Eu e o presidente
Atualmente, de uma certa forma, eu considero um sadismo, pura perversidade, essas festas escolares, mais precisamente, essas solenidades que obrigam professoras e criancinhas a ficarem horas na fila, no sol quente, acenando bandeirolas para saudar autoridades passantes ou discursa...Continuar leitura
Eu e o presidente
Atualmente, de uma certa forma, eu considero um sadismo, pura perversidade, essas festas escolares, mais precisamente, essas solenidades que obrigam professoras e criancinhas a ficarem horas na fila, no sol quente, acenando bandeirolas para saudar autoridades passantes ou discursantes que deviam ter vergonha, e que fazem das coisas que deviam fazer cavalo de batalha para a promoção pessoal, só Principalmente naqueles rincões, aquelas pequeninas cidades encravadas nos pés de serra dos sertões nordestinos. Essas autoridades deviam ter consciência de que promover saúde, educação e outras coisas tão importantes quanto estas, não é nada mais do que a obrigação delas. Estas gozam do privilégio de poderem sempre, descaradamente, se atrasar sem dar a mínima para quem fica quase o dia todo esperando por elas, no lugar comum do sol nordestino em tempo de seca.
Eu era uma daquelas criancinhas em 1959, esperando a passagem de Juscelino, na Rua 16.
No ano anterior tinha havido uma seca braba. Foi um daqueles anos em que o governo sempre costuma decretar ano de emergências. E o que não faltaram foram aproveitadores. Verbas e verbas foram despejadas e em seguida surrupiadas a título de pagamento para os “cassacos”, como eram chamados os flagelados que se alistavam e eram usados para a construção de barragens, de estradas e outros serviços.
Nomes fictícios, nome de jegues, nome de burro, havia de tudo na relação da folha de pagamento. O danado é que os coitados dos flagelados não viam a cor do dinheiro. Recebiam “vales”, e com estes iam aos barracões credenciados e trocavam pelas mercadorias. Ou por outra, já recebiam a “cesta básica” pronta:
um litro de feijão (nesse tempo era litro mesmo), um de arroz, um de farinha, um pacote de sal, um de café, meio quilo de jabá, uma rapadura e um pacote de bolachas. Deus sabe lá como essa dinheirama que vinha do governo federal era administrada na contabilidade de uma entidade chamada DNOCS, localizada no prédio que a gente chamava de “Instituto”. Coisas para as quais nunca houve, que eu saiba, uma CPI para apurar desmandos (acho que nesse tempo ainda não havia isso).
Foi assim lá em São Gonçalo. Não o do Rio, mas o que é um minúsculo distrito na Paraíba, e onde estávamos esperando a ilustre visita do presidente Juscelino Kubitschek, aos gritos de "JK JK JK"
O presidente abriria oficialmente a “Barraca da Saúde”, que se tratava, na verdade, de um grande circo, um hospital ambulante que percorria todo o Brasil com a intenção de controlar endemias. Instituição idealizada e dirigida pelo médico sanitarista Nöel Nutels. Esse circo imenso estava armado bem ao lado da escola onde eu fazia o segundo ano primário. Eu tinha sete anos. Fiz um escândalo danado para não tomar aquelas dolorosas injeções.
Juscelino iria dar uma olhada no açude de São Gonçalo, inaugurar algumas obras, viajaria para Orós, no Ceará, aonde inauguraria aquele grande açude, represando o rio Jaguaribe. Os fatos indicaram que os engenheiros não calcularam bem o volume da água que se juntaria, e a barragem, que não ficou lá tão segura – sem contar, ainda, com o fato de que foi feita a toque de caixa para que a inauguração se efetuasse antes de Juscelino deixar o cargo – se romperia no ano seguinte pela força da imensidão das águas, levando todas as cidades por onde passou. Morreu muita gente. Ainda consigo mentalizar as fotografias da época na revista “O Cruzeiro”, que cobriu o evento. Comparando: A barragem de Camará, que rompeu há dois anos (em 2003) e levou a metade da cidade de Alagoa Grande, na Paraíba, tinha a possibilidade de conter 27 milhões de metros cúbicos. E estava com pouco mais da metade da capacidade quando arrombou. O de Orós tem quase três bilhões de metros cúbicos, dez vezes mais E estava transbordando
Era boquinha da noite, quando se ouviu um grito. Não um grito de “Eis o noivo”, como na Parábola das Virgens Loucas, contada por Jesus Cristo, mas o grito:
-Juscelino está chegando
E tome palmas, e tome foguetório, e tome banda de música, e tome Hino Nacional e os alunos do Grupo Escolar José Augusto Trindade, sob o comando das professoras, acenavam bandeirolas, cantavam o Hino, acompanhando a banda – desafinada, que só vendo, mas quem se importava com isto?
Lá pelas tantas, na vibração apoteótica da celebração, Socorro Lira, minha professora, se lembrou que eu sabia cantar. Quer dizer, sabia não é lá a palavra correta, mas, a bem da verdade, como eu era o cantor oficial de todos os eventos da escola, vá lá que fosse. Um microfone imenso, tão grande quanto a minha cabeça foi colocado à minha frente. Aí ela cochichou no meu ouvido:
- Cante Cidade Maravilhosa.
Na minha angelical inocência, a essa altura, sem se importar com quem estava ou não presente, soltei os pulmões:
“Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil, cidade maravilhosa coração do meu Brasil”.
Esse refrão era tudo o que eu sabia da música. E, depois de ter repetido pelo menos umas quinze vezes a mesma coisa, alguém teve o cuidado de vir de fininho e retirar o microfone da minha boca para não tomar o tempo da fala de Juscelino, que ainda ia viajar. E eu ali, sério que só um porco mijando na chuva, senti que o grande JK, ao meu lado, acariciava a minha cabeça.
Há poucos dias, numa roda de amigos contei esta História (não estória, a com E, mas a com H, mesmo, considerando a importância do personagem), a História do meu contato com Juscelino Kubitschek. Então, como gozação, correram trazendo revistas e papéis para que eu autografasse
(Enviado em julho de 2008)Recolher