P - Sr. Penildon, eu gostaria de começar a nossa entrevista com o senhor falando seu nome completo, local e data de nascimento. R - Penildon Silva, local de nascimento Salvador, Bahia, Brasil. E a data de nascimento 26 de março de 1921. P - A sua família, seu pais, avós, todos são de Salvad...Continuar leitura
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Sr. Penildon, eu gostaria de começar a nossa entrevista com o senhor falando seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Penildon Silva, local de nascimento Salvador, Bahia, Brasil. E a data de nascimento 26 de março de 1921.
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A sua família, seu pais, avós, todos são de Salvador? Qual é a origem da família?
R - Não, o meu pai, como já disse anteriormente, é de Sergipe. Minha mãe é de Salvador. Então sergipano com baiano. Meu pai é que veio de Sergipe e parou em Salvador. Ele veio trabalhar em Salvador, entendeu? E aí conheceu a minha mãe lá em Salvador.
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E qual é o nome dos seus pais?
R - Pedro Silva, e minha mãe Hilda Carmosina da Silva.
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E o senhor sabe a origem, anteriormente, antes de chegar o seu pai em Sergipe e a sua mãe em Salvador, de onde veio a família?
R - O meu pai dizia que ele era descendente de holandês. Porque os holandeses invadiram o Sergipe e Bahia. Eu não sei até que ponto isso é verídico. E a minha mãe tem a origem de portugueses, que invadiram a Bahia, como você sabe, durante uma temporada boa.
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E na sua família quantos irmãos eram? Você tem outros irmãos?
R - Tenho, eu tinha - os meus irmãos já faleceram, aliás - um irmão que já faleceu, e tinha quatro irmãs, três das quais já faleceram. Então, no momento, eu só tenho uma irmã viva.
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Mas quantos eram, ao todo?
R - Cinco, cinco irmãos.
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E como é que era o cotidiano na sua casa de infância? Como é que foi a sua infância, Sr. Penildon?
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Nós morávamos num lugar chamado Península de Itapagipe, que é um lugar à beira mar. E meu pai tinha farmácia lá e tinha a casa onde nós morávamos. O local é um local que ainda hoje é muito atraente, porque tem a praia perto e tem possibilidades de crianças brincarem normalmente. Então, no nosso tempo, em que não havia superpopulação, os meninos eram realmente crianças. Então saía para as ruas, ia caçar passarinho, ia empinar o que vocês chamam aqui de pipa e lá nós chamamos de arraia, e ia também nadar. Eu nadava todos os dias lá, aprendi a nadar do mar, com o mar. E o pessoal era todo assim. Eu considero a minha infância muito feliz. Vivíamos bem entre nós, os irmãos, e também com os colegas de lá, era uma época muito agradável. Eu acho que o que constituiu esse lado agradável da minha vida infantil foram os meus pais, que viviam dos seus trabalhos, minha mãe no trabalho doméstico, era duro, sabe como é, criar cinco filhos, e meu pai de uma farmácia que ele tinha. E eles conseguiram criar um ambiente muito agradável de relacionamento pais com filhos.
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E seu pai tinha uma farmácia?
R - Tinha.
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Ele manipulava remédios?
R - Naquele tempo a manipulação dominava o comércio farmacêutico, hoje é a parte industrializada, naquele tempo era a manipulação. Então, nós recebíamos a receita do médico, a prescrição do médico, em que o médico indicava o princípio ativo, um coadjuvante, e às vezes um xarope para melhorar o gosto do remédio. E então nós fabricávamos medicamentos. Eu digo nós porque eu trabalhei desde criança lá com o meu pai. Nós tínhamos de manhã aquela chegada de prescrições e trabalhava o resto do dia, fazia, manipulava os medicamentos, botava o nome, depois o freguês vinha, pagava, e ia levar. É o que se chama a receita magistral, feita pelo médico, que antigamente era chamado magister; hoje o médico apenas dá o nome do medicamento de fantasia e está acabado, receita Benotal, toma assim, e acabou. Mas antigamente ele escrevia o princípio ativo, depois um corretivo, um coadjuvante, um xarope de cereja, assim por adiante. Era o que se chamava a manipulação medicamentosa. Então a manipulação é quando o farmacêutico preparava o medicamento, que hoje se chama especialidade farmacêutica, na sua oficina, chamava-se mesmo oficina. Então esse produto era chamado o remédio oficinal; o remédio oficinal era preparado pelo farmacêutico, ele misturava, ele fazia pomada, tudo. Depois veio o remédio representado pela especialidade farmacêutica, que é o remédio industrializado, que é muito melhor, porque você controla a quantidade, você controla a assepsia e assim por diante.
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O seu pai era farmacêutico ou era um prático que trabalhava...
R - Não, ele era farmacêutico. Agora, ele começou na prática, porque ele começou também trabalhando numa farmácia. Então aprendeu tudo o que podia se conhecer, naquela época, de uma farmácia.
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Mas também começou novo nessa área.
R - Ah, sim. Começou novo e foi economizando, depois ele comprou, ele fez a sua própria farmácia. Ele era muito ativo, como todo sergipano, o sergipano é muito ativo, ele tem muita iniciativa. Ele, então, fez o prédio da farmácia, depois comprou uma casa pra nós, e depois comprou outra casa. Isso tudo sem grandes instruções, mas era uma pessoa inteligente e gostava de trabalhar.
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Como que era a farmácia, o senhor lembra fisicamente da farmácia dele?
R - Eu me lembro como era, eu me lembro perfeitamente como era. Eu trabalhei muitos anos lá, ele era muito cuidadoso, e a imagem da farmácia no interior era muito agradável. Então os medicamentos eram classificados de acordo com as indicações ou às vezes de acordo com a letra inicial. Ele mandou fazer uns bons balcões com paredes de vidro, ele tinha muito gosto.
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E ele ficou com farmácia até quando?
R - Até o fim da vida, praticamente.
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E vocês todos, os filhos, trabalhavam com ele na farmácia?
R - Não, só eu trabalhava, o resto não gostava de farmácia. (risos) Então ele me chamava, eu ganhava um ordenado, um ordenado naquele tempo era simbólico, mas eu ganhava ordenado. E eu ia lá e trabalhava, e durante as férias escolares eu ficava lá direto com ele.
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O senhor lembra com quantos anos o senhor começou a mexer na farmácia lá, trabalhar com ele?
R - Me lembro, com 12 anos eu já comecei lá, 12 anos. E aprendi a manipular, fazer qualquer pomada, fazia tudo, fazíamos tudo lá.
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E como é que era o cotidiano na farmácia, por exemplo, um dia de trabalho na farmácia?
R - Eu lhe digo. Era representado pelo seguinte: em geral, toda farmácia antiga tinha um médico associado que fazia as consultas. Ele fazia as consultas, escrevia as prescrições, e mandava as prescrições para nós. Então a gente pegava aquelas prescrições e ia manipular. Isso levava a manhã toda. E à tarde selecionava lá e esperava os doentes irem buscar. Durante a tarde nós atendíamos também a freguesia, de manhã também, mas de manhã era mais manipulação. Eu gostava mais da parte de manipulação, mas a freguesia também dava um rendimento interessante para ele, ele sustentou a família só com a farmácia, o tempo todo.
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E vocês eram o quê? Assim, classe média?
R - Eu não sei mais o que vocês chamam de classe média, é uma classificação difícil, mas dava pra gente viver. Se entrasse numa classificação atual, ficaria uma classe média baixa. Porque antigamente só tinha classe média, tinha superior e a miserável. Agora você tem a classe média inferior, superior. (risos)
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Média média.
R - Era uma classe média média, por aí.
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E vocês estudavam?
R - Todos?
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Em que colégio vocês estudaram?
R - Todos nós fomos para escolas particulares inicialmente, primárias. O curso primário antigo era o dia todo, não é como agora que você tem apenas a metade do dia. Nós tínhamos lá um professor muito bom, um dos melhores professores que eu já tive - eu tive mais de 100 professores até hoje -, um dos melhores, ele me ensinou a pensar sobre aritmética, me ensinou a escrever português, formidável, era exigente. Então nessa escola primária foi que eu fiz a minha base para minha vida universitária futura. E todos os meus irmãos tiveram a mesma coisa. Depois que eu saí da escola primária, eu fui para o que se chamava antigamente de ginásio, que equivale agora à quinta, sexta série. No ginásio, aí eu entrei numa escola pública, fiz um exame de admissão na escola pública, depois universidade.
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O senhor lembra das doenças infantis que o senhor teve? O senhor lembra dos tratamentos?
R - As doenças infantis representam, digamos assim, uma história de toda criança, toda criança tem. Então nós tivemos catapora - digo nós tivemos porque todos tiveram -, nós tivemos gripe, nós tivemos bronquite, nós não tínhamos doenças muito graves, não tivemos, mas as infecções comuns: as gripes, as bronquites, as otites, isso todo mundo teve. E eu não tive, durante a infância, uma doença muito grave, mas tive todas as infecções que você encontra; cachumba eu tive também, catapora, mas era vacinado contra as outras naquela época, não peguei varíola. Mas naquele tempo você via varíola com uma certa freqüência, hoje não tem mais, porque a gente se vacinou contra varíola naquela época.
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E o tratamento dessas doenças, elas eram...
R - O tratamento dessas doenças naquele tempo era mais um tratamento sintomático, porque não havia antibiótico, e o diagnóstico bacteriológico dessas infecções não se fazia, era todo clínico. Então era mais, digamos, sintomático. Você está tossindo eu dou um anti-tossígeno, ele está com catarro, eu dou um mucolítico, e a criança, com suas reservas normais, ia se defendendo das doenças. Quer dizer, o remédio principal, especialmente para as infecções, era o sistema imunológico de cada criança, que é o melhor que tem. Agora você tem os antibióticos, que ajudam também nessa luta contra as doenças. Nós não tivemos essas doenças bravas tipo tumor, tipo traumatismo, não tivemos. Agora, as infecções tinha que ter, pois tínhamos contato com outras pessoas doentes na escola, no colégio, visita, assim por diante.
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E como era Salvador naquela época? Já era uma cidade grande, desenvolvida, como é que era o convívio?
R - Salvador sempre foi uma cidade muito grande, digamos, assim, espalhada. Talvez seja esse o adjetivo adequado. Agora, naquele tempo não tinha grande desenvolvimento, agora é que está tendo. Mas naquele tempo não tinha grande desenvolvimento, nós andávamos ainda de bonde e por aí você tira. E os automóveis ainda eram em número muito pequeno. Hoje você não pode andar nem de automóvel, quer dizer, era uma época que não tinha desenvolvimento, mas depois ele veio surgindo aos poucos.
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Mas vocês iam de bonde para aonde? Para escola? Para passear na cidade?
R - Para a escola, sistematicamente, ia para cidade, todo mundo só ia de bonde, era mais barato. Eu pegava o bonde muito cedo e escolhia sempre o banco da frente, porque era o melhor, o mais fresquinho. (risos) E também, como demorava a chegar, eu sempre levava um livro para estudar a lição no bonde. Era um passeio delicioso Porque a população era pequena. Então você via e podia escolher certas coisas agradáveis. Uma das coisas agradáveis naquele tempo era passear de bonde, vocês não alcançaram mais. Mas eu alcancei o bonde, inclusive, quando eu entrei na Rhodia, para trabalhar no Rio de Janeiro, ainda tinha bonde naquele tempo. E era um passeio interessante, eu fiquei hospedado em Ipanema, pegava o bonde para ir para a Rua Buenos Aires, onde era a Rhodia, ia de bonde de manhã, uma beleza Porque ele anda no trilho, não tem esse negócio de contramão, de demão de automóvel, uma delícia. É isso aí.
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O senhor estava falando que o senhor estudou no ginásio. Em que escola que o senhor estudou lá em Salvador?
R - Antes foi Instituto Educativo Brasileiro, um negócio muito pomposo, e era só ligado à Bahia. Mas era onde ministrava esse professor que eu citei, o nome dele era Otávio Assunção. E eu fiz o meu curso primário todo lá, com ele, meus irmãos também. Depois eu passei para o ginásio oficial ou público.
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Como é que chama o ginásio?
R - Naquela época chamava-se Ginásio da Bahia, mas atualmente essa palavra ginásio foi retirada do vocabulário escolar, ele é chamado agora Colégio Central, que ainda é muito importante. Tem uma população muito grande de alunos, foi uma época muito boa de aprendizagem lá, eu tinha bons professores, excelentes professores naquele tempo. Atualmente eu não posso dar opinião sobre os professores, mas não é que sejam maus, mas é porque eu não sei mesmo se eles são bons ou ruins, não sei. Mas naquele tempo eram formidáveis, o professor de português - eu ainda lembro dos nomes -, de matemática, eu aprendi matemática lá, um negócio que ninguém aprende de jeito nenhum. (risos) Tinha professor que a gente odiava, parecia o verdadeiro cão saindo do inferno, mas a gente estudava, porque senão era reprovado. (risos)
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Mas lá o senhor estudava também período integral ou só meio período?
R - Lá integral, naquele tempo não tinha nada de meio período, meio período é invenção atual, era o dia inteiro. Eu levava o meu almoço no bolso, um sanduíche, porque eu morava longe, em Península de Itapagipe, e o colégio era no centro da cidade. Então eu trazia o meu almoço no bolso. Na hora de almoçar a gente saía, tinha lá um parquezinho defronte ao colégio, a gente ia almoçar, sempre tinha uma turma, conversava e tal, era uma vida boa, eu gostava.
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E o senhor fez ginásio aí, depois que o senhor terminou o ginásio, o senhor foi estudar em que colégio?
R - Aí já entrei na faculdade.
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Ah, o senhor fez ginásio e segundo grau nesta escola.
R - Tudo lá. E depois eu entrei na faculdade, no vestibular. Como vocês sabem, é um exame selvagem. (risos) Mas eu passei, na realidade eu fiz três vestibulares, não porque eu perdi não, eu fiz um vestibular de medicina e passei, eu fiz um vestibular de farmácia e passei, e fiz um vestibular em São Paulo, porque eu fui fazer uma pós-graduação aqui no Instituto de Higiene, e tirei o primeiro lugar. Imaginem Um forasteiro (risos), um que veio lá do Nordeste. Era um curso de Saúde Pública muito bom, excelente, no Instituto de Higiene, na Avenida Dr. Arnaldo. E tinha lá umas cadeiras que eu queria fazer e que eu não fiz no meu curso de medicina, fiz pós-graduação. Estatística, não tinha lá, eu vim aprender aí, epidemologia, eu aprendi aí. Mesmo a parte clínica é do tempo do professor Rubião Meira, não é do seu tempo não, ele é muito antigo. Aí eu aprendi coisas fantásticas neste curso de pós-graduação. E para entrar nesta pós-graduação tinha que fazer também o vestibular. Então eu fiz três: o de farmácia, de medicina e essa pós-graduação. Tirei o primeiro lugar. (risos) Mas é porque eu gostava muito da parte básica, não sabe? Em geral os médicos se esquecem de microbiologia, bioquímica, e no vestibular entrou isso, a parte básica, e pra mim foi ótimo.
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A sua adolescência lá em Salvador, o que é que os jovens faziam naquela época em Salvador.
R - (risos) Em que ângulo você quer saber? A gente fazia um bocado de coisas.
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Como é que vocês se divertiam? O senhor falou que vocês brincavam quando vocês eram crianças.
R - Eu lhe digo. A diversão do adolescente naquele tempo era cinema, namorar, namorar, cinema. Era o principal. Quando você tinha mais posses, você comprava uma bicicleta. (risos).
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Mas tinha bailes, festinha? Como é que os jovens se divertiam?
R - Tinha sempre festa. Em geral lá havia mais festas populares, não aqui, festa de clube, não tinha aquele negócio, tinha clube e tal. Mas as festas de clube eram muito solenes, aqui agora você tem danceteria, discoteca, não tinha esse negócio, nunca teve naquela época. Então, a nossa diversão era essa que eu falei, era cinema, tinha festa, mas festas populares; as festas populares, por exemplo, na Bahia, são famosas, começam em dezembro e vão até fevereiro. (risos) Todo dia tem uma festa popular. (risos) Agora mesmo, no dia 9, começou a primeira festa, de Nossa Senhora da Conceição. Depois vem outra, vem outra, é assim, uma atrás da outra. E a mocidade, que não tinha dinheiro, nem automóvel, naquele tempo, ia naquelas festas populares, era a diversão deles. Além do que eu falei, o namoro. Mas o namoro tem que existir sempre. (risos)
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O senhor se lembra da sua primeira namorada?
R - Ah, não esqueço nunca, não pode.
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E quem é a moça?
R - Eu não posso descrever, nem dizer pra vocês. Era uma moça que a gente se apaixona pela primeira vez e que tem certo acanhamento de se aproximar, depois consegue aproximar, o nome dela era Lourdes. O interessante que depois dessa primeira vez, eu conheci várias Lourdes. (risos) "Essa Lourdes está me perseguindo". (risos)
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Como que era o namoro naquela época? Como é que se chegava numa moça?
R - Ah, eu lhe digo. É um namoro que o pessoal atual não pode nem imaginar. Em primeiro lugar, não tinha esse negócio de agarrar, não tinha, não. Agora, eu tenho uns filhos que levam as namoradas pra casa para dormir lá em casa, ou então eles vão dormir na casa das namoradas. Eu tenho dois meninos, do segundo casal, um tem 25 e o outro 23. Então eles vão pra casa da namorada ou então trazem pra cá. Naquele tempo para você pegar na mão da namorada, olhe, na mão. E você namorava, às vezes, ela na janela e você embaixo. (risos) No gargarejo. E quando saía para pegar na mão, isso pra pegar na mão, você imagina o resto. Era um negócio muito, digamos assim, freado.
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Mas como é que se chegava, assim? Por exemplo, o senhor estava numa festa, interessado numa moça, como é que o senhor chegava nela?
R - Você fazia, conversava com os amigos e dizia: "Quero ver se você tem coragem". E aí ele ia e ele tinha coragem. (risos) "Deixa de não sei o quê, tá com medo, a moça está olhando pra você". E ia em cima; se ela queria, aceitava, se não queria, não aceitava. Porque no fundo, no fundo, quem determina as coisas são as mulheres, com certeza. Até certo ponto da vida a gente pensa que a gente escolhe; não escolhe não, a mulher é que inicia. E tem razão, porque ela representa o que há melhor na humanidade. O homem evolui com muita lentidão, a mulher já vem tudo, com 13, 14 anos, já sabe de tudo. Mas o homem não sabe que ela sabe. E então ele fica nessa indecisão. Então o rapaz, naquela época, aproximava-se da moça ou diretamente, ou então indiretamente, o que era mais comum, através de um amigo comum, de uma amiga comum, ou então mandava um bilhetinho e mandava através de uma pessoa. E
a pessoa que levava o bilhetinho chamava-se "Cocada". Isso não se usa mais.
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Mas por que chamava-se cocada? O senhor sabe?
R - Eu não sei. "Você é cocada de fulano?", quer dizer, é a pessoa que leva o bilhete de você para uma pessoa que você não conhece. Cocada você sabe o que é, não? É um doce. Mas tinha essa conotação nesta época.
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Provavelmente a primeira pessoa que fez isso, o outro deu uma cocada como forma de pagamento.
R - Talvez tenha sido isso.
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O senhor falou em cinema, tinha muitos cinemas em Salvador nessa época?
R - Não tinha muitos não, sabe? E cinema, naquele tempo, como você sabe, era preto e branco. Mas tinha. Não era em grande número. Mas tinha no nosso bairro um cinema que era o centro, digamos assim, de encontro do pessoal, vai todo mundo ao cinema. O cinema era chamado Itapagipe.
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O que é que passava neste cinema?
R - Lá passava todos os filmes que passavam no resto do mundo. Mas era o filme, por exemplo, sem, digamos, a tecnologia atual. Mas era muito animado. Tinha uma espécie de série. Você nunca ouviu falar de série. Era o seguinte: você pega, cada semana você vê um episódio e cada episódio termina com uma forma catastrófica. Então você volta na outra semana para ver o que aconteceu. "Você viu aquele seriado?" "Formidável." "Mas aquilo é um zedune". Zedune é uma mentira muito grande. (risos)
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Se perdesse um...
R - Ah, não podia. "Você vai ver?" "Sim, eu vi o primeiro episódio, segundo...". Tinha os outros filmes, mas os outros filmes eram meio primários se a gente comparar com os atuais, mas também não tinham muito meios para fazer grandes filmes.
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Mas era o quê? A maioria era cinema americano?
R - Só americano. Naquele tempo, o cinema europeu a gente nem sabia que existia.
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Esporte. O senhor praticava algum esporte na adolescência?
R - Ah, sim.
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O que é que você fazia?
R - Eu era nadador, nadador costumaz. A gente tinha lá o negócio de atravessar o mar para pegar o outro lado da baía, porque onde eu morava tinha uma baía, não sabe? Uma entrada, um braço de mar, muito largo, chama-se baía do Porto dos Tainheiros; tainha, tainheiros. Então a maior aventura nossa era quando atravessava a nado de uma margem para outra, que era distante, era uma boa distância. Eu fazia esse esporte inicialmente, depois boxe também. A gente gostava muito de esporte lá.
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Mas o senhor chegou a fazer só amadoristicamente? Nunca chegou a participar de competições?
R - Não, não cheguei a ser profissional, não. Além desses dois que eu já citei, nós chegamos a fazer certas mini-olímpiadas, no colégio mesmo. Eu entrei no disco e no dardo, além dessas que eu citei. Mas o principal esporte meu era remo. Depois eu passei para natação e depois eu fiz os outros que eu citei. Sabe como é adolescente, tudo são novidades. Mas os esportes que eu praticava com mais freqüência eram remo e natação. Chegamos a ganhar vários páreos de remo. Lá tinha quatro clubes, todos quatro situados lá em Itapagipe, porque lá é que tinha essa baía que lhe falei, dos Tainheiros, era onde se realizavam as corridas. Então todos os clubes de regatas tinham sede lá.
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E o senhor participava em qual clube?
R - Itapagipe. Tinha o Itapagipe, tinha o Santa Cruz e tinha o Vitória. E era aquela guerra, como tem agora entre Corínthians e Palmeiras. É a mesma coisa atual no futebol. Então tinha sempre essa competição entre o Santa Cruz, o Vitória e o Itapagipe.
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Mas o Vitória é o mesmo time de futebol ou não, é outra coisa?
R - Não, Vitória era o nome do clube de remo, porque tem Vitória, o clube de futebol. Vitória do remo, Salvador do remo, Itapagipe só de remo. Apesar de ter o mesmo nome, no caso do Vitória.
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O senhor treinava quantos dias por semana?
R - Às vezes nós treinávamos todo dia, até chegar a data da regata. E para treinar isso, às vezes a gente ia para o clube, dormia no clube - isso é que é mania de adolescente -, para acordar cedo e depois ir para escola. Mas ia pra lá as cinco horas da manhã. É um esporte muito bom, é um pouco brutal, mas é muito bom.
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Vamos voltar um pouco aos estudos. O senhor falou que fez vestibular. O senhor fez primeiro qual? O de medicina ou o de farmácia?
R - Farmácia.
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Mas o senhor chegou a cursar a faculdade?
R - Eu fiz todo o curso de farmácia lá, todo curso, me formei farmacêutico, entrei na Rhodia, depois fiz o curso de medicina e continuei na Rhodia.
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O curso de farmácia, o senhor fez onde? Na Universidade Federal?
R - Tudo lá. Lá tem duas faculdades agora. A chamada Baiana, a Escola Baiana de Medicina, e a Escola de Medicina da Universidade Federal. Tem duas escolas de medicina, e agora tem várias universidades, mas medicina só tem duas escolas, a chamada Baiana, que era a católica, mas agora é independente, e a Universidade Federal da Bahia. Eu fiz Farmácia e Medicina na Universidade Federal da Bahia. Depois eu entrei também na carreira universitária, fiz concurso para docente, para professor titular, e me tornei professor de farmacologia das duas escolas; na primeira eu fiz concurso, na segunda eu fui convidado. (risos) Eu estive lá um bocado de tempo, mais de 30 anos na Baiana, e na Federal ainda continuo a ensinar, apesar de já estar aposentado.
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Como foi esse curso de farmácia do senhor?
R - Como foi? De que ponto de vista?
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Em termos de professores, em termos de qualidade.
R - Olha, o nosso curso de farmácia, como tinha poucos alunos, muito poucos, foi excelente Era como se fosse um curso particular. Nós tínhamos sete colegas no curso superior de Farmácia, olhe bem. Hoje tem 80, 100. Houve lá uma crise qualquer, mas nós entramos. Então era um curso particular de tudo. Então eu achei o curso de Farmácia no nosso tempo lá excelente. Porque você, quando tem uma turma muito grande - eu tenho uma turma agora na Baiana que tem até 100 alunos -, você não pode acompanhar a aula. Mas com oito, sete alunos, como era nosso caso lá, sete aulas, a gente fiscalizava as aulas, os professores. Eles eram obrigados a dar um curso muito bom. Eu gostei muito do curso de farmácia de lá. De todas as disciplinas, foi muito interessante. O que eu atribuo a isso que eu acabei de falar.
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Tinha algum professor que marcou o senhor especialmente?
R - Em que curso?
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De farmácia.
R - Teve um chamado Ferreira Gomes, que era crente, ia lá todo dia, ia sete horas da manhã, passava o dia todo, dava todo o programa, exigia, esse marcou realmente. E os outros eram bons também. O Ferreira Gomes foi o que mais marcou. Infelizmente morreu muito cedo, morreu com 50 e poucos anos; ele, praticamente, deu um novo espírito à Faculdade de Farmácia. Ele se interessava, ficava o dia inteiro, e naquele tempo ganhava-se muito menos do que se ganha agora. Mas ele tinha outras fontes e gostava de ensinar, foi chamado depois para ser diretor. Porque antigamente a Escola de Farmácia era uma escola agregada à Faculdade de Medicina, depois se desmembrou, agora é independente, agora tem um número de alunos lá razoável, em geral por volta de 80 alunos que entram lá. Tem muita gente fazendo farmácia agora.
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Para o senhor, a escolha de farmácia, o senhor já tinha toda essa parte prática com o seu pai, né? Então, o senhor tirou de letra a faculdade, não? Foi a maior facilidade.
R - Foi a maior facilidade. Quando eu fui fazer o curso lá, a parte prática eu já tinha. Foi ótimo pra mim, foi muito bom. E todo mundo: "Rapaz, você devia fazer logo medicina." Já viu a influência de colegas. Eu não sei. Porque meu pai era um homem prático, ele tinha uma pequena fazenda, ele disse: "Olhe, você vai fazer agronomia", para o meu irmão e "Você vai fazer farmácia, porque eu tenho uma farmácia, quando eu morrer, você vai tomar conta". Mas é lógico.
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E o senhor gostava, né?
R - Eu gostava de fazer já aquilo. Meu irmão fez agronomia e eu fiz farmácia. Você vê a direção dos homens antigos, práticos. Aí eu fiz o curso de farmácia, de que eu gostei muito.
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E depois que o senhor terminou o curso, o senhor tinha feito estágio em algum lugar ou só trabalhando com o seu pai diretamente, naquela época, do curso?
R - Eu só trabalhava com o meu pai. Naquele tempo não tinha a farmácia-modelo, como tem agora, lá agora tem. E depois a farmácia-modelo era o meu pai. Tinha tudo lá. Eu até aprendi a tratar com gente de que eu não gostava. "Me dá um purgante de 100..." (risos) Mas era um lugar onde a gente fazia muitas ligações, inclusive políticas, e a farmácia se tornou em Itapagipe um centro político poderosíssimo, ia todo mundo pra lá de noite conversar sobre política. Então, quando tinha eleição, todos os candidatos iam lá pedir votos ao meu pai e ao outro que trabalhava com ele. E era uma coisa interessante Ele concordava com todos e na hora escolhia. (risos) E era também um centro de direção das festas populares de lá. Porque a farmácia era o lugar onde todo mundo ia chorar as dores, a gente arranjava ambulância, orientação, tudo era na farmácia. Não só o pessoal de Itapagipe, como também defronte, tinha umas ilhas de pescadores (fim do lado A - fita 1). "Ah, vamos lá para a farmácia do Dr. Pedro Silva". E lá resolviam os problemas, era isso aí.
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Seu pai era uma grande referência, então.
R - Ele chegou a ser juiz de paz por causa dessa influência popular. Eu, até hoje, não sei o que é isso, eu sei que ele tinha uma influência muito grande, resolvia negócio de casamento e tal, eu não sei o que é juiz de paz. Ele não tinha informação nenhuma, mas ele tinha uma influência comunitária de tal forma que ele foi eleito juiz de paz. Então, quando tinha brigas, assim, de casamento, de separação, iam lá falar com ele, era um conselheiro. Aliás, todo farmacêutico antigo era um conselheiro de toda a comunidade, além de ser médico dos pobres. Meu pai era chamado durante a noite para atender pacientes, levar remédio e assim por diante. Tem gente: "Eu só faço o que o Dr. Pedro disser". (risos) Porque ele tinha muita prática também. Quando chegava lá um médico recém formado, pedir coisa e tal, ele orientava, ele fazia o perfil do médico recém formado: "Esse vai ser bom, aquele não vai", porque ele tinha prática com os médicos. É isso aí.
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E o senhor terminando a faculdade, e aí, se formou...
R - O que é que eu fiz? Eu entrei na Rhodia. (risos).
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Como o senhor entrou na Rhodia?
R - Como eu já falei lá, é o seguinte: nós lemos um anúncio da Rhodia, no jornal, que a Rhodia estava precisando de farmacêuticos. Então eu me candidatei, eu e um colega meu, que fez o curso comigo. E nós dois entramos lá assim. Lá na Bahia tinha agência da Rhodia, nós fomos lá. Como a Rhodia estava demorando muito a responder, então eu passei telegrama para Rhodia - veja como são os jovens: "Como é? Vocês vão ou não vão me contratar?" (risos) Quando eu cheguei aqui, o pessoal: "Oh, rapaz". (risos) Aí resolveram, me chamaram, aí eu comecei a minha vida.
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O senhor tinha quantos anos, Sr. Penildon?
R - Eu me formei com 20, para 21 anos. Aí eu entrei na Rhodia com 21 anos, fazendo quase 22 anos.
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O senhor veio pra São Paulo...
R - Eu vim... Primeiro no Rio, eu trabalhei no Rio, olhe bem, meu primeiro lugar de trabalho na Rhodia foi no Rio, um estágio muito bom, o gerente lá era uma pessoa excelente, você não conheceu, uma pessoa excelente. E lá tinha um grupo de colegas. Comecei no Rio de Janeiro, depois eu vim aqui para Santo André, fui trabalhar em Santo André. E o diretor da revista, vendo o meu interesse científico nas coisas: "Ah, você não vai ser PV, vendedor, não". Eu cheguei a fazer umas vendas aí, não foram grande coisa. (risos) "Você vai trabalhar comigo aqui, na Revista da Rhodia". A Rhodia tinha duas revistas fantásticas chamadas "Publicações Médicas" e "Publicações Farmacêuticas". Então eu comecei trabalhando com ele ali. Depois eu passei a fazer parte daquilo que eu te falei, do núcleo que se reunia toda a semana para discutir as novidades que vinham da França, as novidades farmacológicas, e assim por diante.
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Esse tempo no Rio, o senhor fazia o quê, exatamente, lá?
R - Nesse tempo eu não fazia clínica, de jeito nenhum, porque eu não era médico, não fazia ensaio clínico, eu fazia um trabalho de redação científica e também ajudava a preparar a revista. Eu fiz um período de venda, mas eu não tinha formação de vendedor, não dava.
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Mas o senhor chegou a fazer visitas.
R - Cheguei.
P -
E como é que foi isso?
R - Eu não gostei, não. (risos) Eu não dava pra aquilo. Mas aí eu fui falar com o Dr. Sepí, que é quem contratava todo mundo, nós conversamos, tal, ele fez um teste rápido: "Não, você vai ficar na revista, que é um lugar mais intelectual". (risos) O Dr. Marc de Sépibus era inspetor, uma espécie de sub-diretor, que ele dinamizava todos os empregados da Rhodia, todos, do Brasil inteiro. Ele viajava o Brasil continuamente, ele entusiasmava todos os empregados da Rhodia, ele chegou a criar o que ele chamava de mística da Rhodia: "Você não vem trabalhar aqui só pelo dinheiro". O que é a mística da Rhodia? Para vender mais, fazer mais propaganda. (risos) Era um espírito fabuloso E ele dava exemplo, porque ele também viajava para fazer este trabalho. Depois ele subiu de posto. Ele chegou a ficar como inspetor geral da companhia.
P -
Só voltando um pouco, essa agência da Rhodia na Bahia, era só para agenciar, ou a Rhodia tinha algum setor na Bahia?
R - Não, a Rhodia tinha essa agência só para fazer as vendas e cobrar, só. Como ela tinha no resto do Brasil todo, era uma espécie de representante comercial. Às vezes essa agência era tomada por um representante de lá mesmo, comercial. Depois a Rhodia fez uma agência dela, Rhodia, para fazer tudo que interessava, concorria. Então, por exemplo, fez essa agência de Recife, Salvador, do Rio de Janeiro. Agora ela destruiu isso e faz um negócio diretamente, as vendas diretamente, pode ter um ou outro representante, Recife deve ter uma agência agora, não sei como é a organização atual, mas era nesse tempo assim, como no início, naquele tempo.
P -
E como é que foi a sua chegada no Rio? Quer dizer, o senhor estava morando na Bahia, Salvador, de repente chega no Rio...
R - Ah, completamente diferente do que eu esperava, porque a vida em Salvador era como eu lhes descrevi; aí, chegando no Rio, aquela maravilha toda, é uma cidade muito agradável Eu fui morar em Ipanema, aluguei um quarto lá, entusiasmado com a cidade grande. Ainda tinha bonde. Você podia passear no Rio lá a qualquer hora, não tinha negócio de assalto nem assassinato. Era uma cidade, realmente, naquela época, maravilhosa. Então eu fiz essa mudança total, me adaptei logo e gostei muito.
P -
O senhor ficou quanto tempo trabalhando na Rhodia com essas publicações no Rio?
R - No Rio? Não, publicações foi aqui em Santo André. Eu saí do Rio e vim pra cá, para Santo André, para ser reescalonado, reestudado, aquele negócio, passei no Rio acho que nem um mês.
P -
Ah, o senhor não ficou nem um mês?
R - Não, fiquei um mês ou pouco lá, acompanhei os trabalhos, fiz alguns trabalhos até de carteiro, distribuindo uns negócios de agências da Rhodia, aprendi até andar no Rio. Depois eu vim pra cá e aí é que eu fui trabalhar com Júlio Sauerbronn, não sei se ainda é vivo. Não é mais, né? Era um colaborador também muito bom da companhia, muito bom, um pouco explosivo, mas eu gostei de trabalhar com ele, ele dizia as verdades, e quando você está acostumado a ouvir só gente hipócrita, não ia ficar chocado com uma pessoa sincera, acaba gostando. (risos)
P -
Como é que eram feitas essas publicações? Quem fazia essas publicações?
R - Elas eram o seguinte: eu, na minha parte, por exemplo, eu escolhia alguns colaboradores importantes do Brasil inteiro e os médicos gostavam de publicar naquela revista. Então quem colaborava na revista era só gente boa, especialistas, era uma revista de referência total no Brasil. Então a gente pedia os artigos, depois a gente fazia revisão e publicava. Como naquele tempo a Rhodia tinha boa verba, nós fazíamos grandes publicações, grandes. Eu não sei se você chegou a ver uma coleção de lá. Chegou?
P -
A farmacêutica e da médica.
R - Tem "Publicações Farmacêuticas" e a médica, todas as duas muito boas, eram consideradas das melhores revistas, tanto da farmácia quanto da "Publicações Médicas". Depois as condições financeiras não permitiram a continuação.
P -
Isso era distribuído para os médicos? Havia um cadastro?
R - Sim. Você sabe que a Rhodia tinha e ainda deve ter um arquivo nacional de médicos e farmacêuticos muito bom. Então mandava para essa turma toda. Era, digamos assim, um veículo de propaganda da companhia, mas também levava bons artigos. E os médicos gostavam de publicar as suas observações na revista porque eram duas grandes revistas. Eu mesmo, as minhas primeiras publicações que eu fiz, científicas, principalmente sobre o sistema nervoso autônomo, em que eu me tornei depois especialista, foram feitas na "Publicações Médicas". Aí difundiu meu nome para o Brasil inteiro. Quando eu cheguei na Bahia, que eu voltei lá para fazer concurso para a universidade, este trabalho estava sendo reimpresso pela universidade, mais de 20 mil exemplares. Era um estudo sobre o sistema nervoso autônomo, que regula todas essas funções sobre as quais nós não temos uma influência volutiva, como por exemplo a circulação, o coração, a vaso-dilatação e assim por diante. Isso era um negócio tão didático que a universidade de lá gostou, pediu a autorização e reimprimiu. E eu fiquei conhecido como o homem do sistema nervoso autônomo. (risos) Isso eu fiz porque a Rhodia ia lançar um produto que ia agir no sistema nervoso autônomo. Aí você vê a influência do meu trabalho na universidade. Era um produto novo contra hipertensão que agia no sistema nervoso autônomo. O sistema nervoso regula também a vaso-dilatação, que produz, como você sabe, a vaso-constricção, produz a hipertensão. Então este produto ia diminuir a vaso-constricção, mas ele diminuía não agindo sobre o vaso, mas através do sistema nervoso autônomo. Então eu digo, eu, para entender este produto, eu tenho que estudar a fisiologia do sistema nervoso autônomo. Eu gostei tanto do negócio, da parte didática, que acabei publicando o meu estudo. (risos) E ficou um negócio aceito pelos estudantes no Brasil inteiro. Eu cheguei a fazer um livro, pequenininho, tem que ser pequeno, pela Guanabara, sobre esse sistema nervoso autônomo, como conseqüência desse trabalho da Rhodia. O nome do produto era Viscaine, uma coisa assim, eu não me lembro mais o nome do produto que a Rhodia ia lançar. Não deu certo, mas ficou certo a minha publicação. (risos) Foi muita boa experiência.
P -
Este período em que o senhor estava em Santo André fazendo essas publicações, que época que é isso, mais ou menos?
R - 1943, 1942. Tem um bocado de tempo, meio século (risos) Mais de meio século, 1942. Em 43 eu voltei para a Bahia e fiz vestibular de medicina, e continuei fazendo medicina na Bahia. Agora, de vez em quando eu ia à Rhodia, fazer os trabalhos da Rhodia lá,porque eu também viajava.
P -
Como é que foi essa decisão do senhor de ir fazer faculdade de medicina?
R - É o seguinte: depois que eu fiz o curso de farmácia, eu vi que a minha curiosidade de aprender não estava sendo completa, precisava um negócio. Porque a farmácia entra muito na medicina, mas não profundamente, tem muito relacionamento, muito namoro, mas não casa. (risos) Isso foi o motivo real de eu fazer medicina. Porque eu queria completar anatomia, histologia, microbiologia, que a gente tinha apenas uma parte superficial na farmácia, entendeu? Essa foi a principal razão.
P -
E por que voltar para Bahia?
R - Não, não foi para voltar para Bahia, não. Se bem que, quando que eu voltei, depois de um ano, eu senti uma alegria tão grande que até hoje eu não sei se senti uma alegria igual com outra coisa Porque eu nunca tinha saído de lá, eu era um rapaz ainda, 20 anos. Então eu passei esse ano todo fora; quando eu voltei pra lá, eu senti uma alegria tão grande de rever o lugar onde você morou, viveu, fantástico Depois você perde isso, porque eu viajei tanto, vai pra cima, vai pra baixo, que não senti mais isso. Mas eu me lembro da alegria que eu tive quando eu voltei lá a Salvador, à Bahia, depois de um ano de estágio aí na Rhodia, em Santo André. E eu gostava muito também de Santo André. Tanto que quando eu casei, eu vim morar em Santo André, depois de médico, ainda na Rhodia, eu casei, eu casei duas vezes, fiquei viúvo, casei a segunda vez, e a primeira esposa, nós moramos em Santo André uma temporada, quando eu trabalhava em Santo André.
P -
O senhor falou que foi fazer o curso de medicina na Bahia mas continuava fazendo trabalhos para a Rhodia. Que tipo de trabalho?
R - O tipo de trabalho desses que eu já disse, de fazer mais propaganda dos medicamentos e também instrução dos nossos colegas, dos PV. Então eu pegava os produtos novos, estudava a farmacologia, e fazia uma palestra pra eles. Isso, às vezes, eu ia em outros estados também, como eu já disse a você lá.
P -
Como é que o senhor conciliava os estudos, a faculdade, que é uma faculdade puxada, que é a faculdade de medicina, com esse trabalho que o senhor fazia?
R - Era muito difícil essa adaptação, mas eu fazia. Eu perdia muitas aulas, especialmente as aulas teóricas, mas fazia. Porque eu tinha uma cota de visitas por mês e eu tentava fazer aquela cota de visita, depois ia pra faculdade. De forma que era difícil fazer a conciliação, mas tinha que fazer.
P -
E a Rhodia incentivou o senhor na faculdade?
R - Completamente, me deu incentivo total, durante todo o tempo, me prestigiava, acatava minhas opiniões. Eu sempre tive apoio da Rhodia, que eu acho que não teria em outra empresa, de jeito algum; tanto que eu só tive esse emprego, durante 37 anos. (risos) A Rhodia, quando pegava um empregado dedicado, bom, trata bem dele. Deve continuar agora com a mesma atitude. Tinha um lado social da comunidade empregatícia muito bom, muito bom.
P -
E o senhor formado em medicina, o senhor continuou...
R - Eu me formei em medicina e eu vim trabalhar novamente em Santo André. Trabalhei um bocado de tempo aqui em Santo André, fazendo aquela parte de experimentação que eu lhe falei. Então eu ia nos hospitais daqui fazer experimentação com os produtos novos que vinham lá da França, ou então em outros estados também. Na Bahia eu fiz várias experimentações. Eu viajava muito também para a companhia, no Brasil.
P -
O serviço de pesquisa, o SEPET, foi criado quando?
R - Foi em 1967 ou 57, por aí. Era um serviço interessante, porque a gente sempre se reunia, toda a semana, com os médicos constituídos, os químicos, e estudava as possibilidades de desenvolver novos produtos, ou então produtos velhos que precisavam ser lançados, reestudados. Ou então estudos, por exemplo, como fazer campanha do ponto de vista médico do Nootropil, do Amplictil, do Profenid, tudo isso nós fizemos naquela época. Nós fazíamos com esse SEPET. Com as pesquisas que eu já descrevi, ou então pesquisas clínicas de colegas que a gente orientava ou então pedia e acompanhava.
P -
Antes do SEPET, como é que era? Não havia uma pesquisa clínica?
R - Antes do SEPET era feito o aproveitamento do que era feito lá na França. Porque a França, como eu já lhe disse, faz o estudo completo do medicamento. Então o SEPET pegava aquela documentação e com aquela documentação pedia a licença do produto, e estava acabado. Com o SEPET, então, nós começamos a aplicar também a parte clínica aqui do medicamento, fazendo ensaios clínicos. Então ficou a coisa melhor. Nós fizemos com anti-tossígenos, fizemos com o Amplictil, com o Profenid mesmo, e outros produtos de que eu não me lembro o nome mais, foi um trabalho interessante aqui.
P -
O senhor pode contar a pesquisa do Amplictil de novo?
R - Você quer novamente?
P -
Ah, eu quero. (risos)
R - Como eu tinha dito a ele, o Amplictil representou uma espécie de revolução farmacológica e clínica em psiquiatria. Porque a psiquiatria, antigamente, o tratamento era sintomático, paliativo. O Amplictil trouxe um conhecimento novo da terapêutica, porque modificava especialmente o esquizofrênico, e permitia às vezes até que ele conversasse sobre a própria doença, o que antes não era possível. O Amplictil não curava a esquizofrenia, mas melhorava o paciente. Ele tornava até o paciente, digamos assim, mais cordato. Porque o esquizofrênico tem às vezes aquela fase de agitação e assim por diante. O Amplictil também tirava a fase de agitação de todas as psicoses, também. O Amplictil agia também como melhor anti-vomitivo que já existiu até hoje, olhe bem. Ele era anti-emético, anti-vomitivo, ele era anti-esquizofrênico, ele era anti-agitação. Com o Amplictil você tinha possibilidade de dominar todos aqueles doentes que vêm agitados do pronto-socorro, às vezes querem matar até o médico, uma injeção de Amplictil e o homem já está dominado. (risos) Isso fazem também com os animais que atacam a gente, dá no primata e daqui a pouco ele está dominado com o Amplictil. Então o Amplictil se tornou uma droga, como discutimos lá, que abriu um caminho muito grande, principalmente em psiquiatria. Então no caso de psicose, tem um grande grupo de neuroses e psicose. Nas psicoses o Amplictil abriu um caminho novo de tratamento medicamentoso em todas as psicoses, não só a esquizofrenia, como os outros tipos de psicoses que se encontram, especialmente onde tem agitação. E realmente controla o paciente, realmente controla.
P -
Como é que a indústria farmacêutica, no caso, a parte médica, lida, por exemplo, com essa parte de pesquisa, uma carta, por exemplo, do médico do interior que descobriu que o Flagyl serve para isso ou aquilo: "Eu tratei não sei o quê". Acontece muito disso, não?
R - Muito. Em geral essa observação não tem nenhum valor científico, nenhum. Ele às vezes não sabe o que causou a melhora, então, por acaso, naquele momento, ele deu a droga, ele diz: "Ah, foi bom com essa droga". Mas não tem base científica. Você pega a base científica quando você toma, por exemplo, no caso, infecção até câncer, Flagyl era bom até para câncer. Você vê a indicação, então pega dez doentes, ou 20 doentes, aplica o medicamento e veja o que acontece. Agora, uma observação dessas não tem valor científico. Na América eles chamam essas observações de anedóticas, anedocties. Todo mundo já descobriu medicamentos para câncer. Agora, para fazer uma coisa real mesmo... Esse médico, por exemplo: "Ah, eu achei uma resposta boa deste produto para uma doença nova". Muito bem, fizemos isso algumas vezes: "Nós lhe daremos material todo possível, todo o apoio médico. Agora você escolhe um grupo de doentes com essa doença para experimentar o produto". Aí vai.
P -
E isso foi feito alguma vez?
R - Já, o próprio Flagyl, descobriu-se que ele tinha uma propriedade interessante de contra o alcoolismo. Interessante, né? Pois bem, o Flagyl, por acaso, foi observado por certo médico, que quando a pessoa tomava Flagyl, decerto para tratamento para amebíase, ele ficava com asco do álcool. Porque quando ele tomava álcool, ele tinha uma reação tão ruim que ele não queria mais beber; essa reação é o impedimento do metabolismo do álcool no organismo. Então, o Flagyl, se observou que ele fazia isso. Então nós observamos e realmente ele faz. Aí é diferente, veio de uma observação que foi repetida várias vezes. Então você pode usar o Flagyl contra problemas de alcoolismo, da mesma maneira que você usa um produto que é muito usado aí como Anti-Abusan, vários produtos aí, Disulfiran, que faz o impedimento do metabolismo do álcool no organismo e ele fica na fase do aldeído, que se torna um veneno. O sujeito então se sente mal, tem perturbações da circulação, da pressão. Aí diz que é o álcool que está fazendo isso, não é, isso é o remédio que ele tomou antes, ou a família botou na comida dele. Isso era comum.(risos) Então o Flagyl demonstrou essa propriedade, essa foi verificada realmente. Isso nasceu de uma observação só, depois fizemos a observação generalizada. A história dos medicamentos tem muita coisa interessante, muita coisa.
P -
Quanto tempo o senhor ficou na Rhodia, em Santo André, fazendo este trabalho de pesquisa?
R - Peraí menina, o tempo exato, seis, sete, oito anos. Depois eu continuei a fazer, mesmo tendo ido pra Bahia, voltava aqui. Mas em Santo André, quando eu vim a segunda vez, eu fiquei perto de oito anos trabalhando aqui em São Paulo, em Santo André, nesta situação de assessor médico, chefe do SEPET. Agora, depois que eu fui lá para cima, eu sempre voltava aqui também, e também nos outros estados.
P -
O senhor foi para Salvador fazer o quê? O que é que o senhor foi fazer lá?
R -Eu fui fazer uma coisa muito delicada, eu fui fazer um concurso para ser professor de lá. (risos)
P -
E a Rhodia deixou?
R - Eu falei com o Simões e Simões concordou: "Vá, faça". Ele era nosso chefe, ele compreendeu muito bem o problema: "Você gosta de ensinar, você tenta fazer lá, se não passar, você volta aqui". (risos)
P -
Mas porque voltar a Salvador, o senhor não queria dar aulas em São Paulo?
R - Porque lá, primeiro, é minha terra, e segundo, eu tinha chance do concurso. Em São Paulo, você fez uma pergunta interessante, eu fiz umas palestras na Sociedade de Farmácia e Química, e o Liberalli - você não o conheceu, era famoso aqui Liberalli - me convidou para ensinar na faculdade daqui. Eu fui lá, dei umas aulas, o pessoal gostou muito da minha didática, mas abriu um concurso na Bahia, aqui não abriu. Eu fui lá ver o concurso, você passando no concurso você tem o emprego para o resto da vida, mesmo depois de aposentado. (risos) E lá é um lugar muito interessante, vocês conhecem a Bahia, é interessante também. E tinha a família, essa coisa toda. É isso aí.
P -
Quando o senhor veio pra Santo André pela segunda vez, o senhor estava casado?
R - Casado.
P -
E aí o senhor voltou pra Salvador e levou a esposa.
R - Tinha que levar. (risos) Uma pergunta feminina essa.
P -
O senhor poderia ter deixado ela aqui. (risos)
R - Não deixei, não podia deixar, eu gostava muito dela.
P -
E o senhor já tinha filhos nessa época?
R - Já. Eu tenho duas filhas paulistas, nascidas aqui, duas filhas paulistas, nasceram na Maternidade São Paulo, grandona, foi lá. Eu era muito paulista, era mesmo, eu era muito ligado a São Paulo, porque aqui eu tinha muitas ligações culturais, de amizade, compreendeu, muito. Eu sou meio paulista, gosto muito de São Paulo, muita coisa boa eu peguei de São Paulo, duas filhas. Eu casei no Rio de Janeiro, ela era do Rio, fui casar no Rio mas voltei para São Paulo. Ela agüentou uma temporada aqui, depois foi para a Bahia comigo. (risos)
P -
E lá em Salvador, além de dar aulas na faculdade, o senhor era professor, o senhor também continuou trabalhando com a Rhodia?
R - Ah, continuei. Eu não larguei a Rhodia nunca.
P -
E aí? Fazia o quê lá? Como é que era esse trabalho?
R - Olha, eu sempre fazia a mesma coisa que eu fazia aqui. Eu era chamado, eu viajava muito, porque a Rhodia faz isso com os funcionários, a gente viajava muito. Então eu continuei com a mesma função que eu tinha aqui, mas não com a permanência aqui. Mas viajava, vinha pra cá, ia pra Recife, assim por diante.
P -
Na parte de pesquisa mesmo, o senhor trabalhava.
R - Pesquisa mesmo. Eu fiz muita pesquisa, inclusive em Salvador. O Nootropil, que foi um produto muito grandioso, eu fiz os trabalhos todos em Salvador, sem sair de lá. Comecei com um asilo de velhos lá, Pedro II, fiz um trabalho, uma turma comigo, muito bom. Depois mais dois trabalhos com o Nootropil, e o pessoal do Nootropil lá em Bruxelas gostou muito, me chamaram para eu dar um pulo lá, pagaram uma passagem pra mim. Porque ali eu estava fazendo a aprovação do produto deles. O Nootropil foi um produto interessante, agora eu não sei como está, estou afastado, um produto interessante.
P -
O material de propaganda médica passava pelo senhor?
R - Nós analisávamos isso, era uma das funções nossas, de redação científica, porque você tem que fazer revisão para não ter bobagem. A gente pegava outras bulas aí, nós tínhamos uma coleção de todas as bulas dos outros laboratórios. (risos) Então eu dizia: "Olha, esse aqui deve fazer assim, deve fazer assado. Tem que repetir senão você não vai compreender". Porque isso é um material muito importante da companhia que faz medicamento, orienta o médico, orienta o paciente, não diz bobagem. Até o tipo é importante, tem uns tipos aí de bula que não dá para ler, microscópicas, não sei se eles fazem de propósito. É uma parte importante, as bulas dos medicamentos.
P -
O senhor revisava as bulas?
R - Nós fazíamos, inclusive, a literatura. Naturalmente a feitura disso era com a ajuda dos outros colegas, tinha um veterinário muito bom lá, e depois a gente fazia a revisão. Era um trabalho fino, porque aquilo que representa a moeda corrente da difusão do produto. Nos Estados Unidos o que é importante no medicamento é o que eles chamam a bula, tem outro nome lá, mas é a bula, porque a bula orienta o médico da posologia, dos efeitos colaterais, como é que deve usar, as indicações. Lá tem um livro, não sei se já ouviu falar, chamado Phisician Desk References, é um livro maior que o DEF nosso. Você conhece o DEF? Um Dicionário de Especialidades Farmacêuticas. É um livro assim que já tem 57 edições, eu estou mandando buscar a edição deste ano, de 99. Lá ele dá o que eu acabei de fazer: dá a bula vinda da indústria, das indicações, dos efeitos colaterais, da toxicidade, do tratamento da toxicidade e da posologia. Então todo médico tem esse livro lá em cima da mesa, por isso é que ele é chamado Phisician - do médico, Desk - a carteira, Reference. Todo mundo compra este livro, é um tijolão também, deste tamanho. Então lá você vê a importância da bula, que é muito... É o que o médico lê, ele não vai ler o livro de farmacologia pra estudar um medicamento novo, ele tem que ter a notícia dada pelo laboratório. Então isso é uma coisa que ele joga fora, ou então uma coisa que guia, que ele vai usar. A bula é muito importante.
P -
Tem uma série de normatizações do governo...
R - O governo não faz normatização da bula, quem faz é o dono do produto. Mas aí ele vê a composição, ele vê a embalagem, ele vê as propriedades farmacológicas, ele vê as indicações, ele vê a toxilogia, ele vê o tratamento. Quer dizer, isso o governo não pode normatizar. Naturalmente o governo exige essas informações; quem normatiza é a indústria farmacêutica, só ela que pode fazer isso, só ela, porque ela sintetizou, ou então trouxe o produto já sintetizado, conhece o protocolo. Na América, para fazer um lançamento novo, precisa fazer toda essa papelada que eu falei e entregar lá ao FDA. Lá é um controle fantástico, então entra nesse controle tudo o que eu falei, as experiências clínicas, as fases todas, e às vezes demora um, dois, três anos para licenciar o produto, analisando todos esses dados. Então, quem fornece as boas informações é a indústria farmacêutica, que é que está por dentro do produto. A indústria farmacêutica é que trouxe os maiores avanços na farmacoterapia no mundo. Porque a universidade não têm meios para fazer isso, mas a indústria tem. Então os diuréticos, os anti-hipertensivos, por exemplo, o próprio clorpromasina, tudo isso vem da indústria. Ela tem, naturalmente, fins lucrativos, ela quer o retorno. Mas além disso ela tem os meios, tem os pesquisadores, então faz um contrato com a universidade, mas é ela quem faz a pesquisa real do medicamento, tem indústria farmacêutica. Agora mesmo, mandei buscar um livro americano que dá todos os protocolos de análise farmacológicas dos medicamentos. Eu fui ver quais os autores, a maioria dos autores é da indústria farmacêutica. (risos) Porque eles é que fazem aquilo todo dia, todo dia. A própria Rhodia lá na França tem um prédio com vários pavilhões só para fazer estes testes de Coray Grie, nome famoso lá. Então faz todos os testes, tem um produto novo, quer saber a reação desse produto no aparelho circulatório, ou então no aparelho respiratório, ou então na circulação, para cada setor deste você tem uma série de (fim do Lado B - fita 1) protocolos experimentais. Então pode fazer. A universidade não tem dinheiro para fazer isso, de jeito nenhum, porque aí implica a compra de muitos aparelhos finos, espectroscópio, fazer biologia molecular e assim por diante, que a universidade não tem, não. Muitas vezes, o sujeito, por nacionalismo, começa a atacar as multinacionais de indústria farmacêutica, mas se não fosse a indústria, hoje, a gente não poderia tratar a hipertensão arterial, a própria diabete, assim por diante, sem falar nas doenças mentais. Porque é a indústria que dá essa possibilidade, pelos motivos que eu já apontei.
P -
No tempo do senhor, qual é a relação da Rhodia, por exemplo, com a universidade?
R - A relação da Rhodia com a universidade eu considero muito boa, porque ela não faz uma relação direta com a universidade, ela faz uma correlação com professores da universidade.
P -
Isso é antigo da Rhodia.
R - A Rhodia sempre fez isso. Então, como eu já lhe disse, ao lado de outros bons laboratórios, é muito bem conceituada pelos médicos brasileiros. Eles gostam da Rhodia porque sabem que é uma companhia séria na fabricação de remédios. Agora nós estamos vivendo uma verdadeira peste de falsificação de remédios, que coisa horrível Agora, você só vai falsificar os nomes bons, repare, de produtos bons, quando eles são verdadeiros, não é? Mas voltando à sua pergunta, uma pergunta boa, os médicos consideram, sempre consideraram a Rhodia um bom laboratório, ao lado de outros que vocês já conhecem, como Squibb, como Bristol-Myer, assim por diante, Pfizer, tem um bom número de laboratórios que são, como os americanos chamam, reliables, quer dizer, confiáveis. E a Rhodia também, com certeza. E isso é um trabalho que foi feito há quase 80 anos. (risos) Porque foi um trabalho que a Rhodia sempre fez junto aos médicos, junto aos professores. A Rhodia sempre tratou muito bem os professores que vinham aqui, ou ajudava em congresso, sempre ajudou muito, mesmo.
P -
O senhor participou de registro de produtos? Teve envolvimento com registro?
R - Não, quem fazia isso, o registro de produtos, tinha uma comissão especial para isso lá no Rio de Janeiro, que conhecia, antigamente era o Rio de Janeiro. Então nós mandávamos todo o material para fazer o registro exigido pelo governo, mas quem fazia era esse Nunes de que eu te falei, que ele era da agência de lá e conhecia todo o negócio. Porque o registro de medicamentos era e ainda é, tem um pouco de política para você botar pra frente. Tanto assim que tinha uma lista enorme de medicamentos que não valiam nada, mas a pessoa tinha influência política e podia registrar. Tinha cada um fantástico, de errado, de ruim, mas se você tinha amigo lá... Agora, os laboratórios bons, quando faziam as propostas eram de bons produtos; no caso a Rhodia, pode incluir a Rhodia aí.
P -
O senhor montava também os dossiês.
R - Montava, ia tudo para lá, tinha que mandar os dossiês, tinha que mandar, especialmente o que era feito na França ou nos outros países, porque aqui nós não tínhamos meios para fazer isso e ainda nós não temos. A maior parte dos nossos medicamentos é importada. Então nós damos ao Dimed, como se chamava - acho que ainda se chama Dimed -, nós dávamos essa documentação de experimentação no estrangeiro, e se a gente fizesse aqui, mandava para ele também daqui. Porque aqui nós não temos possibilidade de fazer realmente indústria farmacêutica no sentido de sintetizar a molécula, nós não temos infra-estrutura, você importa tudo, a Rhodia importa tudo, da França especialmente, às vezes de outros laboratórios com os quais ela está aliada: Rorer, o próprio antigo nosso aqui...
P -
UpJohn.
R - UpJohn. Mas aqui no Brasil tem pouca coisa sintetizada, realizada aqui, porque nós não temos infra-estrutura pra fazer isso; o Japão tem, a Alemanha tem, a França tem, os Estados Unidos têm. Depois que apronta isso lá, vem de colher pra nós. É isso aí.
P -
O senhor estava dando aulas na Faculdade de Medicina e trabalhando na Rhodia. O senhor nunca chegou a clinicar como médico, chegou?
R - Sim, eu sempre cliniquei, inclusive em Santo André. O meu primeiro consultório foi em Santo André. Porque eu não admitia sendo médico e não clinicasse.
P -
Então o senhor chegou a clinicar
R - Sim. Cheguei a clinicar e clinicava lá ao lado da fábrica de Santo André, foi um dos melhores consultórios que eu já tive foi lá em Santo André, tinha muito cliente japonês. Naturalmente, depois que eu saía da Rhodia, ia para lá para o meu consultório, em geral uma ou duas horas durante a tarde. E dava certo.
P -
O senhor recebia propagandistas, Dr. Penildon? (risos)
R - Recebia.
P -
Dos concorrentes também?
R - Tem que receber. E aí analisa. Lá, também, na Bahia, recebia. Porque o médico, como vocês sabem, é, digamos assim, utilitário das indústrias farmacêuticas. (risos) Ele tem que ser visitado, tem que ser visitado.
P -
O senhor clinicava como clínico geral?
R - Clínico geral. E tinha uma área de que eu gostava muito e ainda gosto, cardiologia, mas era clínico geral. Isso também me ajudava nas coisas da Rhodia e tal, e era bom.
P -
O senhor, então, na Bahia, dava aulas, trabalhava na Rhodia e ainda tinha consultório.
R - Porque o que eu ganhava nesses lugares não dava nem pra... Tem que fazer essas coisas, no Brasil é assim. Eu fazia essas três coisas: ensinava, rhodiano e clinicava. A clínica nunca me deu grandes rendas, porque para ter grande renda em clínica tem que ter umas qualidades especiais que eu acho que eu não tinha. (risos) Mas era um trabalho agradável também, fazer clínica.
P -
O senhor ficou quanto tempo ainda na Rhodia lá em Salvador, fazendo este trabalho?
R - Eu fiquei um bocado de tempo lá.
P -
O senhor se aposentou lá, na Rhodia, em Salvador?
R - Eu me aposentei lá. Naturalmente o Carvalho foi lá conversar comigo. Eu estava em Salvador. Agora, como eu lhe disse, eu tinha uma mobilidade muito grande, para o que a Rhodia precisasse, em qualquer parte do Brasil; tinha sempre reuniões lá, por exemplo, em Recife, no Rio de Janeiro, ou em São Paulo, para fazer aprimoramento do pessoal, ou então para acompanhar congresso que interessavam à Rhodia. Por exemplo, o Amplictil, eu fui a muitos congressos por causa do Amplictil, o próprio Nootropil, o Profenid, e assim por diante.
P -
Aquele livro que o senhor fez, organizou, como é que foi a elaboração dele? Como nasceu?
R - Este livro nasceu depois que eu fiz o trabalho sobre o sistema nervoso autônomo. Eu peguei o trabalho sobre o sistema nervoso autônomo e entreguei à Editora Guanabara do Rio. Eles gostaram muito do livro, bem organizado. "Por que você não faz a farmacologia?" "Se eu fizer, você publica?" "Publico". Aí eu fiz a primeira edição em 1980; olhe bem, a primeira edição é de 1980. Foi um trabalho muito bom, um trabalho gigantesco, porque eu tinha que pedir a colaboração de muitos colegas, do Brasil inteiro. E a Rhodia me ajudou nisso diretamente e indiretamente. Então eu fiz então a primeira edição em 1980. De lá pra cá já se fizeram cinco edições. Aquela que eu lhe mandei
tem cinco edições. Um trabalho muito interessante. Eu tinha um gabinete, ainda tenho um gabinete lá na universidade, onde eu tenho um arquivo de todo o material de todas essas edições. Naturalmente classificado do ponto de vista farmacológico. Eu atualizo sempre as minhas fontes de farmacologia, sempre. Agora mesmo tenho todos os livros publicados na América, na França, na Inglaterra, das últimas edições. Porque aí eu vou atualizando cada edição. O livro foi uma novidade, foi adotado no Brasil inteiro, para seu governo, não só nas escolas de medicina; farmácia, fisioterapia, odontologia, pegou tudo. E como eu estava lhe dizendo, eu fiz uma espécie de um arquivo enorme, você tem arquivo desses negócios, eu tenho arquivo de cada capítulo do meu livro. Então está sempre atualizando. E eu ganho lá uma percentagem, não é grande coisa, porque intelectual não tem... Mas eu ganho, eu ganho de acordo com a saída. Esta edição agora, saiu agora essa edição 98, a editora me comunicou que foi esgotada a edição e reimprimiram essa edição. Então está bom. E eu ganho 10% sobre o preço de capa.
P -
Que é padrão de mercado isso.
R - É padrão de mercado. Tem duas grandes farmacologias: "Goodman and Gilman" e Penildon Silva. (risos) Agora mesmo, eles me pagam de três em três meses, não é grande coisa, mas é coisa boa, é o reconhecimento dos colegas, aí você se torna conhecido, ele não lhe conhece pessoalmente, mas conhece seu livro. Outro dia mesmo, naquela homenagem de que eu lhe falei, eu fui saindo, uma moça me perguntou: "Ah, eu queria conhecer o senhor, porque quando eu fiz o meu curso de enfermagem carregando aquele livro debaixo do braço". Era chamado Penildão e Penildinho. Penildinho era o livro do sistema nervoso autônomo e o Penildão é a "Farmacologia Geral". Você não chegou a ver, ele vai lhe mostrar um dia desses. Eu mandei pra ele para ele ver. Dá para olhar de vez em quando.
P -
Sr. Penildon, o senhor participou de outras publicações na Rhodia, além das "Publicações Médicas" e das "Farmacêuticas"?
R - Sim, as publicações da Rhodia que eu fiz, eu lhe mandei até alguns exemplos, lá. Muitas publicações. Agora essas publicadas em outras revistas, "Revista Brasileira de Medicina", "Revista de Terapêutica", e muitas outras revistas, muitas. Então, isso aí, você tem muitos produtos que eu estudei do ponto de vista clínico, aquele negócio, eu publiquei em várias revistas. Com essas publicações eu fiz o meu currículo e entrei nos concursos. (risos) Ajudava, porque no currículo tem a sua vida universitária, iniciativas e assim por diante.
P -
E como é que foram esses concursos?
R - De que ponto de vista?
P -
Tinha banca...
R - Tinha banca, todo concurso tinha. Era um pouco diferente de atualmente, porque a gente fazia uma prova teórica, uma prova prática, fazia uma prova escrita e tinha provas de títulos. Atualmente você faz um memorial e dá uma aula. Fica mais fácil, muito mais fácil. Então você tinha que fazer uma tese, depois você tinha que dar uma aula, aquela teórica, e depois você tinha a prova escrita, em que você tinha às vezes cinco horas para escrever e sorteado às vezes com 24 horas antes. Então era um negócio, sabe?
P -
O senhor já tinha dado aula em alguma oportunidade?
R - Já, eu sempre dei aula, eu sempre gostei de ensinar. Eu ensinava desde que eu era estudante de medicina e de farmácia, eu sempre ensinei. Eu era professor sabe de que inicialmente? Eu era professor de inglês De inglês, era professor de inglês, fiz curso especialização no ACBEU de lá e aprendi a falar inglês americano com pronúncia deles. Eu ensinava inglês. Era professor de inglês, inclusive na ACBEU. Fui lá, fiz concurso, concurso, quer dizer, exame, e fiz aperfeiçoamento lá, depois nas viagens a gente aperfeiçoa ainda mais. Era professor de inglês e foi um negócio bom, me ajudou até a fazer o curso. (risos) E também me ajudou numa coisa boa; sabe qual é, que eu esqueci de dizer? Eu agora sou o tradutor oficial dos livros de farmacologia da Guanabara. Todos os livros da Guanabara de farmacologia, de uns dez anos para cá, da Inglaterra ou dos Estados Unidos, eu é que fiz a tradução. Agora eu não faço a tradução toda, eu faço a supervisão da tradução. Ele tem lá um corpo de tradutores, eles traduzem, e mandam pra aqui, pra mim. Então eu faço o exame da tradução, corrijo o que tiver que corrigir, aprovo e assim por diante. Sempre estou fazendo tradução pra eles, só que na minha área, de farmacologia. Existe uma farmacologia chamada "Goodman and Gilman", não sei se já ouviu falar, é considerada a melhor farmacologia do mundo, essa eu estou fazendo a supervisão da tradução das últimas quatro edições. Agora mesmo eu fiz uma. Então eu estou me atualizando sem querer, sempre com as coisas mais modernas. Agora mesmo nós fizemos uma supervisão e eles publicaram uma farmacologia resumida, muito gostosa para estudantes, saiu agora. Já fiz várias traduções de livro inglês, norte-americano, mais do inglês para português. E o meu conhecimento de inglês ajudou muito nisso, e também de farmacologia, porque você precisa ter os dois conhecimentos. Eu ganho por tradução, não, sabe, por lauda traduzida, supervisionada, depois eu paro de ganhar, quando publica não ganha mais nada o tradutor, o autor continua ganhando mas o tradutor toma na cabeça. (risos) Mas é um trabalho bom, eles são muito distintos comigo, tal.
P -
É um trabalho interessante, o senhor gosta de fazer.
R - Muito interessante, porque está dentro da minha área, eu estou atualizando. Então pra mim é ótimo.
P -
O senhor deu aulas até quando na universidade? O senhor ainda continua dando aulas na Universidade da Bahia?
R - Eu ainda continuo, apesar de aposentado, o pessoal não quer que eu saia. Então eu continuo lá com um bom gabinete, muito bom, fico junto das pesquisas com os ratos, (risos) sou consultado toda hora. Então estou ainda na mesma atividade universitária.
P -
Agora o senhor está só com a universidade ou está com outras coisas também?
R - Não, estou agora só com a universidade e esta atividade editorial de que eu lhe falei, do livro e das traduções. E tenho atividades de consultor para aluno, para arrumar o casamento, uma porção de coisas que aparece por aí. (risos)
P -
O senhor está seguindo os passos do seu pai, então?
R - Mais ou menos, eu quero fugir, mas não posso. Antes de eu vir viajar apareceu uma velha amiga minha de mais de 30 anos: "Eu tenho um problema, quero que você resolva. Minha filha está estudando fisioterapia lá em Sergipe. Ela quer fazer transferência para a Bahia, para a Escola Baiana de Medicina, vê se você arranja pra mim." Entre outras coisas que aparecem.
P -
O senhor falou que foi casado duas vezes.
R - Casei.
P -
O senhor tem quantos filhos mesmo?
R - Quatro filhos, duas moças do primeiro casal e dois rapazes do segundo casal.
P -
Alguém quis fazer farmácia ou medicina?
R - Medicina. Do primeiro casal, a Luciana, que é a filha mais velha, fez medicina, fez pediatria, e fez a carreira universitária toda, só falta fazer agora professor titular, que vai fazer concurso agora. Ela é muito dedicada à pediatria, gosta muito e é muito inteligente. (risos)
P -
Não teve a quem puxar, né?
R - Eu não sei, eu não quis dizer isso, mas é muito inteligente. A outra não gosta de sangue, gosta de dança, de artes plásticas, ela é professora de dança, da universidade também, professora oficial. Os meninos, um fez advocacia e o outro fez comunicações. Então está tudo dentro de casa, a micro-unversidade lá em casa. (risos) É isso aí.
P -
E o senhor tem netos já?
R - Já, da primeira filha já tenho um neto de 20 anos, para o seu governo, um neto de 20 anos. E tem o outro, da segunda filha, que é casada também, mas esse tem 13 anos. Eu posso dizer tenho um neto de 13 anos, o de 20 anos eu não posso. (risos) É isso aí, e a vida continua.
P -
E o cotidiano do senhor hoje, como é que é?
R - Olhe, o meu cotidiano, eu gosto muito de esporte, eu faço um pouco de natação, bem cedinho, depois eu volto, vou no meu instituto, Instituto de Ciências e Saúde, ver se tem mais alguma coisa lá, preparar uma aula, as aulas que eu dou são de tarde. E escrevo também, nesse papel editorial, na atualização do meu livro, e eu tenho uma correspondência muito grande que eu, às vezes, não gosto de fazer, que toma um tempo danado, mas tem que responder. Então no meu cotidiano tem sempre uma correspondência, ou pedindo um livro novo, ou respondendo aos amigos, um consultor. Outro dia eu recebi uma carta aqui de um consultor de São Paulo sobre o meu livro, dizendo: "Ah, eu sou original, de uma coisa que eu descobri, descobri um negócio". Se eu for analisar... (risos) Quer dizer, o meu cotidiano é esse aí.
P -
O senhor consultou a famosa biblioteca do DEPESP?
R - Se eu conheço? Atualmente eu não conheço porque eu saí da Rhodia já tem quase 20 anos.
P -
Acabou.
R - Eu não acabei, a Rhodia que acabou comigo.
P -
Não, eu disse que a biblioteca acabou, ela não existe mais.
R - Naquele tempo, no meu tempo, tinha uma biblioteca boa, era muito selecionada, agora não sei. Porque eu saí, como eu lhe disse, eu saí da Rhodia em 79, está fazendo 20 anos, de lá pra cá eu não sei mais a evolução que teve a biblioteca de lá. Eu já sou um dinossauro lá (risos).
P -
Sr. Penildon, a gente está terminando a nossa entrevista e a gente gostaria de estar fazendo mais algumas perguntas mais... para fazer o fecho da entrevista. A gente queria saber se o senhor, nessa sua trajetória de vida e profissional, na Rhodia, na universidade, se o senhor mudaria alguma coisa nessa trajetória, e que fizesse uma avaliação dessa trajetória de vida.
R - Eu não mudaria uma sílaba, se pudesse eu repetiria tudo o que eu fiz, viu? Eu só fazia o que eu gostava e ainda tento fazer isso, de forma que eu não me arrependo do que eu fiz, eu gostei de todas as fases que eu tive. Eu nunca fui uma pessoa rica, nos lugares em que eu fui eu sempre tive um ordenado amarrado. (risos) Mas dá pra viver, e a gente ia embora. Respondendo à sua pergunta, eu não mudaria nada. A avaliação que eu faço é de que eu tive uma vida que eu posso classificar de boa.
P -
O senhor ainda tem algum sonho, algum projeto a concretizar?
R - Todos os dias eu tenho sonhos e projetos a concretizar, todo dia, é um negócio que às vezes incomoda a gente, mas é coisa boa, é sinal que você está vivo ainda. Tenho, tenho. Eu tenho um projeto que depende da Megasena. (risos)
P -
O senhor pode contar pra gente?
R - Conto, agora que você sabe toda a minha vida. É o seguinte: se eu ganhar a Megasena eu vou construir um instituto de farmacologia como eu vi no Canadá, ao lado do meu Instituto de Ciências e Saúde, que é pobre, não tem dinheiro da universidade. E aí eu vou implantar um laboratório de fazer esses testes pré-clínicos com os animais, porque lá não tem dinheiro, só tem dinheiro para comprar rato e camundongo, e está acabada a história. Eu tenho lá a coleção. Este é um grande projeto que eu faria se tivesse dinheiro. Eu já fiz a proposta, mas não adianta, porque a universidade não tem meios. Então, se eu, o americano "If I hate the jack pot", quer dizer, se você der o chute no pote que tem dinheiro, eu faço este instituto lá. Este é o meu maior projeto que eu tenho no momento.
P -
E o senhor joga na Megasena?
R - Sistematicamente, toda a semana. Estou fazendo isso, até eu chegar à conclusão que as probabilidades não estão ao meu favor. (risos) Eu já vi que ali é difícil tirar, é difícil, mas não vejo outro caminho por enquanto, pode ser que surja. Este é um dos desejos intelectuais que eu tenho. Você quer saber outros? (risos) Se você quer saber, eu lhe digo.
P -
Pode contar.
R - Existem certas áreas de conhecimento que eu nunca tive tempo de dominar, compreendeu? Mas elas continuam no meu desejo. Uma é a eletrônica, e a outra é domínio total da língua alemã, que eu já falo, mas não domino ainda, mas está indo direitinho, compreendeu? (risos) Eu continuo estudando alemão, é uma coisa deliciosa, a língua alemã, é uma coisa muito lógica. Estes são todos os projetos intelectuais muito interessantes que eu tenho, intelectuais. O francês eu dominei, o francês e o inglês, em parte por causa da Rhodia, porque a gente tinha muito contato com a França, mas eu quero dominar também o alemão. Eu não sei se viverei para isso. (risos) Desses dois projetos que eu lhe falei... Mas estou continuando a ir, se você quer saber desses projetos. Tem outros assim que eu não sei se é um projeto a alcançar, a questão, por exemplo, da manutenção da saúde. Este é um projeto que eu considero bom. E eu tento manter a saúde, dentro dos meus conhecimentos que eu tenho até agora e dentro dos limites da velhice. (risos) Isso é que o mais importante. E esse bom.
P -
E o que é que o senhor achou de ter dado esse depoimento aqui pra gente? De ter contado a sua história?
R - Eu achei ótimo, eu gosto sempre de conversar com pessoas inteligentes, isso aconteceu aqui com vocês dois. Porque é tão difícil a gente encontrar pessoas inteligentes, em geral é aquilo, não vai ter nada. Aqui não, teve reflexo, teve ida e vinda, teve pingue-pongue intelectual muito bom, eu achei ótimo isso. Agora, eu não sei se vocês terão oportunidade de aproveitar isso tudo, porque o material é fabuloso que vocês têm aí, eu não sei como vocês vão condensar, sob que forma, impressa, no CD-ROM. Este é um outro projeto que eu tenho, comecei na semana passada.
P -
Ah, é? Sobre o quê?
R - De dominar o computador.
P -
O senhor tem intenção de...
R - Intenção nada, eu estou fazendo. Já comprei o computador, já mandei buscar os CD-ROMs de farmacologia na América, o de cardiologia me deram, já sei usar o CD-ROM, e já comecei a usar aquelas lições inicias, inclusive da digitação. Então está aí.
P -
Daqui a pouco o senhor vai estar fazendo um CD-ROM de farmacologia no Brasil.
R - Eu não faria isso porque depende muito de dinheiro e já tem uma companhia que faz isso na Europa, tem uma companhia que fez um CD-ROM com todos os capítulos da farmacologia, todos. Então o melhor é buscar lá. (risos) Eu não ia fazer. Porque pra fazer um CD-ROM é um negócio complicado, eu vi um de eletrocardiologia que eu mandei buscar, que maravilha Porque ele mostra o eletrocardiograma combinado com o batimento do coração e o controle da pressão arterial na mesma imagem. Então você vê o coração batendo, você vê a curva de hipertensão, e você vê, às vezes, também a representação do eletrocardiograma, é uma coisa fantástica Agora, para fazer aquilo, ele deve ter tido um eletrocardiografista, um técnico em eletrônica, e outras coisas que eu nem sei. Esses são os projetos que eu tenho.
P -
O senhor quer acrescentar mais alguma coisa, Sr. Penildon?
R - Apenas acrescentar que eu gostei de conhecer vocês, de conversar com vocês, e isso é muito importante, apreciar pessoas inteligentes e ter uma adaptação com essas pessoas . Isso é que eu teria que acrescentar.
P -
Muito obrigado, então.
R - Eu é que agradeço essa oportunidade, porque eu não sabia como ia ser. (risos) Ficava imaginando... Sabe como? O sujeito tem que enfrentar, uma das boas coisas da vida que eu vejo também é enfrentar o desconhecido, o risco, é ótimo.Recolher