Meu nome é Helenita Yolanda Monte de Hollanda e nasci em Natal-RN a 21 de maio de 1964. Tenho hoje 40 anos e há 9 moro em Salvador-BA. Depois de muitas mudanças de residências e passando por vários estados, considero-me um verdadeiro caracol, sim, pois sou aquela que leva consigo todas as casas em que viveu.
Aqui pretendo contar a história da minha família a partir de minhas lembranças e através das casas em que moramos.
Às Novas Gerações
Gostaria de começar dizendo: “Quando eu era bem pequena, muito pequena mesmo, eu acordava e pensava: ‘como eu sou feliz’”, e isso era muito bom. Depois, durante algum tempo, passei a sentir medos, aflições súbitas, passageiras, conquanto aterrorizantes: “E se papai e mamãe morrerem?”, “E se essa casa que é tão linda, tão viva e nossa deixar de existir? Poderei continuar respirando? Mesmo com tamanha dor?”. É que nesse tempo eu não fazia idéia de que “enquanto houver amor, haverá vida” e me assustava muito.
Não é que eu não gostasse de ser criança, mas tinha vontade de crescer. Jamais para pertencer a outro contexto que não fosse aquele mas para mudar, apenas, o meu papel. Aí eu seria a mãe de muitos filhos, a provedora do amor à família, a companheira de um homem bom... Penso que era mais ou menos isso.
Gastava o tempo “fazendo de conta”.
Lembro que quando Zorba, o nosso cachorro pastor alemão, morreu, pensei em me mudar para a casa dele (que tinha uma varanda “enorme” e dois “cômodos”) e viver ali uma vida bem minha, onde aconteceria tudo o que acontecia em minha casa: orientaria o preparo dos alimentos, conversaria com os meus filhos, esperaria o meu marido de banho tomado, cuidaria do jardim. Na minha casa estariam todas as pessoas que eu amava e que estavam já ali, na casa dos meus pais, e que eram tantas. Só que eu seria o eixo e que faria tudo acontecer. Eu daria movimento àquela rotina doméstica que...
Continuar leituraMeu nome é Helenita Yolanda Monte de Hollanda e nasci em Natal-RN a 21 de maio de 1964. Tenho hoje 40 anos e há 9 moro em Salvador-BA. Depois de muitas mudanças de residências e passando por vários estados, considero-me um verdadeiro caracol, sim, pois sou aquela que leva consigo todas as casas em que viveu.
Aqui pretendo contar a história da minha família a partir de minhas lembranças e através das casas em que moramos.
Às Novas Gerações
Gostaria de começar dizendo: “Quando eu era bem pequena, muito pequena mesmo, eu acordava e pensava: ‘como eu sou feliz’”, e isso era muito bom. Depois, durante algum tempo, passei a sentir medos, aflições súbitas, passageiras, conquanto aterrorizantes: “E se papai e mamãe morrerem?”, “E se essa casa que é tão linda, tão viva e nossa deixar de existir? Poderei continuar respirando? Mesmo com tamanha dor?”. É que nesse tempo eu não fazia idéia de que “enquanto houver amor, haverá vida” e me assustava muito.
Não é que eu não gostasse de ser criança, mas tinha vontade de crescer. Jamais para pertencer a outro contexto que não fosse aquele mas para mudar, apenas, o meu papel. Aí eu seria a mãe de muitos filhos, a provedora do amor à família, a companheira de um homem bom... Penso que era mais ou menos isso.
Gastava o tempo “fazendo de conta”.
Lembro que quando Zorba, o nosso cachorro pastor alemão, morreu, pensei em me mudar para a casa dele (que tinha uma varanda “enorme” e dois “cômodos”) e viver ali uma vida bem minha, onde aconteceria tudo o que acontecia em minha casa: orientaria o preparo dos alimentos, conversaria com os meus filhos, esperaria o meu marido de banho tomado, cuidaria do jardim. Na minha casa estariam todas as pessoas que eu amava e que estavam já ali, na casa dos meus pais, e que eram tantas. Só que eu seria o eixo e que faria tudo acontecer. Eu daria movimento àquela rotina doméstica que sempre me pareceu tão encantada. Como mamãe eu diria: “a geladeira precisa ser lavada”, ou então “os meninos devem ir para aula mais cedo”, ou ainda “almoçaremos peixe”. As minhas gavetas teriam aquele cheiro das de vovó Faustina: de sabonete Alma de Flores E lá eu guardaria jujubas para dar às crianças da família, como ela fazia conosco. Esperaria o meu marido à porta do banheiro, pacientemente, com o roupão na mão, como vovó Lia. Aprenderia a ler como mamãe: sentada. Tão bonito era ver mamãe lendo sentada (às vezes cruzava as pernas) enquanto eu me esparramava no sofá ou na cama e trazia livros sempre amarrotados por uma falta de jeito que eu não sabia corrigir. Quando meu marido chegasse, faria como mamãe: colocaria todos os meus muitos filhos atrás da porta e gritaríamos “Surpresa” ao girar da maçaneta. Receberia visitas com muitas flores em muitos jarros; aprenderia a arrumar uma mesa com milhões de talheres. Saberia bater claras de ovos tão fofas para a “malassada”, assim como Dinda fazia. Queria ser disposta como Ina e já me via cansada, reclamando com o coração cheio de amor, daquela pia cheia de copos para lavar, “eternamente cheia de copos”. E eu diria como vovó: “Misericórdia” e de vez em quando suspiraria, como ela: “Ai, meu Pai Eterno”.
Papai sempre ria por que eu dizia que seria a primeira a casar. Quando ele perguntou uma vez porque eu respondi com tanta simplicidade: “Ora, porque eu gosto mais dessas coisas”. Todos na família riam disso, mas não sei se eles entenderam a que coisas eu me referia. Talvez, para a criança que eu era, só existissem “essas coisas” e elas eram uma: formar um lar. Apenas.
Mas se conto tudo isso assim, numa antecipação da verdadeira história, é apenas para revelar o quanto a noção de Família é antiga em minha vida. Nem o tempo, nem as inevitáveis desilusões, conseguiram fazer com que eu reformulasse a sua importância em minha vida, em meu coração: é o meu grande tesouro. A minha família é o meu tesouro, a minha imortalidade; a minha esperança e a esperança de todos os nossos ancestrais que trabalharam por um mundo melhor; a certeza da continuidade da nossa história, tão pretérita e tão sem fim.
Mas já estou muito adiantada num relato que ainda nem começou, por que o fio da meada às vezes parece perdido (irremediavelmente?). O jeito é começar a “trançar” a partir do ponto conhecido, do mais remoto ponto conhecido...
Ocorre-me uma música muito singela, e que na minha infância já era considerada antiga e que acredito que hoje quase ninguém conhece. Mas lhes darei também a música:
“Papai e mamãe contaram
A história dos meus avós,
Os sonhos que eles sonharam
Muito tempo antes de nós.
Nem rádio nem avião
Havia pra atrapalhar,
E o tique-taque dos seus
corações:
Amar, amar, amar...
Era meu benzinho pra lá
Era meu benzinho pra cá,
Tudo bem no estilo rococó,
E no meio do salão
A tremer de emoção
Vovô pediu vovó, oh
Noivaram somente um mês
Casaram-se logo após
Veio a cegonha e aumentou para
três
A família dos avós.”
Apesar da música infantil, da inspiração fortuita e da inaptidão literária, quero prevenir que tudo aqui é muito sério, como todas as coisas amorosas, geradas no coração.
Sempre que falo em família lembro que Millôr Fernandes, com a sua graça ora mordaz, ora filosófica, nos diz que, entre todas as árvores, a que mais lhe impressiona é a genealógica, por ser a de raízes mais profundas e a que dá mais galhos (penso que ele se refere aos galhos nos sentidos literal e metafórico, tão nossos conhecidos como sinônimos de ramos e de problemas, respectivamente).
Como me agrada e orgulha expressar amor por cada ramo e cada fruto desta árvore que é a minha
Muitos já amadureceram, cumpriram seu mister e deixaram sementes. Outros foram colhidos simples e carinhosamente, sem originar frutos, pela mão que gosto de imaginar divina.
Pude conviver com maior ou menor intensidade e durante espaço de tempo também variável com alguns. De outros guardo apenas a lembrança de fotografias colocadas com cuidado e veneração nas paredes que me abrigaram ensinando-me, desde cedo, a amá-los e respeitá-los e a sentir-me por eles amada.
Graças a Deus muitos galhos e novos frutos têm perpetuado nossa árvore. Da mesma forma que me sinto amada por todos que me precederam – quer os tenha conhecido, quer não – já vive em mim um carinho muito bom pelos que me sucederão. Tento, consciente e efetivamente, preparar-lhes um mundo melhor. Preocupo-me em fazer com que a minha história pessoal esteja sempre em harmonia com o todo arbóreo, com o zelo de mantê-lo fresco e frondoso, belo e saudável.
Nossa árvore familiar, aqui representada apenas resumidamente, assemelha-se ao também nosso “maior cajueiro do mundo”, cujos galhos sobem e descem em formações por vezes confusas.
Assim, muitas famílias surgiram desse tronco comum que é o nosso. E foram tantas, que não haveria mural com tamanho suficiente para representá-las. Outras conviveram tão intimamente ligadas a nós, numa união tão perfeita, que suas origens se confundem com as nossas e assim, reciprocamente, queremos que permaneçam, até mesmo pela impossibilidade de desfazer tal emaranhado sem danos dolorosos para ambas as partes.
No mesmo “pomar” convivemos com tantas árvores amigas que imagino nossas raízes a se tocarem na intimidade da terra compartilhando o mesmo solo, nutrindo-se da mesma fonte, crescendo sob o mesmo sol e a mesma chuva, numa simbiose harmônica.
E assim, guardo dentro de mim esse Éden particular com quem me relaciono de forma obediente aos fenômenos sazonais que nos atingem igualmente: em invernos rigorosos e aconchegantes, primaveras ternas e amorosas, verões claros e alegres, outonos nostálgicos, e muita, muita saudade.
A Casa da Deodoro
“Casa de esquina, nem morte nem ruína” –
Sempre ouvi dizer que quando vovó Lia precisou mudar-se da Casa da Deodoro, antes de sair e entre lágrimas, beijou cada uma das paredes.
O que na infância e adolescência me parecia um melodrama de uma mulher excessivamente sensível, hoje é sentimento que compartilho em solidariedade participativa, tantas têm sido as paredes por mim beijadas com o coração em prantos e uma saudade sem consolo.
Daquela casa são as minhas primeiras lembranças: a escada que levava ao nosso apartamento, a cozinha ampla situada no fundo da construção, o pequeno quintal com a casinha do cachorro Pelé (que veio a morrer de “bola”), galinhas para o consumo da família (algumas era separadas para “deitar ovos”), um peru que chegava do sítio do meu avô em Uruaçu para engordar para os dias de festa.
Dos demais cômodos, pouco me lembro: a cozinha onde recordo haver um grande pilão de madeira que ainda morando ali consegui atingir o seu tamanho e que era usado para fazer a famosa e deliciosa paçoca de pilão, uma sala de jantar, eu sentadinha em cima da mesa, comendo “raposinhas” amassadas pela mão de Ina para o almoço: galinha desfiada, arroz, purê de batatas, feijão verde e farofinha.
Havia sempre um rádio ligado em nossa casa e, à hora do almoço, Dinda ouvia a Patrulha da Cidade, programa de ocorrências policiais narradas/interpretadas de forma curiosa e engraçadíssima. Iniciava-se com um jingle que guardo até hoje na memória:
“Escute, doutor, eu sou inocente.
Falando a verdade, com sinceridade,
Preto não mente.
Sou escurinho, doutor,
Mas freqüento a sociedade.
Não quero que os amigos
Ouçam meu nome na Patrulha da Cidade.”
Dinda dava enormes gargalhadas. Ela estava sempre sentada na ponta da mesa da cozinha e seus afazeres principais consistiam em “catar” o arroz e o feijão, bater ovos (nunca vi ninguém fazer isso como ela, que dizia ter “a cabeça boa” para isso), ralar coco (às vezes deixava um pouquinho do fruto ralado nas quengas e misturava com açúcar para que comêssemos) e tratar carne, frango ou camarão. Também era ela a responsável pelo abate ocasional de uma galinha ou peru, atividade esta que éramos proibidas de presenciar.
Também nessa época tão remota da minha infância está a lembrança do programa de Coronel Ludugero que trazia outros personagens tão marcantes quanto ele próprio: Otrópio e Felomena. Ria-se a morrer com as suas graças. Era um humor inocente e puro, o dessa época, assim como as nossas compreensões.
Quando vovô trazia grande quantidade de frutas de Uruaçu – seu pequeno sítio situado em São Gonçalo do Amarante - o movimento na casa aumentava e todos, sob a batuta de dona Lia com sua formalidade de iaiá (uma iaiá seguramente esquisita, pela cor escura da pele), se ocupavam em fazer doces de caju, goiaba, banana com as mais variadas apresentações: conchinhas de goiaba em calda ou geléia, compotas de caju ou “rasgadinho”, bananas em rodelas ou amassadas. Assim como nos dias de fazer bolos ou comidas de milho, o cheiro tomava a casa toda. Suzete, Simone e eu, sentadinha com nossas “roupas-de-chupar-caju”, nos esbaldávamos em comer frutas, lamber bacias de bolo e experimentar canjica. Da nossa casa saiam travessas e pratinhos, potes e compoteiras, para vizinhos e parentes. Num encantador exercício do que chamaria no futuro de cortesia ou “política da boa vizinhança”, os recipientes eram devolvidos com algum outro quitute em agradecimento.
Na parte da frente da casa havia um pequeno jardim e um caramanchão todo florido com dedais-de-ouro. Era o nosso “observatório” do mundo exterior estando guardadas na segurança e aconchego da casa paterna, pois, mesmo em plena década de sessenta do século XX, o costume de resguardar as mulheres e crianças da família ainda existia. Mais tarde Gilberto Freyre confirmaria a minha interpretação em Sobrados e Mocambos: “A varanda e o caramanchão marcam uma das vitórias das mulheres sobre o ciúme sexual do homem e uma das transigências do sistema patriarcal. Com a varanda e o caramanchão veio o namoro da mulher senhoril não apenas com o primo, mas com o estranho. Um namoro tímido, é verdade, de sinais de lenço e de leque. Mas o bastante para romantizar o amor e torna-lo exógamo”.
Lá sentávamos ao final do dia, muito freqüentemente com mamãe, e brincávamos de adivinhar por que lado papai chegaria: se pela ladeira, vindo da Ribeira, se pela direita, vindo do Tirol. Às vezes Simone chorava se tia Cassinha demorava a chegar para apanhá-la. Quando ela ia aparecendo ao longe alguém perguntava: “De quem é aquela mãe que vem surgindo por detrás da algaroba?” e ela se abria em sorrisos.
Em frente a casa funcionava a Rádio Poti onde, aos sábados, havia programação à tarde para crianças: o famoso Vesperal de Atrações. Lá ganhei a minha primeira premiação, dançando com bambolê: uma lata de Biscoitos Sortidos Pilar.
As mulheres da família tinham cabelos enormes que eu admirava muito. Agenilza, nossa prima mais velha e filha de tia Concita, tinha cabelos muitos lisos e escuros, quase como cabelo de índio; os de Ina, pretos como piche, presos num rabo de cavalo quando se ocupava na cozinha; vovó Faustina já os tinha branquinhos como neve, bem ondulados, presos à nuca. Mas a cabeleira de vovó Lia era para mim um sonho: já grisalha, trançava-os cuidadosamente e depois os prendia em diferentes e criativos penteados, sempre arrumados, mesmo quando estava em casa ocupada com atividades domésticas. O encantamento pelos cabelos longos parece ter tomado também Suzete de vaidades, pois encontramos em cartas de mamãe a referência de que ela só queria pentear-se como Agenilza, o que era impossível, pois “puxáramos”, ela ainda mais ainda que eu, a carapinha de papai.
Em época de campanha política a Avenida Deodoro fervilhava e a nossa casa, talvez pela proximidade à de Aluísio Alves (maior líder político da época e adversário de Dinarte Mariz), era ponto de partida para passeatas e carreatas, vigílias e comícios. Penso que só Dinda e vovó Faustina ficavam em casa nessas ocasiões, além das crianças com suas babás. Em uma das cartas de mamãe a papai ela conta que eu gostava de sentar-me à tarde na calçada agitando uma bandeirinha verde de Aluísio Alves. E em toda a correspondência entre os meus pais a política está presente e papai insiste em que minha mãe mande notícias: “Fale-me sobre a política”. Ao que mamãe parecia ter satisfação em responder, pois os Gomes de Hollanda viviam envolvidos neste tipo de atividade:
“Amanhã será a passeata para Mossoró e Daniel cedeu o carro para Sr. Joaquim ir com D. Lia, Décio e Cassinha. Sairão às 4 h da manhã”
“Em Natal não se fala em outra coisa que não seja política, já é uma coisa fora dos limites”
“Sua mãe disse que a passeata foi uma coisa espetacular. Sábado haverá outra para Caicó. Acho que esta o pessoal daqui não irá, embora sua mãe esteja louca para ir novamente”.
“Está havendo passeata todos os dias aqui em Natal, por ambos os lados e, por incrível que pareça, as passeatas da oposição têm sido quase iguais às de Aluísio”.
“A Passeata das Bandeiras para Mossoró saiu daqui do Hotel dos Reis Magos, às 4 horas da madrugada e só chegou em Mossoró às 3 horas da madrugada do domingo. O comício foi até às 5 horas da manhã e no domingo, às 15 horas, seu pai, Décio, D. Lia e Cassinha já estavam em casa”
“Sua mãe disse que havia tanta gente no comício de Aluísio, como no de Dinarte. A caminhonete saiu cheia de ramos verdes e, em cima, uma banda tocando as músicas de Aluísio. Foi um verdadeiro dia de carnaval. Tinha blocos pelas ruas e a ornamentação da João Pessoa foi toda com bandeiras vermelhas e máscaras carnavalescas”.
A nossa casa ficava numa esquina em que a avenida cruzava com a Rua do Sul, atual Henrique Castriciano, ruela curta, ingrememente aladeirada, que se continuava em uma escadaria para voltar plana e larga na Ribeira, Cidade Baixa. Até o início da década de 50, meus avós moraram ali, na última casa da rua, antes da escadaria, indo, em seguida, para a Deodoro onde alugaram a casa em que nascemos (eu, Suzete e Sonja) e que pertencia ao engenheiro Dr. Epitácio Lira.
Na parte alta da rua morava tio Décio, irmão mais novo de papai, tia Cassinha e Simone e, mais abaixo, tio João, Tutu (Eutália), Jandira, Juvan e Joel. Do sobradinho de tio Décio, só me lembro ter rolado uma vez escada abaixo, causando grande susto em todos e ganhando o meu primeiro “galo” na cabeça: formação curiosa para uma criança pois era uma projeção do meu corpo bem no meio da testa e que eu analisava minuciosamente todos os dias, vendo-o mudar de coloração e consistência até, misteriosamente, sumir.
Já a casa de Tutu, de quem me lembro tão bem, era pouco visitada, pois eles “subiam” diariamente para a nossa. Achava-a muito simpática e sobre tio João era difícil formar opinião, pois era hermético, mas, se falava, dizia coisas engraçadas.
Vizinho à casa, coladinho como um anexo, ficava o Bar do Lourival. Não tínhamos permissão para chegar nem perto, pois havia bêbados por ali e papai e mamãe não queriam que ouvíssemos e víssemos “coisas feias”. Às vezes vovô ia lá para uma conversa, embora não lembre de vê-lo beber.
De vovó Faustina, minha bisavó, as lembranças dessa época são poucas. Recordo que fumava cachimbo e que o fazia sempre no quintal. Lembro vivamente do cheiro seco e adocicado da fumaça.
Havia um quarto de costura onde freqüentemente vovó trabalhava. Certamente foi ali que se inventou, de fato, o conceito de “linha de montagem”, e Henry Ford apenas o copiou. Dinda, que tinha “vistas ótimas” colocava linhas nas agulhas, vovó Faustina e Ina faziam as costuras de mão e dona Lia, depois de riscar e cortar moldes em papel jornal ou de embrulho, fazendo cálculos incompreensíveis, alfinetava-os no tecido, cortava-os e ia para a máquina, não antes de Ina ter colocada linha de cor adequada e mudado a bobina. Nós ficávamos por ali, brincando com retalhos e carretéis vazios.
Suzete e Simone foram as minhas primeiras companheiras: Suzete, um ano mais velha, e Simone, seis meses mais nova. Como eu não gostava muito de comer, sempre me ofereciam o almoço junto com Simone, que me influenciava positivamente. Foi um dos primeiros nomes que aprendi a falar: Momone. Também das primeiras pessoas que aprendi a amar verdadeiramente, além dos meus pais e irmãos, e com uma consciência muito firme disso. Gostava de mimá-la e cedia aos seus caprichos só para ter a sua companhia. Mas penso que se eu não a tivesse monopolizado tanto, ela haveria de relacionar-se bem melhor com Suzete, pois ambas eram calmas, mais compenetradas do que eu. Cresceram assim, mas sempre comigo entre elas: brilhantes, estudiosas, tranqüilas, obedientes, enquanto eu crescia sem freios, indisciplinada e meio mal criada, “um siri dentro de uma lata”, como dizia papai. No entanto, era comigo que ela ia brincar sempre e, tinha tanta confiança em mim que permitiu que cortasse seus cabelos que a muito custo cresciam para dar para Pelé comer, pois “o coitadinho estava morrendo de fome”. Ainda hoje nossa amizade se baseia no mesmo bem querer e, mesmo após longos períodos sem nos vermos, nos encontramos com a mesma alegria e intimidade.
Não me lembro muito dos nossos passeios nos primeiros anos, a não ser por algumas idas à praia do forte – se não me engano íamos à tarde, com o sol já caindo – e do parquinho na Lagoa de Manuel Felipe – hoje Cidade da Criança – onde nos deixamos fotografar em trio muitas vezes.
Nascida quase um ano e meio depois de mim, Sonja não é uma presença tão marcante nesse período. Ao ler em cartas de mamãe a papai a sua preocupação com o ciúme que eu teria quando o bebê chegasse, uma possibilidade que imagino para lembrar-me tão pouco dela na Deodoro seria esse ciúme despeitado que se traduz muitas vezes em ignorar o irmão mais novo que nos coloca “no canto” e desvia a atenção que antes era apenas nossa. Talvez apenas o fato de não participar das brincadeiras conosco, por ser ainda bebê, justifique a ausência de recordações. Somente em outras fases, em outras casas, terei em “Tonzinha” uma companheira e até uma confidente: “cousas futuras”, no dizer de Machado de Assis.
Mas uma coisa é certa: ela, de certa forma, conquistou Ina ao primeiro sorriso pois a partir do seu nascimento Ina irá dedicar-se especialmente a ela, a quem chamava de Tico-Tico e que protegia e mimava o tempo todo.
Dinda jogava no bicho diariamente. Todos amanheciam contando seus sonhos, que ela interpretava, e deles tirava seu palpite para o jogo do dia. As relações que fazia para decifrá-los eram as mais estapafúrdias. Tinha grande interesse por tudo o que fosse número de modo que se alguém, por exemplo, comprasse um carro, uma casa, um telefone, deveria logo lhe dizer os números correspondentes para que ela jogasse. Todos lhe davam um dinheirinho para os jogos. Quando ela ganhava, guardava, juntava e comprava uma porca; quando a porca “vingava”, vendia a porca e comprava um corte de tecido para uma das netas: Agenilza, Leila, Suzete, eu, Simone, Sonja e Maria Ruth. Era o famoso “vestido da porca” com o qual Dinda presenteava “todas elas”, como dizia gabando-se por ser tão justa. Meu “vestido da porca” tinha uma padronagem florida, miudinha, com predomínio de verde claro, “casinhas de abelhas” até a cintura e manguinhas fofas.
Apesar da evidente predominância de mulheres naquela casa meus avós só tinham três filhos homens: Daniel, papai e Décio. Mas isso tudo que conto aconteceu em um tempo em que o compadrio era uma instituição levada muito a sério, sagrada mesmo, e de relevante papel social. Assim, estando em melhores condições financeira que muitos dos compadres e ainda mais morando na capital, era natural “tomar para criar” os afilhados queridos o que, para eles, representou como que uma adoção afetiva, além de social, e, assim, Concita, Ina e Betinha foram bênçãos para os dois.
Concita era casada com Agenor e tinha três filhos que eram Agenilza (Non), Leila e Sávio. Non e Leila estarão presentes durante toda a nossa infância e adolescência, enquanto Sávio é lembrança mais tardia. Em 1969, e durante dois anos, o casal iria morar em Fortaleza levando apenas Sávio, enquanto Agenilza iria morar em nossa casa e Leila ficaria com os nossos avós.
Ina, a nossa segunda mãe, era a mais dedicada aos cuidados com as três, e, naquela época, era noiva de Geraldo, de quem tenho apenas vaga lembrança. Mas tal noivado para mim era representado por uma caixinha de música maravilhosa: em laca preta, com uma bailarina de saia rodada em tule cor-de-rosa e que rodopiava ao som de Pour Elise. Talvez, mesmo que vagamente, esta tenha sido a minha primeira noção de romantismo.
Betinha, para quem eu iria escrever as minhas primeiras cartinhas, era ainda muito nova à época do meu nascimento e logo em seguida foi morar em São Paulo e depois se fixou em Manaus. Cresci tendo dela a idéia encantadora que a distância geográfica proporciona. Era a “minha tia que morava fora”, que trazia presentes que eram pura novidade para a nossa infância, comprados na Zona Franca.
Mas, apesar das filhas “postiças”, percebo, através da correspondência da época, o quanto a chegada de mamãe encheu os meus avós de alegria. E ela, com a sua doçura característica, conquistou a todos de imediato e também os adotou como seus. Ao contrário do que se podia esperar em uma época ainda tão cheia de preconceitos, ela não parecia ao menos perceber o quanto a sua cor a tornava diferente dos demais membros de família, e dissolvia-se numa descendência mestiça cheia de alegria e amor. Na troca de cartas mamãe sempre revelava a alegria de estar entre eles e a saudade que sentia quando vovô viajava também:
“Hoje Dinda fez um bolo nas forminhas e domingo farei bolo em todas as forminhas somente para você e Sr. Joaquim”.
“Tenho procurado passar o tempo lendo, mas eu gosto tanto do povo daqui que ele mesmo me ajuda a passar o tempo”.
“Amanhã estou com vontade de ir com D. Lia ao Poti, assistir ‘A História de Ruth’, que é um filme maravilhoso”.
“Segunda-feira sairei com sua mãe para comprar meu vestido e D. Lia vai fazer bem depressa para dar tempo de eu vestir no dia que você chegar”.
“Às 6 horas fui para casa, tomei banho, jantei e fui, como é nosso costume, tomar sorvete com D. Lia e Severina”.
“Filhoca, traga também Sr. Joaquim, que está fazendo uma falta enorme. Diga a ele que o galo de campina manda lembranças”.
“Seu pai trouxe do Granada casquinha de caranguejo e empadas, achei uma maravilha”.
“Tenho passado as manhãs ouvindo novelas e baixando os abanhados dos vestidos de Suzy e Nita, que estão crescendo aos pulos. D. Lia faz as costuras na máquina e me entrega para fazer as costuras de mão”.
“Estou fazendo com sua mãe um lençol que está ficando lindo”.
Se a chegada de mamãe àquela casa já enchera meus avós de alegria, imaginem então o nascimento de Suzete Quanta pompa no preparo do seu enxoval, nos cuidados com ela após o nascimento, o alvoroço que devia causar aquele mulherio todo em volta dela. Sem contar que tia Cassinha, recém casada com tio Décio e madrinha de Suzete, veio morar pertinho, sendo ela, ao que me parece, a titular nos primeiros momentos, embora tenha cometido algumas trapalhadas bem intencionadas – juntamente com a minha mãe – como quando esqueceram de amornar a água do banho e ficaram apavoradas e surpresas quando o bebê não parava de chorar.
Vovô Joaquim era muito alegre e sempre que chegava chamava-nos logo do portão: “Cadê as meninas do volo?”. Trazia, invariavelmente, pão quentinho e, para vovó, guaraná champanhe
Ele era considerado o pior motorista da cidade. Diziam que seu carro era amassado até no capô (um coco caíra em cima) e que ele havia sido atropelado por ele mesmo ao estacionar o carro na Ladeira da Deodoro sem colocar freio de mão, e passado pela frente. Lembro de alguns carros seus, como um Jeep (que chamávamos de “Passo” Preto) uma Rural e uma caminhonete. Durante algum tempo ele teve um motorista chamado Negão, um homem forte e muito preto, com quem eu relacionava sempre uma outra vinheta da Patrulha da Cidade:
“Lá vem a polícia buscar Zé Negão
O cabra tá doido com uma faca na mão.”
Por causa dessa relação, a impressão que Negão me causava era confusa pois, a despeito da música (que eu julgava referir-se a ele) eu o achava um homem bom, com seu porte grandão e olhos muitos vermelhos. Muito tempo depois soube que ele havia perdido um dos pés em um acidente e enchi-me de pena e de saudade.
Mas apesar de ser considerado por todos, inclusive por mim, como péssimo motorista, fui surpreendida por um relato de Concita que jura ter sido vencedora de uma Gincana Automobilística em que era a parceira do motorista Joaquim Victor de Hollanda Infelizmente ela não lembra a premiação nem, mais importante ainda, o patrocinador de tal competição, pois certamente mereceria uma checagem, sem desrespeitar as memórias da minha tia que, no entanto, pode ter “fantasiado” uma experiência agradável. Verdade ou não, Concita lhe dá o seu prêmio com o amor que alimenta suas lembranças. De qualquer forma, é como se disse no filme O Homem que matou o facínora: “Se a lenda é melhor que o fato, publique-se a lenda”, pois o folclórico motorista já está na boca do povo, e, vox populi, vox Dei.
Concita foi a grande companheira de meu avô que a levava às competições do Automóvel Clube, a piqueniques semanais e, mais tarde, aos bailes do Aero Clube e para onde quer que ele fosse. Ela o amou como a um pai bom, retribuindo às suas atenções com carinho verdadeiramente filial e assumindo, na impossibilidade de vovó Lia fazê-lo, os cuidados para com ele, como esperar acordada para abrir o portão nas ocasiões em que ele chegava tarde, preparando o banho e lhe dando o roupão e o folclórico par de tamancos, sem os quais não saía do banheiro. Em minha lembranças ele já usava as famosas sandálias franciscanas, mas seu apego por tal calçado era tão grande que a minha avó costumava dizer que “Joaquim irá para o céu de tamancos”.
Da Deodoro saí para o meu primeiro dia de aula na Escola Doméstica, depois de posar com Simone para tia Cassinha registrar em fotografia nossa saída triunfal e ansiosa: Eu e Simone, de uniformes novos, malinha vermelha e lancheira. Quando voltávamos da aula mamãe colocava a mim e a Suzete sentadinhas em uma cadeira alta, tirava os nossos tênis (Conga) e as meias. Ali deveríamos permanecer durante algum tempo até os pés esfriarem, pois fazia mal colocar os pés quentes no chão frio.
A Escola parecia-me enorme e, mesmo a parte dedicada ao jardim de infância, já era um grande parque de diversões. Começávamos a manhã com um toque de campainha que nos fazia entrar em formação em uma fila indiana a partir de onde éramos conduzidas para as salas de aula. Achava uma tortura o fato de, logo à entrada, fazerem com que cantássemos um pequeno hino que tinha a intenção alegre, mas que só servia para lembrar que havíamos deixado as nossas casas e aquele ambiente, não sendo nosso, não oferecia a menor segurança. Demorei a adaptar-me àquela cantoria toda que enchia meus olhos de lágrimas com uma saudade enorme da nossa casa e, pelo menos inicialmente, de incerteza quanto ao meu retorno. O “massacre rítmico” iniciava-se assim:
“Eu deixei cedinho o lar
Onde estão os meus paisinhos
Para vir aqui brincar
Com os meus bons companheirinhos...“.
De longe eu olhava para Simone como a pedir socorro e, se a via tranqüila, meu coração parecia acalmar-se, mas isso não era tão freqüente, pois ela também trazia os olhos de jabuticabas bem espantadinhos. Ao menos ela tinha Marquinho, filho de Guida (irmã de tia Cassinha) para fazer-lhe companhia, o que muitas vezes me enciumava.
Havia também uma pequena gruta muito bonita onde tinha uma imagem de Nossa Senhora e para onde éramos levadas com certa freqüência para um encontro com a Senhora, Mãe de Deus, que sempre levei muito a sério, e já pequena, sem ainda noção de pecado, tinha um sentimento como que de contrição, e me tornava muito compenetrada enquanto cantava com uma emoção muito boa aquele hino de louvor, singelo e infantil:
“Mãezinha do Céu, eu não sei rezar
só sei dizer que eu quero te amar.
Azul é teu manto, branco é teu véu.
Mãezinha eu quero te ver lá no Céu.”
Apesar de ter saído da ED tão logo fui alfabetizada, só retornando na sétima série do curso ginasial, foi ela, entre os sete colégios que estudei, a que mais me marcou, e sempre positivamente.
Dinda foi, certamente, a pessoa mais pitoresca que eu conheci: Ismênia Romão da Silva. Nêne, para vovó e vovô; Dinda para os demais.
Não tinha certidão de nascimento até mais ou menos os oitenta anos, quando então Suzete providenciou uma. Sua idade tinha uma única referência: dizia ser “do ano”, igual a carro novo, ou seja, sendo de 1900, o ano corrente correspondia à sua idade.
Contava ter sido noiva seis vezes, mas nunca casou, pois tinha medo de deitar com um homem. Penso que o motivo maior era a impossibilidade de separar-se da nossa família. Sei que era vizinha de vovó Lia, desde a infância ou adolescência, em Recife. Quando vovó casou, foi com ela e com ela ficou para sempre. Batizou “Danielzinho” e virou Dinda. “De apresentação” ou “de vela”, era madrinha de tantos que perdemos as contas.
Amou a Daniel mais que a um filho e contava, muito orgulhosa, como lhe provara seu amor largando, a seu pedido, o hábito de fumar cachimbo.
Tinha como maior façanha para contar o fato de permanecer virgem. Dizia-se virgem de todo: não furara as orelhas, não fizera as unhas, não casara. Era uma vitalina, donzela, caritó e outros tantos adjetivos que ela mesma se dava com um bom humor sem par. Sobre si mesma cantava:
“Moça velha quando vai se confessar
Pergunta logo ao padre se é pecado namorar.
O padre diz: - ‘Minha filha vá rezar,
Que moça velha não sai mais do caritó’.
Bota pó, vitalina bota pó,
que moça velha não sai mais do caritó.”
Ou pior ainda:
“Bota pó, vitalina de amarelo
casamento de moça velha é no portão do cemitério.”
Com Dinda aprendi a cantar as primeiras “modinhas”. Eram musiquinhas simples, como, p. ex:
“Olha lá seu Passo Preto, olha lá seu Gavião,
Tenham pena dos pintinhos que estão ali no chão
Tenham pena, coitadinhos, eles são inocentinhos
Esse bicho é destemido não tem dó no coração.”
E ainda:
“Xô pato, peru, pavão, periquito de São Gonçalo.
A galinha comeu o milho que eu sustentava o meu galo.”
E outra, da qual só lembro um trecho, mas que talvez fosse a minha preferida:
“O rapaz que é soltei-rê-o-ró
E frequenta taver-nê-a-ná (...)
Namorar é bom, ô filhinha minha
Mas casar não é vi-dê-a-dá.”
Apesar das “modinhas” apenas engraçadas, foi dela que ouvi também os primeiros acordes românticos e, se imaginação não se alia à memória para pregar-me peças, foi acompanhado de um olharzinho lânguido que a ouvi entoar
“Oh linda imagem de mulher que me seduz.
Se eu pudesse tu estarias num altar
És a rainha dos meus sonhos, és a luz
És malandrinha não precisas trabalhar.”
Era também uma “preta velha” com hábitos marcantemente africanos: fazia garrafadas para todos os males; benzia-nos para ter saúde, para casar; rezava feridas, rezava quebrantos. Vovó Lia não permitia que se comentasse tal coisa, mas, dizia-se à boca miúda que ela “recebia santo” Suzete lembra melhor do que eu de vários episódios em que ela comunicava-se com uma tal Tia Inês.
Diferentemente de dona Lia ela tinha um linguajar escrachado, irreverente. Vovó disfarçava o riso ao ouvir suas piadas e suspirava: “Misericórdia, Nêne, onde já se viu isso”.
Uma mania que tinha e que muitas vezes merecera a censura de papai, era a de colocar apelidos nas pessoas. E ela era certeira em escolher alcunhas Toinho, marido de Sonja, veio a ser Frei Molambo; Socorrinho, amiga nossa, era Corre Campo; havia também Espalha-Patrulha, Bonita, Doméstica, Bucho-de- timtim-ovado, Mosca Morta, Espigão, Doméstica, o bolo bate-e-entope, prenhez (era o ponto de crochê todo torto que ela fazia) entre tantos outros.
Não ia aos casamentos de familiares ou amigos. Apesar disso, todas as noivas conhecidas, antes ou depois da cerimônia, eram fotografadas com Dinda. Talvez em reconhecimento ao valor de suas rezas para conseguir-lhes marido.
A cargo dela ficavam também os umbigos de todos os bebês da família: enterrava-os ou mandava-os enterrar na porteira de Uruaçu. Que Deus nos livrasse de um umbigo roído por rato Para tudo conhecia uma simpatia curiosa como, p. ex., para curar soluços devia-se beber meio copo de água em um só fôlego e jogar o resto por cima do ombro.
Se alguém passava por cima de uma pessoa deitada no chão ela dizia que “enguiçava” o crescimento da pessoa e gritava logo para que “desenguissasse” o infeliz. Sapato virado para cima trazia má sorte; duas colheres cruzadas dentro da travessa de arroz, anunciava casamento; dormir de “papo pra cima” desencadeava pesadelos; varrer os pés “empalha” casamentos; deixar porta de guarda-roupa aberta chamava a morte para o dono da casa.
Obrigatoriamente, por todas as casas em que passou, plantou pimenteira, arruda, comigo-ninguém-pode e pinhão roxo, e usava as folhas do pinhão nas benzeduras. Ela estava sempre juntando cascas de laranja, sementes de romã, cravos-da-índia, e tantas outras sementes, folhas e raízes de cujos nomes já não lembro, para as garrafadas e lambedores. Para cada ingrediente da sua mezinha, um tratamento que só ela sabia: uns deviam secar, outros recebiam sereno, além dos que iam diretamente para infusão. E confiava tanto em suas xaropadas que se alguém adoecia não falava em médico, mas sugeria logo, incontinenti, erva e dose, posologia exata, sem “tremer o beiço”.
Com tanta irreverência, dizia orgulhosa que só comia porcaria: pé de porco, orelha de porco, rabo de porco. Mais tarde vim a saber que tal garbo era freqüente entre os antigos que comiam porco para provar que não eram judeus, certamente costume bem anterior a ela mesma, vindo da época da Inquisição. Lembro de raríssimas vezes havê-la visto comendo com colher e, mais raras ainda, com garfo. Reconhecia que não gostávamos disso – vovó principalmente – de modo que nunca fazia refeições com a família e arrumava-se sempre pela cozinha.
Dentre as suas crendices e simpatias, a mais interessante era o seu hábito de “amarrar”. Quando alguém perdia um objeto, era só avisá-la que ela, tomando um pedaço de pano, trancava-se para rezar enquanto dava um nó no tecido e depois jogava embaixo da cama. Mas o significado simbólico da atitude era mesmo muito curioso: dizia amarrar os testículos do Satanás e condicionar sua soltura à entrega do objeto perdido. A Satana (sim, atribuíra um cônjuge ao maldito) enraivecida, mostrava o objeto e só então, rezando, desamarrava-lhe os “culhões”. Nada de Santa Engrácia, nada de São Longuinhos a ser invocado com pulinhos e gritinhos, como era costume nas outras casas. Ali tudo se passava diferente.
Penso que essa reza era das mais úteis na casa de vovó, pois lá sempre se estava procurando alguma coisa. Principalmente papéis de vovô. Certamente o que vovó Lia mais fez na vida foi procurar papéis. Sempre com urgência, sempre desaparecidos misteriosamente, sempre de seu Quincas. Aí era um andar de um lado para o outro sem fim, com as mãos nas costas, falando sozinha e suspirando em voz alta o seu “Meu Pai Eterno”, enquanto Dinda, Ina, Imaculada e quem mais aparecesse, procuravam pela casa toda. E ela a lamentar-se.
Talvez perder coisas seja uma marca dos homens da nossa família, pois durante toda a vida pude ver mamãe procurando papéis para papai e, mal aprendera a falar, João Felipe, meu filho, já me pedia insistente e lamentoso: “Mainha, pacure meu binquedo, mainha. Pacure na cozinha, pacure no banheiro, pacure em todo canto”. Às mulheres Deus deu o dom da paciência, virtude das mais caras ao sexo feminino Hollanda que, infelizmente, já não conta com as fiéis colaboradoras de procuras de outrora.
Do seu cantinho dona Fausta implicava com os catadores de papéis de vovô: “Não vão achar Só procuram onde poderia ou deveria estar e se lá estivessem lá estariam e não perdidos”. Sempre achei muito lógico que fosse assim.
Aliás, vovó Faustina dava palpite em tudo e de tudo ela reclamava. E ainda queixava-se de que um ou outro tinha “embirrança” com ela Mas o seu hábito que mais me incomodava era o controle das horas: hora do banho, hora de almoçar, hora de dormir e de acordar, hora disso, hora daquilo. Parece que a hora sempre chegava no melhor de uma brincadeira, e ela era implacável. O pior de tudo é que prevenia com uma antecedência tal a chegada de cada hora que nos tirava a graça de iniciar qualquer brincadeira que fosse: “Olha que vão se fazendo horas”, ou ainda “cuida dessas panelas, Severina, que a barriga do povo já está a dar horas”. Era mesmo uma coisa séria essa fragmentação da vida em horas. E digo eu: “Misericórdia, vó” Até bem velhinha, morando em nossa casa, lembro dela reclamando de papai que chegava sempre tarde do trabalho: “Isso são horas, Dirceu?”. Mas papai não retrucava e, com todo o respeito pela avó, apenas pedia-lhe a bênção.
Conta-se na família que vovó Lia, ainda solteira e morando em Recife, sempre muito caprichosa, preocupava-se mais com o enxoval do que com qualquer outra coisa no mundo. Assim acumulou durante os sete anos que durou o seu noivado com meu avô, peças e mais peças de linho branco, feitas por ela, bordadas à mão, envoltas em papel celofane azul para evitar manchas, e guardadas cuidadosamente em um imenso baú. Um belo dia por pouco não lhe pára o coração ao abrir a tal arca e ver todo o seu precioso enxoval queimado. Era uma queimadura arredondada que ia da primeira a última peça, danificando cada camada de tecido. Dona Fausta havia deixado cair uma brasa do cachimbo ali dentro Imagino choros e ranger de dentes. Ainda mais que ela já não era nenhuma criança, em uma época em que as moças casadoiras eram as adolescentes, quase meninas.
Não sei de quem vovó Lia herdou aquele porte nobre e altivo, pois até onde sabemos seus pais eram pobres, a despeito da pose afidalgada de seu pai José Américo, inclusive me foi dado como certo que dona Fausta nasceu em um engenho pernambucano, filha de escravos, forra pela Lei do Ventre Livre, não tendo tido, portanto, uma educação primorosa, embora fosse excelente costureira e alfabetizada. Pode ter herdado de vovô Américo, que não cheguei a conhecer (sempre foi para mim o “meu avô da parede”, pelo fato de haver um retrato seu na sala) ou das senhoras que a visitavam para encomendas, uma vez que ela era uma grande costureira especializada em alta costura (vestidos de festas, de noivas, formaturas etc) e, quem sabe, em um processo de assimilação cultural, adotara-lhes as maneiras requintadas. Mas o fato é que seus modos eram quase destoantes do seu ambiente, não fosse a humildade que espiritualmente a caracterizava como um dom, acompanhado de bondade e amor infinitos pela espécie humana.
Apesar de católicos – embora não lembre de muito fervor – vovó tinha um pequeno costume que julgo africano, que não sei como seria visto pelo Tribunal do Santo Ofício: ela fazia patuás Eram orações (vim saber depois) enroladas em tecido e costuradas a mão, que ela distribuía entre todos da família. Não sei que tipo de oração nem se havia um santo devoto a ser invocado para a nossa proteção. Também ganhávamos, ao nascer, uma pulseirinha com uma figa, às vezes de ouro, outras de marfim.
Tio João, único irmão de dona Eulália, era alfaiate. Sempre imaginei que a habilidade manual fosse característica da família Gomes até Jandira, sua filha, confessar-me que ele se tornara alfaiate para evitar ser convocado para a guerra, uma vez que algumas profissões, e entre elas a de alfaiate, estavam dispensadas do alistamento. Na verdade ele era uma espécie de “costureiro trapalhão” que saía para comprar aviamentos e não os trazia, aceitava encomendas que vovó Lia e dona Fausta concluíam para cumprir prazos, e nada tinha a ver com tal atividade. Gostava mesmo era de ir ao Cassino Leão de Ouro e passar o tempo a jogar, época esta em que conviveu longa e amigavelmente com o folclorista Luiz da Câmara Cascudo. Durante algum tempo vendera alguma coisa no Mercado Municipal que, arruinado por um incêndio, deixou-o mais uma vez a ver navios (o que penso era mesmo do que ele gostava). Quando vovô Joaquim convidou o cunhado para trabalhar em seu escritório, parece que as coisas se acalmaram um pouco, não sei se pela complacência bondosa de vovô, ou se ele realmente “tomara jeito”.
É verdade que a movimentação na casa era intensa, mas nada parecia afetar a nossa vida tranqüila de crianças. A presença de mamãe constantemente ao nosso lado dava-me segurança e a falta que sentia de papai, que viajava muito durante todo aquele período em que vivemos na Casa da Deodoro, ocasião em que fazia um curso em Fortaleza, é apenas um vazio, sem desconforto, que trago na memória: Ele simplesmente não estava ali; o que não parece ter sido sentido da mesma forma por Suzete que, sendo mais velha e primogênita, tinha a presença dele mais viva a encher o vazio que ele deixava, de modo que em várias cartas mamãe relata choros e reclamações dela pela sua ausência.
Devíamos ser muito choronas, pois é desta época a história que papai inventara sobre três meninas que viviam chorando e que eram objeto de zombaria de todos os meninos da rua que passavam por ali e gritavam no portão: “Manteiga Derretida, Mingau, Banana Machucada”. Não sei até que ponto a história me impressionava ou me deixava temerosa de virar chacota, mas a lembrança é das mais ternas.
Daniel dava-nos alguma atenção. Comigo era carinhoso, chamava-me Nitoca Nitoca e eu pedia-lhe a bênção. Mas para mim era como se ele não fosse MEU e sim de Suzete, talvez pelo fato dele ser seu padrinho. O mesmo não acontecia em relação à tia Cassinha: ela era uma espécie de segunda mãe, além de madrinha, de Suzete. No entanto, talvez pela minha proximidade com Simone, ela era muito MINHA também.
Já de tio Décio lembro muito pouco e apenas no que diz respeito à Simone. Só mais tarde, quando começou a trabalhar com o meu pai, é que passamos a conviver mais.
Ina ganhará importância crescente e progressiva em minha vida e é o maior exemplo de lealdade e dedicação que posso citar. Nunca vi tanta capacidade de trabalho em uma pessoa só. Mas me alongarei mais sobre ela no capítulo dedicado à Casa Jardim, a partir de quando ela foi, definitivamente, morar conosco.
Vovô dera-me o nome Helenita Yolanda Monte de Hollanda. Dizia carinhosamente e satisfeito: “Minha filha, seu nome é uma poesia”. De um certo modo passei a orgulhar-me do meu nome, embora o achasse esquisito por ser longo demais e ter tantos eles, mas nunca o abreviava, assinava o nome inteiro e, nem por ocasião do casamento, ousei mexer no poema do meu amado avô.
Já na Casa da Deodoro habituei-me aos livros. À exceção de Dinda, todos em casa eram alfabetizados, até vovó Faustina que adorava ler fotonovelas (revistas do tipo Capricho, Contigo, Sétimo Céu) e as leu enquanto pode, até os 94 anos, quando eu, já crescida, imaginava que ela fosse a única bisavó do mundo a ler fotonovelas. Talvez fosse mesmo.
Dizer que Dinda era analfabeta era quase ofendê-la, pois era capaz de dizer toda a cartilha decorada, de forma cantada como se lia na época em que ela freqüentou escola, e entendia isso como alfabetização, excluindo dela o ler e o escrever.
Meu avô era senhor de uma alegria e de uma simplicidade comoventes. Com o passar dos anos vim a conhecer melhor sua história de vida e passei a lhe querer um bem crescente. Criatura admirável que começou sua vida profissional como mestre de obras em Recife, freqüentando o Liceu de Artes e Ofícios onde obteve formação em fachadas ornamentais. Depois de vários trabalhos em Recife foi convidado para trabalhar em Natal pelo então governador e engenheiro Dr. Gentil Ferreira, para realizar tantas obras de peso, sendo licenciado pela Delegacia de Engenharia (futuro CREA) para desenvolver o seu trabalho de construtor civil.
Durante a minha infância na Casa da Deodoro meu avô trabalhava dois expedientes no escritório de sua pequena fábrica na parte baixa da Rua do Sul, na Ribeira, onde fabricava pré-moldados. Quando estava em casa era sempre rabiscando papéis que eu o via sentado na mesa de jantar. Fazia cálculos, desenhos, rabiscos. Adorava História do Brasil e sempre estava lendo alguma coisa. Era um homem de pouco estudo formal (penso que freqüentou a escola até o quarto ano primário), mas muito gostava de ler e tinha uma memória genial. Eu, muito pequena, encantava-me ao vê-lo recitar Navio Negreiro ou Vozes D’África de memória, assim como um outro poema de Castro Alves (O Livro e a América) que marcou a minha vida de uma intencionalidade que veio a me transformar em uma leitora quase compulsiva:
“Oh Bendito aquele que semeia
Livros... Livros à mão cheia...
E manda o povo pensar
O livro caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar.”
E sempre exibia um risinho quando recitava o trecho em que o poeta dizia
“Por uma fatalidade
dessas que descem de além,
o século que viu Colombo,
Viu Gutemberg também.”
Nesse momento eu podia sentir o seu orgulho alegre pela compreensão do poeta condoreiro que muito veio a me ocupar em leituras no futuro, embora não recite, como ele, de memória, poemas tão longos.
Em seu mister de semeador de livros, como em tantos outros, seu Quincas Victor foi muito bem sucedido e duas gerações de grandes leitores sucederam-se à sua. Sua história de vida foi um estímulo ao estudo, ao bom caratismo, à generosidade, à perseverança.
Mas ainda não é esse o momento de minha vida, nem nessa casa, em que a admiração pelos homens da família se revelará. Nesta época, as mulheres, como penso que deveria ser, eram o meu modelo; eram elas que se ocupavam de mim e me serviam de referência. E eram tantas, meu Deus, que não sei como os homens sobreviviam aos seus cuidados, aos seus achaques e às sua “embirranças”, ao seu domínio evidente e indiscutível, enfim, ao seu amor.
A Casa da Marise Bastier
- “Um pouco portuguesa e pixaim” -
A casa continua lá, inalterada, embora a ambiência esteja modificada a ponto de termos dificuldade em identificá-la. Ao que chamam de Progresso, chamo eu de Saudade, pois com as modificações perdi o palco onde poderia materializar tantas e tão doces lembranças.
No início eram apenas três casas naquela quadra e a nossa ficava entre elas e um terreno baldio. A rua não tinha calçamento e, à frente, um enorme vazio nos separava da av. Senador Salgado Filho, tendo a meio caminho apenas uma casinha paupérrima, de dois ou três vãos onde morava dona Ana e sua numerosa família.
Os móveis eram muitos, grandes e bonitos, cheios de adornos como que esculpidos na madeira escura e com pegadores/puxadores tão bem torneados. E havia uma grande atração na sala de visitas: um aparelho de televisão Telefunken Digo atração por que não tínhamos televisão em casa até os meus dez anos, pois papai não queria, mas não lembro de gostar tanto assim de assisti-la, tanto que o único programa de que me lembro é o de Flávio Cavalcanti. Já ao rádio ouvíamos sempre e nele conheci, e ouvia diariamente quando estava na casa da minha avó, a novela de Jerônimo, O Herói do Sertão (“Chumbinho, apresente o seu relatório”). Havia também uma outra, talvez até mais antiga, chamada O Egito.
Logo que ali chegava, colocava minhas coisinhas em um dos criados-mudo do quarto de minha avó. Era muito bom que houvesse um cantinho destinado aos meus pertences e eu sempre deixava algo como que para assegurar a propriedade. Na verdade era tudo muito bom para mim, desde o acordar, com o cheiro de café coado, cuscuz e tapioca, o cantar do galo-de-campina de vovô, o cacarejar de alguma galinha no quintal, até os dias tomados todos por muita brincadeira.
Quando tinha muita gente e não havia lugar para dormir, nos virávamos com o “couro da vaca”, ou seja, no tapete da sala, tirado de alguma infeliz “malhada” de preto e branco. Algumas poucas vezes eu dormi no quarto dos meus avós, mas me constrangia vê-los usar o urinol, que ficava debaixo da cama, durante a noite, apesar de ter um banheiro vizinho ao quarto.
A casa tinha uma varanda ampla e arejada logo na frente da construção e que dava acesso, por uma porta lateral, às salas de visita e de jantar. Um jardim e depois um muro baixo com portão de ferro separavam a casa da rua. Vovó Faustina sentava-se ali antes de anoitecer e ficava, pitando o seu cachimbo, a contar os carros que passavam ao longe, na avenida: os que iam e os que vinham. De vez em quanto eu perguntava a quanto estava a sua conta, embora já tivesse consciência da inutilidade daquele cálculo.
Na varanda também estão as minhas lembranças de vovô Ismael-da-perna-dura, pai de vovô Victor, que se hospedou durante alguns dias conosco vindo de Recife. Era um senhor mulato (mais claro talvez que o filho), careca (penso que usava máquina para raspar os cabelos) e normalmente vestido de linho branco (não sei se por “preceito” ou por vaidade) e de chapéu. Era mesmo um mulato (ou crioulo?) muito cheio de fumaças. Simpatizamos, Simone e eu, com ele à primeira vista e ali ele sentava para contar histórias. Lembro de haver passado tardes inteiras cantando para ele todo o meu repertório de músicas conhecidas, além de ter inventado algumas (não era à toa que meu pai dizia que eu cantava mais que uma patativa). Mais de trinta anos depois, a vida fez vir às minhas mãos uma cartinha dele para a minha mãe em que dizia: “Peço dar um beijinho na menina Leninha, pois eu ainda vou cantar aquela modinha que ela cantou comigo.”. Recebi seu beijo tardiamente e emocionada e agradeci tanto a Deus por havê-lo conhecido e marcado nosso único encontro com uma lembrança alegre.
Dinda gostava mais de ficar no oitão, próximo à lavanderia, no quintal que tinha um segmento acimentado onde colocávamos cadeiras para “ver o tempo passar”. Continuava – e continuaria até morrer – a ter um rádio ligado junto dela, e continuava a rir das besteiras que ouvia.
Como era fresco e calmo o oitão daquela casa Delicio-me à simples lembrança da sombra e do vento, da pele fresca pelo banho tomado e supervisionado por Ina (às quatro horas, como mandava minha bisa), da roupa limpa e cheirosa, do lanche que vovó Lia mandava servir e que podia ser bolo, doce ou, melhor ainda, pão com manteiga, Toddy e açúcar
Também ali, mais de uma vez assamos as castanhas dos cajus usados nos doces, usando fogareiro feito com uma lata grande e furada em que Ina colocava carvão e Dinda ateava fogo (nós não podíamos chegar nem perto; não que fosse perigoso, mas porque criança que brinca com fogo urina na cama). Depois, sim, era a nossa vez: ainda com o cheiro gostoso de castanha queimada no ar começávamos a quebrar as cascas e pelar as castanhas com nossas mãozinhas ainda desajeitadas, ficando completamente imundas com a tisna preta que nos encardia todas.
Na sala de visitas havia um conjunto de estofado coberto com napa verde musgo que eu achava muito bonito e confortável. Gostava de juntar as duas poltronas pelo assento formando como que um berço e dali, deitada, eu ficava a olhar o retrato do meu bisavô José Américo preso na parede. Ele me causava ao mesmo tempo estranheza e atração, principalmente por que era apenas um busto (não conseguia imaginar seu corpo inteiro), sua pele era clara, seus cabelos lisos e seu bigode espesso: elementos todos ausentes nos outros homens da minha família paterna. Mas havia alguma coisa em seus olhos... Conseguia fixar-me longamente neles, e ainda consigo, até que se transformassem em dois buracos negros que iam dar em um túnel. Que nunca consegui percorrer. Talvez tenha relação com o quê de misterioso em torno da sua origem que não consigo desvendar, o elo perdido, o fio da meada que tanto procuro e que parece enovelar-se cada vez mais. Nada sabemos sobre ele, nem se era brasileiro ou português, nem os nomes dos seus pais, nada. Tio Décio disse-me certa vez que ele era capataz do engenho Souza Leão quando conheceu dona Fausta. Já minha mãe fala que se lembra muito bem de papai contando que ele era filho ilegítimo do barão de Souza Leão. Há quem diga que ele era filho legítimo e que, para ficar com a minha avó abriu mão do nome da família e adotou o Gomes para a sua descendência. Nem a Internet, nem os centros destinados a estudos genealógicos conseguiram me ajudar até o momento a descobrir sua origem. Não sei por que dou tanta importância a isso, mas tem sido inevitável o desejo de percorrer esse túnel que me fascina e atrai há mais de trinta anos.
Eu, Simone e, às vezes, Sonja e Ana Luísa, brincávamos na varanda de casinhas arrumadas com as cadeiras que deitávamos ao chão e, encaixando umas nas outras, formávamos os cômodos dos nossos lares. Sonja costumava ser a “filha” e Aninha, não adiantava espernear, era a “empregada”. Nossos maridos eram a vassoura e o rodo e, não sei porque, era sempre motivo de brigas entre Simone e eu quem teria o rodo por esposo, pois ele era o preferido de ambas, talvez por seu substantivo masculino, não sei. Fazíamos também roupas de bonecas com retalhos que vovó guardava para nós; arrumávamos e desarrumávamos casinhas; brincávamos de escola ou simplesmente de fazer desenhos com lápis de cor; penteávamos as bonecas (essa era a brincadeira favorita de Simone que tinha fixação em cabelos).
As bonecas Suzy estavam na moda e eu tinha uma linda, com longos cabelos castanhos que iam até a cintura enquanto a da minha prima era cortado à moda Chanel, o que me deu a idéia de aconselhar um ligeiro corte “só para aparar as pontinhas” e, assim, facilitar o crescimento. Não tenho consciência de uma intenção maldosa por trás da minha atitude que, é claro, resultou em um desastre e em lágrimas inconsoláveis.
Algumas vezes fazíamos “cozinhado” de brincadeirinha, mas, pelo menos uma vez, vovó Lia nos ajudou a fazer comida de verdade: cortamos, tratamos e temperamos um frango, catamos o arroz, e preparamos tudo no fogão a lenha da casa de dona Ana, onde em algumas ocasiões nos era permitido brincar.
A casa era mais um barraco, sem reboco, e havia duas meninas mais ou menos da nossa idade. Sandra era a mais velha e trabalhava o tempo inteiro, ocupando-se da casa e dos cuidados com os incontáveis irmãos menores. A outra menina chamava-se Elis e era “doida”. Era mesmo bem evidente a sua deficiência mental, mas o atestado de insanidade mesmo foi assinado quando ela, literalmente, entupiu o irmãozinho bebê com feijão verde cru, empurrando com um pauzinho já que ele não “aceitava”. Uma tragédia
Elis parecia uma boneca de corda – mas de uma corda que não tinha fim – e que “pinotava” o tempo todo, com o polegar de uma das mãos à boca e o indicador no nariz. Estava sempre descabelada e só de calcinha, nunca a vimos limpinha e arrumada, com os cabelos penteados como os nossos. Cumpria incansavelmente seu fado de pular e chupar dedo, sem ter uma expressão facial de dor, alegria ou tristeza que sinalizasse para algum estado além da sua loucura.
Outra brincadeira que nos agradava muito era fazer aniversários e batizados das nossas bonecas. Geralmente fazíamos estas festas no dia seguinte a um dos nossos aniversários, pois usávamos as sobras de doces e da decoração. Não recordo de nenhum ritual religioso, mas as festas eram mesmo muito boas: servíamos os convidados em uma bandejinha improvisada (normalmente a vovó Faustina e Dinda, pois costumavam ficar mais “paradas” e, portanto, teoricamente disponíveis), distribuíamos lembranças, cantávamos parabéns. Gostávamos também de secar as bolas de ar e enchê-las de água, até estourar e aí era uma molhadeira enorme que nos deliciava e acarretava boas broncas, principalmente de Ina.
Muitas pessoas viviam naquela casa, além das que estavam sempre indo e vindo como Ana, a lavadeira, uma pretinha muito bem feita de corpo, mas de rosto bem feio, com olhos esbugalhados; Severina lavadeira de tapetes, que tinha poucos e horríveis dentes; Leila e Agenilza, que não lembro se moravam lá ou se iam para as férias como eu; além de Ina, Dinda, vovó Faustina e Imaculada, pessoa tão querida com quem tenho sempre prazer em encontrar e que faz as minhas unhas quando estou em Natal.
Diferentemente de Simone, eu não via a hora de crescer para fazer as coisas “de verdade”, enquanto ela era capaz de ficar horas a fio penteando os cabelos de uma única boneca com um pentinho. Sobre isso se dizia que ela saíra à minha avó que, moça grande, brincava de boneca escondida até dentro do banheiro para ninguém ver e zombar da criancice. Eu me intrometia nos afazeres de Imaculada, querendo varrer, espanar, mexer em panelas. Sempre me davam alguma coisa ou outra para fazer, e me sentia muito bem ao lado de Dinda na cozinha catando arroz ou, melhor ainda, debulhando feijão verde
Dinda tinha muitos “fregueses”, como o que fazia seu jogo do bicho, o vendedor de geléia de coco (espécie de cocada mole vendida em tabuleiro e que comprávamos em porções colocadas em papel manteiga); o vendedor de cavaco chinês, o garrafeiro que passava uma vez por semana e a quem ela vendia jornais, latas e garrafas, entre outros. Mas a lembrança mais forte é de “Fruita”, que era com ela chamava o rapaz que vendia frutas e verduras que colocava em cestos amarrados por cordas em uma longa vara que ele acomodava transversalmente nos ombros, por trás do pescoço. Nós dizíamos que eles eram namorados, o que seria, no mínimo, gaiatíssimo, pois o rapaz devia ter pelo menos quarenta anos a menos que ela e era branquelo, com sardas pelo rosto e braços.
Devíamos fazer muitas “danações” por ali que hoje não me vêem mais à memória, mas lembro de Dinda - que estava sempre “tomando sentido” na gente - correndo atrás de mim e da minha prima oitão afora, com um cabo de vassoura na mão e a gritar “Olha que eu já matei um lá no Recife”, o que nos deixava apavoradas (Simone arregalava tanto os olhos que só faltavam sair das órbitas). Ela contava bem séria que fora para Natal fugida da polícia por que havia colocado água fervendo nos ouvidos de um rapaz. Mas dona Lia nos protegia desses acessos de terrorismo de Nêne, e também não deixava que nos contasse histórias de assombrações trazidas de um Pernambuco encantado e fecundo em causos de aparições e visagens. Mas contadas por ela, as mais simples estórias eram de arrepiar, pois, além do seu tom sério e da voz arrastada, havia a expressão facial em que os olhos miúdos ora espremidos, ora esbugalhados, conferiam drama à narrativa. Suas estórias eram quase que invariavelmente musicadas, como operetas populares. Assim, meus cabelos grandes e soltos pareciam retesarem quando ouvia
“Campineiro do meu pai, não me corte os meus cabelos,
Minha mãe me penteou, minha madrasta me enterrou,
Pelo figo da figueira que o passarinho bicou...”
Foram muitos os contadores de estórias da minha infância, como papai, mamãe e Ina. Mas Nêne exercia uma atração enorme sobre mim com a sua capacidade de fazer medo. Sem ela e sem Monteiro Lobato (ela, principalmente, pelo ganho adicional proporcionado pela narrativa oral) eu não conheceria Boitatá, Curupira, Mula-sem-cabeça e tantas outras entidades do imaginário popular com quem me pus em contato através do seu converseiro de preta-de-leite, pois papai andava meio pedagogo montessoriano e quase jesuítico naquele tempo, e só nos contava histórias bíblicas ou as de Andersen, Perrault ou Irmãos Grim, além de algumas que ele inventava ou “temperava” como, p. ex., a do Rei Midas”, de que falarei em outro capítulo.
Simone de olhos arregalados parecia sempre na iminência de um tangolomango. Não sei porque eu me sentia comprometida com uma imagem de criança valente e destemida, o que não me colocava, de maneira nenhuma, a salvo dos medos. Estes vinham a se manifestar à noite e, mesmo assim, tinha constrangimento em confessá-los. Talvez esta impossibilidade de confessar os meus temores, por uma determinação pessoal, tenha sido a causa dos tantos pesadelos que costumava ter e que inquietavam minha mãe que conta precisar ir para a minha cama quase todas as noites durante muitos anos, já que papai não nos deixava dormir no quarto do casal.
Se eu estava acordada quando o medo surgia, rezava e fazia o sinal da cruz milhões de vezes sem muito sucesso. Se eu dormia, os pesadelos resolviam, de certa forma, o meu problema, uma vez que traziam mamãe para o meu lado.
Também foi mamãe quem me ensinou as primeiras orações e, quando estava na casa de vovó, Ina não me deixava esquecer de rezá-las.
“Anjo da minha guarda
Doce companhia
Não me desampare
Nem de noite nem de dia.”
Ou então:
“Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador
Se a ti me confiou a Piedade Divina
Sempre me rege, me guarde, me governe e me ilumine
Amém”
E ao acordar:
“Com Deus me deito, com Deus me levanto,
Com a Virgem Maria e com o Espírito Santo.”
Também tínhamos, de certa forma, que fazer por merecer a guarda do Anjo, pois Ina dizia que não podíamos dormir sem camisola, por maior que fosse o calor, sob pena dele ir embora peito afora. Também era ele quem nos dava mingau à noite e ela dizia que tínhamos que escovar os dentes tão logo acordássemos para limpar a boca do leite.
Não sei em que momento da minha eu vida passei a acreditar que só as crianças tinham Anjo da Guarda. Porém há mais ou menos um ano voltei a rezar para o meu, mesmo que reze o meu mistério diário, ou até o terço inteiro, já não deixo de pedir a guarda e o amparo daquele a quem a Piedade Divina me confiou. E isso me faz mais tranqüila e mais confiante na noite que sempre me assusta, não mais como naquele tempo, porém de uma forma diferente, embora não menos desconfortável, por me encontrar tão esperta quanto a maioria das pessoas ao amanhecer, já que o meu relógio biológico parece ser diferente do das pessoas em geral.
E assim nos iam sendo ensinados os hábitos de higiene, as normas sociais, as imposições do mundo adulto e em tudo aquilo acreditávamos.
Estávamos naquela casa – e assistimos pela nossa Telefunken – quando o homem pisou pela primeira vez na lua. Não havia quem fizesse vovó Faustina acreditar naquela “marmota”, pois, para ela, na lua só tinha mesmo São Jorge montado no seu cavalo e o dragão. Para ser mais precisa, dona Fausta não acreditava em nada do que via na televisão. Quando a TV Tupi apresentou uma versão da novela de Jerônimo, ela ficou muito indignada, pois era tudo diferente e mentiroso, certamente por não reconhecer ali as suas representações mentais construídas a partir da dramatização sem imagens do rádio e, é claro, tudo era diferente do visto na telinha. Provavelmente a sua decepção era motivada por fenômeno de ordem semelhante ao que experimentamos quando assistimos a um filme baseado em algum livro que adoramos: será quase sempre decepcionante e em proporção direta à nossa capacidade imaginativa. Sempre fugi dos filmes feitos a partir de livros (e até peças) que gosto muito, pois tenho um certo preconceito inevitável, como se se tratasse de uma espécie de adultério e sinto um desprezo e pena íntimos quando ao perguntar se alguém leu determinado livro ela me responde que não “mas que assistiu ao filme”. Inversamente tenho visto que, nos últimos tempos, têm-se comercializado livros dos filmes, o que também me parece de uma inutilidade piedosa pois a leitura será sempre condicionada a uma imagem já formada.
Uma vez vovó e Ina promoveram um concurso de bolos em que participariam, além de mim e de Simone, é claro, Sonja, Suzete e Diva (filha de uma comadre de vovó). Depois de muita confusão, meladeira e estrago de ingredientes, alguém inteligentemente sugeriu que formássemos dois grupos: eu, Simone e Sonja, contra Suzete e Diva. Só que Suzete era a própria dona Lia quando se tratava de culinária: criativa, caprichosa, sabia fazer e sabia inventar qualquer coisa. Eu era, segundo definição futura de algum exagerado, “um acidente procurando um lugar para acontecer”. Mas a sabedoria dos mais velhos foi decisiva para que a experiência fosse bem sucedida e o clima de competição não gerasse vencidos. Para evitar dissabores, decidiram dividir o prêmio em duas categorias: beleza e sabor. O nosso bolo ficou, de fato, muito feio, mas como era uma feiúra de leite condensado, fomos as vencedoras no critério sabor. Já o de Suzete e Diva era uma beleza, parecendo bolo de aniversário, coberto com glacê cor-de-rosa lisa e firme, bem merecedor do prêmio na categoria beleza.
Não tenho muitas lembranças de idas ao sítio de vovô, em Uruaçu, mas, pelo menos em duas ocasiões, recordo-me de nos ter sido recomendado dormir cedo para madrugarmos na estrada no dia seguinte. Ina esquentava água para o nosso banho, pois não havia chuveiro elétrico, e entrávamos ainda meio que adormecidas na caminhonete para aquela “longa” viagem. A partir de Santo Antonio vovô tinha que parar a cada esquina para cumprimentar compadres e comadres sem conta. Chegando lá, e durante todo o dia, era brincar e brincar no terreiro muito limpo junto a casa onde seu Dedé, o morador, vivia com a família. Na volta, cestos repletos de goiabas, mangas, cajus, uma ou duas galinhas “piadas”, enchiam a carroceria enquanto nos apertávamos na boleia, e lá se ia a caminhonete dirigida por meu avô, pesadona, arrastando-se e rangendo mais que os carros das almas penadas das estórias do Recife Velho, a deixar marcas na estrada de barro vermelho.
Depois, durante um certo ano fomos muitas vezes a São Gonçalo, pois vovô candidatara-se a prefeito e fora eleito. A equipe eleitoral não era mesmo brincadeira e eu adorava ir para os comícios, embora não me lembre de tantos assim. Para a campanha, criou-se um jingle que acho delicioso:
“Eu estava sem saber com quem ia votar,
Mas o Nego apareceu e meu voto recebeu.
Eu votei foi com o Nego,
Geraldino o que é que há?
Nós queremos Joaquim Victor a São Gonçalo governar.
Dona Hélia apoiou Joaquim Victor pra prefeito
E o povo confirmou
O Negão já tá eleito.”
Era mesmo muito interessante participar daquelas festas que eram os comícios. Muita gente, gritaria, meu avô no palanque falando ao microfone. Eu adorava toda aquela movimentação em torno de nós. Vovô eleito, vovó Lia tornou-se uma primeira dama muito pomposa, e mais parecia representar a República Federativa do Brasil que a Prefeitura Municipal de São Gonçalo do Amarante.
A partir de então, e durante um certo tempo, a casa vivia cheia de eleitores, gente pedindo uma coisa ou outra ou qualquer coisa mesmo; pessoas chegando na última hora, ou mesmo depois da última hora, para comer; tudo ficou meio agoniado, e era tanto “Meu Pai Eterno” que chegava a dar pena de dona Eulália.
Dona Fausta era magrinha e, aquele tempo, já andava como que engomando com os pés. Mas era a única magrela da família até a minha chegada cheia de enjôos e fastios. Gostava-se de pessoas gordas, pelo menos “cheinhas”, e Dinda dizia que eu não tinha carne nem para encher um pastel. Então vovô comprava para mim (não lembro se também para Suzete e Simone) POLICALCINA IODADA ou CALCIGENOL B12. O Calcigenol era preferido a Policalcina por ter melhor sabor, uma cor rósea mais bonita e, principalmente, por se fazer acompanhar de um prospecto onde se podia ler a história de Geninho, um menino que tivera sua vida melhoradas graças ao fortificante. Até hoje eu, Suzete e Simone conhecemos a história de cor.
“O Geninho era magrinho, tão fraquinho, coitadinho,
desajeitado, comprido, parecia um varapau,
e ganhou o apelido de Geninho Bacalhau.
Era o último na escola, o pior no bate bola, o campeão da derrota,
Com um jeito sempre aéreo e branco como ricota.
Ninguém o levava a sério, ninguém lhe dava pelota
No colégio a patota maltratava o rapaz.
Ninguém lhe queria mal, mas ele apanhava mais que tapete no varal.
Até que um dia Geninho topa c’um anjo no caminho
Esse anjo é seu Oscar da farmácia do lugar
Que certo dia notou sua fraqueza e ensinou:
‘Você tem tomar sol e tomar Calcigenol,
Para crescer sempre forte, com saúde e com vigor,
Para ser craque no esporte e na vida um vencedor.’.
O Geninho tomou sol e tomou Calcigenol
Hoje bonito, corado, rijo, valente e fortão
Respeitado e admirado Geninho virou Genão”.
Talvez vovô acreditasse no anúncio publicitário (não se falava em propaganda enganosa naquele tempo) e eu seria uma consumidora ingênua, pois era de credulidade tal, que acreditava que Papai Noel vinha de Varig trazer os nossos presentes, só por causa do jingle que cantava:
“Estrela das Américas no céu azul
Iluminando de norte a sul
Mensagem de amor e paz
Nasceu Jesus, chegou o natal
Papai Noel voando a jato pelo céu
Trazendo um natal de felicidade
E um Ano Novo cheio de prosperidade.
Varig, Varig, Varig”.
As festas de Ano Novo eram preparadas por minha avó e sua fiel e numerosa equipe: ceia, sobremesa, petiscos, decoração. Tudo feito em casa, não havia essa história de encomendar e nem vovó aceitaria (Misericórdia). A árvore de natal armada com luzinhas pisca-pisca; uma grande bola vermelha, que pertencia a Dinda, bem no centro da mesa; um garrafão de vinho que muitas vezes ajudei a decorar com pingos de velas derretidos. Uma vez tia Betinha fez crepes Suzete, mas nunca poderia faltar o peru, devidamente decorado, farofinha à Califórnia, “arroz-metido-a-besta” e Galinha doce
Vovô era a alegria em pessoa e um grande pé-de-valsa. Lembro-me de tê-lo visto dançar pela primeira vez em uma daquelas festas de Ano Novo: primeiro, juntinho, com vovó Lia, depois, solto como uma ave, tendo como único compromisso deixar que o corpo dançasse como que sozinho ao ritmo da música, sem trejeitos programados como se fazia. Consigo ainda, fechando os olhos, visualizar sua coreografia, sempre singular e inédita, completamente equilibrada e harmônica, um corpo liberto de tudo, a girar a partir do seu próprio eixo. Muitos anos depois, em uma descrição de Nikos Kazantzakis, eu veria os movimentos do meu avô reproduzidos por Zorba, O Grego.
A turma que ali se reunia era alegre e saudável. Quando dava meia noite era aquele ritual todo: os fogos, os abraços, as lágrimas de uns, as orações de outros. São momentos que se cristalizaram em minha memória e que hoje em dia resgato ao meu bel prazer quando quero me presentear com recordações alegres, quando preciso ter certeza de que a felicidade é possível, quando uma pontinha de desilusão quer se manifestar em meu coração.
Vovô tinha uma rotina bem estabelecida, saindo e chegando em casa em horários regulares. Isso me dava uma certa segurança no ir e vir das pessoas que eu amava e com quem me preocupava. Na minha casa era bem diferente pois papai não tinha hora para chegar e eu, desde bem pequena, já ficava aflita com isso. Quando ele demorava e eu ficava intranqüila pensava: “mas ele já chegou outras vezes até mais tarde”, o que não me deixava nem um pouco mais calma. Essa característica me acompanha até hoje, e tão pouco evolui no sentido de tornar-me uma pessoa mais serena
Já nessa época eu pensava que “quando eu crescesse” em minha casa tudo seria rotineiro e previsível, sem sobressaltos. E a idéia da vida futura que eu teria quando adulta crescia comigo, e crescia na minha mente e no meu coração, com uma simplicidade infantil que só vim a compreender em um futuro que se apresentou tão diverso de qualquer coisa que eu pudesse ter experienciado, que me pareceu, num primeiro momento, que eu não tivera “escola”, que nada do que eu havia vivido com tanta intensidade era válido e útil, de modo que a minha vida adulta negava a infância que procurei a todo custo preservar nessas lembranças. A Helenita adulta tornara-se, como criança, uma tábula rasa, carente de novos aprendizados que sustentassem as vivências que fossem atuais e que aconteceram em um contexto tão diferente, que eu tinha que concordar com meu avô Victor, pelo menos naquele ponto: “Minha filha, acabaram com o Brasil”. Não foi apenas a minha transição do mundo infantil para o adulto que fez tudo parecer diferente, mas tudo estava, realmente mudado. Tão sem desespero quanto ele, mas com desencanto infinito, eu diria que acabaram com o mundo, com a família, com a alegria da infância, com a sinceridade dos afetos, com a inocência, isso porque sinto que eu traí a promessa que a criança se fez para o futuro. O único remédio é ser feliz.
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