Entrevista de Eunice Porto
Entrevistado por Erik Araújo e Marcela Tripoli
São Paulo, 20 de abril de 2023
Programa Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1381
Transcrita por Transkriptor
Revisada por Larissa Mesquita Colejo
P/1- Primeiro eu gostaria que você falasse qual é o seu nome, a sua data de nascimento e onde você nasceu?
R- Meu nome é Eunice Maria Porto, eu nasci em oito de maio de sessenta e três, aqui em São Paulo.
P/1- Vou perguntar pra você como foi o dia do seu nascimento, e o porquê escolheram o seu nome.
R- Então, na verdade, o meu nome significa Bela Vitória. E a minha mãe me chamou de Eunice porque era o nome de uma tia dela, que era uma pessoa muito especial pra ela, e aí em homenagem a essa mulher ela colocou o mesmo nome. Mas eu sou filha de nordestino, e eu falo que nordestino às vezes quando dá pra ter um problema de criação ele coloca os nomes quase tudo igual (risos). Então minha mãe chama Cleonice, eu chamo Eunice, a minha irmã Aurenice. Ou seja, Eunice, a minha irmã chama Aure, e a minha mãe chama Cléo, porque é uma repetição daquela tia que ela gostava muito. Então é todo mundo praticamente com o mesmo nome…
P/1- De que lugar do Nordeste é?
R- É de Amargosa. A minha mãe é de Amargosa e o meu pai é de… Feira de Santana? Não… É uma cidade bem do interior… Mas olhar pra história deles é bem legal, porque quando eles começam a falar de como era a vida, de como eles começaram, então a minha mãe, ela conta… Eu posso falar assim tudo assim desse jeito?
P/1- Pode!
R- Ah, ok. A minha mãe, ela conta que quando eles vieram - eles se conheceram aqui em São Paulo - eu fui criada com esse nome mas com muitos estigmas, muitas coisas que eu achava que podia fazer e que não podia fazer, porque de acordo com toda a criação da minha mãe, que foi criada lá na Bahia… E o meu avô, ele tinha muito dinheiro, né? Então em torno da família da minha mãe, que era Cunha, tinha toda...
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Entrevistado por Erik Araújo e Marcela Tripoli
São Paulo, 20 de abril de 2023
Programa Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1381
Transcrita por Transkriptor
Revisada por Larissa Mesquita Colejo
P/1- Primeiro eu gostaria que você falasse qual é o seu nome, a sua data de nascimento e onde você nasceu?
R- Meu nome é Eunice Maria Porto, eu nasci em oito de maio de sessenta e três, aqui em São Paulo.
P/1- Vou perguntar pra você como foi o dia do seu nascimento, e o porquê escolheram o seu nome.
R- Então, na verdade, o meu nome significa Bela Vitória. E a minha mãe me chamou de Eunice porque era o nome de uma tia dela, que era uma pessoa muito especial pra ela, e aí em homenagem a essa mulher ela colocou o mesmo nome. Mas eu sou filha de nordestino, e eu falo que nordestino às vezes quando dá pra ter um problema de criação ele coloca os nomes quase tudo igual (risos). Então minha mãe chama Cleonice, eu chamo Eunice, a minha irmã Aurenice. Ou seja, Eunice, a minha irmã chama Aure, e a minha mãe chama Cléo, porque é uma repetição daquela tia que ela gostava muito. Então é todo mundo praticamente com o mesmo nome…
P/1- De que lugar do Nordeste é?
R- É de Amargosa. A minha mãe é de Amargosa e o meu pai é de… Feira de Santana? Não… É uma cidade bem do interior… Mas olhar pra história deles é bem legal, porque quando eles começam a falar de como era a vida, de como eles começaram, então a minha mãe, ela conta… Eu posso falar assim tudo assim desse jeito?
P/1- Pode!
R- Ah, ok. A minha mãe, ela conta que quando eles vieram - eles se conheceram aqui em São Paulo - eu fui criada com esse nome mas com muitos estigmas, muitas coisas que eu achava que podia fazer e que não podia fazer, porque de acordo com toda a criação da minha mãe, que foi criada lá na Bahia… E o meu avô, ele tinha muito dinheiro, né? Então em torno da família da minha mãe, que era Cunha, tinha toda uma história de que você precisa cuidar de algumas coisas no nível do invisível. Então ela conta que o meu avô teve um sonho uma vez, e ele teve um amigo que era muito amigo dele, e nesse sonho esse amigo morreu, e de repente esse amigo morre mesmo. Mas no sonho ele diz: “olha, tudo que eu tenho vai ficar pra você, e vai ficar num pote debaixo de um lugar X, na porta do espaço que fazia farinha, e você vai lá nesse lugar sozinho, meia-noite, tudo que está lá é seu”. Só que ele pensou: “ah, não vou sozinho, não, meia noite vou sair e não vou sozinho”, e chamou um amigo pra ir junto. Enfim, eles foram, chegaram lá naquele lugar, tinham algumas pessoas, então eles tiveram que ficar esperando mesmo dar a tal da meia-noite. O pessoal foi embora, era umas dez horas, dez e pouco, onze horas da noite e eles ficaram esperando… E quando levantaram realmente tinha, cheia de folhas. Aí eles falaram, “ah pegadinha isso aqui, o morto tava brincando com a gente, vambora, vambora!”. Passado uns dias, o meu avô foi pra Salvador, pra vender as coisas, porque eles tinham uma fazenda, então ele levava as coisas pra vender, e quando chega de volta o amigo sumiu. E quando passa uns dois ou três meses, esse amigo volta rico comprando toda a cidade. Então existe um mistério aí de em torno de onde veio esse dinheiro, de que milagre é esse que esse cara fez que enriqueceu da noite pro dia. E quando ele sai pra trabalhar, o amigo volta lá… Então essa é a imagem que fica, né? Alguma coisa aconteceu, porque não era pros dois terem ido, era pra ele ter ido sozinho, aí quando ele volta o amigo vai e pega tudo sozinho, e fala “ah, não vou contar mais nada pra você”, e ele acaba ficando com isso. Então o meu nome chama Eunice, e tem essa coisa da Bela Vitória, mas também tem uma coisa de romper com alguns paradigmas na família, né? Porque das histórias que eu sei, também da minha família por parte de mãe, principalmente, eles tinham… O meu avô, por parte da minha mãe, ele faleceu e isso foi o que fez com que eles viessem pra São Paulo e eles se conhecessem. O meu avô tinha… Lá o povo tem o hábito de beber, a tal da cachacinha, “joga pro santo”, enfim, tinha o hábito disso. Mas lá em Salvador, eu cresci com a minha mãe falando: “olha, não se aproxima de macumbeiro porque eles fazem mal”, e eu pensava, “o que que ela está falando com isso?”, porque eu nem sabia o que era. Minha mãe fez questão de nos criar na porta de uma igreja (risos), era atravessar a rua e nós estávamos dentro da igreja. E com o tempo eu fui entendendo o que ela quis dizer com isso, qual era o medo dela, né? Porque esse meu avô, ele estava num bar, e dentro desse bar uma uma mulher - que lá eles chamavam de Família da Costa, porque eram as pessoas do candomblé lá em Salvador, lá na Bahia - ela passou e falou: “fulano, você pode me pagar uma pinga?”. Ele falou, “não, eu não pago pinga pra mulher”, e aí ela falou. “ah, não? Então a partir de hoje, você não vai ter mão pra levantar um copo!”. E ele foi pra casa, e dali pra frente ele realmente não teve mão pra mais nada! E a minha mãe conta que ele ficou meses na cama sem conseguir comer, sem conseguir beber, ia nos médicos, os médicos não descobriam, não descobriam… Enfim, ele faleceu. Agora vocês imaginam que teve que vir ela, minha vó, minha tia menor - a minha mãe era mais velha - então elas tiveram que vir pra São Paulo porque estavam tão acostumadas com esse homem ali cuidando de tudo que elas não se viram com capacidade de cuidar de tudo aquilo, e elas acabaram vindo pro Brasil, né? Oh meu Deus, pra São Paulo! Desculpa… Então estar aqui em São Paulo foi o que propiciou que os meus pais se conhecessem. E toda essa história, todo esse esse lado místico de coisas que você não consegue explicar. De onde veio isso? Então eu fui criada com a minha mãe falando: “ó, cuidado!”, “ó, presta atenção!”... Enfim, cheio de coisas, de dogmas da Igreja Católica, cheia de preconceito, cheia de coisa que pode, do que não pode, do que você deve fazer ou do que você não deve fazer: “ó, não se aproxima muito porque fulano é macumbeiro”, “ó, não vira de costas”, “não faz isso, não faz aquilo”... E então eu fui criada dentro desse contexto, fazendo primeira comunhão, fazendo enfim todo o script da Igreja Católica, mas hoje eu tenho consciência que o que tinha por trás ali de todo aquele cuidado era o medo de que a gente vivenciasse o mesmo que o meu avô viveu, o mesmo que ela, a mesma dificuldade que eles tiveram durante todo o tempo de vir pra São Paulo - e aí eles foram morar na Vila Maria, e o espaço onde eles estavam alagava, enfim! Foi uma uma um início aqui em São Paulo bem difícil, né? O meu pai também veio de lá… E eu falo que se vocês conhecerem o meu pai, no documento ele vai fazer oitenta e seis anos agora em primeiro de junho, na prática ele deve ter quase noventa, porque ele veio pra São Paulo pela mão. Então, a criança pela mão, no mínimo, vem de dois a três anos, ou seja, se não tem noventa, está beirando. Mas uma disposição, um pique, uma agilidade pra fazer as coisas, que eu falo, “se eu chegar na idade dele assim nesse pique que ele está, eu vou me dar por feliz”, porque eu estou no Tatuapé agora, e ele mora em Interlagos. Ele vai e volta todos os dias de Interlagos até o Tatuapé pra me ajudar a molhar uma planta… Óbvio que se ele para isso, ele perde o sentido de vida, então ele vem e volta todos os dias nesse movimento. Tem hora que eu falo, “meu Deus, se eu tiver noventa eu quero ficar com a minha perna pra cima, eu não quero fazer tanta coisa!”, mas pra ele, ele fala “não, eu preciso trabalhar, isso faz parte da minha vida, eu não sou preguiçoso!”. E quanto a esse lugar, que você não pode fazer nada, de que você tem que trabalhar muito, de que você tem que fazer muita coisa, isso também tá conectado com a história dos meus ancestrais, né? Porque eu, durante toda a minha infância, embora eu tivesse todo um um olhar do catolicismo, enfim, de bater sino na igreja, tudo isso, chegou o momento em que eu falava, “isso aqui não me responde mais, isso aqui não me dá respostas”, “por que isso acontece?”, porque eu falava “está faltando…”, “porque é que as pessoas são assim?”. E eu olho e falo, gente eu era tão inocente com algumas coisas, que a religião ela trazia respostas pra mim até a página dois, e eu ficava no questionamento, “onde está três e a quatro, onde é que eu vou achar a resposta pra isso”, né? E quando eu perguntava as respostas eram assim, “você está querendo saber demais!”, e eu falava, “mas eu só quero saber o básico! Isso aqui pra mim não respondeu ainda!”... Então eu lembro que eu tinha uma coisa desde pequena que é quase como se fosse uma ânsia de entender mais, de saber mais, de viver mais, de entender o que que estava ali no nível do invisível e que as pessoas não falavam, que as pessoas não comentavam, que ficava no nível do segredo, que ficava num outro espaço em que as crianças não tinham acesso, em que as crianças não podiam olhar pra aquilo, em que era o proibido… E eu falava, “qualquer dia eu vou descobrir isso!” (risos), “qualquer dia eu vou saber o que é que os adultos falam, o que eles fazem e que a gente não pode saber”. Porque eu faço sessenta anos na semana que vem, então na minha época de infância, o meu pai olhava, eu pensava, “estou ferrada, eu vou apanhar!”, essa era a ideia. Não é igual as crianças de hoje que você olha, olha feio, pega o chinelo, quer matar ali na frente da pessoa e a criança finge que não é com ela (risos). Só de você olhar… Minha mãe olhava e ela falava, “deixa seu pai chegar…”, eu pensava, “meu Deus, vamos por dez calças jeans agora porque eu vou apanhar!”. E mesmo com tudo isso eu pensava, “eu vou crescer e eu vou descobrir coisas que eles não me contam”. Então eu penso que hoje, olhando pra tanto tempo aí de vida, eu lembro que, acho que eu tinha uns seis anos mais ou menos, e olha como as crianças eram podadas de demonstrar quem eram, de fato, eu tinha uns seis anos mais ou menos, seis pra sete anos… Antigamente as crianças entravam na escola pra fazer o primeiro ano, não tinha essa história de criança ir pro pré, primeiro, berçário… Não tinha nada disso! Ela vai pra escola com seis ou sete anos, seis anos e meio se completasse até o mês x anos, sete anos se fosse logo no início - eu faço em maio, então eu fui com seis anos e um pouquinho. E eu lembro que teve um momento lá na na escola que tinha uma escadaria grande, e eu estava ali comigo... Então eu fui descendo, pedi pra professora pra ir pro banheiro, e eu estava ali comigo pensando nessas coisas que não são explicadas de onde eu estou… Seis anos… Era louca, né? Coitada (risos)! Eu olhava onde eu estou, o que que isso tudo representa, o que que é isso pra mim… E eu lembro que tinha uma professora no pé da escada de braço cruzado: “o que você está fazendo aqui?, “você está com dor?”, e eu pensava, “por que ela está falando que eu estou com dor se eu estou aqui pensando só comigo?”. E aí ela, “você precisa de ajuda?”, “eu vou chamar a sua mãe, pra tua mãe vim te buscar”, porque ela achou que eu estava mal. Mas não é que eu estava mal, eu queria ficar sozinha… E aí eu pensei, “preciso mentir”, “eu não vou falar pra ela que eu estou aqui sozinha conversando com os meus pensamentos porque ela vai achar que eu estou louca!”. E aí eu falei, “não, é que eu estou com um pouquinho de dor de cabeça”, e aí ela falou, “ah, então vamos ali pra tomar o remédio”. Enfim, gente, tomei o tal do remédio sem precisar que era pra não correr o risco dela contar pra minha mãe, eu chegar em casa e apanhar! Enfim, e aí você vivia muito essa coisa do medo, da pressão de você poder fazer algumas coisas e de você não poder fazer algumas coisas. Então eu fui criada dentro desse contexto em que professores eram autoridades, então se você chegar em casa e você falar que a sua professora era feia, você levava um sermão e esculacho, se não apanhasse, que era a pior coisa do mundo! E eu não fui criada com meu pai, ele não era de bater o tempo todo, mas tinha momentos que ele era fora da casinha, mas ele tinha uma coisa que também era a fala dele, era pior do que bater. Porque antigamente ele sentava e ele falava - se minha mãe falasse, “tem uma coisa pra te contar” - ele falava, “senta aí e vamos desligar a televisão!”. Não tinha coisa de dar bronca em filho com a televisão ligada, assistindo televisão, comendo… Não, não! Senta todo mundo na sala, “que aconteceu?”. E eu pensava “lascou agora”, né? Então tinha esse espaço de família, de educação, de fato, de olhar pra você, mesmo que depois, hoje olhando aos sessenta - na época a minha criança não gostava nada disso - mas hoje eu olho e eu penso que eu tive uma estrutura boa de família, de cuidados e de poder confiar que eu estava num lugar seguro. E mesmo com tudo isso que eu vivi aí durante todos esses anos, isso traz marcas muito profundas pra essa mulher de sessenta, que se eu não tivesse cuidado, feito terapia, olhado pra algumas coisas, mesmo com todos esses cuidados dos meus pais, eu vivi algumas situações que não foram muito fáceis. E hoje eu lembro, e em alguns processos terapêuticos aí pela vida, eu fico lembrando e eu penso: “ele fez o que ele sabia”. Então quando eu tinha mais ou menos uns… oito anos? É, mais ou menos uns oito anos, porque eu já morava em Interlagos. Só que o que era? A gente não tinha essa vida que vocês têm hoje, em que você tem que ter muro de três metros, caco de vidro em tudo quanto é canto, você tem que viver morrendo de medo de ficar circulando. Não era assim. Então os muros eram feitos de madeira assim baixinho, você não tinha esse desrespeito, essa invasão do espaço do outro. Então a gente brincava, era uma caixa de água, a gente subia na caixa d'água, eu e a minha irmã, no registro de água, e a vizinha do lado - o muro era tão alto que a gente brincava pelo muro. E eu já estava na escola e eu lembro que passou um Fusca e o homem falou assim: “você conhece o Colégio Beatriz Lopes?”. Eu falei, “eu conheço, é a minha escola”, ele falou assim, “você não quer me levar lá? Porque a minha filha estuda lá e eu tenho um presente pra dar pra ela, mas eu não sei onde é”. E aí ele falou assim: “ó, vem ver, é uma boneca!”, e aí eu fui lá no carro e tinha uma boneca no banco de trás. E ele falou assim: “ó se você me levar lá eu te dou uma boneca também”, e aí eu olhei pra esse homem e eu falei, “vou ganhar uma boneca, eu vou pedir pra minha mãe”, só que hoje eu olhando ele estava com o pinto de fora. Mas pra mim era só um pinto. Era um homem pelado que tinha de mal ali o homem pelado. A boneca foi o que eu vi e aquilo pra mim simplesmente não teve importância. E aí eu olhei e eu falei pra ele, “eu vou pedir pra minha mãe”, e saí pra pedir pra minha mãe (risos). Quando eu chego lá no fundo ela tá lavando a roupa: “você vem pra dentro agora!”. E aí nisso o cara pegou o carro e foi embora! Enfim, minha mãe foi lá, tirou eu, tirou minha irmã, e “vocês vem pra dentro agora e quando o seu pai chegar eu vou contar!”. Eu pensava, “ela vai contar o quê?”, “eu não fiz nada, eu não fui nem com o homem, ele não deixo”... Se ela ela não tivesse ali, muito provavelmente eu teria ido embora com aquele homem, porque eu não vi maldade. Eu pensei, “a braguilha dele está aberta”, eu nem imaginava. Oito, nove anos, enfim… E aí à noite meu pai chega. Quando ele chega, terminamos de jantar, agora apaga a televisão. Pensei, “eu não fiz nada”... E aí meu pai falou assim: “você sabe o que poderia ter acontecido hoje?”. Até me emociono… Eu me emociono porque eu penso que bom que eu tive um pai presente, sabe? Aí eu falei, “não podia ter acontecido nada”, e ele falou assim, “você podia ter morrido”. Aí eu pensei, “como poderia ter morrido?”, “o homem tava com uma boneca lá atrás”. Aí ele falou: “sabe que nome tem essas pessoas?”, “não”, “esses homens são estupradores!”. Ele falou assim, “se você tivesse entrado nesse carro, você não teria voltado!”. Na hora eu levei um choque porque eu nunca pensei naquilo. E aí não pensar naquilo, quando ele fala, é como se eu pensasse, “meu Deus do céu, o que eu poderia ter feito comigo?”. E aí vou pensando hoje o quanto as crianças estão em situação de vulnerabilidade, indo e voltando de casa, se expondo a isso na internet, enfim, em todos os canais… E elas não têm muitas vezes quem diga pra elas o risco que elas estão correndo, né? E o efeito disso na minha vida, porque embora ali ele falou aquilo pra mim - depois num processo, enfim… - eu percebi o quanto aquilo me fez me fechar e não confiar mais nas pessoas, porque aquele homem que estava ali, tão inocente, na minha cabeça, tão cheio de boa vontade, se ele era uma pessoa perigosa, então eu não posso confiar em todo mundo. E meu pai falava, “olha, aqui dentro de casa você está protegida, lá fora você tem que brigar o tempo todo e você não pode confiar nas pessoas”. Então foi nesse espaço que o meu pai construiu essa identidade de quem eu sou, de “oh, não confia em tudo que você ouve lá fora, não acredita em tudo que você vê”. Então eu passei muito da minha adolescência, da minha parte mulher madura mesmo, com esse pano de fundo, sem ter a menor consciência do impacto que teve na minha vida. E hoje eu fico imaginando, aquele homem sabia o que ele estava fazendo né? Mas aquela menina de nove, dez anos - se eu tivesse dez era muito, gente, não lembro assim ao certo - mas eu sei o impacto que teve aquela, aquela reação, aquele movimento e aquele momento que o meu pai acende aquilo como possibilidade, é como se eu falasse, “meu Deus, eu tive uma outra oportunidade de nascer”, eu nasci de novo, eu tive uma outra oportunidade de ter uma vida diferente. E pensar no quanto tantas coisas estão acontecendo aí com as nossas crianças expostas. Eu fico pensando o quanto a gente precisa ser pais melhores pros nossos filhos, pra mostrar pra eles que eles podem confiar nas pessoas sim, mas eles precisam confiar primeiro no que está dentro de casa, e o quanto os pais precisam estar mais presentes na vida dos filhos mostrando riscos. Não mostrando riscos no sentido do meu pai - do jeito que ele fez ali, se eu tivesse problema cardíaco eu tinha morrido ali na hora. Mas esse foi o jeito dele de dizer, “acorda!”, “você não está no país das maravilhas!”, foi bem isso que ele falou. “O mundo cor-de-rosa é só aqui dentro, lá fora é um monte de gente que não presta!”. E desconstruir essa imagem e começar a olhar pras pessoas e falar, eu cuido da minha menina agora, e como adulta eu posso confiar nas pessoas e desmisturar esses dois lugares daquele pai que protegeu da forma que ele sabia, do jeito que ele conhecia e que ele entendia ser a forma de que assim elas não vão duvidar, elas não vão se colocar mais em risco. Foi uma desconstrução de anos pra poder olhar pras pessoas e falar que existem pessoas confiáveis ainda... Eu não preciso ficar fechada, eu não preciso me fechar o tempo todo pra isso, pras relações, pras pessoas e pro mundo, né? Porque quando uma pessoa passa por um nível de abuso… “Ah, mas você não foi abusada”. Sim, isso é abuso. A gente confunde, a gente passa a vida confundindo o abuso com amor. A gente passa a vida confundindo aquilo que aquele homem fez, aquele ato que foi extremamente abusivo e que na época eu não tive a menor noção, a gente passa cuidando disso e atraindo situações que continuam marcando e fazendo com que a gente acredite que abuso é comum, A gente confunde abuso com o abusador, e se é uma pessoa próxima a gente confunde aquilo, e a gente não sabe. Isso aqui que eu estou vivendo, com um parceiro, com uma parceira, na fase adulta, isso é amor ou isso aqui é abuso? Hoje eu atendo pessoas adultas que misturam uma coisa e outra, e que permite viver ano após ano relacionamentos extremamente abusivos, porque lá na infância viveram isso. E aqui na mente fica uma coisa de, “eu não entendo”. O que é abuso? Até onde é abuso? Até onde é amor? O que que desmistura isso né? Mas apesar de tudo isso eu tive uma infância muito boa. Eu gostava de dançar, eu gostava de cantar, eu gostava de fazer coisas… Eu me chamo Eunice Maria, mas a pessoa era tão exibida - por isso que eu não tenho problema aqui com as câmeras - que a minha mãe me chamava de Cidinha. Pensa que cada vez que ela me chamava de Cidinha - eu não sei se é da época de vocês, mas eu tenho lá na minha história uma coisa que assim, se você virar chinelo pra mãe e o chinelo fica lá, ela morre. Hoje eu dou muita risada, que eu falo, “mãe, ainda bem que não funciona, porque eu virei foi muito chinelo pra você!”. Porque eu falava, “gente, não é possível tudo que eu faço está errado, ela vive me dando bronca”. E quando ela me chamava de Cidinha na frente dos outros, eu queria matar ela! E aí eu ia lá, virava o chinelo: pronto, ela vai morrer hoje! Eu olhava falando, “esse negócio não funciona” (risos). E hoje eu olho pra minha mãe e falo, “mãe, ainda bem que não funcionou!”. E foi muito engraçado porque no Instagram eu entrei outro dia, e tinha um cara e ele falava assim, “olha eu correndo pra salvar a vida da minha mãe” - eu não sei se vocês viram - e aparece o cara subindo um monte de escada e quando ele chega lá em cima os dois chinelos estão virados (risos). Como eu fazia com a minha mãe, eu falei, “mãe, olha aqui o que eu fazia com você!”. E isso foram muitas vezes, porque essa coisa de de mostrar, e eu falava, “gente, existe alguma coisa aqui dentro de mim que precisa ser passado pras pessoas”. Eu não sabia o que era, eu não sabia como, eu pagava pra não ter inimigos, eu pagava pra não ter briga, eu pagava pra não ter conflito... Sabe uma coisa, “ah, sou taurina”, então o taurino pra brigar precisa muito! Pago pra não entrar, mas quando entro, pago pra não sair! E taurino é preguiçoso até pra brigar, né? Então a gente acha que é de paz, mas não. Pela preguiça, pra não estar causando: “ah, é verdade?”, “ah, então tá, então deixa pra lá”... E eu era isso. Então sempre tive muitos amigos, sempre eu fui muito rodeada de pessoas desde pequena. Então a minha mãe fala que quando eu era bebê, eu andei com nove meses. Ó a pressa da pessoa! Falei mais ou menos com um ano, de falar tudo! E ela fala que aquele serzinho que não fazia nem sombra no sol andava pelas calçadas com ela pela mão, ou pelo meu pai, e dando banana pros cachorros, cumprimentava todo mundo, dava banana pros cachorros, enfim. Então eu sempre tive essa coisa de comunicar, de falar pras pessoas, de “está tudo bem com você?”, de encontrar pessoas na rua e falar, “você está boa?”, e de cuidar das pessoas, e de trazer pras pessoas, muitas vezes quando elas não estavam bem, essa coisa de “vem aqui que eu vou cuidar de você”, “vem aqui, não chora”. Enfim, essa coisa de dar atenção pras pessoas, né? Então, à medida que eu vou lembrando aí desse passado, eu vou vendo quanto os pais precisam mais cuidadosos nessa criação desse serzinho que vem com o espírito pra ser seu filho ou pra ser sua filha. Eu falo que se a vida é uma escola, a primeira sala de aula é a família. Então, muitos desafios acontecem aí. Se existem esses desafios e eu aceito esse serzinho como meu filho, como minha filha, qual é o aprendizado que eu tenho enquanto mãe? Qual é o aprendizado que eu tenho quando eu escolho um homem pra ser o pai dos meus filhos? Presente ou ausente, não importa, mas existe um aprendizado dentro dessa família. Mesmo porque o meu pai é hoje um super vozão, mas como pai ele também não foi muito presente. Ele entrou no sindicato de bancários, ele sempre foi sindicalista. Então dentro desse lugar de sindicato ele sempre foi muito ausente, mas ele vinha, sempre foi o tal do modelo do homem provedor. Então a minha mãe não trabalhava, e ela cuidava de nós, e quando ele chegava, ele era aquele que punha ordem. Mas como é que ele punha a ordem? Muitas vezes sentando e conversando, e aí só na conversa a gente caía em lágrimas, né? Eu lembro que às vezes a gente estava brincando na rua, e ele chegava às dez da noite. Qual era o limite de rua? Super perigosa a rua… O que podia passar de perigoso? Um carro ou uma bicicleta. Só isso, eventualmente (risos). Morava lá no fundão de Interlagos, era o fim do mundo. Não tinha nada ali, ou seja, não passava nada! Mas ele chegava dez da noite, e acho que ele perguntava pra minha mãe, “cadê as meninas?”, “ah, estão brincando ali de queimada”, enfim, estava ali na rua, não tinha nada. E aí quando ele vinha com a mão aqui pra trás, a gente já olhava e pensava, “lá vem o pai com a cinta”, e era com a cinta. E aí a gente vinha pra casa apanhando, e aí eu falava, “meu Deus do céu, não é possível, não precisava disso”. Então hoje eu olho pra esse modelo de pai que como o avô é um super vozão, mas como pai essa era a forma que ele tinha de achar que ele ia manter a autoridade ausente. E eu olho hoje tantos jovens, tantas pessoas que eu cuido, porque eu sei o que é isso, né? Então eu posso olhar pra isso e pensar que o meu pai foi um pai mal, como eu posso olhar pra isso e falar que o meu pai tinha alguns desequilíbrios. Ele não era alcoólatra, eu não lembro de ver meu pai na infância em momento algum bêbado, não lembro! Começou a beber depois de velho, entendeu? Mas eu não fui criada com esse modelo desse homem que molha as palavras com álcool o tempo todo. Eu tinha um pai que sempre estava sóbrio. Então o que quer que ele fizesse, a gente não tinha essa desculpa de “ah, o papai está de fogo”. E eu vejo pessoas, eu atendo pessoas que chegam e falam: “eu não lembro de o meu pai chegar um dia sóbrio”, “eu eu tinha que me esconder dentro do guarda-roupa, eu tinha que me esconder embaixo da cama”. Eu não lembro disso, eu não sei o que é, mas eu sei o que é tá brincando inocente, e aí chega alguém e me bate, que é um pouco dessa relação de abuso, do que eu vivi lá aos oito anos. Não saber como é que essa pessoa vai chegar no dia seguinte, se ela vai chegar bem e vai falar “vambora”, ou se ela vai chegar te batendo, se ela vai chegar brigando.... Então eu fico olhando hoje pra toda essa construção, e falar isso aqui pra vocês é bom, porque eu consigo relacionar isso com muito da minha vida afetiva. Eu nunca apanhei de homem nenhum, mas eu vivi um relacionamento aí por muitos anos num nível de abuso que eu não sabia nem como é que ele ia chegar a noite, se ele ia chegar de bom humor, se ele não ia chegar de bom humor. E quando eu olho agora, contando pra vocês, e fazendo essa essa linha aí do tempo, eu penso o quanto isso é uma repetição, de você atrair pessoas que repetem esse modelo construído lá na infância, e que a gente traz isso como sendo normal. Não, não é normal. É uma construção que foi minha, mas que não tem nada de normal. Então lembrar disso: eu brinquei muito na rua, brincava de casinha, brincava de tudo… e não tinha essa maldade que tem hoje. E eu também não prestava muito, né? Porque eu lembro que a minha mãe… A gente tinha uns vizinhos, então lá em casa era… Eu penso, “meu Deus do céu, só a minha mãe mesmo”, “ainda bem que o chinelo não funcionou” (risos). Mas eu lembro que a gente tinha uns vizinhos, e eram dois meninos, e a gente tinha nove, dez anos, e aí era minha irmã, ela era um ano mais nova que eu, e meu irmão sete anos mais jovem do que nós duas - então tinha uma diferença boa de idade entre nós. E quando a gente entrou na fase de descobrir o corpo, o meu pai ia jogar truco na casa deles e a gente ficava brincando… E aí eu lembro que a minha mãe falava às vezes pra minha irmã, “a Nice ficou brincando de alguma coisa?”, e a minha irmã falava, “mãe, a Nice deixou o menino ficar mexendo na perereca dela”. Eu falava, “mas qual o problema ser gostosinho?”, “por que ela está me dando bronca?”. E aí eu fico olhando o quanto enquanto criança aquilo pra mim - eu penso, “gente, eu era tonta” - não tinha maldade nenhuma naquilo que eu estava fazendo, mas ela falava, “você não tenho vergonha, você vai apanhar”, e apanhei muitas vezes porque ela achava que aquilo era um absurdo, “você não vai mais lá!”, eu falava, “mas a gente está brincando de médico, a gente não está fazendo nada”. O medo dela era que eu me perdesse, gente… Nove, dez, onze anos, era descoberta do corpo, era descoberta da vida, era descoberta do prazer mesmo. E ali não tinha coisa de, “ai, vou engravidar”, nem sabia o que era isso, nem imaginava… Pra vocês terem uma noção, quando eu tinha uns catorze anos eu fiz a primeira comunhão, e eu lembro que estávamos todos na sala, um monte de jovens, e o padre falou assim: “todo mundo sabe aqui o que é puta que pariu?”. E aí eu pensei, “eu não vou falar nada!”. Aí ele falou assim, “puta todo mundo sabe o que é, né?”. Eu fiquei quietinha… Catorze anos. Aí ele explicou o que era “o que pariu”. “Puta” ficou sem eu entender. Ou seja, eu não entendi o palavrão. Treze, catorze anos, e eu não tinha a menor noção do que era. E aí o que que eu fiz com isso? Os meus filhos foram criados, eles iam pra escola, eles vinham falar um palavrão: “senta aqui e eu vou te explicar o que é esse palavrão”, “é isso, isso, isso, isso, entendeu?”, “entendi”. A partir de agora, se você falar você apanha (risos). Então eles sabiam o que era, não ficou igual besta igual eu com treze, catorze anos, sem entender o que era um palavrão. Mas hoje eu fico olhando e a minha geração era muito inocente com relação a algumas coisas. Eu fico pensando: será que era a minha geração? Será eu que era tonta mesmo? Mas ficou aquela imagem de que muitas coisas eu via com ar de inocência, eu não via com essa maldade que os meus pais viam, com esse ar de perigo, de que tem que cuidar. É só um toque, é só sentir meu corpo. Isso não tem nada… Qual problema que tem isso? E realmente na minha cabeça não tinha nenhum problema. Enfim, eu tinha mais ou menos uns dez, onze, e era sempre assim, e eu lembro que eu apanhava… Eu apanhei muito porque as pessoas faziam as coisas e a gente brigava. Eu brigava com você, depois eu pensava, “ah não vale a pena”, “eu vou voltar a ser amigo dela, vou voltar a ser amigo dele”, “não vou ficar de mal, não!”. Antigamente brincava de mal, pegava o dedinho: “estou de mal para sempre!”, “belém, belém, nunca mais estou de bem”, mas nunca mais pra mim era pouco tempo, daqui a pouco eu já ficava de bem, não precisava ficar de mal o tempo todo. Só que a minha mãe, ela falava, “você brigou com fulano?”, “briguei”, se no dia seguinte estava de bem, ela falava, “pois você vai apanhar pra largar a mão de ser sem vergonha”, “vocês brigaram e isso, isso, isso, isso, você vai apanhar pra você criar vergonha na cara porque as pessoas fazem isso…”, e às vezes fazem algumas coisas que não era legal. E aí na cabeça dela eu deveria ter uma postura diferente, ou seja, se você me xingou, se você me expôs, se você fez coisas que não são legais, eu não deveria ficar tua amiga logo. Mas na minha cabeça eu pensava, “ah, ela não sabe fazer diferente”, sabe tipo café com leite? Essa pessoa não sabe o que ela está fazendo… Então eu não me incomodava com aquilo, eu pensava, “isso é muito pouco pra eu estar ficando de mal dessa pessoa que não sabe o que ela está fazendo”, ela não sabe, ela não tem noção de que aquilo não foi bom pra mim, mas está tudo bem também que nem doeu tanto, né? Não é algo que eu vou ficar me masturbando e pensando, pensando, pensando que aquilo não é legal. Deixa ela ficar com o que é dela e eu com o que é meu. Então isso é algo que eu também ainda faço hoje, sabe? De olhar pras pessoas e de pensar que as pessoas não sabem muitas vezes o que elas estão fazendo, nem o impacto que o que elas falam ou fazem provocam em mim. E quando eu olho muitas vezes eu falo que ninguém sabe o que não sabe, então não adianta eu cobrar de você o que você não acha que é ruim, o que você não sabe que é ruim pro outro, porque as pessoas não são más o tempo todo As pessoas acabam se relacionando muitas vezes umas com as outras a partir desse modelo de pai e mãe, a partir desse modelo dessa criança que está aqui dentro de mim. E não é porque eu sou ruim, eu faço aquilo porque esse é o modelo, isso foi o que eu vivi, isso é minha história, esse é o jeito que eu aprendi a lidar com você. E muitas vezes o chato é chato porque ninguém falou pra ele, né? Então hoje eu acho que é mais fácil eu chegar e falar, “meu, eu não gostei disso”, “isso pra mim não foi legal”, “eu me senti…”, e falar pra pessoa, do que virar as costas e ficar de mal, e a pessoa nem sabe… Ela vai continuar fazendo aquilo com outras pessoas achando que tá agradando, achando que tá dentro da razão dela. E está dentro da razão dela, porque ninguém nunca falou que o que ela faz me machuca, que o que ela faz me diminui, que o que ela faz me deixa triste. E quando ela sabe, ela tem o poder de escolher se ela vai continuar fazendo mais do mesmo, ou se ela vai mudar. E eu também tenho o poder de escolher se eu quero você na minha vida, você continua fazendo aquilo, ou se eu vou continuar fingindo que eu não estou vendo, né? Então esses movimentos de vida de trazer essa infância com tudo que eu vivi e trazer isso pra hoje me remete a esse lugar de: muitas vezes a gente acha que a gente está se relacionando com uma mulher ou com um homem de quarenta, cinquenta, sessenta, oitenta anos, quando na verdade muitas dessas coisas que a gente faz remete pra toda essa infância, pra toda esse histórico de coisas que eu vivi aí. E que, em muitos momentos, se não fosse tanto trabalho de autoconhecimento, quando a gente olha, a gente faz exatamente igual, a gente se fecha pras relações, a gente se fecha pessoas, e aí sim a gente dá um passo atrás: espera aí, quem é que está no comando da minha vida agora? É a mulher de sessenta ou é a criança de cinco, seis? É essa mulher que está esperando apanhar do pai, ser abusada e não confiar nas pessoas, essa criança que sabe que ela vai confiar e a noite ela vai levar bronca ou ela vai apanhar do pai? Ou é essa mulher que fala: “não, peraí, existem pessoas confiáveis!”, não é porque existem pessoas que não podem ser confiáveis, porque elas também não sabem o que é isso, que todo mundo é igual. Existem pessoas que vale a pena você estar junto, porque se a gente olhar pras pessoas hoje, se a gente achar que todo mundo é ruim, que você tem que se cuidar o tempo todo, que você não pode confiar em ninguém, o que vale a pena viver, né? Do que que vale a pena você ficar aí tanto tempo no mundo se você não tem minimamente a confiança de que vale a pena estar na relação com o outro? E o que mais é a vida se não é essa relação? Enfim, quando eu tinha uns catorze anos mais ou menos, eu lembro que o meu pai era o único que trabalhava, e eu falava pra minha mãe… quando ele entrou no sindicato… a gente tem um modelo, um estereótipo do homem preto, que ele tem que ter as mulheres, que ele tem que ter várias mulheres. Então quando eu tinha mais ou menos uns quinze anos, eu lembro que, uns catorze anos, eu lembro que tinha um passarinho, meu pai tinha ido viajar e ele trouxe um pássaro preto, muito bonitinho o passarinho. E a gente brincava, aquele passarinho ficou lá dentro daquela gaiola, e uma vez a minha mãe saiu com meu pai, e quando eles saíram, minha irmã olha pra mim e ela fala: “Nice, o passarinho está morrendo!”. E eu olhei pra aquele passarinho, e eu peguei ele da gaiola, porque ele estava todo tonto, todo cambaleando ali, e eu tirei aquele passarinho, e eu pus ele na minha mão, e eu falava: “não morre ainda”, não chegou teu tempo, não morre ainda”... E eu fiquei segurando, segurando, segurando aquele passarinho. E aí chegou o momento que ele começou a mexer aqui na minha mão, e aí eu pus ele de volta. Parecia que não aconteceu nada com o passarinho, e aí eu falei, “ah vai ver que ele comeu alguma coisa e não fez muito bem pra ele…”. À noite a gente acorda com meu pai gritando, com a minha mãe, “não me deixa morrer!”, como um assassino. E eu olho pra minha mãe, a minha mãe está igualzinha ao passarinho, cambaleando na porta. E eu falava, “minha mãe está morrendo”. E aí eu lembro que eu fiz a mesma coisa que eu tinha feito com o passarinho. E eu lembro que o meu pai saiu de perto e, enfim, eles tinham discutido - os meus pais eram daqueles que falavam que roupa suja se lava em casa - pra sair do quarto e chegar lá na sala, naquele nível, é sinal de que a coisa tinha sido muito grave. Eu não lembro de vê-los brigando desse jeito! Mas aquele dia eu olhava e falava, “meu Deus, a minha mãe está igualzinha ao passarinho, e se eu não fizer alguma coisa ela vai morrer!”. E ali foi onde eu tive contato novamente com o invisível, com esse lado espiritual em que a minha mãe fez questão de falar: “tenha medo, não confia, porque as pessoas são más”. E eu falava que esse passarinho que o meu pai trouxe tem alguma coisa, e ele representou alguma coisa, porque a minha mãe fez igualzinho. Enfim, dali pra frente eu comecei questionar religião, eu comecei a conversar com Deus, e eu falava: “se existem outras coisas que eu preciso saber, você vai me mostrar”, porque eu não vou ficar aqui ouvindo isso a minha vida inteira sem saber resposta de tudo isso que eu estou vivendo, e de tudo isso que está acontecendo aqui. Eu devia ter uns treze pra catorze anos, e eu falava pra ela, “mãe, vai embora”, “a gente vai começar a trabalhar”, e eu lembro que eu falava, “eu não quero mais depender do meu pai”. E eu lembro que com uns onze anos eu já saí, eu peguei coisa de manicure e eu saía nas portas: “você não quer fazer sua unha?”. E eu tinha algumas clientes, eu ganhava lá o meu dinheiro… Eu lembro que um dia, a gente morava atrás dos muros da igreja, que era na frente de casa, tinha um monte de entulho, e eu lembro que chegou um dia que tinha um monte de papel de carta, um monte de envelope de carta cheia de selo. Eu falei, “olha, vamos tirar o selo, vamos vender esses selos”. Arrancamos todos os selos, pegamos o selo, colocamos no saquinho e saiu pra vender na vizinhança. Até que uma falou assim, “isso aqui é crime”, “você sabia que você pode ser presa?”, eu falava, “Aure, a gente pode ser presa, vamos jogar isso tudo fora antes que a polícia veja!’. Olha a inocência (risos), nunca que ia haver aquilo! Enfim, a mulher fez isso, tirou o dinheiro. Ela deve tá morta, né? Eu num vou nem falar nada agora. Mas ela tirou o dinheiro, tirou doce da boca da criança (risos)! A senhora podia ter colaborado, ter dado dinheiro ali pra manter aquilo, mas não… Então essa coisa de querer autonomia, de buscar liberdade financeira, de não depender tanto do meu pai, veio muito de um lugar de olhar pra minha mãe, de olhar pra minha mãe chorando muitas vezes e falar pra ela, “mãe, por que que você não larga esse homem?”, “por que você não vai fazer alguma coisa?”, “deixa ele seguir a vida dele”. E quando aconteceu isso eu já trabalhava, eu acho que eu já estava nas Lojas Americanas, e eu falei pra ela, “mãe, larga ele!”, “vai viver tua vida”, “a gente está junto, a gente te ajuda!”. Óbvio que - gente, minha mãe fez oitenta e cinco anos - não era isso pra cabeça dela, mas na minha cabeça, “meu, se você está infeliz larga ele, deixa ele viver a vida dele e vai viver a tua”. Mas quando a gente pensa que uma mulher, muito hoje até, dentro dum modelo de que ter a família tem que ser uma família doriana, nem que seja um modelo falso, pra ela era impossível imaginar que ela iria separar do meu pai. E qual era o medo dela? “O que que vai ser os meus filhos?". Ela tinha um modelo de família, dos meus tios, e, que um na época tinha virado travesti, uma outra tinha virado prostituta, um outro tinha enlouquecido, e o outro virou psicólogo pra cuidar dos loucos da família (risos). Então pra ela, na cabeça dela, uma família sem o homem ficava perdida! Então ela pagou o preço pra ter aquela família e o suposto equilíbrio dos filhos. Então esse foi o preço que ela pagou a vida inteira de manter essa relação com o meu pai… E está com ele até hoje, entre tapas e beijos! Ele fica doente e ela vai e cuida, mas quando os dois estão bem, saudáveis, aí eles brigam, e um fala mal do outro… Eles nunca se bateram, nunca chegou nesse nível de desrespeito, mas pra eles está ruim mas está bom, sabe? E hoje eu olho e penso que eles que se entendam, porque eu não tenho nada a ver com isso, eu não preciso construir história igual a deles… Mas quando eu lembro, a gente como jovem tem uma imagem de que a gente sabe o que é melhor pra nós, e aí dentro de catorze, quinze anos, eu tenho certeza que os meus pais não sabem nada, porque se eles soubessem, eles se separariam, cada um ia viver a vida deles. Mas não, eu não sei nada! Catorze, quinze anos, eu não tenho a menor noção do que é valor pra eles, o que é importante pra eles. E esperar que eles façam as coisas do meu jeito aos catorze, quinze anos, é se achar demais… Quando na verdade eles são grandes, eles me deram a vida, eles sabem o que é bom ou não, dentro da perspectiva deles, dentro dessa coisa de honra aos meus avós e a toda essa história eles construíram, né? Então quando eu vou lembrando dessa idade de catorze, quinze anos, eu lembro que eu também não saía. Então não tinha essa coisa de ir pra festa, de ir pra noitada… Não tinha. Eu comecei a ir pra festa quando eu tinha uns dezesseis, dezessete anos, festinha, bailinho de família na garagem de casa, baile de garagem. E eu lembro que na época meu meu irmão devia ter uns seis, sete anos, eu lembro que eu fui em uma festa - pra trabalhar eu podia, mas pra ir pra festa assim, não podia não. E aí o meu meu pai deixou a gente ir, mas dez horas em casa! Deu dez horas, o povo estava chegando (risos). Quem é que queria ir embora? Eu não queria ir embora, eu queria continuar dançando ali. Daqui a pouco vem meu irmão mexendo na minha saia. Eu pensei: “não é possível que ele está fazendo isso, não é possível que meu pai fez isso”. Enfim, eles vieram, e aí trouxe meu irmão, “vai lá buscar sua irmã”, e ele ali na minha saia, eu dançando, e ele, “o pai está te chamando, o pai está te chamando!”. Eu não sabia se eu queria matar ele que estava ali me fazendo pagar aquele mico, ou se era meu pai que estava lá fora pra me tirar da festa no melhor da festa. Então tinha essa coisa de dez horas em casa. E então eu comecei a ter uma uma abertura pra sair eu já tinha dezoito anos, não era essa coisa que os jovens hoje começam a ir pra balada sozinho com doze, treze, catorze anos. Não tinha, eu não era assim, eu não vivi isso. Então aos dezoito o meu pai deixava, mas muitas vezes ele levava, esperava, às quatro da manhã ele voltava, e ele ia e pegava a gente de volta de onde a gente estava. A não ser que o pai de alguém ou que irmão de alguém ou que alguém fosse buscar, mas se não vai buscar ele pegava o Fusca. Então ele ia lá e pegava e trazia a gente pra casa. Então eu não vivi isso… Então olhando pra esse contexto, ninguém é perfeito, né? Então quando a gente pensa, quando eu olho pro meu pai hoje, que ele está bem vulnerável, então ele anda de Interlagos até o Tatuapé todos os dias, mas o corpo já está meio arrastado, às vezes ele esquece as coisas… E eu vou olhando, eu penso: essa é a finitude da vida. O quanto ele construiu de coisas boas, o quanto ele vai repetindo às vezes feitos, viagens do sindicato, o quanto ele era importante, o quanto pra ele isso ainda é importante, pra mostrar que a vida valeu a pena. Ele fala dos filhos e ele fala dos netos pro mundo! Se ele chegasse aqui, ele falaria do meu sobrinho que está em Manaus fazendo medicina, que é a segunda universidade dele. E ele contaria pra vocês a vida de todos os netos, porque os netos dele são o melhor: um é advogado, o outro é não sei quem… Enfim, uma coisa de orgulho, quase como se fosse: ele também é um Porto, que é o sobrenome, ele também faz parte, e tudo que eu fiz da minha vida valeu a pena. E é quase como se fosse assim, agora vocês que lutem aí pra tirar as marcas que ficou pela vida, porque se ele for olhar pra tudo num contexto maior, valeu a pena do jeito que ele fez. Valeu a pena! Não tem nenhum que tá aí preso, não tem ninguém aí matando, nem roubando ninguém… Viraram todos homens de bem. Então nesse sentido valeu a pena. Então aos dezoito anos, mais ou menos, deixa eu ver… Eu casei aos vinte e três…. Aos vinte e três anos…
P/2- Posso fazer uma pergunta sobre relação de você com seus irmãos?
R- Pode.
P/2- Como que era?
R- Meus irmãos: eu tenho a Aure, que é um ano mais nova que eu, e eu tenho o caçula, de sete anos. Com a Aure era boa até a página dois, porque ela era filhinha da mamãe, e eu era a filhinha do papai. Eu sou a cara, eu sou muito parecida com o meu pai, e a Aure é a cara, é muito parecida com a minha mãe. E a sensação que eu tinha lá na infância era que a minha mãe protegia a Aure, e o meu pai era o que tinha que me proteger. Então a outra coisa que é legal - ainda bem que você perguntou isso… Eu fui criada pela minha mãe e pelo meu pai, mas a minha avó materna adotou uma filha com um bebê, e ela tinha uns dois ou três anos a mais do que eu. Então ela, a Helena, chamava a minha avó de mãe. Porque era mãe dela. Então quando eu nasci, eu também chamava a minha avó de mãe. Então vocês imaginem que dentro dum lugar de hierarquia, se a minha avó era a minha mãe, a minha mãe era a minha irmã mais velha. Então vocês imaginem que a gente cresceu aí, e eu sempre chamei a minha avó de mãe até ela morrer, até eu conhecer a constelação familiar, até nisso a minha avó era minha mãe. Então durante todo esse tempo, na minha relação com a minha irmã, a Aure era muito mais certinha do que eu, entendeu? Eu estou falando a história do menino, ela não brincava com os menino, ela não fazia aquilo que eu fazia (risos). Então ela era muito certinha, filhinha da mamãe. E eu era perdida, a filhinha do papai. Então, a gente brigava muito. Eu lembro que… Meu, eu era o cão, gente, eu não era gente (risos)! Mas eu lembro que a minha vó morava aqui no Jardim Três Marias, aqui em São Paulo, e os meus pais moravam em Interlagos. Então todos os domingos a minha mãe fazia comida pra todo mundo, pegava o Fusca, vinha lá do teco-teco, de lá de Interlagos até o Jardim Três Marias, ali na Patriarca, e a gente almoçava com a minha vó, passávamos a tarde com ela e depois nós voltávamos. Na hora que a gente subia a Itinguçu tinha um parque, que ficou anos ali aquele parque. Quando eu olhava pra aquele parque, eu falava: “oh, a roda gigante!”, “vamos na roda gigante?”. “Vamos… A gente vai pra casa. Na hora que chegar em casa a gente toma banho e volta”. Óbvio que nunca, né gente? Vocês acham que daqui de Zona Leste até Zona Sul vão voltar? Não… E aí eu entrava correndo no banheiro, eu voltava e falava: “estou pronta!”. “Ah, então, mas o parque já fechou…”, uma, duas, três, inúmeras vezes. E Olha a santa aqui: o que eu fazia quando ela dizia que o parque já fechou? Naquela época era cortina de plástico pro banheiro, box de vidro não tinha. Se tinha, era na casa de rico, na minha não tinha. Era de cortina de plástico. E aí o que que eu fazia? Eu entrava no banheiro, eu enfiava meu dedinho assim, e a Aure falava: “ah, não tem problema, mãe!”. Eu queria matar ela, porque eu falo, “como não tem problema?”, “ela falou que ela ia levar, como não tem problema?”. Aí eu ficava com raiva dela, e aí eu enfiava meu dedinho lá embaixo da cortina, que eu, achando que minha mãe não ia ver, porque era lá no pé da cortina, furava tudo (inaudível) da cortina. Minha mãe esperava, “Nice, abre essa porta, abre essa porta!”. Óbvio, quando eu abria a porta, eu apanhava, porque estraguei a cortina dela - caríssima aquela cortina na época.
E a minha irmã era boazinha. Ela fazia, ela seguia o modelo que a minha mãe tinha desenhado como script do que era ser a filhinha da mamãe. Então a gente teve muitos problemas a ponto de… Eu lembro que quando eu comecei a trabalhar, a minha mãe falava assim, “Nice, empresta tuas roupas pra Aure?”, eu falava, “mamãe, mas manda ela começar a trabalhar também! Por que eu tenho que fazer as coisas pra ela?”. E não dava pra comprar tudo pra todo mundo, né? Então era isso, mas uma das coisas que a gente tinha muito em comum: eu acreditei em Papai Noel acho que até uns nove, dez anos, e a gente punha a meia fora da janela, porque o Papai Noel vinha. Ele olhava lá de cima, ele via aquelas meias, então ele ia trazer o presente. Então a gente fazia umas armadilhas pra pegar o Papai Noel no flagra, sabe? A gente falava: “se eu dormir, você me acorda pra gente ver o Papai Noel chegando, e aí na hora que a gente ver o Papai Noel chegando, a gente corre e a gente vai lá fala e fala pra ele: surpresa!”, então a gente tinha essa coisa juntas também. Então a gente brincava… A gente não era de brincar muito fora, a minha mãe não deixava, então a gente tinha muito essa coisa de ficar junto e de criar essa cumplicidade. Mas aí ela me dedava pra minha mãe (risos). Aí eu tinha vontade de matar ela quando ela contava as coisas que eu fiz, né? E então era um momento que a gente brigava e ficava de mal, enfim. E o meu irmão, como ele era quase sete anos mais novo que a gente, nós defendíamos ele. Nós tínhamos uma coisa de não falar pra minha mãe as coisas que ele fazia. E como é que a gente fazia isso? A gente simplesmente não fazia, a gente não contava pra ela nada! E quando ela ia bater nele, a gente falava: “bate em mim, não bate nele, não…”. Hoje eu me arrependo, que se eu soubesse a gente teria feito diferente (risos). Mas, meu, a gente apanhava no lugar dele, né? A gente não deixava ela bater nele, porque ele era pequenininho… Imagina? Hoje eu penso, antes tivesse apanhado um pouco mais (risos)… Mas essa era a nossa relação. Então ele era o pequenininho, ele era o Claudinho, né? Então essa foi uma construção. Lembrando dessa história do Papai Noel… Onde é que a gente perdeu essa inocência? Uma vez o meu pai sentou com a gente e ele falou assim: “eu vou contar pra vocês que esse ano o papai Noel não virá”. “Como ele não virá? Se o Papai Noel vem pra todo mundo, por que ele não vem pra gente?”. E aí ele falou, “o Papai Noel sou eu”, e eu pensava, “mentira, mentira!”, porque ele trazia o presente que a gente pedia. E aí ele falou assim: “mas esse ano eu vou ter que escolher: ou a gente compra roupa ou a gente dá o presente, e nós escolhemos comprar roupa”. E aí eu olhava pra Aure: “ele está brincando… Não é possível. Não é possível que ele é o Papai Noel. O Papai Noel vem, ele leva meia, ele deixa presente... Não, não é ele!”. A gente tinha uns dez, onze anos, gente, e eu lembro que a gente todo ano a gente tinha missa do galo, e a minha mãe canta no coral até hoje. Então a gente ia pra essa missa, e aí o Papai Noel aparecia enquanto a gente estava na missa com a minha mãe, na missa do galo. E a gente fazia questão de olhar, meu pai não saía, minha mãe não saía, como é que o Papai Noel apareceu? Então ele levava aquela meia, ele trazia o presente. Não, não é possível, não é meu pai, porque ele está aqui, o presente estava lá sempre… Não é ele. E aquele ano a gente foi pra tal da missa do galo, e quando nós voltamos não tinha presente. “Ele deixou a gente por último”. E aí quando a gente acordou que não tinha nada, aí a gente teve a certeza de que não, não tinha Papai Noel. E a partir daquele ano eu lembro que tinha uma música que falava: “eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel…”. E quando eu vi aquela música eu já me emocionava há anos, porque eu via na televisão as crianças carentes, que não recebiam presente, eu falava, “por que ele não dá presente pra todo mundo?”. E eu olhava pra aquilo e eu falava, “o Papai Noel é injusto. Por que ele não faz isso pra todo mundo?”. E daquele ano pra frente eu comecei a me incluir na música, porque eu falava, “por que ele mentiu todos esses anos?”. Óbvio que não era o Papai Noel, era o meu pai que estava ali, né? Até ali a gente ainda acreditava, ou seja, a gente ainda tinha essa inocência de que esse Papai Noel viria e ele atenderia o pedido de todas as crianças. Então a partir dali é quase como se eu criasse uma uma forma de acreditar que as coisas poderiam ser diferentes, e que as pessoas poderiam viver uma vida diferente, que a história das pessoas poderia ser uma história melhor, e que o Papai Noel poderia trazer coisas melhores, mesmo que seja o pai de alguém. Mas por que aquelas pessoas que têm dinheiro, por que elas não poderiam ser Papai Noel pra aquelas crianças que o pai não tinha dinheiro? E eu comecei pensar: “como é que eu posso fazer isso, pra que essas crianças também tenham isso?”. Enfim, acho que em função disso eu fiz aí quase trinta anos de trabalho voluntário pra que as crianças tivessem momentos melhores… Acho que cuidando da minha criança e de tudo isso aí que eu vivi aí durante um bom tempo. Enfim, é legal lembrar disso enquanto memória, né? Hoje a minha relação com a minha irmã nós rompemos um pouco antes de quando ela começou a trabalhar os valores dela. A forma dela ver a vida era bem diferente do meu: eu sempre gostei de pagode, eu sempre gostei de folia, então na hora que Deus deu a asa a cobra eu voei pro mundo e eu comecei fazer tudo e mais um pouco (risos). E minha mãe falava, “não é possível que tem festa de novo!”, era de segunda a segunda. Eu falava “tem! Estou tomando banho e estou saindo!”. E ela não, ela era mais quietinha, ela era mais contida, ela era mais a Cleonice e eu era mais o Messias. Então eu ia pra vida, eu ia pro mundo, então isso foi causando uma distância entre a gente. E aí a gente ficou um bom tempo... até que eu casei.
Quando eu casei, eu tinha vinte e três anos, porque a gente ficou seis anos namorando, e ficamos dois anos casados. Durante esses dois anos de casamento, eu falo que eu conheci uma outra pessoa, extremamente ciumento, extremamente… Eu vivi uma relação abusiva sem perceber, sem dar o nome de abuso pra isso. Porque quando você conhece uma pessoa, você usa uma minissaia, aí você casa e você começa a ficar mais tempo e a pessoa fala, “desce essa saia, abaixa o decote, sobe o decote…”, isso é um abuso e a gente confunde, “ah, isso é amor”, e a gente fica feliz porque a pessoa está cuidando de mim… Cuidando é o caramba! Aquilo tem nome: ele está tirando a tua identidade! E a gente dizendo que está tudo certo que você faça isso… Uma coisa é concessão, uma outra coisa é quando você olha no espelho e você fala, “eu não me reconheço mais”. E aí a gente começou a brigar muito, porque eu olhava e eu falava, “eu já não sei mais quem eu sou…”. A gente saía pra festas, e as pessoas olhavam pra mim, e eu sempre fui Cidinha, então as pessoas olhavam e ele ficava bravo porque “você viu Fulano olhando?”, eu falava, “ eu nem vi… Por que você não foi brigar com ele, já que você está brigando aqui comigo? Eu nem vi!”. E aí a gente começou a ter muitas, muitas, muitas desavenças por conta disso. Até que chegou um momento que eu falei: “quer saber? Chega! Já deu pra mim!”. E na época nós ficamos seis meses morando de aluguel… começou a ter uma invasão nos prédios do IPESP, que eram feitos pra padrão de família classe B, A, e eles demoraram muito pra vender, e começaram a ser invadidas. Em função disso eles abriram pro funcionalismo público, de uma classe C, que pudesse pagar aquilo, mas pra que pudesse ocupar de uma forma mais rápida. E eu lembro que eu fiquei quinta, sexta, sábado e domingo na rua, dormindo na fila, pra poder comprar o apartamento. E aí a gente comprou o nosso primeiro apartamento assim. Então eu fiquei na fila lá, logo que começou, porque não era por sorteio, era por ordem de chegada, e a gente comprou o primeiro apartamento. Então ficamos morando lá nesse apartamento por um ano e meio mais ou menos, até que chegou um momento que eu falei, “meu, nada disso aqui vale a pena pra mim, porque eu não tenho sossego”. E aí, a gente brigava tanto que eu falei, “eu não quero, isso não é vida pra mim”. E aí eu chego um dia que eu falei, “pai, vem me buscar”, e eu lembro que eu simplesmente peguei os lençois, coloquei todas as minhas coisas ali dentro, e eu falei, “estou indo embora”. Ele não acreditou que eu estava fazendo aquilo, e eu fiz. Coloquei tudo, coloquei no carro, e eu lembro que eu fiquei no banco de trás, meu pai dirigindo, a minha mãe no banco da frente, e eu lembro que minha mãe chorava e eu pensava o porquê de ela estar chorando, se eu não preciso ficar passando mais isso, se eu não preciso ficar sofrendo. Já chega! Então às vezes era um nível de abuso que eu fico olhando e eu penso: meu, como é que eu não percebia isso? Era a nível até de risco, porque ele era tão ciumento, ele tinha um amor por mim, e não é que não era amor, era um amor tão doentio, que acho que ele amava mais a mim do que a ele. Porque, às vezes, se a gente ia pra uma festa, pra algum lugar, ele cismava. E eu era muito bonita, enfim. Então sempre tinha. Não, não era que ele cismava. Tinha! Mas meu, eu estava dançando, eu estava com ele... Eu não tinha nem olhar pra ninguém, e eu falava pra ele, “ué, você viu, vai lá e briga com a pessoa. Se você quer brigar vai pra lá e briga na fonte”. E eu lembro que teve um dia que ele trouxe uma faca enorme pra casa, e eu falei, “mas pra que você trouxe essa faca?”, ele falou, “por que a gente pode precisar…”. E eu pensava, como pode precisar de uma faca? Um monte de faca. E eu lembro que porque eu tinha falado pra ele, “a partir de hoje a gente não dorme mais juntos”, antes de me separar. E quando ele trouxe aquela faca, eu pensei: “ele não está com boa intenção”. Era uma peixeira mesmo! E eu falei, “eu não vou conseguir”. Aí chegou um momento que era quase como se fosse assim: eu preciso mostrar pra ele que eu não estou com medo dele. Me cagando de medo! Mas chegou um momento que eu falei, “isso aqui não vale a pena. Por conta de um apartamento? Por causa disso? Quer saber de uma coisa? Eu vou embora!”. Foi aí que eu chamei meu pai. Não vale a pena eu deitar no outro quarto e ficar com medo da reação dele ou de qualquer coisa que ele pode cismar. Isso não vale a pena… E eu simplesmente catei minhas coisas e vim embora. Eu olhava pra minha mãe e eu pensava, “por que ela está chorando se agora eu posso voltar a ser feliz de novo?”. E quando eu voltei, a minha relação com a minha irmã mudou.
P/1- Da sua infância até esse momento mais ou menos, você tinha algum sonho? E desde que chegou nesse momento, por algum motivo esse sonho mudou?
R- Sim. Lá na infância, o meu sonho maior era fazer com que as pessoas fossem mais felizes. Porque eu olhava, eu tinha um desconforto pra descobrir porque que tanta gente sofria tanto. E como é que eu podia fazer? Nos momentos em que eu ficava quieta, era como se eu entrasse… Eu falo que se existe uma coisa que eu não posso reclamar é que eu não sinto que Deus está fora de mim, eu sinto que Deus está tão dentro de mim, que quando eu pergunto as coisas pra ele, se eu fecho os olhos, eu ouço algumas respostas. É quase como se fosse, “calma, porque as coisas vão se ajustar. Calma, porque é um passo de cada vez…”. Então aqui dentro eu tenho uma fé na vida, uma fé de que existe uma força maior, de que existe algo maior, e que me conforta. E isso não é de hoje, adulta, isso eu trago desde lá da infância mesmo, sabe? Então eu tinha a pretensão de que quando as coisas mudassem, de quando eu crescesse, de quando eu casasse, eu poderia ter um poder de fazer as coisas serem diferentes pras pessoas, pras relações. E é muito interessante porque eu não pensava na minha família só. Eu pensava nisso em algo maior, eu pensava em ajudar várias famílias. E eu não tinha noção do que eu faria hoje, do quanto isso impactou no que eu faço hoje, né? Mas essa era a impressão da Eunice criança. Então cada vez que eu via as coisas acontecerem de uma forma que eu achava injusta eu pensava, “não, isso não é justo. Por que a pessoa tem que passar por isso, isso, isso?”. E eu falava, “olha Deus, isso aqui não tá certo. Por que ela tem que passar por isso? Não, eu sei que você sabe todas as coisas, mas você tá fazendo errado!”. É quase como se fosse um bate-boca com um cara lá de cima, falando pra ele, “ó, isso não é justo, essa pessoa passar por tudo isso. Não, não está certo. Como é que eu posso ajudá-la pra diminuir a dor dela? Já que se criou isso, que ela tem que passar por isso, como é que eu posso fazer pra ajudá-la pra que isso não pese tanto, pra que não seja tão difícil? Então até esse período de casamento, de mudança de ciclo, de mudança de vida, foi muito desse lugar de olhar pra tudo que eu vivi, e pensar como é que eu posso fazer pra que as histórias das pessoas que se aproximam a mim seja diferente daquilo que eu vivi? Seja diferente daquilo que eu achava que era ruim pessoas, que pelo menos causasse tanta dor? Se a gente tem que passar por uma coisa, tá bom. Como é que eu posso fazer pra que eu consiga, pra aquela pessoa, no momento em que ela se sentir com dor, que ela se sentir sozinha, que ela saiba que ela não está só? Como é que a gente pode fazer pra que as pessoas consigam saber que eu não estou julgando, que tudo que ela está vivendo vai passar, pra que ela não perca fé, nem a esperança? Eu lembro que eu tinha mais ou menos uns nove, dez anos, eu entrei no ônibus. Aquele dia a gente foi pra minha vó e eu não sei o que aconteceu no carro, que eu lembro que a gente veio de ônibus. E entrou no ônibus uma moça. A gente ficou no banco de nos bancos de trás entrou no ônibus, uma moça… Meu, eu não sei se ela estava bêbada, se ela estava drogada, eu não sei o que ela estava, mas ela estava muito mal, e estávamos todos acomodados, não tinha mais nenhum lugar no ônibus. E eu olhava pra aquela moça, ela toda tonta, toda tonta, e eu falei pra ela: “senta aqui no meu lugar”. E eu era muito pequena, né? E a moça, ela estava tão ruim, que ela sentou. Então hoje eu fico olhando, porque as pessoas que estavam perto… A minha mãe falou assim, “larga mão de ser besta! Não está vendo aquela mulher está de fogo? Está de fogo porque ela bebeu!”, e eu pensava, “ó, ela está de fogo, ela bebeu e ela está mal. O que custa eu levantar? Até porque eu estou boa…”. E aí lá na infância, eu lembro que eu apanhava, minha mãe falava, “você é besta demais, você vai apanhar pra você largar a mão de ser besta!”. Então, olhar pra isso, quando eu lembro dessa moça, é uma das cenas fortes, porque eu saí do meu lugar e eu dei o meu lugar pra ela. Porque eu falava, “ela tá mal, eu não sei o que tá acontecendo”. Eu não tinha a menor noção do que tava acontecendo com ela, mas eu tava bem. Então, ceder o meu lugar pra ela não era algo que me pesava, não era algo que me diminuía, e independente do que minha mãe ou do que as pessoas estavam falando. Porque não é que aquelas pessoas falavam por que elas achavam que eu não deveria, eles não entendiam porque que eu estava fazendo aquilo… Se a vida era dela e se ela escolheu aquilo, por que eu tenho que me meter e ajudá-la? Mas isso é uma coisa desde criança, de como que eu posso ajudar as pessoas pra que elas não sintam tanta dor diante da vida, diante da história delas e do dia a dia delas, né? Isso foi algo que impactou na minha vida e faz a diferença na minha vida até hoje. Então acontecer isso... Quando vocês vão perguntando isso e trazendo isso, eu consigo fazer essa linha do tempo do efeito que tem na minha história até hoje.
P/1- Você chega a fazer algum curso, alguma faculdade pra aprender a realizar esse sonho ou aprendeu com alguém?
R- Então, quando eu me separei do Edu… Quando a gente, a gente casou em oitenta e cinco. Eu entrei na faculdade em oitenta e dois, e aí até oitenta e cinco, quando eu me separei, eu tive que trancar a faculdade. Eu fiz psicologia e eu tive que trancar a faculdade porque aí eu falei: “agora eu preciso ter condições”. Eu não queria ficar muito tempo na minha mãe, “então eu preciso sair da minha mãe, mas agora, pra sair de casa, eu vou pra minha mãe”. E foi a melhor coisa que eu fiz, porque aí eu consegui voltar a ter a minha irmã, né? Então em momento nenhum ela me julgou, em momento nenhum ela me criticou… Ela não quis saber nada. Ela simplesmente me acolheu naquilo que estava sendo bem difícil. E aí hoje a gente se chama de “mana”, hoje a gente anda muito junto. Esse vínculo mudou da água pro vinho depois que eu voltei pra casa, e aí a gente passou… Eu fiquei uns dois ou três anos sem estudar, e ainda na minha mãe, eu terminei a faculdade. Não, acho que não foi isso, acho que uns três… Não, acho que uns dois anos, porque eu me formei em noventa, e aí eu terminei a psicologia. Mas quando eu terminei a faculdade, eu terminei mais eu olhava pra aquilo e eu falava: “meu, eu não quero, eu não quero trabalhar em consultório”, porque eu fiz dentro da linha psicanalítica, e o professor que eu tinha na época, ele falava, “se você estiver com o seu paciente andando do outro lado da rua, atravesse a rua pra que ele nem olhe pra você. Se você tiver no mercado e seu cliente estiver ali, finge que não viu”. Eu pensava: “como eu vou fazer isso? Não vou trabalhar na clínica, não vou. Não vou trabalhar assim de jeito nenhum! E se é pra ser nesse modelo, eu não vou fazer”. E aí eu saí da psicologia e eu falei, “vou trabalhar em empresas. Eu vou trabalhar em organização”, e foi esse o caminho que eu segui quando eu terminei a minha formação. Nesse período, a minha avó tinha tido um AVC, então ela estava morando em casa, né? E eu recebi um convite do grupo Paranapanema, pra trabalhar lá em Manaus, no meio da mata, no meio da selva amazônica. E quando eu recebi esse convite, eu pensei: “ah… eu não vou gastar nada”, porque lá existiam castas. Então era classe A, era vila A, que era pra nível de diretoria, era nível de gerência, e aí tinha casas com piscinas, bem no meio da mata, bem no meio da floresta. Tinha a vila B, que era pra aquelas pessoas que eram chefes, e que tinham um outro nível, um pouco mais abaixo dentro da hierarquia. Tinha a vila C, que era pra o pessoal administrativo que tinha família. Tinha o staff, que era pra pessoas que eram universitários e que estavam sozinhos. E tinham os alojamentos, que eram pra peãozada, que não tinha direito a trazer família, e tinha um puteiro a uma distância X, que eles eram conduzidos a esse lugar. Tinham direito a ir a cada dois meses, mais ou menos, um mês e pouco. Eles faziam uma caravana pra lá, ou quando eles pediam autorização, eles tinham direito a estar nesses lugares. Então eu acabei indo pra esse lugar de trabalho, que é do grupo Paranapanema, na época, que chamava Mineração Taboca, e eu fiquei lá uns três meses mais ou menos. É um Brasil que a gente não acredita que existe… Porque pra você ter uma noção, pra você ir de Manaus pra lá, ou você vai de helicóptero, uma hora e meia, ou você vai de carro, ou você vai de ônibus, da própria mineradora, que demora minimamente aí umas seis horas sem chuva. Com chuva, com isso, com aquilo, pode estender doze horas ou um pouco mais… Mas como eu fui como staff, eu tinha direito a helicóptero. Então eu fui pra lá pra trabalhar com RH. Quando eu fui, você faz todos os exames. Mas você fez exame de gravidez? Não? Nem eu. E eu fui pra lá grávida e eu não sabia. Mesmo porque aqui, quando eu estava com o Edu, eu nunca me cuidei… E aí eu fui fazer um exame e o médico falou, “aqui você não vai engravidar nunca. Você tem útero retrovertido. Fica tranquila que você não vai engravidar nunca, tá bom?”. Então se eu não vou engravidar, não vou engravidar. Só que eu tinha uma amiga, que ela era ginecologista, e eu falei na época pra ela, “eu estou com um pinguinho de sangue, e agora que eu percebi que eu não menstruei esse mês…”. “Ah, vamos fazer exame”. Eu estava grávida! E aí pra sair da mina, precisava da autorização do médico. E dentro da mina tinha um hospital, e ela falou, “vou pedir aqui os exames. Vamos conferir, e aí você vai pra Manaus pra começar o acompanhamento”. “Tá bom”. E aí eu lembro que eu saí, eu pedi autorização pra ir pra Manaus, mas pra pedir autorização esse médico tinha que assinar. Saí do trabalho e fui lá no hospital pra passar em consulta, e eu lembro que ele pegou um palitinho de cutícula, de tirar esmalte, e o exame dele foi com aquilo. Então hoje eu sei o que foi que ele fez. Mas eu achei que era normal... Eu achei que era normal. E eu lembro que eu desci da maca, ele falou, “está aqui a autorização pra você ir pra Manaus, mas você sabe que nesse momento não era muito bom pra você engravidar”. Eu falei, “eu sei. Mas se a vida me trouxe, vai ficar”. Na hora que eu cheguei em casa, eu comecei a ter hemorragia, e aí eu liguei pro meu amigo e falei, “eu estou com hemorragia”. Voltamos pro hospital, chegamos lá, ele não estava. E aí eu falei, “chama aquele assassino!”. Pensa que eu fiquei fora da casinha, fora! E na hora que ele chegou: “o que foi que você fez?”. Ele falava, “estou só te ajudando… Se você quiser, a tua amiga, ela é anestesista. Ela dá anestesia e a gente faz aqui mesmo a curetagem, ninguém vai saber. Você começou agora, esse nenê vai te atrapalhar…”. E eu lembro que eu falava, “você não encosta mais em mim! Todo mundo vai saber disso, eu vou contar pra todo mundo! Você é um assassino!”, enfim. E aí ele viu que não, que eu não gostei daquilo. E ele falou assim, “eu vou te dar um remédio pra segurar”. E eu fiquei o final de semana inteiro deitada. Eu não podia nem levantar da cama. E na segunda-feira o helicóptero estava lá, fui pra Manaus, eu cheguei no hospital, fiz o exame: estado de semi abortamento. Ou seja, não dava pra fazer mais absolutamente nada. E eu olhava pra aquilo e eu falava, “Deus, não é possível que eu tô vivendo isso!”. No meio do nada. E aí eu lembro que depois que veio o resultado eles falaram, “você vai pro centro cirúrgico pra fazer a curetagem”. Pensa que aqui em São Paulo a gente não tem nenhum hospital, por pior que seja, parecido com o que tinha lá na época. Pra vocês terem uma noção, no caminho da maca pra entrar no centro cirúrgico eu vi um monte de gato passando. Isso lá em Manaus… Na hora que eu entrei na sala, eu entrava chorando e eu pensava, “não é possível que eu estou vivendo isso sozinha. Minha família toda aqui e eu sem poder falar pra eles”. E aí entrei no centro cirúrgico, sem poder, mas para não preocupá-los. Porque falar vai adiantar o quê? Na hora que eu entrei, a mulher falou assim, a médica, “se arrependeu do que você fez? Está chorando agora? Agora não adianta”. E aí que eu falava, “meu, ela não sabe o que ela está falando. Ela não tem a menor noção do que ela está falando”. Eu sei que me anestesiaram e eu ouvi a médica falando assim, “eu não me responsabilizo de trazer essa mulher de novo pra cá, porque se ela vier, ela vai morrer”. Eu saí do centro cirúrgico e aí depois que a anestesia foi voltando, eles falaram, “olha, o seu útero a gente não conseguiu abrir com os instrumentos que a gente tem, então a gente vai ter que conseguir outros instrumentos pra tentar. A gente não conseguiu fazer a curetagem”. Eu falei, “quer dizer isso, quer dizer que o bebê continua aí dentro…”. E eu pensava, “só Deus agora”, porque eu não sabia se eu ia sobreviver. E aí quando eles descobriram que eu era psicóloga, aí mudou a forma de tratamento… E eles falaram, “olha a gente vai buscar um remédio que chama Cytotec e você vai tomar esse remédio. Você vai introduzir esse remédio até a gente encontrar algo que a gente possa fazer pra abrir esse útero”. E aí vem, no primeiro dia elas falavam… O Fantástico na época fez uma matéria sobre esse remédio. E falaram, “olha, a gente não tem esse remédio disponível, porque foi considerado abortivo”, então as farmácias estavam proibidas de vender e o hospital não estava conseguindo. Então ia passando os dias e eu falava, “Deus, eu estou com um neném morto aqui dentro, e se eu tiver que morrer aqui, eu não posso fazer mais nada”. Sabe quando você olha e você fala, “eu entrego a minha vida…”. E hoje eu olho e eu penso que se eu não tivesse uma fé do jeito que eu tenho, muito provavelmente eu não teria sobrevivido ali. Porque ficou acho que uns três ou quatro dias ali, eu esperando, até que ela chegou… Enfim, eu fiquei praticamente dez dias internada ali. E uns cinco dias depois veio esse remédio e foi saindo quase nada. E eu voltei pro centro cirúrgico, eles encontraram uma tal de uma vela cirúrgica, que veio de São Paulo pra lá, e aí com isso eles conseguiram fazer o procedimento de raspagem. E eu penso o quanto faz a diferença a gente acreditar que se existe um sentido pra você estar viva hoje, se faz sentido a minha vida, então me ajuda a sobreviver diante de tudo isso aqui. Porque eu olhava e era tanta sujeira, era tanta coisa, que era só Deus mesmo, não tinha nada ali além disso. E aí eu falei pra minha mãe, eu falei pro pai do bebê na época, enfim. E eu olhava pra tudo aquilo e falava, “gente, isso é louco demais! É louco demais!”. Quando eu voltei pra mina, eu falei pro meu chefe. Eu falei, “aconteceu isso, isso, isso…”, ele falou, “escreve tudo. Manda isso pra frente”. Porque esse médico já tinha feito o parto da empregada dele, e ele tinha cortado a mulher com cesariana daqui de cima pra baixo e essa moça tinha tido uma infecção, e ele levou essa moça pro hospital de novo. A moça simplesmente não voltou e ele não sabe dela há anos. E o menino, a criança, no mínimo, ela morreu. E ele falou assim, “alguém tem que parar! Escreve isso tudo”. E eu escrevi isso. Eu tinha voltado mais ou menos numa quinta, e na sexta-feira eu entreguei isso. Na segunda-feira, quando eu fui trabalhar, a polícia do grupo estava lá me esperando pra eu juntar todas as minhas coisas e ir embora. E aí meu chefe falou, “me perdoa. Eu não consegui fazer diferente, eu não consegui impedir que eles te mandassem embora”. Eu falei, “fica tranquilo, porque isso não é seu”. E aí eles me escoltaram pra que eu não falasse nada pra ninguém, me levaram até o meu quarto e esperaram eu juntar tudo. O helicóptero estava lá esperando, eu juntei todas as minhas coisas, e olhando pra aquilo eu falava, “não é possível, não é possível que eu estou vivendo isso”, e aí fui embora. Na hora que eu entro no avião, o superintendente estava no avião. E eu só olhei pra ele e eu falei, “você tem filhas. Eu espero que não aconteça com as tuas filhas, que elas não precisem de médico. Mas se elas precisarem e se você também… Se você está me mandando embora por causa disso, eu espero que ele não faça com as tuas filhas o que ele fez comigo. Você sabe o que ele fez e o que ele está fazendo de atrocidade com as mulheres aqui dentro”. E aí ele ficou mudo. Mudo. Desci em Manaus. Eu pensava, “vamos começar de novo”, “vamos lá, respira…”, e aí fiquei lá e falei, “vamos dar uma olhada aqui, vamos conhecer aqui um pouco”. Fiquei lá dois dias pra voltar pra São Paulo. E quando eu voltei, eu voltei pensando, “o que que eu vou fazer agora? Por onde eu recomeço a vida?”. E na época o pai desse bebê, que eu tinha certeza que era uma menina, trabalhava na TELESP, e ele falou assim, “olha, a TELESP tá precisando de pessoas pra trabalhar três meses, você não quer fazer um teste pra ver se você consegue?”. “Tá bom, eu vou”, e eu acabei entrando na TELESP. A gente se separou depois disso, porque ele falava, “olha, se você não toma remédio, se a gente não pode transar e tal, é melhor a gente separar”. E pensar, meu, a coisa já tá feia, e ainda acontece mais isso… Eu pensava, “está tudo certo”, e aí depois que ele fala isso, eu pensei, hoje trazendo esse review aí da minha história pra vocês, eu fico pensando que é só mais um que eu não posso confiar. Enfim, eu fiquei na TELESP. E quando eu tinha uns três meses, a TELESP abriu o último concurso interno, então eu fui a última da última turma que entrou sem concurso, porque eu saí da terceirizada e entrei pra TELESP. Fiquei lá de noventa e dois até noventa e oito, entrei em noventa e um, acho, noventa e dois. Enfim, eu acabei… Eu comecei a namorar o pai das crianças, porque eu tenho um casal de gêmeos, né? E eu não podia ter um filho só, gente, esqueci de falar pra você… Tinha que vim dois de uma vez! E aí, durante esse período, a gente começou sair eventualmente, e eu falava, “a gente não está namorando, mas a gente pode continuar saindo de vez em quando”. E aí nesse sair de vez em quando, a carne é fraco e sangue não ajuda (risos)… Engravidei de gêmeos. E quando eu estava de sete meses, eu lembro que teve um dia que ele fez aniversário… E olhar pra tudo aquilo, ele já tinha um filho, de uma outra relação, e ele falava, “olha, você não espera que você vai ligar, falar que as crianças não estão bem, e eu vou sair correndo, porque não vai ser assim…”. E aí eu falei, “fica tranquilo. Se você não quer ter obrigações, você também não vai ter direitos”. E dali pra frente eu falei, “acabou, encerramos por aqui”. Os meus filhos nasceram de sete meses, essa conversa foi no dia doze de outubro, e eles nasceram vinte e quatro de dezembro. Eu comecei a passar mal, e aí o médico falou, “você vai ficar internada, mas você vai pra casa hoje. Fica em repouso, aproveita o Natal, no dia, quando acabar a noite você vem e você vai ficar aqui dentro, tá bom?”. Fiquei lá e aí fiquei internada vinte e cinco à noite, vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito. Ele falou, “você já está melhor, vai pra casa, e quando você sentir que chegou o momento, você volta. Vai tomando esse remedinho e fica em repouso”. “Ah, você já sabe o sexo?”, e eu falei, “não”. Mas eu tinha certeza que quem estava aqui era uma menina, e eu falava “aqui tem um menino, aqui tem um casal”, e a minha mãe falava, “aí vem dois macho, aí não tem menina nenhuma”, eu falava, “tem…”. Cheguei lá embaixo pra fazer o exame, e aí o médico falou, “você sabe o sexo?”. Eu falei, “não”, porque toda vez que eu falava pra alguém, “vamos comigo? Mas se você souber, você não vai contar pra ninguém, é só nós dois”, e minha mãe falava, “vou contar pra todo mundo”, “então você não vai saber, pronto! Pra mim é isso, eu não preciso do exame”. Então naquele dia, o médico falou, “você sabe o sexo?”, eu falei, “não”, ele falou assim, “então olha quem está aqui”. Ele falou, “aqui é uma menina”. Eu falei, “então aqui eu tenho certeza que é o menino”, e aí ele olhou e falou, “é o menino mesmo!”. E aí eu subi, fui tomar banho, estourou a bolsa, e aí sete horas da noite eles nasceram. Eles nasceram e foram conhecer o pai biológico quando eles tinham nove anos, né? Porque ele simplesmente sumiu, embora trabalhássemos na TELESP. Pra mim, quando eu disse… E aí você olha e você pensa que se fosse hoje, com tudo que eu tenho, que eu sei hoje com tudo que passou, eu sei que muitas vezes os pais não se aproximam dos filhos porque energeticamente as mães dizem não. Você fez mal pra mim enquanto mulher, você vai fazer mal pros meus filhos, então eu não quero que você se aproxime. Então dentro do que eu sabia eu fiz isso, né? Eu não permitia energeticamente que o pai se aproximasse dos filhos, nem os filhos do pai. Mas quando eles nasceram, eles ficaram vinte dias internados. Então esses vinte dias, eu lembro que o maior dia era quando o médico falava assim, “aqui engordou dez gramas”. E aí era o Iago, que era o mais magrinho, a Eda ainda era mais gordinha, mas nasceram com um quilo e seiscentos, quinhentos e pouco. Era muito ratinho, né? Então eles tinham que sair com um e novecentos. Um aumentava trinta gramas, o outro vinte, um trinta, e a Eda sempre aumentava um pouco mais. E aí cheguei um dia, o médico falou, “mãe, amanhã a Eda vai embora, e o Iago vai ficar uns dias a mais porque ele está engordando muito pouco. Chega no dia seguinte, a Eda não engordou nada, e ele engordou. No outro dia, a Eda não engordou nada, e ele subiu. Enfim, quatro dias depois saiu os dois, porque ela ficou esperando ele chegar no mesmo peso pra que eles saíssem juntos. E aí eu olhava e falava, “agora começa uma nova fase da minha vida”. E foi extremamente fundamental…
P/1- Como que é o nome deles mesmo? E por que você decidiu dar esse nome pros seus filhos?
R- Ela chama Eda Samara. Eda porque significa bela vitória, e Samara é aquela que brilha. E o Iago é o protegido de Deus. Então eu fiz numerologia, eu olhei pelos números, eu olhei pelas letras, enfim, tem todo um simbolismo que é trazer esse lugar de vitória, de poder pra eles. Então é Eda Samara e Iago. E aí, criança de sete meses, você precisa trabalhar, eles ficaram… Os meus pais foram fundamentais nessa época porque eu ainda morava com eles… E olha como a vida é engraçada, né? Porque no dia que eles nasceram, o Edu, que é o meu primeiro marido, a gente ficou seis anos separados. Durante esses seis anos, virava e mexia ele ia ver os meus pais. No dia que os meus filhos nasceram, a minha mãe ligou pra ele e falou, “a Eunice está parindo hoje”. Enquanto eu estava na sala de parto, ele estava lá embaixo, e eu não sabia. E quando os meus pais subiram, “o Eduardo veio pra te ver”, mas não podia, enfim. É praticamente véspera de Natal, as pessoas iam viajar e tal. Quando os meus filhos voltaram pra casa, ele foi visitá-los. Ele foi o primeiro homem que pegou eles no colo, e de olhar pra eles, eu olhava e pensava, “porque esse homem está aqui? Que que isso aqui representa? Que que isso aqui significa?”. E, enfim, durante esse período em que eu estava em casa, eu fiquei durante cinco meses, porque eram os quatro meses de licença, mais o mês de férias, e aí um mês de adaptação deles na escolinha, que era na rua de baixo, e minha mãe que levava… Enfim, eu fui trabalhar pra pra tivessem essa qualidade de vida. Voltei pra TELESP, né? E o Eduardo começou a estar muito presente, então ele começou a ir muito mais pra casa. E aí ele falava, “me dá mais uma chance”. Enfim, nós voltamos depois disso, e eu pensava, “vamos ver o que mudou”, porque seis anos depois, não é possível que não tenha mudado! Quando as crianças fizeram um ano e pouco, mais ou menos, eu me vi grávida de novo, do Danilo, que é o meu caçula, que hoje vai fazer vinte e nove anos. Então a Eda e o Iago, o pai que eles conheceram é o Edu, porque quando ele registrou o Danilo, ele já entrou com reconhecimento da paternidade. Até então, as crianças só estavam no meu nome, e aí ele entrou com reconhecimento da paternidade. Então esse é o pai que eles conheceram até os nove anos. E por que eles conheceram até os nove? Porque a Eda tinha uma coisa de ser mãe de todos, e eu falava, “a mãe aqui sou eu!”. E ela falava pros meninos como se ela quisesse cuidar deles e mandar neles, até que fomos pra psicóloga, fomos pra terapia. E aí chegou um momento que a terapeuta falou, “eles precisam saber que eles não são filhos do Edu”. E o Eduardo falava, “de jeito nenhum, não vai contar nada, não vai contar nada porque eu sou o pai deles!”. Até que chega um dia, ele trabalhava no tribunal de justiça, e uma moça que trabalhava com ele descobriu na frente dele que ela era adotada, e ela teve um surto. E aí nesse dia ele chegou em casa e ele falou, “o que eu vi hoje eu não quero que eles passem, então nós vamos contar, no final de semana nós vamos contar”, e aí a gente contou pra eles. Só que o Edu não imaginava que eles fossem querer conhecer o pai biológico. E eles falaram, “então a gente quer conhecer”, porque na época eu lembro que eu falei, “vocês tem dois pais e uma mãe”. E aí nós fomos, marcamos, passamos, liguei pra ele, falei, “tá acontecendo isso, isso, isso… E as crianças querem te conhecer”, e aí a gente marcou num shopping pra eles conhecerem o pai biológico. Nossa, foi muito difícil pro Edu, muito difícil ver as crianças felizes ali de mão dadas com ele, saindo… E a gente ficou ali. Por ele, ele ficava assim, “você anda com as crianças”, e eu logo atrás olhando tudo que está acontecendo. E durante esse período, foi bem difícil, porque, na verdade, como ele não queria essa aproximação, quando ele ligava pras crianças ou as crianças falavam alguma coisa do outro pai, ele falava, “não, isso aqui está errado, e você não pode deixar isso”, e eu falava, “Edu, se eles tem isso, se eles querem, eles tem direito a ter esse convívio. E se eles tiveram esse tempo todo e você disse sim, é sim”. E aí, a partir dali, ele entristeceu de uma forma que ele ficou diabético, e ele começou a manipular por conta da diabetes. Então as crianças começaram a não falar mais do pai biológico pra que ele não ficasse triste, porque eles tinham um amor muito profundo por ele, e eles não queriam que ele ficasse triste ou que ele se achasse preterido. E não era nada disso, mas eles queriam ter o direito de conhecer esse pai biológico, “quem é esse homem? Por que esse homem nos abandonou? Que história é essa da minha história que eu não conheço? Que parte é essa de mim que eu não sei ainda?”. E eu lembro que quando eles falavam, eu falava, “o seu pai, aconteceu isso, eu falei pra ele, você não vai ter direitos, você também não vai ter obrigações, e está tudo certo”, e eu falava, “essa é a minha parte. Perguntem pra ele o que aconteceu, porque da parte dele eu não sei”. E eu lembro que teve um dia que eles chegaram e eles falaram assim, “mas ele abandonou a gente, ele falou que a gente não era filho dele!”. Eu falei, “opa, opa! Seu pai nunca falou isso, seu pai nunca questionou se ele era pai de vocês ou não, isso ele nunca falou. E de onde vocês ouviram vocês levem essa história de volta, porque seu pai nunca falou isso!”. Enfim eles passaram dos nove, que foi quando a gente contou, até mais ou menos uns catorze anos, eventualmente eles iam encontrar o pai. E aí nesse eventualmente eles falavam assim, “mãe…”, na cabeça deles eu tinha que estar junto, porque aí virava um modelo família Doriana. Eu falava, “não arruma confusão, pelo amor de Deus! já está difícil de engolir desse jeito, se eu sair junto com vocês vai dar merda. Isso aqui não vai dar certo!”. Até que chegou o momento em que eu fui chamada na escola… O Iago tinha catorze anos. Que que eles fizeram? Os anjos do Senhor (risos). A parede ali de drywall, ele brincando de cambalhota, eles quebraram a parede, a parede foi parar do outro lado da sala, e aí eu e outras mães fomos chamadas lá na escola. E na época eu estava fazendo constelação familiar, eu estava na formação, e naquele final de semana, no módulo de constelação educacional. E aí eu fui pra escola e a professora falou, “mãe, passa uma mosca e ele se perde. Mãe, precisa cuidar, porque qualquer coisa ele fica disperso”. Enfim, “está bom, eu vou olhar pra isso”. Pensei, vou chegar lá no curso, vou falar da história do meu filho, e a gente vai constelar isso, isso aqui tem um caminho de solução. Cheguei lá, todas as constelações que vinham com questões de escola, seja pré-primário, seja berçário, seja universidade, donos de escola, pai e mãe, tudo ia pra pai e mãe. Eu pensava, “deixa pra amanhã, não vou mexer nisso não” (risos). Isso era na sexta, aí sobrava e falava, “não, tô muito mexida, hoje não vou mexer com isso, hoje não, vou deixar pra amanhã”. No sábado piorou a coisa, piorou e eu falava, “meu Deus do céu, que que tem de meu aqui, que ele tá fazendo isso?”. Mas no domingo não teve jeito, no domingo eu falei, “deixa eu sentar lá do lado da alemã, vou lá pedir pra intérprete”, depois do almoço, óbvio, né? Vamos esperar mais um pouco, esticar isso o máximo, eu falei, “preciso de ajuda”, e aí eu contei, “olha, eu tenho um casal de gêmeos, tenho três filhos, eu tenho um casal de gêmeos, e eu fui chamada na escola por isso, isso, isso…”, aí a alemã vira e fala assim, “cadê o pai desse menino?”, eu falei, “então, ele tem dois”, a pessoa super evoluída, “eles tem dois pais, ele tem o biológico e ele tem o de criação”, eu falei assim, “mas eles se veem, eles tem contato!”. Ela falou, “entregue o filho ao pai e o pai ao filho…”, eu pensei, “nem lascando”, e aí eu pensei, “ela não está falando isso”, eu falei “mas eles convivem, eles se vêm eventualmente!”. “Não... Entregue o filho ao pai e o pai ao filho. O pai é o que empurra pra vida e pro mundo escolar”. E aí ela falou: “faça as malas do seu filho e entregue ele pro pai”. Eu pensei aqui dentro, “mas só morta!”. E aí quando eu voltei pra cadeira, eu pensei, “eu não confio nesse homem, mas esse foi o homem que eu escolhi pra trazer a vida aos meus filhos, então quem precisa cuidar disso sou eu”. E aí eu voltei pra terapia, eu voltei a olhar pras dores da mulher. Ninguém engravida esperando criar filhos sozinhos, ninguém engravida querendo que esse filho seja cuidado por outro homem… E por mais amor que o Edu tivesse, ele não era o pai biológico, não era aquele que empurra pra vida de fato. Porque quer a gente goste, quer não, quem te empurra pra vida é teu pai biológico. Ausente, distante, que bate, que isso, que faz tudo… É esse homem que te deu a vida que te empurra pra vida. Então eu consegui olhar pra dor dessa mulher ferida, que não esperava ter filhos e está passando por aquilo, ter vivido daquele jeito, o quanto foi difícil olhar pra tudo aquilo… E pouco tempo depois, uns dois anos depois, ele casou com uma moça que tinha um filho, enfim. É olhar pra tudo aquilo e pensar, “por que não?”. Até que chegou um dia que eu cheguei em casa e eles falaram, “mãe, a gente vai encontrar com o pai no domingo, mas a gente não queria ir sozinho, a gente queria perguntar pra ele o porquê de tudo isso. Você vai com a gente?”, e eu pensava, “meu, como é que eu vou? Vai piorar minha história aqui… Não dá!”, e aí eu falei, “eu vou conversar com o pai deles”. E aí eu chamei, liguei pro pai deles, eu falei, “a gente precisa conversar”. Isso há anos que a gente não se falava, desde aquele dia a gente não se falou mais. E aí eu liguei pra ele e falei pra, “ele a gente vai precisar conversar…”. Ele falou - ele era da Congregação, que mulheres ficam com o véu de um lado e os homens de outro - “vou falar com o conselho dos anciões e depois eu te dou a resposta”. Aí ele foi nesse conselho dos anciões, quando ele voltou ele falou assim, “eu não posso conversar com você sozinho…”, eu falei, “olha pode ser numa praça, pode ser em em qualquer lugar, pode ser dentro da igreja se eles quiserem… Mas que a gente vai conversar, a gente vai conversar!”. Enfim, nós saímos um dia, em plena Bela Vista, numa praça lá na Bela Vista, fomos lá e eu perguntei, “por que não eu?”, porque a ferida era minha. A falta de confiança nele como homem não tinha nada a ver com as crianças, a falta de confiança dele era como homem enquanto parceiro. Nisso eu projetei pros meus filhos, porque isso eu não podia confiar nele como parceiro, que dirá como um pai. E aí quando eu perguntei isso pra ele, ele começou a responder, e eu pensava, “isso não tem nada comigo. Isso é sobre ele, é sobre uma ferida que é dele!”, e eu falava, “isso não tem nada a ver comigo…”. E aí eu pude olhar pra ele e pensar, “ele não tem pra dar”, e ele não tem pra dar pra mim, ele não tem pra dar pra essa mulher que está com ele, ele não tem pra dar pra esse filho que ele tem agora… Ele não tem pra dar! E quando eu olhei pra isso, eu falei, “você não me deve nada”. E ali parece que acabou realmente aquela história, aquela coisa de desconfiar, porque é quase como se você estivesse esperando que alguém te desse o que ela não tem nem pra ela. Quando eu cheguei em casa, eles tinham feito uma reunião entre eles, Eda e Iago, e eles chegaram pra mim e falaram assim: “mãe, a gente pensou melhor. É melhor você não ir com a gente no domingo, não, a gente decidiu que a gente vai sozinho”. Ou seja, eu resolvi algo aqui com o pai deles, e isso reverbera aqui na vida deles, e no domingo eles foram e conversaram com ele… E foi ótimo! E eu pensei que eu não preciso mais interferir, e a gente faz isso por amor, sem perceber o quanto isso impacta a vida dos filhos, né? E isso hoje eu fico olhando e eu penso, “Graças a Deus que eu sei o que eu sei, que eu faço o que eu faço…”. Vocês perguntaram: você foi estudar pra isso? Em dois mil e cinco eu conheci a Constelação Familiar, e ela mostra que dentro de uma família só o amor nunca é o suficiente. Pra que o amor dentro de uma família verdadeiramente surta efeito, pra que a família viva em paz, é preciso que esse amor tenha ordem, e ele descobre que existem algumas ordens, né? Então a primeira ordem é a ordem do pertencimento. Por mais que aquele homem que eu falasse, “eu não quero você mais na minha vida”, a mulher que eu sou hoje, eu sou em parte cada uma das pessoas que passaram pela minha vida, por mais que não tenha sido do jeito que eu gostaria. Quando eu digo que acabou, você sumiu, você morre pra mim. Eu faço a mesma coisa, eu excluo ele do sistema da vida dos meus filhos, ou seja, eu digo pra eles, “o seu pai não vale nada”. Se metade deles é o pai, metade sou eu, metade deles não vale nada. Então estudar o que eles vão ser dali pra frente não faz muita diferença, né? Então quando eu incluo ele novamente, e eu reconheço essa mulher que eu sou hoje, em parte graças ao que nós vivemos juntos, eu devolvo aos meus filhos o direito de fazer parte do sistema dele também, de fazer parte verdadeiramente da vida deles sem que eles precisem continuar fazendo do jeito que eu fiz. Porque eu falei, “a partir de hoje acabou”, e eu simplesmente saí e virei as costas. Uma parte da responsabilidade é dele, ele poderia ter me procurado, ele poderia ter dito, “eu quero ver meus filhos”, mas não. Isso ele também não conseguiu fazer, porque ele também não sabia fazer diferente, né? Mas eu falo que, “enquanto a gente não sabe, não sabe”, dá pra você olhar, porque isso é um atenuante, mas quando eu sei, isso é agravante. Saber tudo que eu sei e fingir de morta é agravante. Então pra mim tem um peso da responsabilidade, do efeito que isso vai ter na vida dos dois. Quando eu incluo esse homem na minha vida, eu devolvo a ele o lugar de pertencer na vida dos meus filhos, o lugar de pai que é dele. Então, na verdade, eles tem os dois pais, eles têm o Oscar, que é o que empurra pra vida, que é o pai biológico, e eles tem o Edu, como pai de criação, que é o que eles consideram como pai pra tudo, que eles contaram pra tudo, até dois anos atrás, quando ele faleceu, pra tudo era o Edu. E todo esse contexto, que tem tanto na família do pai biológico, quanto na família do pai que escolheu cuidar deles por amor, eles levam isso pra vida toda, né? E isso na vida deles faz hoje muita diferença, muita, muita, muita, diferença. Então quando eu vi a constelação familiar pela primeira vez e o quanto aquilo muda vidas, quando a gente se coloca no lugar de filho e pequeno, deixa de cuidar da história de pai e mãe… Quando vocês perguntaram, como é que era lá atrás? Quando eu falo pra minha mãe, “se separa dele e vai viver a tua vida”, eu não estou no lugar de filha, eu estou querendo ocupar o lugar do meu pai. Energeticamente eu perco a força, quando eu volto, graças a Deus ela não quis, porque senão era esse o lugar que eu estava, cuidando dela como se eu fosse o meu pai. E eu fiz isso por muito tempo, de comprar as coisas pra ela, de fazer as coisas, porque eu achava o meu pai um bosta. E quando eu faço isso, eu perco força porque eu não estou falando dele, eu estou falando de mim. Metade dele sou eu, tá aqui dentro. E eu posso construir diferente? Posso, mas cada vez que eu fico julgando e achando que ele tinha que ser diferente, eu também não vivo a minha vida de uma forma inteira. E quando eu volto pro meu lugar e eu falo, “vocês são preto que se entendam”, porque hoje ela às vezes ela vem, “ah porque o seu pai, porque sua mãe”, eu falo assim, “cês são preto que se entendam, porque eu não vou nem me meter!”. Eu volto pro meu lugar de filha, eu cuido deles quando precisa, mas dentro desse lugar, e aí eu consigo colocar ordem nesse lugar. Eles são grandes e eu sou pequena. Se tem coisa pra ser resolvido nessa relação, não sou eu que vou conseguir resolver. Ela escolheu esse homem pra me dar a vida, né? E quando eu devolvo aos meus filhos esse mesmo lugar, esse é o pai que eu escolhi pra vocês, e é o melhor pai pra vocês. O que eles vão fazer com esse pai, com essa história e com tudo isso? Eu não sei. Mas esse pai que foi distante, que não foi presente, que fez isso, que fez aquilo, esse é o modelo de pai que constroi a identidade dela e dele. E de uma forma ou de outra, é o melhor pai pra eles. Enquanto eu fico no meio disso, querendo intermediar, e continuo julgando sem saber dessa mulher ferida aqui dentro, eu tiro a oportunidade dos meus filhos de encontrarem a melhor parte deles dentro deles mesmo. E isso fez toda a diferença, principalmente pro Iago, porque o Iago há uns cinco anos atrás ele chega pra mim e ele fala, “mãe, eu estou namorando”, “é filho? Que bom, está na hora mesmo…”, ele falou assim, “mas ela tem filhos, ela está morrendo de medo de você”, “como assim? Eu nem conheço essa mulher.”, “você conhece, mãe…” - eu tinha na época um grupo de mulheres num trabalho voluntário, com cinquenta mulheres, mais ou menos cinquenta, sessenta mulheres - “ela já conhece o seu trabalho, porque ela foi lá, e ela está morrendo de medo de você”. Eu falei, “mas por que ela está com medo? Quantos filho ela tem? Dois? Três, Iago? Iago, quantos filhos essa mulher tem?”, “Seis”. Aí baixou a psicóloga… “É isso mesmo que você quer filho? Você está feliz?”, “Estou”. Cinco segundos depois: “que é isso Iago? Seis filhos? Pelo amor de Deus… Não, você está louco, Iago!”, aí baixou a mãe, cantou pra subir a psicóloga (risos). “Você está louco, Iago? Pelo amor de Deus, Iago. Não é possível que você está fazendo isso com sua vida. Que merda é essa?”, aí baixou a louca. E enfim, na época a filha dela mais velha tinha catorze anos, o filho dela mais novo tinha quatro anos, e essa foi a vida que ele escolheu, ele assumiu essa mulher com seis filhos. Hoje eu tenho um netinho que vai fazer três anos agora em julho, e chegou o momento em que ele passou em casa e falou assim: “mãe, eu não estou feliz. A gente está brigando muito. Os valores são diferentes.”. Eu falei pra ele, “filho, eu te avisei. Eu te avisei... Então você vai respeitar essa mulher. E agora você não tem um filho, você tem sete filhos”, porque as crianças… O dia que eu vi os seis chamando ele de pai, falei, “Iago você conhece a constelação, filho? Está muito em desordem! Essas crianças tem pai, Iago. Como é que você autoriza essas crianças a chamarem você de pai? Tio, padrasto… Elas tem pai! A força de vida delas não vem de você, vem através dos pais biológicos”. “Ah, mas eles não ajudam em nada…”, “não importa, Iago. A vida deles quem deu pra eles não foi você, por mais amor que você tenha por essa mulher. Quem deu a vida foi o pai biológico”... E aí veio um insight e eu falei pra ele, “filho, você tá com essa mulher porque cê quer provar pro seu pai que cê é um pai…”, porque eu falei pra ele, “vai procurar teu pai, vai ver o que que seu pai acha disso”, ele falou “ele é um bosta, ele não tem o menor direito de falar alguma coisa!”, eu falei, “então que pena, filho. O seu pai não precisa de você, porque quando você nasceu ele já existia. Eu também não preciso de você, porque quando você nasceu eu também já existia. Nós dois poderíamos ter decidido abortar você. Enquanto você perde tempo julgando o seu pai, você vai continuar criando seis crianças que te chamam de pai, que vão trazer pra você a responsabilidade de pai, pra que você prove pro seu pai que você é um pai melhor do que ele. Isso é vida? É isso que você quer pra você? E isso só vai melhorar quando você olhar pro teu pai, agradecer a vida que ele te deu, e olhar que a vida que ele te deu é o suficiente pra você passar a vida pro teu filho”. Enfim, hoje o caçula tem dois anos e meio, eles estão juntos. E o caçula que tinha quatro, tem oito, a menina que tinha catorze, tem dezoito, vai fazer dezenove. Eles estão juntos, bem obrigada, durante todo esse tempo… A relação dele com o pai hoje depois disso, com o pai biológico, eles saíram pra conversar e eles mudaram muito a relação mesmo… Porque o Edu faleceu, ele tinha várias comorbidades por conta da diabetes, então em junho de dois mil e vinte e um ele foi internado e ficou alguns dias, e faleceu de covid com um monte de comorbidade. No dia do enterro dele, o Oscar estava lá, com profundo respeito ao Edu, porque uma das coisas que ele tinha era isso, “eu agradeço ao Edu por ele ter cuidado deles do jeito que ele cuidou e ter feito deles o que eles são hoje”. Então esse nível de respeito que o Oscar tinha e gratidão pelo Edu foi o que fez com que eles se ligassem mais depois da morte do Edu. E a minha filha Eda, ela mora em Barcelona já fazem oito anos, né? Ela fez USP, aí ela conseguiu uma bolsa pra ir pra Madrid. Na época nós fomos, seis meses depois a gente foi ver onde é que ela estava, e ela falou, “mãe, aqui em Barcelona tem o melhor curso de lazer. Vocês não querem me ajudar a ficar por aqui?”, e aí ela foi ficando e ela foi trabalhando, conseguiu terminar a faculdade na universidade de Girona. Moral da história: ela só vem aqui pra passeio. Há oito anos está lá e não quer mais voltar pro Brasil, mas quando o Edu faleceu, eles estavam acompanhando, e a gente já tinha se separado fazia um ano… não, não fazia… ia fazer um ano que a gente tinha separado porque eu falei, “não faz mais sentido”, né? Eu olhava pra ele e eu pensava, “a gente está vivendo uma relação em que você está mais como o meu pai do que como o meu parceiro”, e eu olhava pra ele e eu falava, “não cabe mais”. Então quando ele ficou internado, eu falei pra Eda, “o seu pai está numa situação grave”, e o médico falava, “não, ele está melhor, olha…”, e os boletins eram boletins mais animadores. Até que chegou um dia em que ele veio na minha cama e ele falou assim: “eu vim te pedir desculpa por tudo que eu fiz pra você. Eu não tinha a menor noção. E eu estou indo embora, e a gente não precisa ir embora desse jeito”. Naquele dia que eu acordei chorando e eu falei, “ele já está indo embora”, isso foi na terça. Na quarta-feira eu falei pra eles, “o seu pai veio se despedir de mim”, “ah mãe, você está louca? Você está louca?”, nove e meia da noite ele faleceu. E eu tinha certeza de que… Porque pra ele, eu ter falado pra ele, “eu não aguento mais”, porque era uma coisa de cobrança, de que eu tenho que estar ali o tempo todo, fazendo o tempo todo, cuidando dele como mãe, e eu falava “eu não dou conta mais disso, eu preciso começar a viver”, porque não era mais a vida que eu queria pra mim. Então foram muitos anos bem difíceis, né? Mas eu tinha profunda gratidão pra ele, por tudo que ele tinha feito, por tudo o que os meus filhos se transformaram, os três. E quando eu olhei pra ele ali do meu lado, eu pensava, “que bom que a gente teve um tempo pra ficar em paz antes dele partir de fato”. E aí a minha nora liga e falou “ligaram do hospital. Eu eu tô indo lá com o Danilo”, eu falei, “não, eu vou junto”, e aí ele tinha falecido... Isso foi dia dez de junho. E aí eu liguei pra ela, e aqui a gente tem uma diferença de cinco horas de fuso, e eu liguei e falei, “filha, o seu pai acaba de falecer”, e ela entrou em choque. E eu falei, “a gente está indo pra reconhecer. Você quer ir junto?”, “quero”, mas pensa numa pessoa estática. E ela, na verdade, não acreditava naquilo. Enfim, eu acabei pedindo pra uma amiga dela ficar junto com ela, ela viu lá no hospital, ela teve como olhar para aquilo, porque eu tinha falado pra ela vir embora, peço pra ela vir. No dia seguinte era, sei lá, dez mil reais, pra ela vir num outro dia de manhã era dois, três mil reais. Eu falei, “venha e a gente vai congelar”. Então ela já tinha comprado a passagem, então ele não tinha morrido ainda, a gente vai pedir pra congelar, pra por na geladeira, e você vai vir… E foi o que a gente fez. Então a gente internou ele dia doze de junho, dia dos namorados. Quando ela veio do aeroporto direto, a gente foi pra lá, só que com covid não tem um velório, então ela não teve muito tempo pra vê-lo. O que ela viu foi aquele momento em que a gente viu… E aí você imagina o desespero dela, falava, “pai, eu vim te ver” (chorando), e era um nível de choro ecoando todo cemitério, e os irmãos ali segurando ela, e ela num desespero. E aí o Dan que é meu filho, com ele também ali tentando ser forte, tentando ser durão. Enfim, ele fez essa passagem, foi embora, e depois eles falaram, “mãe, foi tão bom meu pai tá aqui, pra saber que eu não tô sozinha”. Então, hoje eu fico pensando, com tudo aí que eu já vivi, eu fiz algumas coisas que fizeram diferença... Então quando eu falo seja nas lives, seja nos grupos, quando eu mudo vida de pessoas hoje, eu falo muito da minha vida. Então tudo isso que eu estou falando aqui é um compilado, mas tudo isso que eu estou falando aqui eu já falei, muitos exemplos que eu dou de ordens e desordens nas ordens do amor. Porque eu falo, “gente, isso nos torna humanas”, então quando eu falo da minha história, e eu não conto só o que eu ouço nos livros, eu sei o resultado que tem aquilo, eu sei a diferença que falar de coisas que nos tornam humanas faz na vida de outra pessoa. A pessoa vai olhar e falar assim: “nossa, se até Eunice passou por isso e está tudo certo, eu vou passar também”, então poder olhar pra isso é libertador.
P/1- Qual é o seu sonho agora pelos próximos dias?
R- O meu sonho… Eu fui condecorada pela Divina Academia Francesa de Arte, Cultura e Letra no ano passado pela diferença que eu faço na vida de pessoas. Eu tenho esse projeto, eu estou coordenando um livro que se chama “Quais de Mim Você Procura?”, que é um projeto pra mulheres em situação de vulnerabilidade. Então todo o dinheiro que é feito por essas mulheres, que entram como coautoras nesse livro, é revertido total pra livraria, pra impressão desses livros, que são entregues em escolas pra mulheres e adolescentes, em cursos de empreendedorismo feminino, pra abrigos, pra casas de custódia… E todo esse projeto, hoje, nós estamos no ranking Brasil por ser o primeiro grupo - hoje nós somos seiscentas mulheres, mais ou menos - de mulheres empreendedoras, que fazem a diferença na vida de mulheres em situação de vulnerabilidade. E esse é um projeto que começou com a Cátia Teixeira, e quando fez o primeiro livro… De onde veio isso? Ela recebeu um convite pra fazer uma palestra sobre empreendedorismo, e ela foi na livraria, pegou alguns livros, mas só homens. Voltou de novo, leu, só homens. Mas ela falou, “mas não tem mulheres”, “ah, tem essa aqui…”, três mulheres e cinquenta milhões de homens. Ela falou, “mas por que só tem isso?”, ele falou, “porque não tem mulheres empreendedoras de sucesso”. Ela falou, “não tem? Então espera aí que eu vou te trazer… Daqui a seis meses eu vou te trazer o primeiro livro escrito por mulheres empreendedoras de sucesso”, foi aí que surgiu “Quais de mim você procura?”. E aí no dia do lançamento, que foi feito na Câmara Municipal, uma das mulheres que mais engajaram, que mais falaram, “não pode ficar aqui, tem que ter mulheres na moda, mulheres na arte, mulheres na ciência, mulheres na saúde, mulheres mães, mulheres…”, enfim, essa não foi. E aí no dia seguinte a Kátia pegou os volumes a que ela tinha direito, pegou o endereço dela e foi, e quando chegou lá era uma comunidade. E a mulher, quando ela entregou esse livro, a mulher abraçou aquele livro e falou, “eu falava pra minha mãe, você não tem noção de como você mudou a minha vida, porque eu falava pra minha mãe, eu vou mudar a vida de outras pessoas”, e a mãe dela falava, “larga mão de ser besta”. E aí quando a Katia vê aquilo, que fez tanta diferença na vida daquela mulher, ela fala, “esse livro não vai pra livrarias, ele não vai ser vendido, não vai ser mais um livro de livraria, ele vai ser um livro que ele vai ajudar mulheres a saírem de uma condição de vulnerabilidade e serem independentes. Saber que elas podem trazer uma consciência de que se a gente foi, elas também podem estar no mesmo lugar”. Então esse é um livro que está aí na décima edição, cada livro com um mote, e eu coordeno esse “Mulheres terapeutas”. Então durante todo esse período, desde o período da pandemia, eu faço lives todas as terças. No período da pandemia, era três vezes por semana, e eu falava, “isso vai passar, mas as pessoas precisam confiar que isso vai passar”, né? E eu tô aí trinta e três anos já como psicóloga, dezoito como facilitadora de constelação, estou na sexta turma de formação… E fazer isso que eu faço, trazer essa consciência pras pessoas, de que vai passar, e de que quanto mais a gente se mantiver num lugar de filhos pequenos diante dos nossos pais, mais livres nós estamos pra viver uma vida diferente, uma vida de mais plenitude, mas a gente pode dizer sim pra saúde, pro dinheiro, pra um relacionamento saudável, pra uma vida afetiva na família, com todos, enfim, com tudo que é de uma forma muito mais harmoniosa do que a gente tem hoje. E quanto mais eu faço isso, mais eu tenho certeza de que eu tô no caminho. Então pros próximos meses… Falei que eu vim aqui pra contar só coisas boas, mas o choro fez parte… Mas anteontem o “Quais de Mim Você Procura?” virou um instituto, chama-se Instituto Quais de Mim Você Procura, então a partir de agora, pra entrar nas comunidades, nós podemos entrar como um instituto e entregar, fazer uma catalogação dessas mulheres, de mulheres que verdadeiramente precisam de um outro apoio. Eu também faço parte do Lions, e aí o Lions pode ajudar essas mulheres com cursos, com outras coisas pra que elas saiam dessas condições. Então o meu legado, hoje, então eu tenho aí alguns livros que eu tô em coautoria, “Mulheres e Finanças”, “Mulheres Empretecas”... Estou agora nesse “Mulheres Terapeutas”, tenho uma coautoria também no “Práticas Bioxamânicas". Eu falo que eu sou uma pessoa que tem muitas coisas que eu faço bem diferente da caixinha (risos), e que eu tenho certeza que faz a diferença na vida das pessoas, né? Eu falo que essa é a sexta e última turma de formação de constelação, porque no ano passado eu fui para Portugal, e a sensação que eu tenho agora é como se eu tivesse vivendo um momento na minha vida em que minha vida vai mudar da água pro vinho. Eu não tenho a menor dimensão de onde eu vou estar o ano que vem, de que caminhos a vida vai me levar, mas eu estou como lá, no período do hospital, em que eu falava, “Deus cuida da minha vida, porque agora eu sei que ela não está nas minhas mãos”, eu estou seguindo do mesmo jeito, sabe? “Cuida da minha vida, pai, porque eu coloco ela nas tuas mãos pra que eu seja só um instrumento”, então quando eu levanto de manhã eu falo, “Deus, se a minha vida valer a pena, faz com que eu faça a diferença na vida de alguém”. Então esse é, não sei por quanto tempo, mas esse é o meu mote de vida.
P/2- Você pode falar um pouquinho mais sobre as práticas bioxamânicas?
R- Posso. Então, uma das práticas bioxamânicas… A cosmologia, por exemplo, ela também é uma prática bioxamânica. O que ela faz? Imagina que tudo que nós vivemos aqui, dos nossos pais - ela pode ser considerada também dependendo do que a gente usa - tudo que nós vivemos... Imagina que essa força de vida, que chega até nós através dos nossos pais, ela é como se fosse um rio, água limpa e cristalina. Quando acontece uma desordem aqui atrás, é como se fosse um dique, vai passando um fiozinho aqui, que é o que a gente chama de vida, e é a vida que a gente conhece. Mas quando a gente olha aqui pra trás e a gente reconhece que a gente não consegue mudar a história porque ela já passou, a gente pode construir uma história nova, fazer uma coisa diferente a respeito do que vocês viveram. E aí, enquanto mulher preta, eu reconheço, quando eu fiz a minha constelação étnica lá atrás, no período de formação, chegou um momento em que eu não sabia a minha história. Dois dias antes do curso, a minha mãe, sei lá de onde surgiu, falou que o seu bisavô, ou seja tataravô meu, era senhor de engenho, ele teve um lance com a minha tataravó, e o meu bisavô não tinha sido vendido por conta da Lei do Ventre Livre. Aquilo, quando eu soube daquilo, gente… Parece que eu falava, “onde eu estava que eu não sabia da minha história?”. E eu lembro que eu trouxe isso no contexto da constelação, e a pessoa que coordenava era uma alemãzona, e ela falou assim, “nós vamos olhar pra isso”. E ela colocou alguém pra representar o meu pai e a minha mãe. Por parte de mãe eu tenho toda essa ancestralidade africana, então tem esse tataravô e toda essa história. Por parte de pai eu tenho a minha avó que era índia e que foi pega a laço a minha bisavó… Ou seja, toda essa história é como se tivesse descortinado ali, como se todo esse tempo eu pensava, “onde eu tava, que eu não vi, que eu não sabia disso?”. E quando ela coloca os meus pais e os meus avós, gente, parece que ali eu começo a olhar pra eles e eu comecei chorar, chorar, chorar, eu fui pro chão. Enquanto eu fui pro chão, ela foi colocando pessoas e colocando pessoas… Aí ela toca no meu ombro e ela fala assim, “isso é o que você tem feito com a tua vida até agora, ficado parada e chorando. Está na hora de você fazer diferente. Levanta daí e vai até onde o teu coração pede”. E aí eu levantei e eu fui numa mulher que estava lá no fundo - acho que tinha umas cinquenta pessoas na época - e aí ela olhou e ela falou assim, “você sabe quem essa mulher representa?”, eu falei, “não”, ela falou, “essa aqui representa a África. Essa aqui representa todas as mulheres e todos os homens que ficaram lá. Esse aqui representa todos os que morreram no caminho. E essas aqui representam todas as que foram escravizadas aqui no Brasil… Agradece a vida!”. E aí eu lembro que eu fiz uma reverência profunda, porque eu não consigo mudar essa história, essa história já foi, mas eu posso fazer da minha história uma história diferente. E eu fui lá pro chão e eu fiz uma reverência profunda de abertura, de entrega mesmo, e eu comecei chorar, eu chorei, chorei, chorei… Quando eu esvaziei e eu levantei, eu comecei a olhar pra elas e eu falei, “tudo que aconteceu valeu, porque agora eu sou livre”. Eu só não sabia disso, mas eu posso fazer da minha história uma história diferente da que vocês tiveram. E eu lembro que ela foi trazendo frases de solução nesse caminho até chegar no meu tataravô, quando chegou nele, ela falou, “diz pra ele”, era assim mesmo, e eu falei, da boca pra fora, porque aqui dentro tinha um julgamento, “que sacana, ele estuprou ela! Ela não teve escolha. Ele podia ter feito diferente…”, mas o discurso não era esse. E aí a constelação continuou, e eu olhei pra minha tataravó, e olhando pra todas essas mulheres, eu olhava mulheres abusadas. Enfim, eu disse um profundo “sim” para aquilo, mas aqui dentro da minha alma ainda não tinha um consentimento, um assentimento aquilo que tinha sido e que eu não poderia ter mudado. Fui pra casa, super leve… Cheguei em casa… Se você não respeitar o seu limite, a sua intuição… Eu fui pensando, “eu vou deitar, vou dormir, não vou fazer nada”. Cheguei lá, a Eda falou assim, “mãe, olha isso aqui”, me mostrou um negócio no computador, fiquei lá com ela, não respeitei: fiquei dez dias com diarreia, vomitando, num processo de limpeza extremamente profunda, tive que fechar minha agenda no consultório. Mas nesses dez dias eu consegui perceber os momentos em que eu honrava o senhor do engenho, e que as coisas eram do meu jeito, em que a minha relação com os homens era do meu jeito, em outros momentos, o quanto eu estava identificada com essas mulheres que foram escravizadas, porque em muitas situações eu também me submetia a situações que quando você olha, você fala, “por que que eu fiz isso comigo?”. E quando eu consegui olhar isso foi quando eu comecei verdadeiramente a parar o julgamento, e eu comecei a melhorar, meu corpo começou a regenerar. E quando deu o décimo dia, eu abri a agenda de novo, e nesse instituto que eu trabalhava, nós éramos, em quarenta profissionais, duas negras, eu e a Susiê. O dia que eu abri a agenda, ela falou assim, ela me liga, “Nice, dá pra você fazer uma constelação pra mim amanhã?”, eu falei, “Su, tô melhorando, agora não sei se eu quero isso ainda, eu vou atender só no individual”, ela falou, “são duas constelações, bem simples, uma japonesa e uma negra que tem problema com a filha, são filhas gêmeas, e é simples. Ela só quer olhar pra relação dela com a filha”, “eu vou pensar…”. E aí eu falei pro Edu, ele falou, “Eunice, ela nunca te pediu nada e você já está melhor”, “tá bom, vai… Su, vou fazer essas duas constelações”. No dia seguinte, gente, fiz a constelação da japonesa… Na hora que chega na constelação da negra, ela fala da história da filha, ela foi criada pela avó, a filha dela foi criada pela avó, porque ela tinha que trabalhar, e aí eu fui colocando ela, a mãe, as mulheres dessa família, mas chegou lá na hora da tataravó e enroscou. Eu falei pra ela, “o que aconteceu aqui?”, ali tinha sido onde o fluxo do amor tinha sido interrompido, eu falei, “o que aconteceu aqui?”. Ela falou, “ah, esqueci de falar… O meu tataravô era senhor do engenho, e a minha tataravó foi não sei o que, e o meu bisavô não foi vendido…”. Ela contou minha história! E eu olhava e falava, “você não está fazendo isso comigo. Dez dias no banheiro! Não, você não está fazendo isso comigo, eu não vou passar por isso de novo”, mas ao mesmo tempo, eu olhava pra essa mulher e eu pensava, “se eu estou aqui, sou eu que vou trazer o caminho pra ela. Respira…”, e aí eu fui fazendo com essa mulher o mesmo caminho que tinha sido feito comigo. Chegou na hora do tataravô, a pessoa que representava - porque as pessoas não sabiam o que elas estavam representando - eu falava, “diz pra ela: foi assim mesmo”, e ele fazia, “não, sinto muito”. E aí eu pensei, “deixa eu conectar com isso… Diz pra essa mulher: eu amei muito você”, aí ele falou, “eu amei muito você”, e aí ela diz assim, “esqueci de falar, quando teve a Lei Áurea, ele montou uma casa pra ela e eles moraram juntos até ela morrer”, aí eu falei, “gente, eu nunca pensei que existisse amor!”. A minha constelação acabou ali! Eu nunca tinha imaginado que existia em algum momento o amor, eu só via dor. E a partir dali, a minha vida mudou da água pro vinho… Sabe por quê? Porque até ali eu vivi uma relação de dependência com o Edu por muitos anos, muitos anos. Depois que sai da TELESP, por muitos anos eu dependi financeiramente dele, então engoli muito sapo porque eu precisava cuidar dos meus filhos. Submissão. Identidade com essa tataravó, que ela viveu muitas coisas, com tudo o que aconteceu, e ao mesmo tempo era uma coisa que vai ser do meu jeito. E quando eu passei por tudo aquilo e eu consegui olhar pra toda aquela história e falar, “eu não preciso mais dizer não pro dinheiro”, porque o dinheiro passava na frente, situações de sucesso, e eu fingia aquilo de morta, isso não é comigo. E é tão comum as pessoas fazerem isso quando estão identificadas com as questões dos nossos ancestrais, que o dinheiro passa, o sucesso passa, a abundância passa, relacionamentos saudáveis… Mas se essas mulheres aqui atrás, se esses homens atrás, não viveram isso, como é que eu posso viver isso? Eu só posso viver isso quando eu peço uma liberação, e quando eu deixo de acreditar que eu posso mudar a vida de vocês, e aí a gente vai repetindo, fazendo mais do mesmo, sem ter a menor consciência de que eu posso sim construir uma nova história, fazer da minha vida uma vida diferente do que eles viveram, nem melhor nem pior, e mesmo assim eu continuo pertencendo. Mas pra isso eu preciso respeitar essa segunda lei que é da hierarquia: estou aqui, atrás de mim meus pais, com toda essa história. Se eu quero mudar essa história, ou quero cuidar dos meus pais, ou da história dos meus ancestrais, achando que eu posso mudar essa história, eu saio do meu lugar de força que é agora, vou lá pra trás, e eu acho que eu vou lutar uma luta, e a partir desse bom combate, eu vou mudar a história deles… Eu não consigo mudar! Mas eu posso construir desse lugar quando eu respeito. Foi assim, teve tudo isso, teve escravidão, teve estupro, teve assassinato, teve mãe separada de filho, teve pai separado da família… Enquanto a gente não consegue olhar pra tudo isso, a gente sai desse lugar de criança e vai lá pra trás tentando mudar na guerra interna tudo isso, e a gente perde a força pra construir uma história diferente. Então quando eu olho pra esse lugar, e eu falo, “isso tudo é muito grande pra mim e eu respeito isso”, eu posso ficar nesse lugar e honrar a vida e tudo que eles viveram, fazendo da minha história uma história melhor. Eu posso ajudar mulheres, eu posso ajudar pessoas a construir caminhos diferentes, eu posso ajudar pessoas a se conhecerem e não se permitirem, sem viver na submissão. Eu posso ajudar pessoas a se empoderar de tudo que a vida tem de bom, porque a vida tem muita coisa boa, mas ela vai passar na minha frente se eu achar que isso não é pra mim. Eu vou passar, vem um vulto e eu não enxergo, eu deixo as oportunidades pro outro e não me aproprio disso. Estou nesse lugar de filha, que é o que me cabe, respeito essa história, posso ter um parceiro. Saio desse lugar, vou cuidar da vida dos meus pais, dos meus irmãos ou da vida dos outros, o lugar fica vago, vem uma outra mulher e ocupa. Então uma das pessoas fala, “ai eu fui traída ou eu fui traído”, a primeira coisa que eu pergunto é: “que lugar que você estava nessa relação? Era o de filha, era o de filho, era o de parceira, era o de irmão… Que lugar que cê tava?”, porque no lugar de parceria, quando eu tô no meu lugar, nenhuma mulher ocupa. Mas se eu saio desse lugar, vem uma outra mulher e senta, vem um outro homem e ocupa esse lugar. Então estou nesse lugar, tenho um parceiro, e se eu tenho expectativa de que ele cuide de mim como filha, saio desse lugar e sou lá a filha mais velha. O que acontece hoje é que as crianças brigam muito cedo: três, quatro, cinco anos, ele já entra em confronto com os pais como se fossem adultos. E os pais perdem a identidade de valor, de quem é o grande aqui, de quem manda. E quando você olha, o que essa criança está dizendo? “Volta pro teu lugar, porque você é a grande, você é o grande. Você não é meu irmão”, e aí quando os pais resolvem olhar pra isso, eles voltam pro lugar que é deles, e os filhos podem ficar no lugar que eles cabem. Ou em outros momentos, a gente entra no lugar desses homens como mães… Se uma mãe é difícil, duas é insuportável! O lugar vazio precisa de uma outra mulher pra dar conta de cuidar da sua família toda, e a traição vem como um outro mecanismo de compensação. Estou dentro desse lugar, tenho um parceiro, essa relação fica em ordem. Quando eu olho pra esse homem, nos separamos, e eu falo mal dele pro meu filho, ou ele fala mal de mim, pra essa criança, metade de mim não vale nada, a outra metade também não. E aí eu fico olhando o quanto aumentou o uso da maconha, porque os vícios representam a busca do pai. Muitos e quantas famílias a gente tem no nível de desestrutura, porque essa busca do vício é uma busca de preencher um vazio de alma, porque a gente tá muitas vezes identificado com esses ancestrais que precisavam do álcool, que precisavam dos vícios pra se manter entorpecidos na dor. E quando eu atendo esses jovens, quando eu atendo essas pessoas que falam, “eu uso, isso pra mim é bom porque eu relaxo’, eu falo, “então tá, então vamos olhar… O que mais tem por trás disso? O que mais faz com que você use, com que você busque se preencher disso? Quando na verdade existe algo que é maior, que é uma falta maior aí dentro, e que você não consegue ainda entender porque que eu estou preenchendo com isso - e que pode ser compulsão do que for, pode ser sexo, pode ser jogo… A novela está aí mostrando agora esse jovem que tem uma compulsão pro jogo, e se você tira ele ali do jogo é quase morte. Enfim, toda essa compulsão vem desse lugar de buscar preencher dentro de mim esse vazio que vem da energia masculina, do pai, do avô… E normalmente quando eu olho, e eu falo, “ninguém dá o que não tem”, eu consigo fazer diferente. Então, e aí a última lei - que eu falo que se essas duas são difíceis, a última pra mim é pior - é a lei do dar e receber. Porque os pais dão a vida, e por mais que a gente queira, a gente não consegue devolver a vida. Então se eu olho, dá pra dividir, dá pra devolver a vida aos meus pais? Como? Vivendo a minha vida da melhor forma ou passando a vida fazendo o que me dá prazer e o que me deixa feliz ou passando a vida adiante e ensinando pros meus filhos que eles podem fazer melhor do que eu, fazer diferente do que eu fiz… Essa é a única maneira de equilibrar essa balança. A grande questão é que a gente continua, como adultos, no lugar de criança, cobrando porque meu pai não deu, porque minha mãe não dá… Enquanto a gente fica nesse lugar, a gente fica no lugar de pedinte, esperando que alguém nos dê o que os nossos pais não deram. E quando a gente fica nesse lugar de expectativa, a gente vai se submetendo a relacionamentos extremamente abusivos, porque a gente olha pra uma pessoa, e no início, eu minto pra você você mente pra mim, se eu não sou verdadeiro, “eu vou dar pra você tudo, inclusive aquilo que seus pais não te deram”. Só que quando eu começo a mostrar que eu tenho um monte de coisas que não são legais, se existe esse vazio e eu estou buscando alguém que seja melhor do que meu pai ou minha mãe, eu vou me contentar com aquilo que é uma merda que você me dá, na expectativa de que aquilo lá aumente, e você vai fazer um monte de coisas que são ruins, e eu vou fingir que eu não estou vendo porque você me nutre de alguma forma, de algo que eu não recebi dos meus pais. O grande desafio aí é olhar pros meus pais e dizer, “vocês já me deram muito”. Quem criou essa técnica foi o Bert Hellinger e ele dizia, “se os seus pais te deram a vida, colocaram você numa caçamba, seja porque teve depressão pós-parto, seja porque falaram, “eu estou me separando de você, eu não quero você nem o filho”, seja… Não importa o motivo. Se eles te deram a vida, colocaram numa caçamba, alguém passou, pegou, cuidou, fez de você o que você é hoje, eles já fizeram a parte deles”. Então aí, trazendo o meu exemplo, os meus filhos têm dois pais. Se eles tivessem sido criados pelo pai biológico, seriam o que é hoje? Não sei. Seria melhor? Também não sei. Seria pior? Também não sei. O que eu sei é que eles são hoje, graças a esse homem que escolheu dar a vida, e graças a esse homem que escolheu cuidar deles por amor a mim e por amor a esse pai biológico; isso é certeza. E quando os filhos tomam a vida, sem querer mudar nada, e sem ter expectativa de que os nossos pais façam mais absolutamente nada, é quase como se a gente soltasse um espaço e falasse, “agora eu começo a viver a minha história”. E esse é um lugar em que muitas vezes as pessoas chegam vivendo relacionamentos extremamente abusivos, totalmente sem consciência, e eu olho e eu falo, “até quando você vai fazer isso com a tua vida? Até quando você vai ficar correndo risco, inclusive de ser morta?”. E não é só a mulher, é homem sim, inclusive, que vivem relacionamentos abusivos com outros homens, inclusive com outros parceiros… E que você olha você fala, “gente, onde é que você perdeu essa energia a ponto de perceber que uma outra pessoa vem, machuca você desse jeito, e você consente? Onde é que você se machuca fisicamente, emocionalmente, e você perde a tua força? Onde é que está a tua força?”. Não vem de um parceiro ou parceira, vem dessa força que está aqui atrás. Cessa o julgamento pra que você consiga construir uma história de vida, não de morte, não de seguir os teus ancestrais no pior aspecto! E aí quando eu olho pra essa ordem do dar e receber, o grande desafio é que quem recebe muito… E se a gente tem uma imagem de que eu tenho que ser uma menina boazinha, e que eu tenho que dizer sim pro papai e pra mamãe e fazer tudo pra eles a vida inteira, esse é o modelo que eu vou construir. E aí quando eu acho que eu estou me relacionando com alguém como uma mulher de sessenta, não: eu estou me relacionando com alguém como uma pessoa de quatro ou cinco, e aí eu não tenho trinta, quarenta, cinquenta, eu tenho no máximo cinco ou seis. Sem ter consciência eu continuo buscando pessoas que preencham essa carência dessa criança, mas quando tenho consciência, eu falo, “para! Pode deixar a criança. Agora eu cuido de você, deixa o papai e mamãe em paz, eu vou cuidar de você, eu vou olhar pra você pra que você não espere que ninguém mais faça isso”. Porque normalmente quando a gente dá muito, quem recebe muito fala, “eu não vou conseguir devolver isso nunca”, e a pessoa vai embora. E quem está aqui fala, “meu, dei tanto… Eu fiz isso, eu fiz aquilo, eu fiz aquilo…”. Eu falo, “então você fez demais!”, a pessoa simplesmente olha pra você e fala, “eu não consigo equilibrar essa balança nunca! O melhor que eu faço, pra isso não ficar pior é eu ir embora”, e a pessoa vai embora, ela segue o destino dela. E quando eu consigo ter a honestidade - porque todos nós temos uma tradição judaico-cristã que diz que uma mão não sabe o que a outra deu ou o que a outra fez - quando eu consigo equilibrar isso e eu consigo falar pro meu parceiro ou parceira, “olha, a coisa aqui não está muito certa. Eu estou dando além do que eu estou recebendo! Vamos dar uma olhada pra isso?”. Se a relação verdadeiramente vale a pena pro outro - muitas vezes a gente vai falar porque bola de cristal não funciona - vai falar, “meu, eu nunca imaginei! Você sempre fez de boa. Você sempre falou que estava tudo tão certo pra você… Nunca imaginei que você se incomodasse com isso”, a gente dá oportunidade pro outro de mudar ou não. Se ele mudou ou não, é um problema dele, mas se eu vou ficar nessa relação ou não, também é uma escolha minha, então dentro disso eu consigo equilibrar essa balança. Mas quando eu não falo, eu começo a brigar por merda: eu brigo pela pasta dente que você não tampou, eu brigo pelo papel higiênico você não dobrou assim, eu brigo pela toalha que você não pendurou no lugar A, você pendurou no lugar B… A gente vai brigando por coisas, quando na verdade o que está de maior aí é, “a balança não compensa, eu estou dando além do que eu estou recebendo”, e aí a nossa honestidade, aquela que diz que essa mão, sim, saiba o que a outra deu, dá pro outro a oportunidade de que a relação seja minimamente no nível de ser honesto. E o que vem a partir desse lugar de honestidade são escolhas… Pra cada escolha, uma consequência. E aí vem do lugar de adulto, né? E aí as nossas relações vêm muito desse lugar de criança, de imaturidade, de expectativas, aqui atrás e que refletem em todo o nosso contexto.
P/1 - Você quer falar mais alguma coisa?
R- Eu acho que não, acho que eu falei tudo (risos). Acho que falei tudo… Acho que se eu pudesse deixar alguma coisa, eu acho que o grande desafio hoje pras pessoas é: cuida da tua criança! Porque vocês viram aí que nos momentos todos que eu me emocionei, foram momentos em que aqui dentro a ficha começou cair de muitas coisas que aconteceram aqui, e que ainda aqui eu dei respostas novas, ou eu dei as mesmas respostas… E aí como se fosse: “caramba! Preciso olhar pra isso aqui!”. E autoconhecimento, ampliação de consciências faz toda a diferença, porque enquanto a gente não sabe, a gente vai fazendo mais do mesmo. Quando a gente sabe a gente pode fazer a diferente. Então essa é um pouco da minha história e eu espero que tenha ajudado algumas pessoas a construir uma história diferente a partir disso. Gratidão pelo convite. Obrigada mesmo.
P/1: Gostou de contar a sua história pra gente?
R- Muito! Muito, muito, muito…
P/1- Prazer, muito obrigado!
R- Obrigada a vocês. Obrigada mesmo! E assim, olhar pra vocês, teve muitos momentos que eu pensava aqui, que em momento nenhum eu não falei. Eu não deixei de falar nada, né? Eu não pensei em nenhum momento, “ah, se fulano ver…”. Paciência… Dane-se! É a minha história… O que você vai fazer depois disso que eu estou contando, é um problema do outro. Mas o tempo todo que eu fiquei aqui, eu fiquei olhando pros rostos de vocês, e eu fiquei imaginando atrás de vocês os pais de vocês… E quando vocês estiverem fazendo o trabalho de vocês, e vocês imaginem seu pai e mãe de luz, mesmo que você não tenha conhecido, mesmo que não não esteja muito presente, se você imagina atrás de você uma força que vem desse pai, dessa mãe de luz… Se você vai fazer uma reunião, se você vai se apresentar, se você vai em qualquer situação… É deles que vem a tua força! E quando você imagina que atrás de quem está na sua frente existe essa luz, eu consigo me colocar no lugar de adulta, eu consigo olhar vocês no lugar de adulto, e eu consigo ver a força que vocês tem de construir muita coisa boa. Então estar aqui pra mim foi um enorme presente, de verdade!
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FIM
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