Projeto: 50 anos da Ponte Rio-Niterói
Entrevista de Milton Brasil
Entrevistado por Paula Ribeiro
Rio de Janeiro, 08 de março de 2024
Código da entrevista: PRN_HV009
Revisado por Nataniel Torres
P - Boa tarde, Milton! Muito obrigada por nos conceder essa entrevista sobre a sua trajetória e memó...Continuar leitura
Projeto: 50 anos da Ponte Rio-Niterói
Entrevista de Milton Brasil
Entrevistado por Paula Ribeiro
Rio de Janeiro, 08 de março de 2024
Código da entrevista: PRN_HV009
Revisado por Nataniel Torres
P - Boa tarde, Milton! Muito obrigada por nos conceder essa entrevista sobre a sua trajetória e memórias aqui do espaço onde você mora, e contar pra gente um pouquinho das suas memórias, de como tudo começou. Então, eu vou pedir que você me diga seu nome completo, onde você nasceu e a sua data de nascimento, por favor?
R - Meu nome, Milton Brasil, 02/08/1949.
P - Onde você nasceu?
R - Carrancas, estado de Minas. Então, ali o meu pai acabou vindo para Barra Mansa, trouxe a turma toda, e ali foi crescendo a família, que nós éramos quatro irmãos. Dali de quatro, chegou a doze irmãos. E nos treze, a minha mãe acabou falecendo, aí ficamos a gente ali. E o meu pai, poxa, não conseguiu, sei lá, chegou uma época que ele não aguentava, ele não aceitava a perda dela. Mas acabou que seis meses depois ele veio a casar de novo.
P - Como é o nome do seu pai e o nome da sua mãe, por favor?
R - O nome do meu pai era Paulo Brasil e a minha mãe, Marta de Oliveira.
P - Você conhece um pouquinho da história da sua família lá em Carrancas?
R - Conheço um pouco, porque de vez em quando eu viajo pra lá, fico na casa da minha vó, que agora a minha avó acabou falecendo. Aí tinha uma tia lá e essa tia tá na Vila Quente, vem para cá, os netos trouxeram ela pra Vila Quente. Mas nem tem como eu visitar ela lá, que a tia que eu estava sempre em contato, que ali tu vai, uma vez eu fui ali com o carro, tentaram me assaltar ali. Eu fico até com medo de ir naquele lugar ali, então é melhor não ir, né? Aí deixa ela lá! Então, mudamos para Barra Mansa…
P - Antes conta, em Carrancas, no que você trabalhava? O seu pai trabalhava em quê?
R - Meu pai era alfaiate, meu bisavó alfaiate, meu avô alfaiate, meu pai alfaiate, os irmão dele tudo alfaiate. E dali saiu meu irmão Paulinho, que trabalhava em Agulhas Negras, academia, ele morreu agora, tem uns seis meses. Agora tem os filhos dele que trabalha como alfaiate também, trabalha lá dentro, dois filhos. Então, a família toda… os irmão do meu pai é alfaiate, a minha mãe costurava que nem alfaiate, a mesma coisa, ela não era uma costureira, fazia calça, a mesma coisa, veio aprendendo com a turma. Essa é a nossa trajetória de lá pra cá. Aí ele veio para Barra Mansa, entrou numa alfaiataria, ele trabalhava de alfaiate numa alfaiataria, porque o serviço… para sustentar essa turma toda, já viu, né! Tinha que ter um serviço mais… que possa ganhar uma quantidade que você possa cuidar de todo mundo. Hoje o salário já não dá mais para nada, né.
P - Mas quando vocês moravam em Carrancas, ele trabalhava em casa?
R - Ele trabalhava em casa.
P - Que tipo de roupa ele fazia?
R - Fazia paletó, fazia calças. Naquele tempo era calça de casimira, brim, não tinha negócio desses tergal que tem hoje, nada, eram três tipos: linho, casimira e o brim, era só isso, é o que eles faziam, o trabalho era isso.
P - E era roupa para homem?
R - Roupa pra homem. O meu avô, às vezes, ia pra ficar lá na fazenda costurando ali, dois, três meses, para o pessoal do fazendeiro, depois voltava para casa. Era desse jeito.
P - As fazendas eram de que naquela região? Produziam o que naquela região de Carrancas?
R - Em Carrancas, eu não me lembro. Carrancas era um local que eles queriam abrir fábrica ali, mas dizem que os fazendeiro não deixava, porque o trem passava… o trem era para passar dentro de Carrancas, não deixava, ele passa bem longe de Carrancas, porque se passa dentro da Carrancas, aquilo lá era enorme, que nem Lavras. Conhece Lavras, já ouviu falar em Lavras? Em Lavras eu tenho uma prima, que trabalha no Banco Itaú, tinha minha irmã que morreu, a caçula morreu a pouco tempo também, parte da outra esposa, que o meu pai casou de novo, aí nessa época que ele casou, foi a época que ele me botou para fora, botou na rua, pegou a trouxa, juntou e falou: “O caminho da tua tá aí". Eu não falei nada, eu não respondi nada, eu só: “Tá bom!”. Catei a trouxa de roupa e fui para a casa da minha tia, irmã da minha mãe. “O que que foi?”. “Meu pai me botou pra fora". “Então, vem aí, a porta tá aberta para você". Aí eu fiquei morando com ela esse tempo todinho, uns três anos com a minha tia. Ela me tratava como um filho dela. Eu trabalhava, dividia, dava metade para ela, que ela lavava a minha roupa, tinha comida, tinha tudo, então tinha que ajudar na casa. Aí foi quando surgiu pra mim vim para o Rio.
P - Rapidinho, a gente chega lá! Você em Carrancas chegou a frequentar escola ou grupo escolar?
R - Não, não cheguei a frequentar não.
P - Você saiu de Carrancas com quantos anos?
R - Acho que eu tava com cinco, cinco para seis anos, por aí.
P - Vocês precisavam ajudar os pais em trabalhos, na época?
R - Lá não! Em Barra Mansa eu ajudava. Aí ele veio para Barra Mansa, primeiro trabalhou na Siderúrgica de Saudade, depois ele achou que não dava certo, ele saiu e partiu para alfaiate, trabalhar na parte da costura dele.
P - O sobrenome de vocês é Brasil. Você conhece um pouquinho essa história? Veio do avô, bisavô, o sobrenome?
R - Veio do meu avô, mas hoje já tem muito Brasil por aí, às vezes a gente se depara com gente: “Seu sobrenome é Brasil, tem fulano que é". “De onde é?”. “Lá do Ceará, o outro e não sei o que, o outro é lá do Rio Grande do Sul". Então, eles estão espalhados.
P - Mas a sua família é toda de Minas? O seu pai, a sua mãe?
R - Meu pai e minha mãe são de Minas. Meu pai é de Carrancas e a minha mãe era de Madre de Deus, pra cá de Carrancas, aliás, pra cá de Lavras. Então, meu pai na época roubou a minha mãe.
P - Como é que foi isso, Sr. Milton?
R - Porque meu avô não queria. Meu pai botou a minha mãe na garupa do cavalo de madrugada e carregou ela, foi assim.
P - São as histórias da família.
R - As histórias da família
P -
Você lembra ainda pequeno, em Carrancas, que comida, o que você comia? A sua mãe era quem cozinhava, como é que era?
R - Eu não tenho muita lembrança não, porque a gente comia muito era angu, naquelas cuia, coité, cabaça que eles cortavam no meio, aquilo que eles usavam. A minha avó tinha aqueles coité, a gente comia naquelas vasilhas. Era tudo difícil. E quando a gente chegava a ter uma caneca, era aquelas canecas esmaltadas, aquele troço esmaltado que cai no chão e quebra, fica dando aqueles estalos. Era desse jeito.
P - Então, conta um pouquinho agora da ida para Barra Mansa, por que Barra Mansa? Quais são suas lembranças do começo da vida da família em Barra Mansa?
R - Meu pai pegou o trem lá, tinha ali Barra Mansa, a estação no lugar que a gente morava Vila Nova, o lugar chamava Vila Nova, Barra Mansa era o centro e esse era um bairro. Então, descemos na Vila Nova e ali que ele arrumou uma casinha, ficamos morando ali, ele fazendo as costuras dele em casa, costurando em casa, até ele vim para o centro de Barra Mansa trabalhar na alfaiataria, lá na Avenida Joaquim Leite, é o nome da rua lá.
P - Tinha nome a Alfaiataria?
R - Não, não me lembro. Deve ser “Senhor Oswaldo”, o dono da alfaiataria. Não me lembro.
P - Os tecidos vinham de onde, você sabe?
R - Na alfaiataria sempre tinha aqueles rolos de tecido, o freguês chega: “Qual que você quer?”. “Esse que está aqui! Quero de linho, quero casemira, brim". Então, escolhia na própria alfaiataria. E o meu pai trabalhava na máquina, quem cortava era outra pessoa, ele cortava, e o meu pai fechava as calças, entendeu? Para ser mais fácil, produzir mais. Não é como se faz hoje. Hoje a máquina corta aquela quantidade de roupa.
P - E o pai fazia roupa de crianças para vocês?
R - Às vezes fazia, fazia uma calça, fazia uma camisa pra gente. Minha mãe também estava sempre fazendo com ele, porque era a dona da casa, estava sempre fazendo. E a vida não foi fácil não, mas…
P - Como é que era o nome dos quatro irmãos, filhos do mesmo pai e da mesma mãe?
R - O nome era Paulinho… Da mesma mãe foram dez, aliás, foram os doze, nos treze, que ela faleceu. Depois que ele se casou, ele teve uma filha só, essa que morreu agora a pouco tempo atrás, em Lavras.
P - Quatro era em Carrancas?
R - Quatro em Carrancas. Nós viemos para Barra Mansa e em Barra Mansa foi feito o restante. Mais uns oito, não, quatro, aí dá doze, né? O outro que faleceu.
P - Em Barra Mansa como era a vida dos irmãos, vocês brincavam do que?
R - Era difícil a nossa vida, era difícil!
P - Por que Milton?
R - Era difícil porque, às vezes, eu saia na rua, tinha aquela turma, eu ia lá para a rua, pegava fronha de travesseiro e ia pedir pão na padaria, aqueles pães duros, porque ganhava pouco, não tinha como, então chegava com o saco de pão duro em casa, molhando no café, minha mãe fazia aquele mingau de fubá, fubá de sal, e todo mundo tomava aquele mingau, todo mundo gordinho ali, entendeu? Então, era tudo difícil. Aí depois foi crescendo, foi crescendo, a turma crescendo. Aí, tinha um irmãozinho, que ele era pequenininho assim, passava o padeiro, ele chamava: “Ó, Senhor Carlito…”, era Senhor Alípio, parece, “Senhor Alípio". “Que que foi?”. “Me dá um pão aí". Pelado lá na porta pedindo, para você ver como era a situação. Aí, dali nos mudamos lá para o centro da cidade. Eu era arteiro, eu era muito arteiro, eu não era flor que se cheira não, eu saia para a rua, eu ia para a feira carregar bolsa e catava aquele dinheiro, que vinha na bolsa e dava tudo para a minha mãe. “Toma!”. Eu sempre dei o dinheiro para ajudar em casa. Aí quando eu fugia pra rua, que eu ficava uns dois dias na rua, dormia até pela rua, aí quando chegava em casa, às vezes, meu pai nem batia, que o patrão dele falava: “Não, não bate nele não, bater é pior". Aí, sabe o que ele fazia? Me prendia na corrente, botava uma corrente no meu pé, com um cano enfiado e mandava eu no pé da máquina de costura. Ele ia trabalhar, falava para a minha mãe. “Solta ele só para ir no banheiro, depois você prende ele de novo”. Eu fiquei preso uma semana, aí depois ela me soltava. Pra ver se eu melhorava. Aí, eu fugia, daqui a pouco eu fugia de novo, pegava o trem ali em Barra Mansa e ia até São José dos Campos. Depois pegava o trem de lá de novo, entrava dentro do banheiro, tinha o trem da Central do Brasil, voltava para Barra Mansa de novo. Podia ter sumido, podia ter sumido, né? Hoje é diferente, hoje some. Quantos que desaparecem aí, as pessoas não acham. Então, a nossa vida foi desse jeito, foi difícil. Depois comprou um terreninho, na Boa Sorte, lá, a gente morava na Vila Nova, comprou um terreninho na Boa Sorte, fez uma casinha, tá lá a casa, um terreno de cinquenta e poucos metros. Mas eu não quero nada, o que eu queria ter, eu já tenho, eu não preciso de mais nada. Tenho essa casa, tenho a outra república ali, tem o meu carrinho, consegui comprar o meu carrinho, três carrinhos zero, primeiro, o segundo, o terceiro. O primeiro eu fui sorteado dia dos meus anos, aconteceu dois dias depois, na mesma data de agosto. E o terceiro, que é esse Grand Siena que tá ali, os oito dias de agosto depois também. Pois é! Se fosse no dia dos ano era… agora é demais.
P - O mês de agosto é o mês de sorte. É o seu mês. Você nasceu dois de agosto…
R - De 1949.
P - E você tem uma família bonita…
R - Tenho uma esposa maravilhosa, uns filhos que nunca me deram problema. E eu aqui lutando até quando Deus permitir, só ele que manda na nossa vida, nós não mandamos nada. Então a nossa vida é desse jeito aí.
P - Então, conta um pouquinho pra gente quando é que você saiu de Barra Mansa, se a família veio. Como é que foi?
R - Em Barra Mansa, eu morava com a minha tia, já uns três anos lá com ela.
P - Como é o nome da sua tia?
R - Teresa de Oliveira, já faleceu também. Eu morava com ela, aí deu um dia na rádio lá: “Precisa de tantas pessoas para trabalhar no canteiro da Ponte Rio-Niterói". Aí, eu ouvi aquilo. Aí, passou daqui a pouco, mais tarde, deu de novo. Aí, eu… primeira vez, a segunda, quando deu a terceira, aí eu já arrumei minha mala, arrumei a bolsa, uma toalha, uma troca de roupa, tudo botei na bolsa, quando deu a quarta, cheguei e chamei minha tia. “Tia, chegou a minha hora". Ela falou: “De que?”. “De ir embora, tomar meu rumo. Eu vou ficar aqui dando trabalho para a senhora?”. “Não, não está dando trabalho não". “Chegou minha hora, tenho que ter outro interesse na vida". Ela me abraçou, coitada, chorando, mas… Aí me abraçou e me deu a benção que eu não tive da minha mãe, mas ela: “Vai meu filho, Deus te abençoe, que você seja feliz onde você estiver". E assim, eu vim!
P - Você tinha quantos anos Milton?
R - Estava com dezenove, dezoito para dezenove, nessa época.
P - Que rádio que vocês ouviam?
R - Era a rádio lá de Barra Mansa, Rádio Sul Fluminense, o nome da rádio. Aí, ela falou assim, chorando coitada. “Tia, não precisa chorar não. Eu vou vim visitar a senhora sempre, porque a senhora está sendo a minha segunda mãe, eu vou estar sempre vindo visitar a senhora aqui, pode ficar tranquila". “Tudo bem!”. Aí fui embora. Fui pra lá para o hotel, aí estava lá, já tinha 28 pessoas lá, entre pedreiro e servente. Aí veio aquela turma de vinte oito, tudo pelo rapaz da ponte que foi lá recrutar a gente, trazer a gente pra cá.
P - Lembra um pouquinho como que foi isso, quem era o rapaz? Ele ficava onde, você sabe?
R - Ele ficava no hotel, Grande Hotel, acho que chamava Hotel Careca, do lado da estação Barra Mansa. Aí, ele esperando a gente, chegamos lá já tinha um ônibus lá pra gente… o ônibus da cidade do aço que pegou a gente e trouxe a gente pra cá.
P - Que dizer, era um funcionário…
R - Era um funcionário, um encarregado, tipo encarregado, que foi recuperar essas pessoas pra trabalhar aqui. Agora não me lembro o nome dele não. Aí, trouxe. Nós chegamos aqui, nós descemos em frente da Avenida Brasil, em frente da Maré ali, na entrada da ilha, o ônibus deixou a gente ali, aí já tinha um caminhão da ponte esperando, nós entramos tudo no caminhão, o caminhão passou aqui dentro, só tinha uma pista, na universidade só existia uma pista, hoje tem duas, as aves faziam assim, ele virava e encontrava com outra, parece que você estava passando dentro de um túnel de aves. Aí quando chegamos aqui, o ônibus chegou no Bom Jesus, o caminhão chegou na entrada do quartel lá, tem a guarita até hoje, a guarita que eu passei aqui tá lá no canto, na beira da praia, entrou naquela guarita, quando subiu, quando o ônibus subiu a rampa lá, tinha o alojamento, aí todo mundo… O caminhão parou, todo mundo pulando, pula um, pula outro. “Oi, aqui é a praia, tem um bocado de mulher aqui", eu em silêncio. Aí eu tava em cima do caminhão, fui o último a descer, aí daqui a pouco eu vi uma garota na janela, assistindo televisão na casa da vó assim, o cabelo batia assim, só no pensamento. “Aquela é minha!”, que é a minha esposa hoje. E assim começamos. Arrumei uma cama qualquer lá, dormi. No outro dia já fomos trabalhar, vim para o canteiro aí, começou o trator a raspar, a gente juntou aí, carrega uma coisa pra lá, outra pra cá, entendeu?
P - A gente está falando do ano de 1968?
R - 1968.
P - Você já tinha ouvido falar nas obras da construção da Ponte Rio-Niterói?
R - Não! Foi só desse jeito. Deu lá no Hotel Careca, que ele falou que precisava de tantas pessoas, recrutando.
P - Pra que?
R - Para trabalhar no canteiro da ponte, foi o que nós fizemos, chegamos aqui no canteiro da ponte.
P - O que era o canteiro da ponte?
R - O canteiro era onde ia preparar para fazer as peças da Ponte Rio-Niterói, é do muro para lá. E do lado de, cá era a parte onde ia fazer os barracos, tudo barrado de madeira. Então, ficou aquela parte ali. Aí, começou a trabalhar, chegava aquelas carretas de madeira, eu colocava quatro Scania daquela carreta no chão por dia, de sete às dez da noite, esse era o horário, se não quisesse trabalhar podia dar baixa na carteira e ir embora, era assim. Era lei do… Aí, pagava aquela hora extra, dava cinco horas, batia o cartão, aí
trabalhava até às dez e batia o cartão de novo, que aquela parte era hora extra. Aí, acabava dez horas, eu ia a pé até o Bom Jesus pra dormir, que o alojamento era lá.
P - Explica o que é o Bom Jesus? Onde é que tinha alojamento? Já tinha alguma coisa levantada da ponte?
R - Não, não tinha nada, o canteiro tava puro, não tinha nada, tinha uns caranguejo que saia aqui para cima.
P - Era Mangue?
R - Era Mangue. Isso aqui tudo era mangue, entendeu? A minha esposa mesmo vinha com o tio dela pescar aqui, pegar caranguejo aqui para levar lá para o Bom Jesus. E tinha que gostar de catar ouro na beira da praia. Isso aqui foi tudo aterro que veio do centro do Rio, jogando aqui e às vezes eles achavam, achava cordão, achava… E ele catava, a água batendo, via brilhando no fundo e eles catavam. Vinha catar os caranguejos com ela também, levava ela pra casa, acompanhava ela.
P - Conta como é que era esses barracos, esse alojamento?
R - O alojamento era tipo uns módulos que eles montavam, ia juntando e ia fazendo os módulos, lá onde nós chegamos. Aqui não, aqui como já tinha muita madeira, já foram fazendo… fizeram um bocado de módulos, na rua perto da igreja, na segunda rua, Rua das Rosas também fizeram, depois continuaram fazendo de outra maneira. Procurava a maneira mais fácil para montar o barraco. Aí fazia casa para casado, para os casados, para os que traziam a esposa pra cá. E o do solteiro era aqui, mas não cheguei morar aqui no de solteiro não, era lá.
P - Lá que você fala é o que a gente chama de Bom Jesus?
R - Isso! Lá no Bom Jesus.
P - Bom Jesus é uma localidade aqui dentro…
R - Do Fundão. Lá é o Asilo dos Inválidos da Pátria, que era o pessoal que vinha da guerra, que morava lá. As pessoas vinham faltando braço, com problema da guerra, que sofre muita coisa, vendo muita coisa errada, aí eles colocavam naquele local ali, lá no Bom Jesus. E tinha um quartel lá, ainda tem o quartel lá hoje, lá embaixo, mas são poucos soldados que tem ali, que toma conta daquilo ali, entendeu?
P - E lá virou alojamento de homens solteiros?
R - Em cima do morro, virou alojamento para o pessoal da ponte. Aí, na outra parte da frente, eles começaram a fazer a casa dos engenheiros da ponte, que é na frente ali, a parte da frente. Mas ali foi só casa boa, piscina pra eles, era tudo casa. Porque naquela época a firma da ponte era Consórcio Consultora Rio-Niterói. Então, o consórcio é o quê? Várias firmas, Carvalho Rossi, Sisa, e CEU, Mendes Júlio, então ficou o consórcio fazendo esse trabalho. Pra fazer uma obra dessas, tem que ter um consórcio, pra uma só, fica bem pesado. Então, nós viemos para o canteiro, começamos a trabalhar, quando ficou pronto, aí fizemos o restaurante, que era do outro lado do muro, fez a parte para botar o cimento que vinha, parte para botar o material, o almoxarifado, fomos fazendo tudo, quando chegou na hora de colocar os vergalhões, acabou esse trabalho do canteiro, meu encarregado, ele chegou para mim assim: “Ó Quarenta e três". “O que que foi?”. “Amanhã todo mundo vai trabalhar lá dentro da água, lá no meio da água". Aí tinha uma barca para levar. Aí eu fui lá, peguei a minha carteira. “Dá baixa que eu não sei nadar!”. Saber nadar eu sabia, que eu cansei de atravessar o Rio Paraíba a nado. “Agora eu vou fazer o que lá no meio da água?” Papai do céu me tirou dessa também. “Fica aqui, lá não é o seu lugar". Aí, dei baixa na carteira, fiquei trabalhando com a empreiteira aqui dentro, a empreiteira que estava fazendo os barracos, foi empreiteira fazendo os barracos também. Aí, trabalhei como pintor, pintando, fazia o que tinha.
P - Milton, se você puder contar pra gente primeiro como era aquele espaço onde você chegou, era alojamento para homens solteiros?
R - Alojamento para homens solteiros.
P - Como é que era o nome do lugar? Vocês falavam como?
R - Ali era o Bom Jesus.
P - Mas vocês falavam alojamento…
R - O alojamento da Ponte Rio-Niterói lá no Bom Jesus. Até fazer o daqui. Que depois que fizeram o de lá, aí o pessoal de lá veio para cá. E enquanto isso foi fazendo o dos engenheiro também, foi fazendo a casa dos funcionários da ponte aqui e ao mesmo tempo fazendo a dos engenheiros lá, lá no Bom Jesus. Aí, aqui foi feito trezentos e quarenta e três barracos, aí tinha barraco de dois quartos. Dos encarregados, às vezes, tinha quatro quartos, era maior, que o encarregado tem a família maior. Eles faziam a casa de acordo com a pessoa que veio pra cá. Aí, esses barracos, quando acabou a ponte, que acabou o negócio da ponte, aí esses barracos entregaram para a prefeitura aqui da universidade. Aí, o prefeito foi, preferiu colocar as pessoas mais pobres da prefeitura, ocupar isso daqui, porque tava sumindo portas, dizem, sumindo porta, pia, vaso. Então, era o pessoal do Caju, que atravessa de barco e vinha para cá. “Então, vou povoar aquilo lá, porque senão daqui a pouco ia virar o que? Uma nova favela?”Já pensou isso aí? Toma conta do Rio, pega a Maré. Dá trabalho, né? Trabalho para a polícia, muito trabalho, não é pouco não. A gente vê a televisão ali, é coisa que não é nem para acontecer.
P - O que diferenciava essa construção do alojamento dos engenheiros para os alojamentos dos operários?
R - Eram umas casas melhores, uma casa melhor, como quarto bem grande, sala grande, parecendo aquelas paredes de jacarandá, tudo colorido de madeira, que jacarandá é colorido, é madeira fina, não é madeira nada, jacarandá é fino, vai botando as madeiras de encaixe, vai fazendo as paredes. Entrava numa sala daquela, era bonita, a sala, como o quarto, a cozinha, era de acordo com o engenheiro. As dos operários eram totalmente diferentes, porque peão é diferente, não é? É peão, então é diferente. Mas aqui tinha uma coisa de bom também, diz que cada esquina tinha um vigilante que tomava conta da rua, deles, os vigilantes da própria ponte ficava nas pontas de rua, então eles olhava a rua aí, não acontecia nada. Porque tinha uma prefeitura ali. Tinha a prefeitura da Vila, fica naquela ponta, onde tá a Cedae. Tinha prefeitura e o prefeito ali era um capitão lá de Barra Mansa.
P - Quando perguntavam o seu endereço, você dizia que morava onde?
R - Aqui! Bom, aqui eu não cheguei nem coisa, porque eu morava lá no quartel, depois eu entrei nas empreiteiras, aí comecei morando aqui por dentro mesmo, eu morava em frente a reitoria, num alojamentozinho ali dos fiscais da Universidade, que fiscalizava as obras. Aí, eu fui pra ali, depois a minha esposa foi despejada, o meu sogro foi despejado do Bom Jesus, oitenta e poucas famílias, que eles tiraram dali, oitenta e três, parece. Sei lá, como era, aquele papel escrito. Assinaram, tiveram que sair, aí não tinha pra onde ir. Aí, eu acolhi meu sogro, com todos os móveis dele dentro do meu barraco, em frente a reitoria, botou tudo ali atrás. Mas naquela época eu tinha meu dinheirinho, eu tinha meu talão de cheque. E o meu sogro, coitado, não tinha nada. Aí eu falei: “Arruma uma casa aí, paga dois, três meses, adiantado, a gente aluga a casa”. Aí arrumou uma casa lá na Olaria, na Rua João Rego, aí nós fomos pra lá, levamos meu sogro pra lá, a turma todinha. A minha esposa foi para a casa da avó em Agostinho Porto com a mãe, depois que arrumou a casa… As meninas foram todas pra lá, que era uma turminha, acho que eram oito irmãos, ela tinha oito irmãos, eram três meninas e o resto homem, cinco homens. Aí quando alugou a casa, elas vieram tudo para Olaria, o endereço era ali, a gente morava na Olaria, na rua João Rego, 382. Então, passei a morar ali, o endereço era por ali. Aí nessa época eu já tinha saído da ponte, já tinha saído, eu trabalhava na empreiteira. Eu tenho minha carteira assinada, tá lá, 19 de dezembro de 1968.
P - Pois é! Então, me conta, a tua primeira carteira foi assinada por quem, qual era a empresa?
R - A minha carteira, era carteira de menor, eu trabalhei de trocador de ônibus, então aquela carteira eu usei ela ainda para assinar aqui ainda, de menor, depois que eu tirei uma outra.
P - Mas o teu primeiro trabalho aqui em relação a ponte foi com que empresa?
R - Aqui foi com a Ponte Rio-Niterói, tá escrito Consórcio Consultora Rio-Niterói, entendeu? Agora, o meu primeiro emprego foi em Barra Mansa, trabalhei de trocador, depois trabalhei numa estamparia, depois trabalhei numa firma lá dentro da Siderúrgica de Volta Redonda. Cheguei aqui já foi a quarta assinatura que eu tive na carteira.
P - Em relação aos operários, a maior parte vinha de onde? Esses que moravam no alojamento de alojamento solteiro, eles eram de onde majoritariamente?
R - Acho que vinha de vários lugares, começou vindo do Nordeste, de vários lugares, juntou aqui foi muita gente. Sabia que tinha trabalho, foi vindo… era muita gente trabalhando aí.
P - Você tem noção de números de quantos operários chegaram aqui?
R - Não! Não tenho.
P - Eles comiam onde? Como era a alimentação?
R - Tinha um restaurante aqui na frente desse outro da frente ali, o restaurante do Tilson, era do outro lado do muro, um restaurante. Depois que eu comecei a trabalhar com as empreiteiras, eu trabalhei até no restaurante, eu comecei lavando pratos, quando notei, era chefe da cozinha. Vê como é a minha história. Hoje eu… mas por gostar da parte de marceneiro. Até alfaiate quis ser aqui, fiz o curso de alfaiate no Rio, tenho o diplomazinho, mas gostei da parte de marcenaria, eu parte para ali.
P - Ainda em relação aos alojamentos. Como era a rotina desses operários da ponte? Você falou que era das sete às dez o trabalho.
R - Das sete às dez. Onze horas eles iam almoçar, apitava lá, todo mundo corria para o restaurante para almoçar. Aí trabalhava, tinha janta também, dava hora da janta, o pessoal ia trabalhar, depois voltava para o trabalho e o final era dez horas da noite.
P - E essa turma tinha dia de descanso? O que se fazia?
R - Tinha o domingo, quem quisesse descansar, mas se quisesse hora extra, tocava aí, a ponte tinha trabalho, o cara…
P - Não parava.
R - Não parava. Trabalhava para juntar dinheiro para levar para o Norte, o lugar que tava a família dele, era dessa maneira.
P - Então, esse ano de 1968 e 1969, era esse canteiro que era o primeiro canteiro de obras, é isso?
R - Primeiro canteiro de obras da Ponte Rio-Niterói.
P - Então, aqui produzia o que? O cimento?
R - Não, o cimento vinha de fora, produzia as peças da ponte, eles faziam as peças do outro lado do muro. Existia um T, tinha um guindaste, o guindaste carregava, fazia as peças, carregava, levava lá para a beira da praia, pro cais. Aí, eles pegavam, botavam nas balsas, para levar… Foi fazendo as pilastras, depois foi montando a ponte, encaixando. Diz que aquilo é tudo colado. Diz que ela é oca, ela é oca por dentro, diz que se deixar passa um carro por dentro daquele lugar, um pra lá outro pra cá.
P - Que cais você está falando?
R - O cais aqui do Parque tecnológico. A senhora já foi ali dentro, do parque tecnológico?
P - Não.
R - Vai ali dentro uma hora que a senhora vai ver que coisa bonita tem ali.
P - Da UFRJ?
R - Da UFRJ. Aí tem várias partes que eles fizeram ali, tem o tanque oceanico que eles fizeram aqui, que o Brasil ia lá para fora para fazer teste em negócio de embarcação, então foi feito aqui. Se eu não me engano, a UFRJ fez o tanque ali, aí vem gente da Argentina, do Chile, Paraguai, Uruguai, em vez de ir lá para fora, para o lado dos Estados Unidos, Canadá, eles fazem aqui.
P - Então, essas peças que eram produzidas aqui, parava um barco no cais e as pessoas eram colocadas?
R - O guindaste levava e botava dentro da barca, que ele ia até lá no final, botava dentro daquelas balsas, balsas grandes, para poder aguentar as peças, para levar lá para fazer a ponte.
P - Como que era em relação a segurança? Tinha acidentes?
R - Não, esse negócio de acidente eu nunca soube não. Ouvi falar, ouvi falar. Falavam: “Morreu gente lá no final da ponte". Disso eu não posso falar que eu não vi nada, eu saí antes. Então, quem ficou depois é que ficou sabendo de alguma coisa. Eu não sei de nada. Várias pessoas me perguntavam. “Ah, tu viu? Você trabalha na ponte. Tu viu? Morreu um engenheiro, morreu…”. Eu não vi nada, não posso falar nada. Você fala aquilo que você vê, né? Você não vê, vai falar? Daqui a pouco tem que provar isso. Então, é melhor eu não saber de nada. Mas ali tinha Prefeitura, do lado da prefeitura tinha o necrotério ali, tinha o necrotério ali dentro. Teve até um colega nosso que veio morar aí, morava dentro do necrotério, já morreu também, coitado. Quebrou aqui tudo, quando acabou o negócio das obras, acabou a prefeitura.
P - Os prédios da Universidade, já tinha Universidade?
R - Já tinha alguns prédios, estava fazendo o hospital lá, terminando o hospital. A minha esposa chegou a ir na Reitoria, quando terminou a Reitoria, acho que eu não tinha chegado aqui ainda, ela foi com a tia visitar a Reitoria, quando aprontou a Reitoria. E o hospital eu vi fazer, só tava o esqueleto, eles terminaram aquele lado. Aí eu trabalhei numa firma ali também, no hospital ali também, naquela parte de baixo lá, era Ecisa, que fez aquilo ali, minha carteira tá lá, Contabras, uma firma dentro da Ecisa. Outra firma que eu trabalhei depois disso.
P - Depois que o senhor deixou de trabalhar nessa concessionária da Ponte…. Milton, você pode só esclarecer pra gente, a gente tá falando canteiro de obras e alojamento, então quando você tem uma alojamento temporário, de barracão, até ficar pronto o que hoje a gente chama de Vila Residencial.
R - Isso.
P - Eram as casas onde moravam os operários?
R - Os funcionários da Ponte.
P - Como é que eram esses barracões? Quantas camas tinham? Era muito grande? Como é que era?
R - Não, os barracos, quem veio pra cá, veio comprando os seus móveis. Agora o barracão, se fosse solteiro, já tinha cama pronta, que eles faziam de madeira aqui, botou o colchão ali, tá valendo. Agora, quem morava nas casas, trazia móveis, geladeira, fogão, tinha que comprar isso tudo, que acho que a ponte não botava móveis pra ninguém, “cada um que trabalhe e coloque o seu, compre os seus móveis”.
P - Tinha escola?
R - Tinha uma escola, tinha uma igreja, atrás daquela igreja onde fica as irmãs ali, era uma escolinha que eles chamavam de Peteleco, tinha essa escola, para as crianças do pessoal da ponte e tinha uma igrejinha do lado, uma igreja de madeira também. Aí, depois foi desmanchada, os cupins foi comendo com o tempo, desmancharam a igreja e foram fazendo aquela ali. Nós fizemos aquela igreja. Na época juntou a turma toda e vamos fazer uma igreja, construir a igreja. E a escola dali, depois mudou lá pra frente, onde era a entrada da ponte, depois veio aqui para a associação e depois acho que acabou. Agora o pessoal vai para escolinha dessa, que tem na COPPEAD ali, tem uma escola de baixo.
P - E nessa igreja, tinha casamentos, batizados?
R - Tinha. Tinha casamento, tinha batizado, sempre teve. Conforme tá tendo agora, ela tá funcionando de uma maneira conjugada, com outras igrejas lá de fora, entendeu? O padre aqui da igreja, era o padre Lindemberg, era Capelão aí, era do exército, mas aquele padre todo enérgico, aí depois mudou, ficou lá com as irmãs e agora tem outro padre aí agora, mas pertencendo à diocese do Rio de Janeiro. De vez em quando, ele vem aí.
P - Como é o nome da igreja?
R - Igreja Nossa Senhora dos Apóstolos.
P - A época da construção da Ponte Rio-Niterói é uma época da ditadura militar.
R - Disse que era na época.
P - Como era a presença dos militares? Vocês como operários como se relacionavam com os militares?
R - Não, aqui não tinha nenhum militar não, só o pessoal comum mesmo, civil só, que trabalhava na ponte aqui. Militar eu acho que só era lá no quartel lá, que acho que deve ter sido construído até com engenheiro militar também, ficava com eles para o serviço andar, eu acho que seria isso.
P - Era exatamente isso.
R - Engenheiro civil, engenheiro deles ali e o serviço andar. Era desse jeito.
P - O Mário Andreazza, que era o Ministro do Transporte, também chegou a morar aqui?
R - Morou lá na entrada do Bom Jesus, morava na primeira casa de cima, primeira casa na subidinha, ele já morava ali na frente.
P - Com a família, sozinho?
R - Acho que morava com a família, que a casa era grande. Depois que entregou aquilo ali, que entregaram aquelas casas, até o padre chegou a morar naquela casa da frente ali. Esse padre que era o Padre Lindembergue, que era Capelão. O Padre do exército é Capelão.
P - E em termos de policiamento, como é que era aqui? Porque eram muitos jovens solteiros também que moravam aqui. Como é que era, tinha música, tinha algum episódio de violência?
R - Não, nunca teve aqui não, sempre foi tranquilo do jeito que é hoje. Você vê a tranquilidade. Tem criança que brinca uma hora, duas horas, vai para o parque brincar, a mãe leva ele ali, isso aí. Aqui ainda é o pedacinho melhor que a gente tem aqui no Rio de Janeiro, esse pedacinho aqui. Pra mim! Tem lugar bom aí fora, mas aqui nesse pedaço. Você sai aí pra fora a bala come pra tudo quanto é lado. Daqui a gente até escuta, eu escuto.
P - E o nome Divinéia?
R - Divinéia foi um pedreiro que teve aqui, morava aqui, começou a ajudar quando foi desmanchando os barracos. Ele me chegou aqui chamando eu para fazer a casa de tijolo. E a prefeitura só autorizava fazer a casa, a parede que o cupim comia, não autoriza você fazer tudo. Aí você fazia aquela parede, aí o cupim comia, fazia outra. Aí ele veio pra cá para fazer isso, fazia piso, aterrava, porque era embaixo os caranguejos, Guaiamum andava por debaixo dos barracos, os barracos eram feitos altos do aterramento. Aí você encontrava até Guaiamum debaixo, andando debaixo dos barracos. E aquilo a pessoa foi enterrando e fazendo um piso, botando uma cerâmica, e ele fazia. E como tinha uma novela, que tinha negócio de Divinéia, aí ele botou apelido de Divinéia. “Aqui parece com a Divinéia da novela". Mas tem Divinéia lá fora, diz que uma favela aí fora é Divinéia, para aqueles lados ali, lá tem a Divinéia mesmo. Aí quando chega no Ponto Frio para comprar uma coisa. “Você mora aonde?”. “Eu mora na Divinéia". “Você mora na Divinéia?”. “Eu não moro não, eu moro na Vila Residencial dos Funcionários". Aí a pessoa vem e muda documento, eu boto ali, Vila Residencial dos Funcionários. Eu não posso rebaixar o meu lugar, eu tenho que valorizar ele. Aqui que eu vivo, pô! Eu vim para cá… Eu fiquei lá fora e viemos pra cá em 1980, 1974 eu fui lá para a Olaria e, de lá, em 1980 que a gente veio pra cá, que a prefeitura cedeu os barraco, aí deu uma casa para o meu sogro, um barraco para o meu sogro, eu vim junto com ele pra cá. Aí de 1984 pra cá…
P - Você gostou de voltar pra cá?
R - Voltei porque quis. Ganhei esse terreninho aqui.
P - Ainda em relação a o que você chama de barraco dos operários que trabalhavam na Ponte Rio-Niterói, num final de dia de trabalho, o que que eles conversavam sobre a obra, dimensão da obra, era considerado uma obra pioneira?
R - Eu no meio do povo, eu não cheguei a conversar com ninguém sobre isso. E nem vê isso, porque eu tava fora, eu não tava aqui. Se eles conversavam, eles conversavam aqui, o pessoal continuou até 74.
P - Você foi trabalhar com as empreiteiras?
R - Trabalhava com as empreiteiras.
P - Quais empreiteiras, Milton?
R - Nem tinha nome. O cara pegava, recrutava umas dez pessoas aí. Empreiteiro é isso, ele pega umas dez, vinte, quinze pessoas para trabalhar de pintor numa casa, isso que é o empreiteiro, que aí ele te paga até o dobro, ele pagava o dobro, se a ponte paga um salário, ele pagava dois. Por que ele paga dois? Deve ser porque os custos, ele não assina a carteira, mas te paga tudo ali, você recebia tudo. Aí ganhava mais uns trocadinhos.
P - Mas esse trabalho de empreiteira também era para a ponte?
R - É, o cara locava o serviço na ponte e pegava… Eu quero fazer, eu quero pintar duas carreiras de barraco dessa aqui". Aí empreitava com a ponte e fazia o trabalho.
P - Qual trabalho você fez, você lembra?
R - Fiz pintura. Eu não era pintor, servente, mas na hora o cara: “Você vai pintar. Eu vi você pintando o bar do Tilson lá, então você sabe pintar". Me deu o pincel e a tinta, eu sai pintando. O cara botou na carteira meio oficial de pintor, nem botou pintor, mas tá bom.
P - Mas era aqui nas residências?
R - Aqui nas residências. Antes do pessoal entrar nas casas. E depois que aprontou veio chegando às famílias.
P - Você lembra de alguma família especialmente?
R - Não me lembro, que eu saí antes daqui.
P - E a inauguração da Ponte, você estava aqui?
R - Eu nem soube desse negócio de inauguração da ponte na época, porque eu estava trabalhando fora, aí o tio da minha esposa, nessa época arrumou um serviço pra mim de montador de divisória. Aí eu parti pra divisória, montando divisória.
P - Mas você morava aqui?
R - Não, eu morava lá em Olaria, já tinha ido pra lá. Aí eu já viajava para São Paulo para montar, aqui no Rio, vários lugares, montando na cidade todinha. Montei aqui dentro da Petrobras. Trabalhei na outra do outro lado, na Eletrobras, ali montando aquelas paredes de drywall. E lá na Petrobras ajudei a montar radial mesmo de divisória, aqueles painéis pesados, ali eu trabalhei até 1975. Aí depois fui pra São Paulo, na mesma firma, montar uma obra em São Paulo, do INPS de São Paulo.
P - Assim como tinha essa sua firma que faziam essas empreitadas, que outras empreiteiras faziam serviço pra ponte? Que tipo de serviço era feito pra Ponte, você sabe? De empreiteira.
R - Não, não sei. Os serviços que eles pegavam eu não estava aqui, eu já tinha saído, eu não sabia dos trabalhos que eles ficavam fazendo depois. Mas era serviço que você pega. “Ó é X". Aí, a pessoa vai pegar aquela quantidade, ele não dá conta, ele bota várias pessoas para poder acabar aquilo rápido. Isso se chama empreiteira. Eu também, quando pegava uma obra grande eu contratava, cheguei a ter oito empregados, sete, comigo. Pagava eles ali. “Se o serviço render, você tem 5% do valor da obra". Acabava a obra pagava, ficava duro, mas eu pagava para os caras que estavam trabalhando comigo. Depois eu pegava o meu, recebia o meu, fazia o que tinha que fazer.
P - Você sabe se os moradores aqui do alojamento comemoravam festas na rua, se tinha uma festa junina, se tinha algum outro festejo que você saiba?
R - Eu acho que tinha na pracinha ali, acho que eles faziam festa junina ali, tem a igrejinha, eles comemoravam naquele pedaço ali, estava sempre fazendo festa, porque o nortista sempre gosta de festa junina. Ele está sempre ali alegre, fazendo as comidas típicas.
P - E o casamento com a Dona Jurema?
R - Ah, o casamento com a Dona Jurema. Eu casei no civil primeiro.
P - Que anos, que data?
R - Foi no dia 23 de agosto de 1974, que nos casamos.
P - Mês de agosto é o seu mês.
R - Mês de agosto. Casei nessa época. E vim casar depois aqui na igreja, mas já estava com os dois filhos, aí que nós casamos na igreja. “Agora vamos casar na igreja".
P - Na igrejinha aqui da Vila?
R - Nessa igreja aí mesmo. Aliás, na igreja aqui não, foi pedido a ordem daqui, eu fui casar lá na igreja na Ilha de São Sebastião, fica lá na Ilha do Governador, que aí a gente foi fazer o curso, eu e ela, fazer o curso, preparar pra gente casar lá.
P - Que igreja essa?
R - Uma igreja comunitária, Igreja São Sebastião. Então, foi um casamento comunitário, de umas 20 pessoas. Então, a festa foi feita lá na igreja mesmo, no salão grande de lá, pra todo mundo ali. E quem quisesse fazer separado, não ficava ali, fazia em casa. Mas a maioria foi lá. Não tem muito dinheiro, então tem que fazer com aquilo que tem.
P - E o nome dos seus filhos, Milton?
R
- Esse que tá em cima é Milton dos Santos Brasil. A menina é Ana Paula dos Santos Brasil, ela casou com um capitão da Marinha. E esse outro rapaz que estava aqui, é Diego dos Santos Brasil, esse é o caçula, o rapa do tacho. Aqui é todo mundo de abril, o Miltinho é 12 de abril, a sexta-feira da paixão, e a Ana Paula é do dia 23 de abril, dia de São Jorge, e esse outro é do dia 9 de abril, o Diego.
P - Quando é que você começou a trabalhar como marceneiro?
R - Marceneiro? Foi quando eu comecei a trabalhar como colocador, colocador de divisória tem que serrar rodapé, e eu aprendi com um espanhol e um português, então eles: “Ó, isso aqui é a mesma coisa que trabalhar de marceneiro, mexer com alumínio, serrar alumínio, colocar porta, é a mesma coisa. Você gostou do trabalho?”. “Eu gostei". Eu fazia o serviço. Aí eles me ensinaram direitinho, o português, o espanhol lá. Teve um dia que eu estava botando umas portas… Essa obra que eu fui fazer em São Paulo, eu colocava 22 portas num dia.
P - Milton, você estava contando desse trabalho com o senhor espanhol que fazia divisórias. Como é que vocês levavam, vocês iam para Niterói? Como que era?
R - A gente ia de balsa, ia no carro junto com o meu tio, ia de balsa, o carro já entra dentro da balsa, você desce do carro, fica do lado de fora ali. Ia caminhão, ia ônibus, que a balsa era grande. Ia tantos carros ali por cada viagem, o que coubesse ali.
P - Você pegava no Rio ou pegava em Niterói?
R - Aqui no Rio, ali na Praça XV, ali que a balsa saia. Atravessava, deixava o pessoal lá do outro lado. Nessa época que eu entrei, acho que foi em 1973, que eu comecei a trabalhar com divisórias. Então, ela foi inaugurada em 1974, então ainda não tinha ponte, era balsa. Aí depois que ficou pronto, acho que eles levaram essa balsa para outro lugar, acho que levaram lá para o lado do Amazonas, para aqueles lados, onde tem aqueles rios lá, deve estar para aqueles lados de lá, funcionando lá.
P - E você então começou a trabalhar como marceneiro, você aprendeu com eles…
R - Aprendi a parte da marcenaria com um espanhol. O espanhol, teve um dia que eu estava com dez portas, que eu gostava de ferrar, dez portas de uma vez, sentava ali, com o meu formão ferrando. Aí eu estou lá, ferrando as portas, aí na hora de botar os parafusos, eu peguei o parafuso, peguei o martelo, bati, enterrava até a metade, o resto na chave… [interrupção]
P - É impressionante pensar que a gente só tinha balsa, né?
R - Só tinha a balsa. Teve uma vez que engarrafou tudo aí… O dia que bateu o negócio na ponte, não teve um navio que bateu lá? Naquele dia, eu ia lá para Araruama, falei: “Pronto, agora não posso ir mais”. Foi engarrafando tudo, não passava nada, falei: “Então, nós vamos por aqui". Peguei o carro, fui por aqui, é uma volta danada e um engarrafamento, que tinha muita gente dando a volta por Magé, aí você passa por dois pedágios, tem que pagar dois pedágios. Que um aqui em Guapimirim, aqueles lados ali, o outro mais pra frente. É mais de cem quilômetros que você anda, cento e poucos quilômetros.
P - Quando vocês moravam aqui vocês iam para a praia, nadava em algum lugar?
R - A gente ia para essa praia aqui.
P - Como era o nome?
R - Aqui chamava de Praia do Areal, outro chamava de Praia do Olho, mais lá para frente. Agora tá tudo poluído, estragou tudo. Eu pegava camarão, eu tenho uma rede, ia pescar camarão ali.
P - Aqui na Baía?
R - Aqui nessa praia. Teve uma vez que nós pescamos no sábado, eu peguei quarenta e oito quilos de camarão. Tinha uma redezinha ali, aí eu pegava. A gente ficava com seis quilos e o resto, eu dava tudo para o meu filho. “Aí, vende para vocês". Ele vendia.
P - O senhor estava contando pra gente a questão da divisória, vocês tinham que levar a mercadoria de balsa, não tinha a ponte.
R - Não tinha a ponte, aí tinha que levar de balsa, material ia tudo pra lá de balsa, era desse jeito, na época. Facilitou muito a ponte, mil vezes, a pessoa pega o carro aqui é quatorze minutos, depende, né? Ela tem quase quatorze quilômetros, a ponte. Então, a pessoa atravessa aí, dá vinte minutos, dependendo do engarrafamento, às vezes, meia hora, quarenta minutos, está sempre falando, está sempre dando no celular, fala no celular o tempo que você está levando, como é que está o engarrafamento.
P - Vocês quando moravam aqui, iam à praia ou pegavam o carro para viajar para a região dos Lagos, como é que era?
R - Não, eu comecei a ir agora, depois que eu comprei o carro, que a minha filha morava aqui, era morava perto do Norte Shopping, aí ele mudou para lá, agora que a gente de vez em quando dá um passeio pra lá, vai lá uma semana, uns três dias, que o meu neto fica perturbando. “Vem vó, vem, to esperando a senhora". Ele gosta muito dela, aí a gente vai lá, fica lá. Agora há pouco tempo, depois que eu comprei esse terceiro carro.
P - Mas antes a praia era onde?
R - A praia era aqui, às vezes cismava, ia lá em Copacabana, dar uma andada lá. Na Barra, meu filho gosta de ir muito na Barra, catava o carro, ia direto na linha amarela, vai lá na Barra. Fui lá duas vezes.
P - Mas antes, na década de 70, como era a praia aqui?
R - 70 era essa praia daqui, aqui do Bom Jesus, a Prainha. Chamava Praia da Jussara, que tinha uma senhora que morava ali, que tinha um restaurantezinho, vendia na praia, chamava Jussara. “Vamos lá na praia da Jussara". Mas não tinha os barcos, aqueles barquinhos, agora está cheio de barco ali, eles ocupando aquilo ali. E muita poluição também, isso aí acabou. Agora você chega aí não pega camarão do jeito que você pegava, peixe, acabou. A poluição vai acabando com tudo. Até o plástico está vindo para o nosso organismo. Já viu como o plástico tá vindo? O peixe come e a gente come o peixe depois, aí vai vindo para o nosso sangue. E o debate que eles estão fazendo aí, essa conferência que eles estão fazendo, eles estão falando sempre sobre isso, o meio ambiente, a poluição.
P - Mas antes a Baía de Guanabara era mais limpa?
R - Limpinha a água. Poxa, pegava um peixe que era uma beleza. Hoje eu pego um peixe para comer aí, tá cheio de… tá todo preto. Lá em Araruama, você come um peixinho lá, uma Tainha, é uma beleza, é limpinho, é da lagoa, peixe da lagoa. É totalmente diferente. Pega uma Piraúna lá. Agora pega daqui, um Piraúna daqui e tudo cheio de lama por dentro, Tainha cheio de lama, eles não comem comida, é lama. Aí quando abre, tira as vísceras, tá cheio de lama. Então, a poluição tomou conta de tudo, praticamente dessa Baía todinha. Essa área aí, lixo que vão jogando, que despejam em vários rios, de Caxias, aquele Rio Sarapuí que eles falam, canal do Cunha, ele começa limpinho lá em cima na serra, quando chega ali, passa pelo Maracanã ali, aquele riozinho, vem aquele outro que sai ali em frente a Leopoldina. Aquilo nasce limpinho lá na serra, dá para beber a água lá, aí quando chega ali, vem acabando com tudo, a poluição. Muitas garrafas, essas garrafas, o que eles acham de garrafas. Eles tinham que acabar com isso, tinha que acabar com esse plástico, acho outra maneira, para não poluir o rios. É o que eu falo, o Globo tá esquentando, já tá atrapalhando lá no fundo do mar, essa semana mesmo tava falando, domingo, mostrando lá, as algas, aqueles crustáceos, tá totalmente diferente, tá atrapalhando, o calor no mar tá atrapalhando.
P - O senhor contou pra gente que o senhor começou a se especializar em marcenaria e chegou a trabalhar no Museu Nacional. Me conta um pouquinho, por favor?
R - Primeiro, eu comecei a trabalhar com esse espanhol, me especializei ali. Botando a porta lá, eu estava botando no martelo, o parafuso, a metade e o resto eu botava na chave, que a gente tem uma chave de bomba aí, antiga, tem até uma ali. Então, o português estava atrás de mim, daqui a pouco ele olhou. “Eu gostei da chave de fenda, hein!”, ele e o espanhol. “Gostei, essa é boa! De primeira qualidade. Só que só tem um problema". “Sim, senhor". “Olha, tira esse parafuso daí, fecha esses buracos todinho aí, com cola, com madeira, e coloca do jeito que eu te ensinei. Você faz o que eu mando, mas não faz o que eu faço. Faz o que eu mando, não faz o que você quer". E aí até hoje. Eu gosto do trabalho. Aí parti para aquilo, entrei na universidade como marceneiro.
P - Na UFRJ?
R -
Na UFRJ.
P - Que ano foi isso, Milton?
R - Em 1988. A minha cunhada falou: “Vai lá falar com a mulher do Prefeito, que ela arruma um trabalho pra você". Eu falei: “E já pago meu INPS". Desde 1971, eu já tinha minha autonomia, o cartão autônomo. Então, eu pagava, então, se eu me aposentei mais cedo, é porque juntou com o da universidade, deu 43 anos pago, entendeu? Tive minha autonomia. Eu gostei da profissão de marceneiro. Aí cheguei lá na prefeitura, falei com a Mulher do Prefeito, que era secretária. “Quero falar com a secretária". Aí foi lá. “Tem um moço querendo falar com a senhora". “Eu conheço?”. “Não!”. “Manda ele esperar dez minutos". Ele veio. “O senhor me conhece?”. “Não!”. “O que que te traz aqui?”. Falei: “Ó, que eu moro lá com o meu sogro, agregado, tenho uma esposa maravilhosa, dois filhos que não me dão problema e estou precisando trabalhar". Ela falou: “Só isso?”. Falei: “Não, tem mais uma, eu não vou decepcionar a senhora". Passou a mão num papel lá, escreveu lá, botou dentro de uma carta, colou. “Vai lá e entrega na reitoria". Foi o que eu fiz. Cheguei lá, o cara: “Cadê os seus documentos? O senhor trabalha de que?”. Falei: “Marceneiro". Botou lá. Aí entrei como marceneiro aqui. Aí trabalhei uns tempos na prefeitura, trabalhei no alojamento, trabalhei na educação física, trabalhei na reitoria. Eu vivo fazendo vários serviços. Teve um serviço que eu fiz na reitoria, que eu vi ali, o prefeito mandou. “Vai fazer esse trabalho, toma a fechadura e vai lá no oitavo andar”. Eu fiz um serviço num lugar que era a deleção do prédio, deletação. Cheguei lá, a secretária: “O que o senhor deseja?”. “Eu sou o marceneiro". “O senhor é o marceneiro mesmo?”. “Sou!”. “O senhor veio botar a porta?”. “Vim botar a porta". Eu falei: “Por que?”. “É porque o senhor tá sendo o nono que tá chegando aqui, que já teve aqui…”. “Então, teve oito, né?”. “E não conseguiu botar a porta". Eu falei: “A senhora só se enganou com uma coisa, o nono e o último. Onde está a porta?”. “A porta está na sala trezentos, se não me engano é oito mil duzentos e vinte sete, um negócio assim". Falei: “Tá bom! A porta tá lá!”. Aí eu medi o vão. “Quanto tem o vão? Oitenta. Embaixo, setenta e nove. Em cima?” Medi a altura da porta. “A porta é dois e dez, né?”. Aí, eu medi a altura da porta, tem dois metros. Eu fui lá ver a porta, a porta tem noventa de largura e dois e dez de altura. “É, tá bom!”. Catei a porta, trouxe. “Arruma uma saída para eu sair com a porta". Fui sair lá embaixo, o cara não deixou eu sair com a minha ferramenta, falei: “é por isso mesmo, se eu for sair com essa ferramenta, tem que ter saída pra ela”. Trouxe ela na marcenaria, peguei a porta, cortei na medida do vão, altura, largura e tal, botei a madeira, cortei, ficou tudo oco. Botei a madeira, botei Cola Sargento, secou, dois dias eu fui lá botar a porta. Botei a porta, coloquei tá aí. “É isso que a senhora quer?”. Falou pra mim: “É! Pois não”, “não falei para a senhora, eu sou o nono e o último, então tá aqui a porta, porque os que vieram botar não é marceneiro". Como é que o cara… Aí botei a porta e tal, e a fechadura, botei lá. E ela: “Essa outra fechadura, essa aí o senhor pode levar pra você". “Não, isso aqui pertence à Universidade, não é minha, a senhora guarda aí". Ela catou a fechadura que eu dei pra ela e jogou dentro da lata do lixo. Ela pensou que eu ia levar pra mim, não. Colocar na minha caixa de ferramentas, não! Agora arruma uma saída pra mim sair com as minhas ferramentas de novo. Aí, eu saí. Aí, depois chegou uma carta lá, elogiando, lá na prefeitura, o meu trabalho. Nos destinos da vida você tem uns altos e baixos, não é? Não acontece? Acontece. Mas eu fiz o trabalho, fiquei por ali. Ficava aquela turma à toa, debaixo da coisa ali, tinha um prefeito ali, Luciano, era um estudante daí, chegou a prefeito. Transferiu lá pro Museu Nacional, vai a turma todinha para lá. Mas antes disso eu fui na Praia Vermelha, fiz serviço na Praia Vermelha também, fiz um bocado de divisórias lá. Aí depois fomos para o Museu.
P - Que ano isso?
R - Isso foi… 1988 eu entrei aqui. Nem me lembro muito bem não.
P -
Foi na década de 90?
R - De 90, por aí que eu fui pra lá.
P - Foi trabalhar como marceneiro no Museu Nacional na Quinta da Boa Vista?
R - É, eu fui trabalhar ali. E ali tem muita coisa para fazer, uma cadeira quebra um pé, você tem que pegar uma madeira, serrar na tico-tico, na serra de pinta, fazer de acordo com a cadeira, é restauração. Então, você tá recuperando uma lateral da cadeira. E ele foi fazendo as obras, foi fazendo as obras. E ali, o pessoal foi gostando do trabalho, aí comecei a montar divisórias lá também. Apareceu divisória, aí o cara: “Ele que entende de divisórias". Alí o diretor era o Wagner. Agora tem outro diretor, aquele negócio da patologia também, mexe com negócio…
P - Você trabalhava no Museu quando pegou fogo?
R - Não, eu já estava aposentado.
P - Você lembra desse dia que a gente viu na televisão?
R - Lembro, eu estava vendo televisão ali quando mostrou, foi no domingo, né? Num domingo, depois da visita, caramba! E o pessoal visitou, desceram… Dizem que aquilo começou pelo restaurante lá embaixo, né? Eles falam que foi pelo restaurante, um ar ligado lá e acabou pegando… Que aquilo tudo é madeira, o assoalho, aquilo é madeira banhado com aquela, óleo de linhaça. Tem uma escada lá, a escada é quase da largura dessa parede aqui, você sobe nela aqui, vira pra subir… Quando eu cheguei lá, olhava bem. “Isso aqui, se acontecer alguma coisa aqui ou pegar fogo, não dá tempo de descer não, vai queimar tudo, você vai ficar lá em cima". Eu ficava com medo de subir. Mas depois eu perdi o medo, fui perdendo o medo. O tempo que eu fiquei ali, eu me acostumei com o Museu.
P - Mas foi muito triste.
R - Ah, foi muito triste. Eu fiquei chateado, os acervos que eu fazia com o pessoal lá, para botar na vitrine, com as professoras…
P - Você fazia as vitrines?
R -
Consertava aquelas vitrines todinhas, aquelas partes de madeira. Tinha umas vitrines que é de ferro. Aí depois comecei trabalhar com eles, eles gostaram, começaram a viajar comigo, eu ia para a Chapada Diamantina, aí ia para a Serra da Mesa, aí comecei a trabalhar nos negócios das cavernas lá, fazia aquelas esterazinhas para coar a terra, para eles descobrirem dinossauros, essas porcarias aí.
P - Interessante.
R - Teve um lugar que nós fomos aqui, nós achamos uma preguiça gigante. Ela era da altura do portão aí, tem dois metros e pouco, ela está enterrada dentro de um… enterrada, não deixaram tirar não, cavou, tirou metade quando descobriu, aí eu fiz o deck, aí lá dentro tinha mais de dois caminhão de cocô de morcego, aí o professor juntou eu com mais um rapaz do Polo Norte aí, que morreu, que já tem mais ou menos um ano, que ele trabalhava no Polo Norte. Coitado dele. Juntou eu e ele, pra gente fazer um trilho, igual o trilho de trem, para correr o trem. Eu fiz o trilho, fiz a caixa, botamos as roldanas para correr no trilho para tirar o cocô lá de dentro. Porque quando entra lá dentro, é mais ou menos quase da altura desse prédio aí, o oco por dentro. E os morcegos cagavam lá de cima…
P - Isso na chapada?
R - Não, esse foi na Serra da Mesa, aqui, pra cá. Chapada Diamantina já foi outra coisa. Chapada Diamantina, a gente descia num buraco de trezentos metros de diâmetro e sessenta de profundidade, assim. A gente tinha que descer lá embaixo, para entrar dentro da caverna. E nesse outro, aí nós fizemos o troller, com aqueles tubos de PVC, tubo de PVC da Tigre, o professor comprou 40 tubos daquele pra gente fazer os trilhos, eu fiz os dormentos para parafusar os trem para fazer aquelas linhas do trenzinho. “Professor, nós temos um problema". “O que que foi?”. “Tô levando esses canos, chegar lá a turma vai jogar tudo no lixo". “Que isso?”. “O senhor vai jogar tudo no lixo". Aí, chegamos lá, botamos o troller em cima, parafusamos. Ele pulava para ver se saia. “Agora vamos comprar os tubos certos". “Onde?”. Esse rapaz que morreu foi arrancar os parafusos tudinho e ele entortou, começou a empenar. Aí fomos lá na coisa apanhar… compramos um tubo de cola, o mais barato, aquele que cola. Aí eu comprei um quilo de prego desses sem cabeça e batemos, pregamos certinho no lugar, botamos ali, ele corria que era uma beleza. Aí, pegamos aquele troço, tinha dois metros e noventa. Aí, eu amarrei uma corda aqui e amarrei uma outra na estaca lá, amarrei outra na outra ponta de lá, furei com uma broca, amarrei no outro e amarrei em outra estaca, aí você deitava no troller e puxava a corda assim, você ia. Isso que tirou os dois caminhão de cocô de morcego de lá, tudo para fora. Aquele cocô de morcego já tinha matado um professor, morreu. E teve um pedreiro que morreu fazendo trabalho lá dentro, ele ficou internado, o pedreiro, oito meses.
P - E a preguiça foi encontrada tá preservada e protegida pela sua obra?
R - É! Eu fiz o que eu pude. Então, lá fez o deck, preparou tudo. E era um túnel que você não podia arrastar o saco de cocô de morcego, que se eu fosse botar nas costas e carregar ele, ele ia rasgar no chão e esparramar, então esse trolezinho, ele carregou os dois caminhão todinho, nós fomos botando aos poucos, carregava quatro, cinco sacos dentro do trole, para jogar para fora. Ficou bonito, eu gostei daquilo. Quando você chega, você vê acontecer, fazer o trabalho e ficar aquilo lá. Aí mudando para a Chapada Diamantina, outra parte bonita, a gente trabalhou lá numa segunda-feira, você passava assim, as crianças estavam lá, estudando com vela, com lamparina. Aí na chegada nossa lá, o fazendeiro que a gente trabalhava para ele, fazia uns trabalhos lá, aquilo juntou, chamou o prefeito, a primeira vinda, a segunda, terceira, tacou o poste de luz para iluminar para todo mundo. Para você ver, que coisa bonita. A vila recebeu a luz, porque não tinha, precisava chegar a gente lá para fazer um trabalho na caverna e lutar por aquilo. Porque, poxa, é só a gente ver a dificuldade do ser humano ali, dos nossos irmãos. Eu ali, teve uma vez que eu tava ali, eu peguei uma barata que eu achei, ainda na coisa lá. Barata deste tamanho, ela tinha uns 15 cm, ela era escura por cima assim, cinza. Aí eu achei aquilo, peguei aquilo, prendi dentro de uma garrafa, garrafa de coca-cola, fechei tudo, botei lá. Aí no outro dia, eu levantava, botava lá alguma comidinha, ela comia lá e tudo. O tempo que eu fiquei lá todinho com ela, mais de quinze dias, mais de vinte dias. Nossa viagem durava vinte e cinco dias, depois a gente vinha embora. Aí no dia de eu vim embora, eu olhei lá ela estava lá com as antenas, mexendo devagar. E a professora pediu pra mim trazer pra ela, uma professora, para botar lá no Museu. Falei: “pode deixar que eu vou trazer a barata pra ela”. Olha, no dia de eu vir embora, eu olhei para ela, ela tava com a antena, mexia pra lá, mexia para cá, eu cantei o coisa, falei: “Não! Abri. Tu não vai para lá não, tu vai ficar no teu lugar mesmo”. Abri aqui, ela saiu andando, antes dela chegar no mato, ela parou, olhou e… Parece que conversa com a gente, né?
P - Você deixou ela na natureza?
R - Na natureza lá mesmo, e ela ficou por lá. Então, são as coisas que passam pela cabeça da gente e você tem que ver. E aqui eu peguei uma lacraia aqui, que ia mordendo as crianças ali na esquina, “ó, era esse aqui ó”, a bicha era dessa grossura. Aí eu peguei um balde, quando eu vi as crianças correndo na rua, peguei o balde, virei, ela ficou ali. Aí eu guardei aqui, na sexta-feira, aí domingo, na segunda-feira, fui para o Museu. Vou levar ela pra lá. Essa eu tive que levar, que eu peguei ela aqui no fundão, aqui ela pode morder alguém. Um dia desses pegaram outra aqui, ela deve ter saído do bueiro aqui, o meu filho que pegou. Que perigo! Essa era muito grande, eu não tinha visto lacraia daquele jeito não. Aí eu levei lá para o museu, aí cheguei lá a professora: “E aí, eu trouxe um negócio para senhora". “O que que foi?”. “Uma lacraia". Ela olhou. “Caramba! Senhor Brasil, faltava ela na minha coleção aqui". Coleção? Mas ela manteve ela viva. Eu falei: “E aí, vamos registrar a lacraia?” Eu falei: “Você já botou nome nela?”. “Já, já botei um nome". “Como que ela chama?”. “Catarina!”. “Senhor Brasil, você colocou o nome da minha filha na lacraia?”. Aí ela levou, ficou com ela uns três anos, depois teve uma falta de luz lá e aí a lacraia acabou morrendo, porque ela fica debaixo dos papéis molhados, você molha assim um jornal, ela enfia embaixo e fica ali, ela gosta de umidade. E sabe o que ela come? Essas baratas comuns. Bota ali, ela destrói na mesma hora, já era. Bota uma, duas, três, o que botar ela come todinha. Aí ficou lá no Museu. Aí depois eles desmontaram ela, fizeram um quadro, depois que ela morreu,
separaram as pecinhas dela todinha, os pezinhos todinhos, botaram num quadrinho preso. Pegou fogo lá, deve ter queimado, acabou. Queimou a Catarina.
P - Você mora aqui na Vila Residencial, sua casa é uma das primeiras, não é isso? Como é a dinâmica da Vila?
R - Das primeiras… eu já tinha casa aqui, essa aqui foi depois, depois que pegou fogo nos barraco dos peões aqui, pegou fogo queimou todos, barracões grandes, altos. Aí esse terreno ficou vazio, aí foi onde eles cismaram de ocupar esse terreno com casas. Aí que mandaram medir aí.
P - Mas quando a Ponte Rio-Niterói acabou, essa parte desses alojamentos dos operários… Os operários foram embora, acabou a obra eles foram embora, ou alguns continuaram vivendo aqui?
R - Eles queriam ficar por aqui, mas eles tinham que sair. Porque a casa que o meu sogro apanhou lá, fomos ver o esgoto, estava cheio de brita. Pra não usar, quem viesse não usar. Só pode ter sido os operários para não sair. Aquilo foi um trabalho do caramba para tirar aquela brita lá de dentro.
P - Aonde que era a casa do sogro?
R - Era aqui na Rua das Rosas, 10.
P - Então, essas casas construídas originalmente com aquela madeira que você contou…
R - Com Pinho, era tudo Pinho. Hoje eles falam no Pino. O Pino, o cupim come rindo. Ele olha assim rindo pra comer. O Pinho não, o Pinho é uma madeira mais nobre.
P - Tem alguma casa ainda aqui da época de Pinho?
R - Até pouco tempo tinha uma aqui, na Rua Oito, no final lá, o rapaz morreu há pouco tempo, o rapaz teve um AVC, quando teve o segundo AVC ele foi, a família veio lá do nordeste, do Ceará, não é Maceió, veio aqui para vender a parte e fazer o enterro do rapaz. Lá era de madeira, às vezes, eu olhava assim, eu ficava até com medo, porra, se pega fogo não dá tempo dele sair lá de dentro não, porque já estava muito seco, muitos anos ali.
P - Tinha muita incêndio no começo da ocupação?
R - Não. Na Rua das Rosas pegou fogo no lado ali, ficou só as casas da ponta, essa da ponta aqui e outra do outro lado, onde ficavam os vigilantes. Essas outras pegou fogo todinha. Quando nós viemos para cá, nós tirando no meio do mato, que o mato tomou conta depois, tinha até bujão de gás todo queimado lá no meio do mato. Foi da época que pegou fogo, que era muito barraco.
P - Mas então, quando acaba a obra da Ponte Rio-Niterói, os trabalhadores vão embora?
R - Vão embora. Aqui foi tudo embora, cada um para o seu lugar. Ou se ficou aqui, foi pro Rio. Se veio lá do nordeste e aqui tem trabalho, deve ter ficado por aqui mesmo.
P - Tinha trabalho na década de 70 aqui no Rio, de obras?
R - De obras? Tinha, tem, tem muita obra, aqui sempre teve obra. Quem fez esses prédios aí? Maior parte foi os nordestinos, vem pra cá para trabalhar nas obras, porque lá onde eles moram, o dinheiro é difícil, eles correm pra cá. Aí vai dar um passeio lá, vai todo vestidinho, todo arrumadinho, na festa junina, daqui a pouco ele traz o primo, traz a prima, traz o outro. “Olha, lá tem trabalho". Ai eles vem.
P - Como é que a Vila Residencial foi sendo constituída com essas casas já de tijolo?
R - Então, foi desmanchando, os barracos foi pegando cupim, comendo, aí eles foram modificando e fazendo de tijolo, fazendo fundação. Fundação direita. Essa daqui eu recebi uma planta para receber ela, quem me deu o terreno, me deu, fiz a planta pra mim ainda, botou o que eu ia gastar, botou a ferragem, botou o cimento, botou tudo. Só que o papai do céu é tão bom, que quando chegou… Quatro mil e quinhentos tijolos o cara botou para fazer essa casa, quando chegou o caminhão, o cara falou: “E aí, como é que fica aí? Tijolo teu tá aqui". Chegou com quatorze mil tijolos. Ele virou para mim: “Se você arrumasse um lugar para eu vender o resto desses tijolos, eu já voltava para buscar mais lá em Itaboraí". Aí falei para a minha esposa. “O rapaz quer vender o resto". “Quanto é?”. “Tanto!”. Arrendei tudo, os quatorze mil. Aí o que que veio na minha cabeça, você pega o milheiro e troca por vinte sacos de cimento. Eu não comprei cimento, sobrou cimento. E aquela coisa que vai acontecendo, eu botei o tijolo todinho ali, comprei um caminhão de pedra, uma caminhão de areia. E era aqui, não tinha esse pedaço aqui não, a garagem não, depois que o rapaz ganhou um pedaço que eu arrumei a garagem. Aí depois ele disse que precisava da garagem dele, eu ganhei outro pedaço. Aí lá na prefeitura. “Não, pode completar". Olha, aqui atrás tinha uma senhorinha, uma velhinha. Aí eu ficava sentado aqui, essa calçada era mais alta, era mais lá embaixo. Aí a velhinha chegava ali trazia uma latinha de tinta, essas pequenininhas, ela enchia de areia, botava debaixo da saia que a saia era grande e levava. Carregou a areia que ela queria, carregou a pedra, depois ela passou a carregar tijolo, debaixo da saia. Deus é tão bom, que eu nunca cheguei pra ela e falei assim: “A senhora está me roubando isso". Deus me deu tudo, se ela fez com o material…
P - Ele precisava e o senhor compreendeu….
R - Sim, compreendi! Ela já morreu, mas eu nunca cheguei perto: “A senhora está me roubando tijolo". Não! Deus me deu tudo, Deus me deu a terra, me deu tijolo, me deu o caminhão de areia. Porque hoje compra por metro. Me deu um caminhão de terra, então é aquilo, é gratificante você ajudar o próximo.
P - O senhor tem essa casa e o senhor me disse que tinha uma república, é isso? Aqui?
R - A terceira. Era uma casinha, quando eu aposentei, eu recebi um dinheirinho, com o outro que eu tinha, junto, eu fui, falei com a minha esposa, nós compramos ela. É a terceira casa.
P - É uma república de estudantes?
R - É uma república, só tem menina lá, só garotas. Pra gente, pra minha esposa, é como filhas, ela trata como filhas, precisa de um remédio, vem aqui, ela dá o remédio para a menina.
P - Mas são estudantes da universidade?
R
- Estudantes da universidade, é tudo estudante daqui. Tem até uma vaga lá, são oito pessoas, oito? Não, que ver, duas, cinco e duas em cima, sete, era oito, aí com o negócio da pandemia, passou o quarto ficar com duas pessoas, era quatro num quarto, agora é dois, ou quatro. Aí, essa república, eu comprei com o dinheirinho que eu recebi da aposentadoria daqui da Universidade, que ajuda, porque o salário não é bom, eu ganho três mil e pouco, mas tô satisfeito, que dá e ainda sobra, entendeu? Aí junta com esse trocadinho lá, dá pra gente ir levando até quando Deus permitir.
P - Queria que você fizesse uma reflexão. A Ponte Rio-Niterói está fazendo cinquenta anos, agora dia 4 de março é data comemorativa do dia da inauguração.
R - De março?
P - Quatro de março.
R - Então, já fez!
P - Já fez! O que o senhor prospecta da ponte daqui cinquenta anos? Como é que você acha que vai estar esse transporte? A ponte já mudou bastante a vida de vocês?
R - Ela mudou muito, ela mudou muito! Mudou a vida de todo mundo aqui. Pessoal da Baixada, tudo pega a ponte. Mas o trânsito é demais, não tem como mais… Você viu o Viva Brasil? Hoje mesmo tá engarrafado, todinha, tá ela, tá a linha vermelha e tudo. Eu quando trabalhava lá no BNH, que eu fiz obra no BNH, no Vida Chique também. Eu trabalhei no BNH um tempo, nós montamos do primeiro andar até o último. Então, ali, na sessão do desenho, vinte e oito pavimentos, tinha uma sessão de desenho que tinha lá na planta mostrando a Avenida Brasil de uma ponta na outra, e tinha um projeto para a Avenida Brasil, feito lá, que eu vi lá no quadro. Aqui tinha um projeto de fazer uma Avenida Brasil em cima da outra. Então, se está engarrafado embaixo, como é que está em cima? Era outros carros em cima. E o projeto, se não me engano, acho que tinha até um trenzinho aéreo das duas pistas para ir direto.
P - Isso para a Avenida Brasil?
R - Avenida Brasil, pegando da rodoviária até Santa Cruz, por ali. Olha, e diz que aquela companhia de Volta Redonda, que eu soube falar, que eu soube, que ela fazia aquela Avenida todinha, de uma ponta na outra, a troco da dívida externa que ela tinha com coisa. E fizeram. Não fizeram?
P - E a Ponte, o que que você acha da Ponte?
R - A ponte, poxa, aquela ponte é um espetáculo. E avenida dos olhos dos cariocas, do pessoal de Niterói que vem pra cá, do pessoal que vai daqui pra lá. Engarrafa, mas tem hora que aquilo melhora, diminui o fluxo de carros. Mas foi uma obra que a gente achava que não fazia e saiu. Disse que tinha problema pra fazer, não era nem ali, ouvi dizer que era lá perto do Pão de Açúcar, um lugar mais estreito e acabaram fazendo nesse pedaço aqui. Mas ficou bom também. Tá bom! E a passagem dos navios ali, que entra ali, ficou muito bom.
P - Você tem sua parcela de contribuição na construção, né?
R - Tenho! Cheguei aqui na construção, trabalhei com uma vontade aqui, com tudo, do jeito que eu vim da casa da minha tia, que ela me deu minha benção. Aí quando eu cheguei, dois meses que eu trabalhei aqui, o que que eu fiz? Eu fui no mercado, fiz duas bolsas de compras, que era aquelas bolsas de papel. Não sei se a senhora lembra, bolsa de papel. Enchi duas bolsas de compras daquelas, comprei cinco quilos de carne seca, a carne de charque que eles falam, botei na bolsa e levei para Barra Mansa. Cheguei em casa, meu pai estava debruçado na janela, aí quando cheguei. “Vamos entrar". Aí eu falei: “Primeiramente, a bença, meu pai". “Deus te abençoe, meu filho". Faltava. Minha tia me deu pela minha mãe e ele me deu a benção. Aí dei a compra pra ele, mostrei pra ele, ele olhou. “Muito bom! Gostei!”. “O senhor tem dinheiro para o cigarro?”. O cigarro custava um e cinquenta, sei lá! “Aqui. Cinquenta reais para o senhor comprar cigarro". Se ele jogou a minha trouxa na rua, eu não fiquei com raiva dele. Eu podia ter ficado chateado com o meu pai, como muitos ficam. “Não, tá aí!”. Aí, voltei para o trabalho, fiquei trabalhando. É assim que a gente leva a nossa vida. E bom o que fica, os seus vizinhos, as pessoas ao teu redor. Tratar as pessoas bem, ajudar, não atrapalhar, não é? E a nossa vida é desse jeito.
R - Eu queria agradecer. Gostaria de saber se o Senhor quer colocar mais alguma coisa? Falar mais alguma coisa? Eu queria agradecer o senhor ter compartilhado conosco suas memórias, sua trajetória de vida, suas lembranças da construção do período inicial da Ponte Rio-Niterói.
R - Do começo. Agora quando vai no Parque Tecnológico, você só entra de carro lá, se for lá no final, a senhora ver ela de lado ali. Coisa bonita. E tem um vento ali, que é uma coisa. Chega ali tem um ventinho que a pessoa não quer nem sair, senta numa grama ali, fica ali. Às vezes o namorado da minha neta vai para lá, fica ali batendo foto, que ele tem máquina fotográfica dessa aí. Um dia desses ele bateu uma foto do Cristo, acho que foi da lua, não, foi da lua, a lua em cima do Cristo, certinho assim, em cima da cabeça, certinho. Ficou bonito também. Parece que é uma coroa.
P - Quando você vê a Ponte Rio-Niterói o que que você sente? O que passa na sua cabeça?
R - Pois é, eu fiz parte disso daqui. Eu fiz parte dessa obra. Não como um todo, mas com o canteiro, eu fiz a minha parte. Então, facilitou bem, a gente atravessa pra lá de carro, vai tranquilo. Agora é só oitenta, não pode correr mais, né? Diz que se você correr mais de oitenta… Ultimamente, se você correr mais de oitenta, você sai de uma coisa daquela que tá marcando para o outro, se você correr mais, diz que eles sabem quantos minutos você gastou do outro lado. Não adianta você querer enganar não, que eles já sabem. Então, se o cara correu mais. “Pô, se para atravessar é quinze minutos, é quinze minutos. E se é menos, como é que você vai correr com dez, oito minutos?” Você sai ludibriando, num lugar corre e depois você freia o carro. Arriscado até dar uma acidente, porque vem o outro atrás ali, que o que acontece mais é isso, pessoa freia bruscamente.
P - Então, tá! Então, eu agradeço muito o seu depoimento. Muito obrigada, Senhor Milton.
R - De nada! Que isso! Qualquer coisa estamos aí. Eu vou pegar o telefone com ela lá. Essa plaquinha aqui era a plaquinha do meu capacete, quarenta e três, o encarregado mesmo, sempre me chamava. “Quarenta e três". Aí eu estava ali. “O que que é?”, e treze era o meu armário, a placa do meu armário que botava o material, botava a minha roupa ali.
P - E ficava aonde esse armário?
R - Era perto de onde a gente trabalhava mesmo, perto do primeiro escritório que eles montaram. Eles montaram uma parte que as pessoas tinham um armário para botar uma roupa. Eu vinha com a roupa comum e botava uma roupa mais velha para poder trabalhar, que eles não davam roupa, a roupa era nossa mesmo, botava uma roupa mais surrada para poder trabalhar.
P - E sapato?
R - Sapato, tinha bota. Uma vez, eu não sei o que eu arrumei, que entrou uma farpa debaixo do meu pé, aqui assim, entrou de uma lado aqui e varou do outro lado, de madeira. Aí vieram duas pessoas para tirar. Aí eu fiquei lá uns dois dias parado no seguro, depois eu voltei para a obra de novo. Porque aqui tinha tudo, até os apontadores, precisa ver a pessoa para ir no banheiro aqui. Sabe como chamava o apontador? Porque você passava para o banheiro, aquela fila de banheiro dentro da água, na beira da praia, vários banheiros, tinha uns dez banheiros, você entrava no banheiro, você não podia ficar muito tempo sentado no banheiro não, você tá fazendo hora. Então, tinha um apontador lá, você entrava na passarela, ele te apontava, aí a gente chamava o apontador de apontador de merda. Olha só! Mas era o que o peão falava. Porque se você ficasse ali muito tempo. “Ó, o cara tá anotando". Daqui a pouco você ia pra rua, porque você ficou muito tempo lá no banheiro. Às vezes, o cara estava cansado, sei lá, ou estava doente, ele ia lá para o banheiro fazer hora. Não podia. Você tinha que estar ali na frente do trabalho. Então, era muito perseguido pelos encarregados.
P - E esse número quarenta e três era o seu capacete?
R - Do capacete.
P - Daqui da obra?
R - Da obra da Ponte Rio-Niterói.
P - Por que você guardou?
R - Eu guardei de lembrança, sai de lá, isso aqui não fazia mais diferença para eles. Tá na posição? É isso aí! E a vida continua.
P - Muito obrigada!
R - De nada.Recolher