele devia ter a minha idade e o pai dele que começou os sanduiches lá, ele tinha um boxzinho pequeno no fundo do Mercadão e começou o pai dele, depois, ele foi trabalhar com o pai, que todo mundo naquele tempo fazia isso, né? Os maiores ficavam o pai, sempre, né? Tinha que ficar. Os menores tinham…
P/1 – Esse Mané, por quê que ele vendia sanduiche de mortadela?
R – Ele vendia tudo quanto era lanche, era especializado em lanche. Você almoçava lá. Muito bom.
P/1 – Você comia muito lá?
R – Era muito bom.
P/1 – Você almoçou bastante lá, então?
R – É, praticamente era almoço, que tinha sanduiches de todos os tipos. Comia um sanduiche, estava satisfeito.
P/1 – E sempre foi daquele tamanho, lá?
R – Como assim?
P/1 – Aquele monte de mortadela?
R – Ah, sempre foi grande. Sempre foi, por isso que ficou famoso.
P/1 – Mas os sanduiches na época não eram assim, né? Ou eram, todo mundo…
R – Não. Assim que nem hoje, não, mas já era um sanduiche diferente dos outros sanduiches, né?
P/1 – Entendi. E por quê que você acha que ele colocava tanta mortadela, assim?
R – Ele tinha prazer de fazer daquele jeito, foi inteligente e fez o nome, né?
P/1 – Hoje todo mundo vende, né?
R – Tinha fila para comer sanduiche naquele tempo, você tinha que esperar dois, três… era outra época.
P/1 – E o que mais que tinha no Mercadão nessa época, que…
R – Tinha tudo lá. Mercadão tinha tudo. Tinha cereais, tinha azeite, tinha queijo, tinha manteiga, tinha frango, tinha tudo, verdura. O pai do Serra tinha box lá.
P/1 – Ah é?
R – O pai do José Serra tinha box no mercado.
P/1 – Era do que o box dele?
R – Eu agora não me lembro bem o que era, porque era completamente fora do nosso espaço, a gente quase que não ia para lá, então, nem sabia quem era o Serra, nem sabia quem era o pai do Serra. Quando o Serra foi politico que a gente soube que o pai dele estava no mercado.
P/1 – E conta pra mim, como que era o dia a dia no Mercadão? Você comia lá, que horas que era, o quê que o senhor fazia?
R – Abria às seis horas, cinco e meia, seis horas e ia direto até às seis, cinco, seis da tarde, ia direto. Almoçava lá, tinha os banheiros tudo lá, você ficava lá o dia todo.
P/1 – Tá, mas o quê que o senhor fazia primeiro? Chegava às seis horas da manhã, o quê que o senhor fazia? Arrumava? Como é que era? Arrumava as coisas?
R – Não, geralmente ficava arrumado, porque tinha uma espécie de uma cortina, que a gente puxava a cortina e ficava. Você chegava lá, abria a cortina… por exemplo, tinha um saco de arroz que estava mais baixo, você enxia, deixava normal e ficava pronto para trabalhar. Punha o avental branco, né, e ficava lá para trabalhar o dia todo.
P/1 – E como que era a banca do senhor?
R – Como todas, lá eram todas iguais, os departamentos todos iguais. Tinha o departamento de laticínios, as bancas eram todas, mais ou menos, iguais, tinham os açougues, eram todos iguais. Agora, você comprava… às vezes, você comprava em vez de um, você comprava dois, três, aí você abria. Era assim. Porque era tudo igual, por exemplo, suponhamos que era quatro por quatro, uma hipótese, era tudo quatro por quatro, aquele setor. Agora, você comprava dois, você podia abrir um, pedia autorização na intendência do mercado e você abria um, abria dois, alargava o teu espaço, fazia a sua banca maior, vendia mais.
P/1 – Você se lembra de alguma passagem, alguma história que você viveu no Mercado Municipal que te marcou, ou que você leva até hoje com você, um dia, algum cliente, alguma coisa que aconteceu?
R – Não. Aprendi lá a vir para frente, né? O mercado me ensinou que eu podia crescer, podia ir para o atacado, você tinha os atacadistas daquele tempo que eram muito… eram grandes e me ensinou isso aí, eu fui para o atacado.
P/1 – Quando foi mais ou menos, que ano, que década que o senhor percebeu que o senhor podia ir para o atacado e se dar bem?
R – Você me perguntou um negócio muito difícil de eu te falar, o ano…
P/1 – Tá, não tem problema.
R – Não lembro mais. Não lembro.
P/1 – Mas em algum momento, o senhor achou que dava?
R – Não me lembro porque… não lembro, não tenho ideia de quando ter ido para lá.
P/1 – Não tem problema. A data não importa. Mas teve um momento em que o senhor achou que dava para mudar para o atacado, né?
R – Ah sim, mas você… aí, dependia do seu temperamento, não sei se enxergava ou não, era diferente, quer dizer, você queria crescer, então se você estava naquele ramo, você queria crescer, como é que você ia crescer? Você tinha que ir para outro lugar que podia ampliar e assim, fui. Eu comecei na Santa Rosa, aluguei um armazém na Santa Rosa e aí, comecei a ir onde eu via que podia crescer um pouco, eu ia crescendo. Eu falei para você, eu empacotei arroz em Uberaba, né, eu tinha máquina lá, mexia com alho também, teve uma época que faltou alho aqui, tinha cota de alho, né?
P/1 – Ah é?
R – É. Enfim, o Brasil passou por várias coisas, guerra, tempo da guerra que faltou tudo aqui.
P/1 – Então, vamos parte a parte. Você foi para a zona cerealista e alugou um armazém lá?
R – Exatamente, e de lá, eu não sai mais.
P/1 – Na rua Santa Rosa mesmo era?
R – Na rua Américo Brasiliense, Santa Rosa, Américo Brasiliense, era perto da Santa Rosa, travessa da Santa Rosa.
P/1 – E o senhor vendia o que nessa época?
R – Sempre cereais.
P/1 – Era arroz…
R – Arroz, feijão, milhos, alho, cebola, enfim, batata, o que o freguês vinha procurar, a gente fazia questão de servir.
P/1 – E como é que era a Santa Rosa nessa época? Era muito movimentada?
R – Movimentadíssima! E tinham grandes firmas lá, grandes firmas lá. Paula Souza, onde hoje está o meu genro, Paula Souza fantástica, Cantareira fantástica, enfim…
P/1 – Quais eram as grandes firmas nessa época?
R – Tinha bastante. Vai ser difícil lembrar, tinha o F. Monteiro, tinha… agora não lembro, eu não vou lembrar, eram firmas grandes. Agora não me lembro…
P/1 – Não tem problema. Você começou com esses produtos e depois, você começou
a empacotar arroz, foi isso? Em Uberaba, né?
R – Em Uberaba.
P/1 – Como é que foi isso? Por quê que o senhor começou…
R – Porque tinha arroz brejeiro, naquele tempo tinha arroz brejeiro, só se falava em arroz brejeiro e eu e mais três amigos formamos uma empresa, fomos para Uberaba e empacotávamos arroz, chamava Arroz de Ouro, fizemos um programa na televisão de 20 minutos todas às sextas-feiras no canal cinco, naquele tempo, onde os artistas não eram essa potencia de hoje e foi assim.
P/1 – Como é que foi esse programa na TV que o senhor falou?
R – Um programa normal, tinha cantor, tinha comediante, enfim, era 20 minutos todas as sextas-feiras, eu não me lembro se era das nove às nove e vinte ou das oito às oito e vinte, eu não lembro agora. Lembro o que aconteceu, mas os detalhes assim, não dá para conseguir lembrar, mesmo porque minha cabeça já tá indo embora.
P/1 – Mas agora, o senhor se lembra muito da época da Segunda Guerra Mundial no Brasil? O senhor se lembra como é que foi?
R – Eu fui convocado.
P/1 – Foi convocado para ir para lá? E aí, o senhor foi?
R – Não fui porque era o último pelotão que ia para a Itália, então quando eu fui fazer o exame médico, eu era muito magro e era alto, a minha altura com o meu peso não deu, eles me julgaram incapaz, meu certificado tá que eu era incapaz, preferi linha de tiro, né? Naquele tempo, tinha linha de tiro, em vez de você fazer Exercito, você tinha a linha de tiro, certificado de segunda categoria, Exercito era primeira e linha de tiro era segunda. A gente fazia exercício perto da Praça da Sé, você imagina! E aos domingos, nós íamos no Barro Branco para atirar e eram todos amigos, era o Sargento… tinha o Tenente que era o diretor, que era o que mandava no batalhão e assim foi um ano e fiquei com certificado de segunda categoria. Fui convocado para FEB, felizmente, eu fui dispensado, meu certificado tem um carimbo aí, mas tudo bem.
P/1 – Mas como é que foi a Segunda Guerra no Brasil? Você falou que faltou comida, como é que foi?
R – No Brasil, faltavam as coisas, mas eu não posso precisar o que faltava, né? Por exemplo, faltava gasolina, tinha como eu posso dizer? O cartão para gasolina, eles davam suponhamos, 20 litros por semana, uma hipótese, então você tinha direito a usar 20 litros de gasolina por semana, só que naquele tempo, eu usava 20 litros para o caminhão, porque não tinha carro de passeio. O primeiro carro de passeio que eu… meu pai que comprou para mim, porque ele não dirigia carro particular, um Buick 1946, imagina você! Primeiro carro que eu tive e carteira de motorista tenho desde 1945, nunca bati, nunca tomei uma multa e sempre… aí, eu fui um pouquinho fanático para carro, né?
P/1 – Ah é?
R – E todo ano, quase, eu trocava o carro. Casei com a filha de um feirante também, Marina. Foi uma grande esposa, uma grande mãe, que eu não fui muito grande marido, não. Cuidei bem da vida. Morreu, tá fazendo um ano e meio, mais ou menos que ela faleceu, aqui. A vida é essa, agora eu tô sozinho, aí, nesse puta apartamento e a minha filha não quer que eu saia daqui, rapaz…
P/1 – Mas o senhor queria se mudar para algum lugar?
R – É muito grande o apartamento, né, sozinho, pô!
P/1 – Mas para onde o senhor queria ir?
R – Eu não sei te falar, porque eu sempre morei em casa, apartamento bastante grande. Eu acho que para mim, hoje, seria um flat, né? Eu acho, mas a minha filha: “Não quero ver o senhor morto, não, o senhor vai para um flat, vai ficar sozinho lá, fechado. Fica ai”, então, fica aí, fazer o quê?
P/1 – Agora, o senhor disse que gosta bastante de carro, é isso?
R – Puta merda! Ainda dirijo. Só que agora, eu tô sendo proibido pela família, mas eu ainda dirijo. De vez em quando, eu pego um aí, mas por aqui. O que acontece é o seguinte, agora, nós estamos conversando, isso não vai aparecer, né?
P/1 – Não.
R – Você tem coragem de sair à noite em São Paulo?
P/1 – Depende da onde.
R – É difícil. Você é moço. Eu tenho um neto também que puxou de mim que é apaixonado por carro, mas eu sou um prato cheio na rua de noite. Eu paro num restaurante, qualquer coisa, com essa idade, pego o carro… vou ser visado. Então, já não saio.
P/1 – Mas que carros que o senhor já teve, assim?
R – Eu?
P/1 – É. Os que você mais gostou assim…
R – Bom, o que eu mais gostei foi quando o Collor permitiu a importação do carro, eu importei um Oldsmobile, fantástico!
P/1 – Como é que ele era?
R – Melhor do que o Mercedes. Mas aí ficou um problema, não tinha peça aqui, porque eles não vendiam, não tinha agencia aqui. A Oldsmobile não tinha, então cada vez que precisava uma peça, precisava importar, demorava dois meses para vir, naquele tempo era assim, precisava autorização da CACEX, ficava parado três, quatro dias, cinco dias, uma semana, pensei: ‘sabe, eu vou vender’, e vendi. Eu tive tudo, tive Volks, eu tive todo tipo de carro.
P/1 – O senhor gosta muito de andar de carro, então?
R – Eu viajei demais.
P/1 – Viajou muito de carro?
R – Uberaba, então, eu ia uma vez, duas vezes por mês, eu ia para Uberaba de carro, peguei estrada quando era uma pista só (risos).
P/1 – E por quê que o senhor ia para Uberaba? Como é que o senhor começou a fazer negócios lá em Uberaba?
R – Porque tinha representante, eles, o pessoal de Uberaba tinha representante aqui em São Paulo. Uberaba, Ituiutaba, Itumbiara, todos aquele pessoal de Goiás mexia muito com feijão, arroz, milho, então, eles tinham um representante aqui e a gente comprava do representante. Aí depois, você, evidentemente, começa a ver a coisa diferente, né? E é isso aí.
P/1 – Você trabalhou só com cereais na Santa Rosa ou foi mudando ao longo do período?
R – Não, eu trabalhei também com fruta fresca do Chile, eu fui o segundo maior exportador de fruta chilena. Chile é fantástico. Argentina, Chile, né? Fantástico. Trouxe também dos Estados Unidos, enfim, eu fiz um pouquinho de tudo. Caía a ficha, eu fazia, fazer o quê?
P/1 – E o senhor…
R – Você sabe que eu agradeço a Deus porque eu costumo dizer o seguinte, pelo o que aconteceu comigo, eu não procurei nada, praticamente, caía no colo para mim. Então, o quê que eu posso dizer? Eu nunca fui procurar isso ou aquilo, caía no colo, vou fazer o quê? Deus quis assim, né?
P/1 – E como é que era a SAGASP quando o senhor começou a…
R – A SAGASP?
P/1 – É.
R – Eu comecei na SAGASP em 1961, eu fui o segundo secretário da Bolsa de Cereais, naquele tempo, a Bolsa de Cereais era uma coisa fantástica, né? Para entrar lá, precisava entrar de paletó e gravata, piso importado, o elevador importado, nossa senhora da Penha! Agora ficou aquilo que ficou lá. E daí, eu fui pra frente, me convidavam, iam formar uma chapa, me convidavam, eu aceitava, às vezes, não aceitava.
P/1 – Mas era importante a SAGASP no meio atacadista?
R – É importante até hoje, tá bem dirigido, presidente muito bom, secretário espetacular, acho que você entrevistou o Arnone, né?
P/1 – Sim.
R – Nota mil, lá. Nota mil. E eu era tesoureiro lá deles, do SAGASP, eu fui tesoureiro não sei quantos anos, uns 15, eu nem lembro. Mas hoje tá uma fortaleza, compramos o conjunto lá, foi na minha fase… fase do Arnone e do Dadá que comprou o conjunto. Você foi lá? Você foi conhecer o SAGASP, não?
P/1 – Já conheci.
R – Aquilo é propriedade do SAGASP, foi comprado.
P/1 – E como é que era esse trio? O seu Arnone disse que era sempre você, o Arnone e o Dadá sempre que faziam várias coisas, que mudaram…
R – O Dadá era um camarada sempre de visão, sei lá, o Arnone craque, tanto é que ele é advogado, formado, muito inteligente e eu era… tomava conta do dinheiro lá para dar para o pessoal, para pagar as contas, eles foram bons, eu acho que eu fui convidado porque eu era amigo deles e fui convidado (risos).
P/1 – Mas o senhor foi importante para o SAGASP também, né?
R – Ah não sei, não sei se é importante, se não e importante. Eu sempre pensei da seguinte forma, quando assumia alguma coisa, eu queria vencer honestamente, mas queria vencer. Então, devia ser isso, assumia as responsabilidades e cumpria… minha mulher foi sensacional, me ajudou bastante, nunca criou problemas, eu viajava, olha que eu viajei muito para o Chile, para a Argentina e ela tomava conta das filhas, tal, tudo bem. Então, foi um conjunto que deu certo, né? Hoje eu tô com 92 anos, tô feliz, tenho duas filhas casadas, essa aqui é casada com o Paulo, tá muito bem de vida e a outra e casada com o primo do Cutrale, mora aqui, tenho dois netos homens e quatro netas mulheres. Tenho um bisneto e uma bisneta, uma bisneta de três anos e um bisneto de oito meses, que mora aqui, do Paulo. Então, vou morrer feliz. Agora, sofri muito com a minha mulher quando ficou doente. Minha mulher foi um caso fantástico, eu nunca vi na minha vida. Ela ficou três anos… a moça que ainda está aí diz que foram três anos e meio, mas enfim, não comia pela boca, não falava, você não sabia se conhecia ou se não conhecia, tudo com aparelhos para se alimentar, no final, ainda pôs aquele aparelho aqui, como é que chama?
P/1 – Na traqueia?
R – Como é que chama? Eu esqueci o nome, para respirar, um desastre fantástico. Uns dois meses antes dala falecer, o médico vinha duas vezes por mês aí, quando não, três. Aí, um dia, ele me chamou na sala, ele disse pra mim: “Olha, vamos conversar”, e falou: “Dona Marina está como uma vela, se ascende a vela, a vela vai derretendo e vai apagar e ela só está vivendo pelo trato que vocês dão para ela, se ela tivesse num hospital, não sei o que ia acontecer”, e aconteceu isso que ele falou, mas tudo bem. Que mais? Eu confesso a você que é a primeira entrevista que eu dou na minha vida, nunca… não é que eu não gosto, eu acho que não tem necessidade, mas como o Paulo insistiu, minha filha insistiu, você… eu agradeço a sua presença, terminou a entrevista?
P/1 – Não, faltam o mais umas coisinhas.
R – Mas eu já estou antecipando, como você é um rapaz educado, tem a sua vida para tocar para frente, sua profissão é essa, eu espero que você seja bastante feliz, mas eu só dei porque eles insistiram, eu não… uma ocasião, veio também um cidadão, há uns dez anos, por aí, tinha que dar uma entrevista, o Arnone já tinha falado com ele, e eu falei para ele: “Eu não vou dar entrevista, não, viu”, não quis dar entrevista. Era uma moça, aí, ela cancelou, não fez o livro. Eu acho que a gente… na minha opinião, politico deve realmente fazer para mostrar para o povo o que ele é, né? Mas nós, que somos comerciantes, acho que nós temos que cumprir a nossa missão de atender o público que se alimenta, porque nós somos os que vão buscar mercadoria e vendemos, né? Minha entrevista tá dada, não sei se falta alguma coisa e gostaria de ouvir antes de você… se tiver alguma coisa… você vê que eu tô com dificuldade de falar, né, mas gostaria que antes de você escrever… é um livro que você vai fazer, né?
P/1 – É.
R – Voltar para conversar comigo, aí você sobe pra tomar um café…
P/1 – Tá bom.
R – E é isso aí.
P/1 – Tá, mas antes de terminar, eu só queria fazer algumas perguntinhas bem gerais. A primeira é se você viu, com o tempo de vida que o senhor passou, você deve ter visto mudar bastante a Santa Rosa, né?
R – São Paulo.
P/1 – São Paulo também.
R – O Rio de Janeiro. Como eu trabalhava com gênero alimentício, eu trabalhava muito com sal, antigamente era embalado o sal Ita e eu comprava muito sal de uma firma do Rio de Janeiro e eu conheci o Rio de Janeiro acho que há 50 anos atrás, ou há 60 anos atrás, você largava o carro… lá tinha o Senado, o Senado era no Rio, então você encostava o carro na porta do Senado, porque eu me hospedava num hotel que chamava Ambassador, esse eu não me esqueço, né, deixava o carro lá, dormia lá à noite, de manhã, tava o carro. Dava a chave para o manobrista, eles encostavam, quando você chegava, o carro tava lá. Outra coisa, agora, você não pode nem andar no Rio de Janeiro, mais.
P/1 – Mas e a zona cerealista, ela mudou muito?
R – Mudou, mudou! Não existe mais zona cerealista. Tinha um trenzinho lá na cerealista, tá sabendo?
P/1 – Me falaram.
R – Tinha um trenzinho lá, ele saía de onde hoje tem… fizeram uma espécie de mercado lá, ele ia até em frente aquele Palácio das Industrias, encostava lá e a gente ficava olhando o trenzinho. Mudou bastante. Tudo mudou em São Paulo, né? Eu vi tanta coisa, que se eu for falar, vou ficar até à noite aqui para falar, putz, mudou tudo. Mudou teatro, mudou cinema, mudou televisão, mudou povo, mudou… nossa senhora da Penha, que tristeza. São Paulo era lindo, rapaz, aquela… o centro da cidade, na avenida Ipiranga esquina com a avenida São João, você parava os carros ali, tinha um bar, como é que chamava? A gente ia comer sanduiche lá, dez, onze, meia-noite com a tua mulher, com a tua namorada, com a tua filha, não faz mais isso, você não pode andar em São Paulo, quebram tudo, tudo arrebentado, Deus me livre! Vou morrer triste de ver São Paulo que eu vi e o São Paulo que eu vejo.
P/1 – Mas especificamente no comércio, o quê que mudou no comércio esses anos todos?
R – O comércio mudou de uma forma que eu não tenho… como eu vou te explicar? Eu não sei. Por exemplo, não existia supermercado, hoje tem 50 supermercados, então você abria um emporiozinho, você morava na rua tal, você abria um empório, você vivia, entende? Você vivia com o empório. Aí, mais adiante, você abria uma padaria, você vivia e assim por diante. Hoje, tem tremendas empresas de supermercado que são grandes potencias, né? Mudou. São Paulo mudou tudo. Tudo que você me perguntar, mudou. Taxi mudou, ônibus mudou, condução mudou. Tinha aqueles ônibus que cabia 15 passageiros, 20, hoje tem ônibus que parece um trem.
P/1 – Agora, você aprendeu muito com o comércio, o senhor acha?
R – Eu só aprendi no comércio. Tudo que aprendi foi no comércio. Eu fiz grupo escolar na Caetano de Campos, porque eu morava na Xavier de Toledo e ia a pé, descia a rua São Luiz, tinha o Palácio do Bispo lá na São Luiz, ia para o Caetano de Campos. E tirei o diploma na Caetano de Campos, escolar, né, primeiro grau. Aí, a família queria que eu estudasse, aí entrei… naquele tempo, tinha quatro anos de grupo, um ano de admissão, para depois você entrar no ginásio. Então, eu fiz quatro de grupo e um de admissão, quando era para entrar no ginásio, meu pai, minha vó nona: “Huguinho, seu pai precisa de você, porque você tal… você gosta de negócios…”, e lá fui eu. Eu fiz quase um ano Associação Cristã de Moços, já ouviu falar? Ainda existe?
P/1 – Nunca ouvi.
R – Associação Cristã de Moços também tinha o curso ginasial e como nós tínhamos… o meu pai tinha
um freguês que era diretor da Associação Cristã de Moços, eu fui estudar na Associação Cristã de Moços, fazia à noite lá. Não aguentei, né? Saía de lá dez horas da noite, às cinco da manhã estava de pé para ir para o mercado, não deu. Mas meu irmão foi até o terceiro ano da faculdade de Direito, depois, descambou, parou. E foi assim. Não sei se ia ser um bom advogado (risos), não sei… eu me dediquei exclusivamente a isso, eu fiz isso aí, não fiz mais nada na vida a não ser futebol (risos) e comércio.
P/1 – Você jogou futebol, é isso?
R – Não. Eu era ruim para jogar futebol (risos). Eu jogava assim, na várzea, brincando, né? Meu time era Palestra Itália naquele tempo, na guerra, puta merda, rapaz…
P/1 – O que aconteceu?
R – Na guerra, porque o Brasil era favorável ao eixo, né, só que os Estados Unidos obrigou o Brasil entrar contra… o Japão, Itália e Alemanha… no Brasil, precisaram fechar tudo, trocaram… porque o Pinheiros chamava Germânia, o Palmeiras era Palestra Itália, o Cruzeiro de Minas Gerais era Palestra Itália, também, e foi obrigado a trocar os nomes, porque eles queriam tomar os clubes, né? Você é são-paulino?
P/1 – Sou.
R – Vocês queriam pegar o Parque Antártica (risos). Teve… eu vou só comentar isso aí, teve um jogo que mudou o nome às onze horas da noite, da sexta-feira que o jogo era no domingo, estava programado naquele jogo que não podia entrar em campo Palestra Itália, tinha que trocar o nome, foi trocado o nome na sexta-feira a meia-noite para Sociedade Esportiva Palmeiras e no dia do jogo, nós tínhamos um amigo que era amigo do Oswaldo Aranha, que era ministro aqui do Rio de Janeiro, era muito amigo do Oscar que jogava basquete, o Oscar foi lá, ele mandou um tenente, Alberto Mendes, eu lembro, esse nome aí eu não esqueço. O que aconteceu? No dia do jogo, esse tenente entrou fardado, os jogadores do Palmeiras entraram com a bandeira brasileira atrás, assim que ele entrou no Pacaembu, tava programado um desastre no Pacaembu, ele tirou o cap, pôs a mão no peito e entrou na frente do time e emudeceu o Pacaembu, ficou Sociedade Esportiva Palmeiras e o São Paulo pegou o Canindé, que agora era da Portuguesa, né? Era do clube alemão, tinha um clube alemão que também perdeu. O Germânia ficou Pinheiros, eles foram inteligentes, eles compraram aqui. O Japão, eu não me lembro o que aconteceu com o Japão aqui, não sei, mas ficou assim. Ih, o que tem de história para contar, meu Deus do céu… futebol sempre… quem foi assistir aquele celebre jogo de 1950 no Rio…
P/1 – O que aconteceu?
R – Que o Uruguai foi campeão.
P/1 – Mas como é que foi para você isso?
R – Você não lembra disso? Você não lembra, não, você não leu?
P/1 – Sim, mas para você, como é que foi?
R – A gente não morreu porque… Brasil já era… o brasileiro em si, nós brasileiros temos um defeito muito grave, nós achamos que qualquer coisinha, nós somos os melhores e naquele ano, o Brasil já era campeão, tinha ganho da Espanha de seis a um. Na quinta-feira… eu estava no Rio, então, ia jogar Brasil e Uruguai, que iam disputar o titulo, bandeira para cá, bandeira para lá, concentração, jogador tirando foto, futebol e futebol. Entramos em campo, o Brasil precisava empatar para ser campeão, fizemos o primeiro gol, jogador do seu time, o Friaça, Maracanã quase explode, não é que os caras viraram e ganharam de dois a um? Foram campeões aqui no nosso território. Emudeceu o Rio de Janeiro.
P/1 – Tem mais algum jogo que te marcou, seu Hugo?
R – Que nem esse, não. Os outros normais, assim, ganha, perde, ganha, perde, mas que nem esse, não.
P/1 – Nenhuma final do Palmeiras?
R – Final do palmeiras, Palmeiras estava acostumado a disputar final, eu tinha oito anos de idade, naquele tempo tinha Gazeta Esportiva, saía as segundas-feiras, eu acompanhava o Palestra na… foi tricampeão, 72, 73 e 74. lembro até o time que jogou. Não tinha… São Paulo também… nós ajudamos São Paulo, o São Paulo tava quebrado, praticamente, tava quebrado, teve um jogo no parque Antártica que nós pagamos pelos ingressos para dar dinheiro para o São Paulo, que tinha interesse que o São Paulo ficasse grande. Ih, Corinthians e Palmeiras também… nunca tive assim, teve jogos que a gente teve satisfação, teve um jogo do Palmeiras e Corinthians, foi o último jogo do Rivelino no Corinthians, também, todo mundo falava que o Corinthians ia ganhar, Palmeiras ganhou de um a zero, acho que tinha mil palmeirenses com 100 mil corintianos e o Palmeiras ganhou de um a zero e o Rivelino, coitado, pagou o pato, disseram que ele tinha se vendido, não sei o que, é tudo complicado. Eu fui da Federação de Futebol também.
P/1 – Ah é?
R – Fui. No tempo do Mendonça Falcão. Eu fui do departamento de árbitros da Federação, foi uma porrada de coisas aí, que…
P/1 – Quais são os seus ídolos no futebol?
R – Ah eu acho que não tem ídolo, assim, eu vi tanto craque jogar, por exemplo, eu vi o Zizinho, já ouviu falar no Zizinho? Fantástico. Heleno de Freitas, morreu estupidamente. Eu lembro assim, goleiro, Oberdan, grande goleiro. Sastre, um argentino que jogou no São Paulo, puta de um craque. Nossa senhora, enfim, são muitos, a gente não vai lembrar de todos eles, mesmo porque são tantos, né? Eu assisto futebol desde 1932, você imagina, eu tinha quanto? Dezoito anos? Não…
P/1 – Oito.
R – Oito. Então, você imagina quantos jogos eu assisti. Mas a vida é essa aí.
P/1 – Agora, você falou… já encaminhando para o final, você falou que você aprendeu muito com o comércio, né, tudo, né, inclusive.
R – Tudo.
P/1 – Mas o que exatamente você acha que você aprendeu esses anos todos com o cliente, como é que foi?
R – Trabalhei lá, praticamente, vivi lá dentro do comércio. O comércio, o que é? Comprar e vender. Exportar, importar, esse é o comércio, não é isso? É o que eu fiz.
P/1 – Mas o que você precisa ser para ser um bom comerciante?
R – Bom, eu não sei, aí já… eu não sei se eu fui bom ou se eu… se teve melhor, ou pior, aí não sei se a sorte também ajuda, eu não sei. Aí, não dá para falar, né? É você tomar conta do que é seu, que é muito importante, porque o comércio, ele abre muita brecha para haver desvio, né? Então, você tem que ter uma… é isso aí.
P/1 – Tem muitas pessoas que chegaram a quebrar também?
R – Sim, sim.
P/1 – Você quase já chegou nessa situação?
R – Cheguei em 1970, cheguei. Abusei um pouquinho, né? Aí, já viu! Mas sai bem. Todos tiveram seus momentos difíceis, porque você vai indo, vai indo, de repente, você vira uma coisa que você acha que vai dar tudo certo e dá tudo errado. Como a gente na vida só gosta de falar as coisas boas (risos), tem as coisas ruins também que você passa. Assim é com família, assim e com amigos, assim é com comércio, assim é com tudo. Você, que idade tem?
P/1 – Eu, 24.
R – Você tem chão pra chuchu, rapaz.
P/1 – Mas como é que o senhor conheceu a sua esposa?
R – Eu falei, ela era filha de feirante também, conheci ela na feira.
P/1 – Ela tava na feira também junto com…
R – Ela ia com o pai, ficava lá para não ficar em casa, porque a minha sogra… quando a minha sogra faleceu, ela tinha oito anos e ela tinha uma irmã que tinha res anos e tinha um irmão que tinha dois anos a mais que ela, então, ela ia… o pai casou de novo, nunca dá certo, né, e ela ia para lá, e eu conheci… para dizer a verdade, eu a conquistei num baile, porque eu gostava muito de dançar, conquistei ela num baile. Casamos e fui feliz com ela.
P/1 – Qual que é o nome dela?
R – Marina.
P/1 – Marina?
R – Alves Saporito.
P/1 – Você conquistou ela num baile? Foi isso?
R – Num baile.
P/1 – Como é que foi isso?
R – Você tá dançando, de repente, dança bem, marca um encontro e assim vai. Naquele tempo, dançava… porque hoje não dança, né? Naquele tempo, nós dançávamos muito no Minas Gerais que era no Largo da Concórdia, no Bras. Para você ter uma ideia, você precisava ser craque para dançar, então nós treinávamos de segunda e quarta, homem com homem para nas quintas, sábados e domingos dançar, porque se você tirasse uma moça e você não sabia dançar, você não dançava mais aquela noite. Ela contava para as amigas, você ia tirar, só tomava tabua: “não, não vou dançar”, ficava assim.
P/1 – E como É que eram as danças que você dançava?
R – Era valsa, fox, era bolero…
P/1 – Salsa?
R – Valsa. E hoje não é dançar, hoje é loucura.
P/1 – E tinha que dançar bem, então, né?
R – Craque, tinha que ser craque.
P/1 – E como é que foi o dia do nascimento do seu primeiro filho, você se lembra?
R – Você não dorme, né, não come, não dorme, fica esperando. Foi filha. Eu só tenho duas filhas, não tive homem, duas filhas. Foi a primeira. Na segunda, nós morávamos na Mooca, na rua Puis e eu tinha a minha vó, a nona que morreu com 100 anos, eu sai na porta, ela nasceu no Hospital Matarazzo, tinha a maternidade lá: “Huguinho”, falei: “Outra menina”, ela não gostava, queria homem, falei: “Tá bom, nona, tudo bem”, falei para a Marina: “Chega”, porque eu tive… quando nós empacotávamos arroz, nós éramos quatro sócios, né, eu tenho um sócio que queria ter um filho homem, sabe quantas filhas ele teve? Sete. Tudo mulher. Eu falei: “Epa, para por ai”.
P/1 – Agora, seu Hugo, você tem algum sonho para o futuro? Algum plano hoje?
R – Eu tenho. Eu tenho um plano pedindo a Deus que não me ponha numa cadeira de rodas, não me deixe numa cama. Quando ele for me tirar, tire de uma vez só, pá, eu quero ir embora assim, eu sei que eu vou. Eu quero ir assim, porque não quero sofrer, sofri vendo, imagina tendo. Isso eu peço a Deus, mas não sei se ele existe, se ele não existe. A gente pensa que existe, né? Eu às vezes, fico olhando, olho para o jardim aí, porra, como é que foi feito esse mundo aqui? A plantação, as frutas, difícil você… eu, difícil eu captar, eu não consigo captar. Você nasce de que? De uma gota, né? Nós nascemos de uma gota. É esquisito, né, não podemos ficar muito atentos a isso aí, porque senão, você pifa, né? A cabeça desaparece. A única coisa que eu peço… eu fui coroinha, também. Na rua Bráulio Gomes tinha uma capela, Capela de São Miguel e naquele tempo, tinha reza, né, todas quintas-feiras tinha reza e domingos tinha missa e tinham cinco ou seis garotos da minha idade que faziam questão de pôr aquela batina, fazer o… mas tudo bem.
P/1 – Como é que está o seu dia a dia hoje?
R – Não tenho nada para fazer. Fico…
P/1 – Nem ler algo, assistir…
R – Ler, eu leio revista, jornal, li bastante livro, tenho um puta monte de livro em casa, eu lia, porque eu viajava, comprava livros, não livro de intelectual, livros assim, normais e cantavam histórias, contavam passagens da vida. E vamos tocando o barco. Agora, é o momento final.
P/1 – E como é que foi falar um pouco com a gente?
R – Muito bom. Foi muito bom, gostei bastante, falei bastante coisas boas e ruins e eu não sei a minha voz como é que é, se eu errei no português…
P/1 – Não, foi ótimo.
R – Isso aí, você vai… vai fazer uma triagem, né?
P/1 – Vai.
R – Vai fazer uma triagem, porque de repente, eu falei… isso não põe, porque… acho que não falei nada para não pôr, porque não falei mal de ninguém…
P/1 – Não se preocupa.
R – Não tenho porque falar mal, também. Vamos aguardar. Você agora, vai me procurar quando?
P/1 – Daqui um tempinho, a gente volta aqui.
R – Você me telefona, você tem… tem o meu, mas telefona para o Paulo, que ele tá sempre lá, ele me avisa.
P/1 – Tá bom. Mas obrigado pelo tempo, pela disposição. Obrigado mesmo.
R – Você foi o único até hoje que conseguiu falar comigo.Recolher