Entrevista de R1 Apolaro do Nascimento
Entrevistada por P1 Torigoe
Barcarena, 28 de setembro de 2020
Projeto “Memória de Barcarena”
Entrevista número HYD_HV015
Transcrita por Selma Paiva
P1 – Obrigado por ter vindo, antes de mais nada.
Obrigado por sua presença.
Eu queria perguntar, então, o seu nome completo, local e data de nascimento.
.
.
R1 – Meu nome é Lia Apolaro do Nascimento, nasci no ano de 1976, em Barcarena, Pará, no dia dezessete de agosto desse ano e sou barcarenense, moro aqui, sempre morei.
P1 – E qual é o nome da sua mãe?
R1 – Minha mãe se chama Atanásia da Costa Apolaro, ela é de São Sebastião de Boa Vista, tem setenta e três anos.
Está viva.
P1 – Está viva ainda? E os seus avós por parte de mãe? Qual que é o nome deles?
R1 – Antônio.
.
.
que é da minha mãe, esse aí é o materno, né, que você está perguntando? Meus avós maternos são Alberto Bandeira e Davina Bandeira.
São de São Sebastião da Boa Vista também.
P1 – Do Pará?
R1 – Pará.
Marajó.
Ilha do Marajó.
P1 – E você os conheceu em vida?
R1 – Não, não conheci meus avós.
Tanto é que eu tinha avós que eu considerava avós, mas eram pessoas de Barcarena, né, com quem eu convivi, que eram da.
.
.
do interior, onde meus pais moraram, assim que casaram, então eles eram os avós que eu conheci, que eu considerava, né, como avós.
P1 – Você não os conheceu, mas a sua mãe contou sobre eles? O que eles faziam? Como eles eram?
R1 – Sim, meu avô e minha avó eram muitos religiosos, responsáveis pela festa de Santo Antônio, em São Sebastião da Boa Vista.
Meu avô era organizador da festa e ele era muito conhecido também por ser.
.
.
ele tinha um trabalho, assim, muito de cuidar das pessoas através de remédios naturais, então eles chamavam por ele de enfermeiro Bandeira.
E ele era muito conhecido por isso, meu avô Alberto.
E a minha avó era quem preparava toda a parte da festa, de decoração, de alimentação, tanto é que ela veio a falecer logo após um desses preparativos, né? Acham que ela ficou tão cansada, de costurar, de cozinhar e não teve os devidos cuidados e acabou falecendo por conta do cansaço, né? E alguma complicação de saúde.
P1 – Você chegou a conhecer a região onde eles moravam?
R1 – Não, não.
Nós temos um projeto para dezembro, para reunir os filhos da minha mãe, né? Alguns, que são dez e levar para conhecer a vila onde ela nasceu.
P1 – E os avós do seu pai? Qual é o nome do seu pai?
R1 – Genaro Apolaro.
P1 – E qual é o nome dos seus avós, por parte de pai?
R1 – Antonio Apolaro e Filomena Apolaro.
P1 – Eles são de onde? Você os conheceu em vida?
R1 – Eles são.
.
.
meu pai nasceu na Calábria, na Itália, ele veio da Itália com onze anos, fugindo da guerra.
Então, meu pai é um imigrante italiano que se.
.
.
como é que a gente fala? Ele se instalou em Barcarena, né, desde a infância e aqui ele construiu família e aqui ele ficou, até a morte.
Ele, na verdade o pai dele, Antonio Apolaro, desertou, fugiu da guerra, desertou e veio e se instalou em Barcarena e, quando a minha avó veio, com dois filhos, já ficou por aqui.
E nasceram mais dois filhos e eles ficaram em Barcarena e cada um construiu família, né? E só meu pai permaneceu em Barcarena.
P1 – Os seus avós, por parte de pai, você conheceu?
R1 – Conheci minha avó.
Minha avó Filomena.
P1 – Como ela era?
R1 - Era uma velhinha italiana muito animada, muito divertida, né? Ela gostava muito de cozinhar, gostava de ensinar a culinária deles, típica italiana.
Inclusive uma coisa que ela se dedicou muito foi nos ensinar a fazer o macarrão, né? Para fazer, para manter viva a tradição deles.
Ela chegou a nos ensinar alguma coisa em relação aos embutidos, né? Como fazer o salame, como fazer.
.
.
armazenar, como deixar mesmo com o sabor que eles tradicionalmente deixavam, né? E nos incentivava a fazer isso, para não consumir os que eram fabricados de forma.
.
.
com tanto.
.
.
como é que a gente chama? Com tanto conservante, né? Ela sempre nos incentivava a fazer o nosso molho de tomate, a não usar realmente coisas industrializadas.
Essa é a maior lembrança que eu tenho dela.
E eu era a neta preferida, assim, dos dez netos, né, Apolaros, ela sempre quis que o papai me desse pra ela.
Ela dizia: “Genaro, me dá Lia, Genaro”.
Eu contava muitas histórias, conversava muito com ela e ela notava em mim alguém assim muito próximo dela, por causa desse interesse em aprender o que ela ensinava e nesse meu interesse em ensinar pra elas as minhas histórias, as coisas que a gente conversava, né? De neta pra vó e de vó pra neta.
Então, ela sempre me pedia para o meu pai, né? Meu pai não me deu (risos).
P1- E ela contou histórias pra você, de como era a vida lá na Itália?
R1 – Não.
Ela não contou, mas quem contava pra nós era minha tia mais velha, né? Contou que uma semana após eles deixarem a escola, uma bomba caiu muito próximo da escola.
Contou que eles tinham plantação de tomates.
Eles iam pra lá comer tomates, eles iam brincar em meio a plantação.
E contou também que eles viviam.
.
.
era uma região muito camponesa mesmo, né? Então, eles lembram muito dos caminhos, lembravam, né? Minha tia já partiu, eles lembravam muito dos caminhos que eles percorriam pra chegar na escola, que eles percorriam pra chegar na casa de algum tio ou alguma tia, né? Isso foi muito marcante pra eles.
E a amizade.
Sempre foram muito companheiros, muito próximos.
Tanto é que eles se chamavam.
.
.
não se chamavam de mano, mana.
Era compadre, comadre, compadre, comadre.
Eles tinham essa relação de compadre e comadre e nós, os filhos, brincamos muito sobre isso, né? Chamamos de compadre e comadre, sem realmente ser, né? Sem ter o filho batizado, porque nós somos evangélicos, não temos essa tradição de batizar o filho, ter padrinho e madrinha, né? Então, essa relação de compadre e comadre é por causa da relação do meu pai com as irmãs, né?
P1 – E você sabe por que o seu avô desertou da guerra? Como é que foi esse processo de ele vir pra cá?
R1 – Bom, ele desertou a convite de um primo, né, da família Cosenza, que veio e ele convidou pra, realmente, questão de sobrevivência, mesmo.
Nós chegamos a ver uma lápide com os nomes dos que tombaram na guerra.
Dos Apolaros, da família (Blos? 08:30), da família Cosenza e nós vimos que muitos, realmente, acabaram morrendo na guerra.
E os que fugiram, aparentemente covardemente fugiram da guerra, se tornaram heróis pra nós, porque senão nós não estaríamos aqui, né? A família Apolaro, a família Cosenza, a família (Blos? 08:48), não estariam no Brasil contando história, né? Então, a covardia deles, inicialmente, se tornou um ato de coragem em relação à essa sobrevivência mesmo.
E a gente vê muito esse propósito da família Apolaro, de manter viva essa história dos que realmente se tornaram heróis para nós.
Tanto os que morreram, quanto os que fugiram para sobreviver, né?
P1 – E também era muito corajoso sair de lá e vir para um país que eles não conheciam.
.
.
R1 – Sim, sim.
Papai contava que eles vieram em navios e, no navio, ele viu muita gente adoecer.
Ele era menino, ele viu pessoas adoecendo, ele diz que crianças nasceram durante a viagem.
Ele conta muito da chegada no Brasil, também a experiência com um novo tipo de alimentação, paladar diferente, né? Bem diferente do que eles estavam acostumados.
Então, isso é muito forte, era muito forte para ele, era algo que ele contava muito.
Para ele foi uma aventura a viagem.
Menino, né? (risos)
P1 – E por que eles vieram parar aqui no estado do Pará e não, por exemplo, a maioria a gente sabe que foi para São Paulo.
O que aconteceu? Você sabe?
R1 – Já foi por conta dessa ligação de alguém que já tinha vindo antes, da família Cosenza, que eram primos do meu pai, né? Alguém já estava aqui.
P1 – E falou que era bom?
R1 – Sim, muitas terras.
Tanto é que a família do meu pai ficou com essas terras que chegam até a praia do Caripi.
A gente chama de Fazendinha, Arrozal.
Então, a família do meu pai ficou com essa extensão de terra todinha.
Quando a minha avó faleceu, ela deixou para os filhos, para os quatro filhos.
Os outros filhos venderam as suas partes e meu pai foi o único que ficou com a ilha, que a gente chama, que é o Ipará.
E é uma extensão muito grande de terra e ainda está na nossa posse.
Na posse dos dez filhos agora, que ele deixou de herança.
A gente está, ainda, nesse processo de regulamentação de documentação, mas ainda é da família Apolaro.
P1 – Conta pra gente, então, um pouquinho mais de detalhe, para quem não é daqui, né? Essas terras de vocês, são no meio de onde? Elas se localizam onde, em Barcarena? Você falou da Fazendinha.
.
.
R1 – Sim.
A terra que pertence para a família Apolaro se chama Ipará.
É o nome: Ipará.
E fica localizada no Furo do Arrozal, fica à beira do rio Murucupi, aqui em Barcarena.
Ela faz fundo com o bairro do Laranjal.
Ela fica.
.
.
é tão extensa, que faz fundo com o bairro do Laranjal.
P1 – E o seu pai e sua mãe são vivos?
R1 – Meu pai faleceu há três anos.
No dia vinte e três de agosto de 2017, meu pai faleceu e minha mãe é viva.
Está com setenta e três anos.
P1 – Legal.
Você nasceu então, foi como? No hospital? Parteira? Como foi?
R1 – Eu nasci no hospital municipal, que agora recebe o nome de Wandick Gutierrez e fui uma das primeiras crianças a nascer, após a inauguração do hospital.
Meus irmãos nasceram.
.
.
alguns nasceram em Belém, outros nasceram em Barcarena, já nesse novo hospital e em clínicas também, particulares.
Os caçulas, né? Mas nenhum foi parto caseiro.
P1 – E você tem que lembranças, assim? As primeiras lembranças, digamos, que você tem da sua vida? Você consegue puxar? O que vier.
R1 – Bom, as primeiras lembranças, assim, de infância, o que é muito forte, é essa convivência com os vizinhos e com as pessoas das ilhas, que tinham essa ligação com os meus pais, que antes deles morarem na cidade, eles moraram num casarão, no que eles chamam de Boca do Murucupi, que é no Arrozal.
Então, essas pessoas passavam a frequentar a nossa casa, na cidade.
Então, essa lembrança que eu tenho muito forte, é de pessoas, né? A nossa casa sempre cheia, sempre.
O nosso almoço não era só papai, mamãe e os dez filhos ou, quando estivessem, tinha sempre alguém de fora almoçando com a gente, jantando, atando redes, dormindo na nossa casa.
Então, nós sempre tivemos a casa de portas abertas.
Então, essa lembrança é muito forte: as pessoas chegando, trazendo peixe, trazendo frutas, trazendo caças, que meu pai sempre gostou de caçar.
Então, quando ele não ia caçar, eles traziam para ele.
Então, a minha infância mesmo eu lembro muito disso, das pessoas frequentando a minha casa, interagindo.
Tanto é.
.
.
por isso que eu chamo, muitos eu chamava de vó, tio, tia.
Essa foi a família que eu conheci, mais próxima.
P1 – Então você nasceu, a primeira casa que você se lembra é esse casarão, então?
R1 – Não.
Eu já nasci em Barcarena.
Na cidade.
P1 – E vocês moravam lá, na cidade?
R1 – Já na cidade.
Na primeira rua da cidade, que é a Avenida Cronge da Silveira, que é a que fica à beira mar.
Então, minhas lembranças já são dessa rua, Cronge, que foi onde eu vivi vinte e sete anos da minha vida, nessa rua, né? Frequentando o comércio, frequentando as feiras, o mercado municipal.
Então, as primeiras lembranças são nessa rua.
As brincadeiras na rua, os filhos dos vizinhos, que passaram a ser meus tios, que eram os tios que eu conhecia.
Brincando na rua, frequentando igreja também, a nossa igreja.
Então, essas são as lembranças.
P1 – E como é que vocês usavam a rua pra brincar? Essa rua que você lembra.
R1 – Nós brincávamos.
.
.
nossas brincadeiras eram.
.
.
inicialmente nós brincávamos de corrida, nós tínhamos algumas competições: corrida, salto à distância, nós tínhamos também queimada, que é o “cemitério”, tínhamos bandeirinha, taco.
Mas nós tínhamos também a brincadeira de escolinha.
Nós juntávamos todas as crianças da rua e alguém ia ser o professor, né? Claro que uma criança também.
Essas eram as brincadeiras assim na rua mesmo e tinha as brincadeiras do quintal, que era “casinha”, as brincadeiras do quintal, nós fazíamos “casinha”, brincávamos de restaurante, brincávamos de lojas e também nós tínhamos algo no quintal, que era nossa banda de música.
Nós tínhamos a bandinha, com as tampas das panelas das mães e com latas, com garrafas, nós tínhamos a banda e tocávamos.
Principalmente quando chegava Sete de Setembro, a nossa bandinha estava formada, todo mundo tocando.
Foi a única época da minha vida que eu fui música porque, daí pra lá, meus irmãos se formaram em Música.
Meus nove irmãos são músicos, são maestros, são compositores.
Alguns pararam de tocar, outros ainda tocam.
Eu fui a única que não prosseguiu na carreira musical.
Foi só na bandinha do quintal mesmo e parou.
P1 – Como é que é você, nessa escadinha de irmãos?
R1 – Eu sou a.
.
.
sou a quarta filha.
A quarta.
P1 – E quantos homens? Quantas mulheres?
R1 – São seis homens.
.
.
são quatro homens e seis mulheres.
P1 – Todo mundo foi pra música, praticamente?
R1 – Os nove.
Nove.
Nove músicos.
P1 – Caramba.
Por quê?
R1 – Antônio, Andréia, Elenise, eu sou a quarta.
Aí vem Raquel, Tiago, Noemi, Késia, Daniel e André.
P1 – Por qu vocês tiveram uma casa musical? Seu pai tocava?
R1 – Sim.
Meu pai tocava de.
.
.
o que a gente chama, de “orelha”, né? Tocava acordeom, tocava sax, tocava violão, mas de “orelha”.
Nunca estudou, mas tocava.
Inclusive ele tocava em festas aqui em Barcarena.
Ele tinha aparelhagem, antes de casar com a minha mãe.
A aparelhagem se chamava Imperial e ele tocava em várias festas e, no acordeom, ele tocava valsa da meia noite, nos quinze anos, tocava também em casamentos e daí veio essa inspiração para os filhos também prosseguirem na música.
Então, a nossa bandinha de quintal acabou sendo a base para os meus nove irmãos músicos.
E agora, na vida adulta, meus irmãos criaram uma banda de fanfarra, que foi campeã paraense três anos consecutivos, a banda de fanfarra deles ganhou.
Acredito que foi 2015, 2016 e 2017, uma coisa assim.
Eles foram campeões paraenses na banda, nessa categoria de bandas de fanfarras.
Então, hoje em dia eles fazem parte, já, do júri que julga os outros músicos.
Eles já pararam um pouco de tocar a fanfarra, mas continuam ainda muito envolvidos com música.
P1 – Então, imagino que você cresceu com um monte de gente tocando na casa?
R1 – Sim.
Todo mundo tocando alguma coisa (risos) e eu escrevendo.
A música deles, para mim, era o fundo para minhas histórias, para os meus poemas.
Então, eu me dediquei à escrita, à leitura e à escrita.
Na infância escrevi historinhas que eu contava para os vizinhos, contava para os tios e uma.
.
.
a primeira história foi A Árvore Falante, eu era bem pequena, desenhei a árvore, fiz as falas da árvore e trabalhei um pouco essa questão da defesa mesmo do meio ambiente, através das mãos das crianças.
As crianças protagonizando essa defesa.
Isso há quarenta e poucos anos atrás.
As crianças como protagonistas, nessa defesa do meio ambiente.
Abraçando a árvore, dando as mãos mesmo e impedindo que os adultos destruíssem o que era mais importante para nós naquele momento, a vida, através da árvore, representado pela árvore.
E A Árvore Falante ficou marcada para mim como a primeira história, porque eu consegui levar para a escola, já na adolescência e contar na escola.
Além de contar para os vizinhos, que eu já contava, né? Contava para os tios.
Também consegui contar na escola, para os meus colegas.
Então, isso, para mim, foi uma das minhas primeiras lutas, uma das minhas primeiras, assim, bandeiras, que eu digo, foi essa luta pelo meio ambiente mesmo, pela vida, pela natureza.
Escrevi também o Vaco e a Vaca, que foi bem próximo da A Árvore Falante, eu não tinha essa noção do boi e da vaca, pra mim era o “vaco e a vaca”, né? Escrevi e era uma linda história de amor, já era o meu primeiro romance (risos) e que, hoje em dia, apesar de ser engraçado, mas, com certeza, já me deu uma base, porque eu consegui, mesmo muito pequena, aprendi a ler com quatro anos e escrever.
Então, muito pequena, eu já tinha essa noção do enredo, né? Do começo, do meio e do fim de uma história.
E isso só foi ampliando para a minha vida adulta e hoje em dia a facilidade de escrever, de compor, de interpretar, vem muito já dessa infância.
P1 – Como é que é essa sua história do Vaco e a Vaca?
R1 – O Vaco e a Vaca (risos).
Eu não vou conseguir contar, porque eu me emociono muito.
P1 – Ah, é?
R1 – É.
Eu vou me emocionar muito.
Porque eu vou lembrar dos tios para quem eu contava.
Eu já quero chorar.
.
.
não vou conseguir.
P1 – Se quiser dar uma parada também depois, ou agora, é só pedir.
R1 – Tá.
Tá bom.
Mas avança aí nas perguntas.
______ (21:49) para lembrar dos meus tios.
P1 – Você está falando assim e eu não perguntei o que seu pai e sua mãe faziam? Como é que era isso? Sua mãe fazia o quê? Seu pai fazia o quê?
R1 – Bom, meu pai, após casar com a minha mãe, eles se tornaram evangélicos.
E o trabalho dele foi muito direcionado à igreja, à construção de igrejas.
Mas a profissão dele mesmo é soldador.
Ele tinha oficina mecânica e consertava motores, soldava e também, parte da minha infância foi dentro dessa oficina mecânica, né? Eu tentava ajudar, eu afrouxava os parafusos para ele, já para ir adiantando.
Aprendi a soldar, né? Aprendi a soldar.
E, quando perguntavam qual era o meu maior sonho, quando perguntavam: “Lia, o que tu vai ser quando crescer?”.
Eu dizia que eu ia ser mecânica, ia ter uma oficina e um monte de homens trabalhando pra mim (risos).
Eu tinha já.
.
.
isso era ensaiado, porque sempre alguém perguntava: “O que vai ser quando crescer? O que vai ser quando crescer?” Eu dizia logo: “Vou ser mecânica, vou ter uma oficina, minha e um monte de homens trabalhando pra mim”.
Então, isso ficou muito marcado, né? Não segui no meu sonho.
Esse foi o único que eu fiquei devendo pra menina Lia, que eu falo, porque eu fiz muitas promessas para a menina Lia e fiquei devendo para ela esse, né? Quem sabe agora, na velhice, eu faça um curso, (risos) vou abrir minha oficina, né? Mas já não vai mais ter também só homens trabalhando, né? Com certeza, mulheres também vão ter o seu espaço.
P1 – E ele consertava o quê?
R1 – Consertava motores de embarcações.
Como eu falei, as pessoas das ilhas já o tinham como referência, por ser na primeira rua da cidade.
Então, já ficava fácil de atracar o barco no porto e trazer o motor para a terra e levar para a oficina.
Era, acho que no momento, a oficina mais próxima para eles.
E já confiavam também no trabalho dele.
P1 – E o seu avô, pai dele, fazia o que também?
R1 – Não.
O meu pai.
P1 – Sim.
Mas o pai do seu pai, o que ele fazia na área, na região?
R1 – Na região, meu avô tinha - meu avô, Antonio Apolaro - comércio, ele era comerciante.
E a minha avó costurava, a avó Filomena.
P1 – E ele comercializava o quê?
R1 – Era alimentos, tudo, tudo, tudo.
Alimentos.
.
.
há poucos dias eu coletei o depoimento de uma senhora que vai fazer setenta anos e, na época, ela era criança e ela lembra quando a mãe dela mandava ela ir comprar pirarucu na venda do ‘seu italiano’ e ela disse que o pirarucu era tão bom, na época, que eles comiam cru.
Não fritava, não cozinhava, nada.
Era cru.
Com chibé, com açaí.
E lá, a ponte do meu avô era muito grande também.
Era uma ponte muito bem feita, né? Então, era o point para as crianças irem brincar, pular na maré, tomar banho, brincar, né? Então, ela me contou um pouco disso, porque realmente eu não conheci esse momento dos meus avós.
E aí eu já estou fazendo essa busca de pessoas que conviveram com os meus avós e com o meu pai e meus tios, na infância.
Estou fazendo essa pesquisa.
P1 – E a sua mãe? O que ela fazia?
R1 – Minha mãe é costureira.
Ela costurava muito para a família e também para os amigos.
Ela tinha, desde há muitos anos, já uma prática de trabalhar com aquelas coroas de flores para o Dia de Finados.
Tanto é que as seis filhas dela acabaram, também, trabalhando muito com ela.
A gente, ia se aproximando esse período de outubro, essa última quinzena de outubro, a gente começava a produzir as flores, as coroas para, no Dia de Finados, estar com tudo pronto para vender, justamente para as pessoas das ilhas que vinham e já sabiam que na casa da minha mãe eles iam encontrar já as coroas de várias cores, de vários modelos, para ir levar para os seus mortos, né? Então, lá também já a nossa casa se tornava um ponto de referência.
Pela oficina do meu pai e pela costura da minha mãe e pela produção de flores.
Era muito conhecida por isso.
P1 – E você sabe como os seus pais se conheceram?
R1 – Minha mãe morava em Belém e as primas do meu pai convidaram a minha mãe para vir passar um dia na praia, onde a aparelhagem dele ia tocar.
Então, as primas do meu pai eram acostumadas a vir, da família Cosenza, né? Dessa família que eu falei, que veio junto.
Então, elas convidaram a minha mãe para vir passar o dia na praia e passar a festa, porque a minha mãe gostava muito de dançar, né? Pela criação que ela teve no Marajó, né? As festividades de santo, então tinha aquele momento do sagrado e à noite tinha as festas, os bailes e a minha mãe dançava muito.
E elas convidaram a minha mãe para vir dançar na festa, né? E claro que, durante o dia ela conheceu meu pai e ele ficou.
.
.
se apaixonou.
Minha mãe era muito bonita, os traços dela assim bem.
.
.
até hoje ela tem o rosto ainda muito.
.
.
o rosto da minha mãe não envelheceu.
Ela tem, assim, um rosto muito jovial.
Os cabelos dela eram muito.
.
.
eram longos, negros, encaracolados e, quando ele viu aquela jovem marajoara, ele se apaixonou por ela e ela acabou ficando para a festa.
Se apaixonou também e daí em diante não teve jeito.
E ele era muito namorador, a fama dele era de namorador.
Dono de aparelhagem, músico, né? Então, ele era muito namorador, muito mesmo.
E, a partir desse dia, ele “pendurou as chuteiras” de namorador mesmo, se apaixonou e não teve jeito.
Enquanto ele não conseguiu casar com ela, trazer para Barcarena, ele não se acomodou.
P1 – E como é que era, me conta assim: você disse que tinha muitas pessoas nas sua casa, na infância, me conta, se você lembrar, quem eram os seus melhores amigos nessa época? Você ficava na casa de quem? Como é que era isso?
R1 – Sim, na minha infância, assim, os melhores amigos são de três famílias: a família Tavares, todos os filhos; a família Andrade e a família Ferreira, que eram as casas mais próximas da minha, que fica entre o mercado municipal e onde era a casa dos meus pais.
Então, eram todos, todos dessas famílias, né? Então, dava um bom time, assim.
Por isso que as brincadeiras eram boas, porque todas as três famílias tinham muitos filhos.
Então, a gente conseguia montar time, conseguia montar escolinha, conseguia fazer casinha, porque tinha todos os personagens da família, né? Conseguia fazer a banda, já com as crianças dessas famílias.
Então, a ligação era muito forte, com todos.
Até hoje a relação é muito.
.
.
nós somos muito próximos.
Até hoje, na vida adulta, nós sempre estamos em contato.
E eu havia falado sobre quem eram os meus avós, eu conto a história de uma avó, que era quem eu chamava de vó, na verdade, era Dona Veridiana, a avó dos meus vizinhos e era.
.
.
eu considerava minha avó.
E ela sempre me chamava para catar a cabeça dela.
Bem velhinha, né? E ela chamava, porque quando eu ia catar, eu não ficava só catando, eu ficava catando e conversando.
Contando histórias para ela e ouvindo as histórias dela, né? Então, recentemente eu gravei, já, esse momento da minha vida, eu já tenho registrado, que são os Piolhos da Vovó.
Que, na verdade, ela não tinha piolhos.
Ela não tinha.
Ela só queria mesmo sentir aquele toque, aquele cuidado e conversar.
Era só o que ela queria.
Tanto é que o pagamento dela, dos meus serviços, né, prestados para catar, eram bolachas, biscoitos.
Ela me dava quatro, cinco biscoitinhos e eu ia embora.
Então, quando ela faleceu, eu não acompanhei o velório, né? Não vivenciei o velório, o sepultamento e aí, alguns dias depois, eu fui procurar, né, a vovó, pra catar, pra conversar e não encontrei.
Então, isso marcou muito, assim, na minha infância, né? É por isso que hoje em dia eu registro a história dos Piolhos da Vovó e pretendo ilustrar, pretendo transformar em um livro e transmitir essa história de cuidado, essa relação entre os idosos e as crianças, essa ligação que precisa existir.
E as marcas que ficam de tudo isso, que é o carinho, o respeito e o desejo de cuidar de mais pessoas ainda.
P1 – Você consegue contar alguma história que você contava para ela ou que ela contava pra você nesses momentos?
R1 – Sim.
Ela tem.
.
.
a avó Veridiana me contava muitas coisas, assim, da vida deles no Muaná, que é a origem deles, né? Eles eram do Muaná.
Então, ela me contava muito sobre as viagens de canoa, pelos igarapés, pelos rios, essa.
.
.
algo que eles gostavam de fazer era o passeio de canoa, era algo que ela contava sempre, o que acontecia: alagava, eles apanhavam frutas, eles viam os barcos maiores passando, no rio maior, quando eles saíam dos igarapés.
Então, isso é uma coisa que eu fico lembrando muito dela, é esse passeio.
É algo que eu gosto de fazer, né, que são esses passeios de barco, de canoa.
Eu sempre lembro dela, quando eu vou para lugares onde tem esse passeio, ainda, a remo, né? Ainda tem esse.
.
.
que agora a gente está com rabetas, né? Que são velozes, que correm, em cinco minutos sai daqui e já está ali.
Mas eu ainda consigo gostar desse passeio de canoa, que é mais lento.
Traz essa ideia do prazer, de poder olhar com mais calma o que está ao nosso redor, sem pressa de chegar onde tem de chegar.
Fora a conversa de quem está remando e de quem está, às vezes, sendo levado para algum lugar.
Então, esse passeio de canoa é muito forte, eu lembro muito dela, pelas histórias que ela contava.
P1 – E de outras pessoas ou dela você ouvia essas histórias que as pessoas chamam de visagem, ou de lendas da região? Você ouvia?
R1 – Sim.
Essas histórias de visagens eu já tenho por parte de outras pessoas, né? Já na adolescência a gente já ouvia mais, porque a gente viajava para um local chamado Utinga Açu, aqui em Barcarena, né? Utinga Açu.
Então, nesse local, assim, a gente já passava a noite, já na adolescência, já passava a noite, já ficava até algumas horas, assim, reunidos embaixo de uma mangueira, nesse local, contando histórias, ouvindo histórias, principalmente, né? Então ouvia-se muito da Matinta Pereira, ouvia-se muito também histórias - por ter igarapé próximo - de boto, né? E, numa das minhas viagens, eu consegui escutar a história da bota, que já e algo diferente, né? Que o senhor perguntou pela manhã, para a esposa dele, se ela tinha deitado com ele na rede.
Ela disse que não, que ela estava de resguardo, né, tinha tido bebê há poucos dias e que ela não tinha deitado com ele.
E ele disse que sim, que ela deitou e que ela estava muito gelada.
Que ele havia percebido que ela estava muito gelada.
E ela disse que não, que jamais ela ia deitar, porque realmente ela estava se resguardando do pós-parto.
E ele insistiu, dizendo que sim, que ela tinha deitado com ele.
E aí, alguns dias depois, ele começou a adoecer.
A própria filha desse senhor contou a história.
Ele começou a adoecer, ficar todo amarelado, ficar sem apetite, não conseguia dormir.
Ficava muito tempo na janela, olhando, né, para o igarapé.
E foi quando alguém disse: “Olha, ele está mundiado pela bota”.
Com certeza foi a bota que deitou com ele.
E aí tiveram de levar ele para outro igarapé e, nesse trajeto, alguém teve que ir jogando água de alho, para a bota não afundar o barco, a canoa que eles estavam, né? E dizem que realmente ela apareceu.
A bota apareceu, para tentar afundar o barco, pra levá-lo.
Então, eles levaram para a casa de uma senhora, onde ela fez as rezas, fez os remédios e o tratou, assim, durante, pelo menos, uma semana.
Foi quando ele se recuperou e voltou pra casa.
Então, para mim foi inédito, porque a gente sempre escutou a história do boto, né? O boto que vai, engravida, que mexe com a mulher, mas a história da bota foi a primeira vez.
P1 – E você chegou.
.
.
você acha que você chegou a ver alguma coisa dessas na sua vida, ou os seus irmãos?
R1 – Não.
Numa das noites que nós estávamos nesse local, chamado Utinga Açu, nós escutamos o assovio que seria da Matinta Pereira.
Tanto é que todo mundo se.
.
.
correu para dentro da casa, ficou lá quietinha e escutou três vezes o assovio que seria da Matinta e os moradores garantiam que era ela que estava próxima, né? Nós ficávamos com medo pelo medo deles, mas nós não acreditávamos, assim, que realmente existia, né, assombração, Matinta Pereira, mas a gente ficava com medo, por ver o medo deles.
E por eles acreditarem que realmente era ela.
Mas nós não.
.
.
por ter uma criação evangélica, cristã, bíblica, nós acreditávamos que não.
Mas o medo era por conta do medo do outro.
P1 – Como é que era esse assovio? Não precisa fazer, mas como é que era?
R1 – Era um assovio longo, três vezes.
P1 – E alto?
R1 – Alto.
Bem parecido com o que a gente.
.
.
sempre alguém contava: “Olha, é assim e tal que ela assovia” e a gente.
.
.
pela semelhança, né? A gente chega a pensar que é um pássaro, mas ninguém nunca viu, né? Ninguém nunca viu.
P1 – Me diz uma coisa: você era criança quando aconteceu aquela história da baleia encalhar aqui na praia, é isso?
R1 – Não.
Eu não era nascida.
P1 – Você não era nascida?
R1 – Não.
A história da baleia é de 1974.
Eu nasci dois anos depois.
P1 – Mas essa história foi contada pra você?
R1 – Sim, sim.
Nós temos os jornais da época.
Inclusive está aí, escondido.
(risos) Eu trouxe pra vocês, contra a vontade da família, né, porque a minha família não permite que a gente ande com.
.
.
mas como eu sou a guardiã, né, hoje eu abri uma exceção pra vocês.
Então, a história da baleia já aconteceu em 1974 e aí o meu pai contava a versão dele, por ele ter chefiado, comandado os pescadores na época, então ele contava e depois, com o tempo, a gente foi já conversando com pessoas que participaram, que iam contando também as versões delas, né? Tanto é que, um certo tempo, houve uma família que queria requerer o destaque para o pai deles, como sendo o que comandou ou chefiou tudo, que eles não achavam justo que só o nome do meu pai tivesse esse destaque, né? Só que aí, noventa e oito por cento dos demais relatos levam, direcionam só para o nome do meu pai.
Eles reconhecem que esse senhor teve participação, foi muito atuante, mas ele não chegou aquele que chamou todo mundo, que comandou, organizou e tal.
Não foi ele, realmente foi o meu pai.
P1 – Conta pra gente, pra gente deixar registrado, o que aconteceu nesse dia?
R1 – Dizem que alguns dias, antes do dia três de agosto, uns dias antes, o povo começou a perceber algo que boiava, na maré, algo muito grande e eles pensavam que era.
.
.
alguns pensavam que era boto, cobra grande, chegaram a dizer que era um submarino, pelo tamanho, pela maneira como boiava e afundava novamente.
Então, quando o meu pai viu, ele ainda não tinha certeza do que era, mas ele já chamou pessoas pra ajudar.
Eles começaram a busca no dia dois, por volta da tarde, assim, era tardezinha e eles começaram a busca pelo animal, né? A caçada.
Esperar onde ia boiar, onde seria a próxima aparição do animal.
E aí eles conseguiram pescar mesmo, pegar, já era o dia três.
No dia três de agosto de 1974, foi quando eles conseguiram capturar o animal.
E, apesar de ser um filhote, que tinha apenas oito metros e dez toneladas, mas para as embarcações, que eram pequenas, na época e a falta de equipamentos adequados, eles tiveram dificuldade para trazer para a beira, para deslocar o animal, para trazer para a praia.
Que foi onde o animal foi cortado, repartido, para a população.
Mas foi uma caçada, realmente, bem interessante.
Apesar de que, hoje em dia a gente conta como um fato heroico, né, do meu pai, mas ele já, assim, depois de muitos anos, chegava a dizer que hoje ele não faria mais isso.
Que ele teria deixado o animal, por ser um filhote, ele teria deixado ir embora, teria ajudado.
Mas também ele fala que o animal já estava muito machucado, por causa das pedras, por algum motivo o animal já estava cansado e morreria, de qualquer maneira.
Também foi isso que levou eles a caçarem, a matarem e a repartir para o povo se alimentar, mesmo.
E o povo comeu a carne da baleia.
(risos)
P1 – Ele caçou como? Com arpão?
R1 – Sim.
Eles usaram arpão.
E cordas, né? Cordas bem resistentes, que eles já usavam, porque também eles já trabalhavam com pesca, eles já tinham alguns equipamentos.
Não eram os adequados, né, para uma baleia.
Mas já serviram para esse momento da caçada e da pesca da baleia.
P1 – E como é que eles trouxeram a baleia para a praia?
R1 – Pois é.
Foi nesse momento que valeu o trabalho, mesmo, coletivo, né? Que eles conseguiram mesmo amarrar, prender as cordas e as embarcações conseguiram ir trazendo, devagar.
Tanto é que demorou tanto essa chegada, que conseguiu dar tempo do povo todo ir para a orla da cidade, para a praia, aguardar a chegada da baleia.
Então, essa chegada da baleia foi tão demorada - eu penso assim que nos dias atuais seria rápido, com barco, né, uma embarcação com potência suficiente, com guindaste, traria rapidamente - que deu tempo do povo, assim, ficar nessa ansiedade, né? Que a gente fala que é o “esperar na areia”.
Tem a música, né? “Eu vou, eu vou, com minha turma, esperar na areia”.
Então, deu tempo de juntar, chamar a família, chamar alguém que estava longe, alguém que morava em outra localidade, em outra comunidade, em outro igarapé, em outro ramal.
Deu tempo de chamar, pra chegar e esperar na areia.
E a gente usa muito essa expressão: “Vamos esperar na areia, esperar a chegada da baleia”.
Então, deu tempo pra isso.
Porque, se tivesse sido rápido, apenas algumas pessoas teriam visto a chegada da baleia.
Mas foi demorado, devido à essa dificuldade de deslocar essas dez toneladas dentro do rio.
P1 – E ela foi parar em que praia?
R1 – A gente chama de.
.
.
essa praia fica.
.
.
a gente chama de praia do Marião, porque era o dono do comércio que ficava na direção da praia.
Essa praia do Marião.
É bem na frente da cidade mesmo, bem.
.
.
não é uma praia realmente, a gente chama de praia por causa da areia, né, que tem.
Mas não é realmente uma praia, frequentada, conhecida, não.
Porque nós tínhamos a Prainha, que era onde o local do banho, as crianças iam, as famílias e tinha essa outra praia, que era onde os barcos encostavam para ir fazer compras na mercearia do ‘seu’ Marião.
Que é onde tinha babaçu, para usarem na pesca do camarão, onde tinha.
.
.
que era muito consumido na época, que é o pirarucu, que eles falam muito, até o charque, querosene.
.
.
na época e até depois do meu nascimento, eu sei que lá tinha também uma máquina que fazia caldo de cana.
Então, as pessoas encostavam nessa Prainha pra subir, para ir no comércio do ‘seu’ Marião.
Então, lá eu chamo de praia do ‘seu’ Marião.
P1 – E aí a baleia ficou estacionada ali nessa praia?
R1 – Sim, ficou e lá foi feita a.
.
.
P1 – A partilha?
R1 – A partilha da baleia.
P1 – O seu pai, deu um.
.
.
o que aconteceu? Foi partilhado porque ele quis ou simplesmente o pessoal foi lá e .
.
.
R1 – Não.
Foi bem.
.
.
foi organizado porque, no começo, como tinha muita gente, né, inclusive o padre da época relatou que a multidão era tanta que foi.
.
.
eles chamam de festa, né, para esperar a chegada da baleia.
Então, era tanta gente, que começou a ter um tumulto.
Porque todo mundo estava lá com as suas facas, seus facões, querendo tirar um pedaço, alguma coisa e até isso o meu pai teve que comandar.
Chamaram a polícia, para organizar.
Então, só alguns tiveram esse poder de corte mesmo, de repartir a baleia e já entregar para quem estava lá, pronto para receber, né? Tanto a parte da carne, quanto a gordura da baleia.
As pessoas estavam lá para pegar a gordura da baleia, para usar como medicamento.
P1 – Ainda usa isso?
R1 – Usa, usa.
A gordura.
A banha da baleia, que eles chamam, né? Então, por muitos anos, o meu pai armazenou a banha da baleia e vinham.
.
.
P1 – Queria que você me contasse, vou continuar um pouquinho na baleia, mas eu tinha já uma pergunta mais.
.
.
mas vamos voltar na história da baleia então, um pouco.
Me contaram que o seu pai pegou trator, essas coisas, como é que foi isso? Pra trazê-la.
É verdade isso?
R1 - Sim.
Não, ela foi cortada na praia.
Na praia, mesmo.
P1 – Com máquina?
R1 – Sim.
Barcarena não tinha estrutura, né, suporte pra puxar realmente pra areia.
Eles conseguiram trazer até a margem do rio, mas para puxar para a areia teve que emprestar um trator de Abaetetuba, do município vizinho.
Aí foi emprestado um trator e foi que eles conseguiram realmente puxar a baleia para a areia.
Eram dez toneladas, né? Então, não teve homem que conseguisse puxar.
Nem os carros da época, acredito que devia ser muito escasso também isso, né? Há quarenta e seis anos! Teve de pedir um trator de Abaetetuba, para poder puxar a baleia.
P1 – E seus irmãos e seu pai falaram como era a carne da baleia? Se era boa ou se era ruim?
R1 – Bom, na época só eram nascidos o Antônio e a Andréia.
A Andréia era bebê ainda, a Andréia era bebezinha ainda.
O Antonio não.
.
.
ele não tem recordação da.
.
.
mas, pelo relato das pessoas, eles dizem assim: é igual carne de boi.
A única diferença é que é muito forte o cheiro.
Pitiú, né, que chama.
Pitiú muito forte.
Tanto é que tem um relato engraçado de um rapaz da.
.
.
que é de uma localidade, da Estrada, que a gente chama, que levou numa caixa, dentro do ônibus, alguns pedaços e tal.
Queria levar, de Barcarena, uma novidade.
Só que, no meio da viagem, o povo começou a reclamar do cheiro forte e aí ele teve de jogar fora a carne da baleia.
Não chegou na casa dele com a carne da baleia por conta disso: que o cheiro era muito forte.
P1 – E falaram também que ficou um pouco apodrecendo na praia, que foi um problema isso também.
.
.
R1 – Sim.
Ficou, porque o que foi levado foi só a carne e alguns levaram a banha da baleia, né? Mas o restante ficou.
Alguns ossos foram guardados, pelo meu pai e por outras pessoas, né? Guardaram alguns ossos da baleia.
A gente tem, ainda, até hoje.
P1 – E os ossos são como?
R1 – Nós temos dois.
.
.
duas espinhas, que a gente chama, né? Duas espinhas, que tem, assim, mais de um metro e temos as.
.
.
das vértebras, que chegam, assim, a ter essa dimensão.
Temos três vértebras guardadas.
P1 – O resto ficou no museu ou.
.
.
R1 – Está na Secretaria de Cultura de Barcarena.
Está na Secretaria de Cultura, Secult.
P1 – E como era, no comecinho, a família de vocês? A italiana tem.
.
.
tinha alguma coisa que as pessoas falavam: “Ah, os italianos da cidade”? Como é que era? E ainda depois dessa história, como é que era isso? Tinha uma identidade ali, com vocês?
R1 – Bom, essa questão de ser italiano, algo muito.
.
.
que as pessoas sempre falam, né? É a nossa facilidade de comunicar, de chegar em um ambiente, tipo assim: chegou, cheguei e já conversa, já interage.
Não tem.
.
.
não tem.
.
.
não é retraído, não tem timidez.
Consegue facilmente se adaptar através da conversa, se comunicar e já deixar ali um marco, uma lembrança e voltar quantas vezes for preciso, com a certeza de que ali já ficou um amigo.
Então, a família do meu pai tinha muito forte isso.
Tanto é que tinha o comércio do ‘seu italiano’ e tinha o do português.
O do ‘seu italiano’ era mais frequentado, que era o meu avô, né? Mas por quê? Porque, além de vender, de comercializar e a minha avó também na costura, eles tinham essa relação de amizade.
Então, o português, não.
Já era mais comércio, mesmo: vendeu, pagou, acabou ali.
Morreu ali, né? Então, tinha a história, também, da filha do português e a filha do italiano, que era minha tia, muita linda na época, tia Dora, eu consegui fotos dela jovem, muito bonita.
Então, falavam que a filha do italiano era mais bonita e mais divertida, mais bem humorada do que a filha do português, né? Tinha.
.
.
tem essa história, que falam.
Então, quando eu reencontro alguém que viveu esse momento: “Olha, ah, não nega ser filha do ‘seu’ Genaro, não nega ser neta do ‘seu’ Antônio, italiano”, por essa facilidade de comunicação, de conversa e por criar esse vínculo de amizade.
Acaba se tornando alguém muito próximo, até com aquele sentimento de família.
Por onde eu ando as pessoas usam muito a expressão: “Tu és uma de nós” e eu sempre valorizo muito esse sentimento de pertencimento.
Mesmo há famílias, há lugares que não seriam naturalmente meus, mas que, pela facilidade de entrar e de me relacionar, acabo me tornando um deles, por essa convivência tão fácil, tão simples.
P1 – E como é que era essa caminhonete do seu pai, que você contou aqui, em off, para mim?
R1 – Sim.
Meu pai tinha uma caminhonete.
Nós a chamávamos de “C-10”.
Não sei se era realmente a marca ou o modelo, né? Mas tinha carroceria de madeira, era pintada na cor azul, a caminhonete e era essa caminhonete que ele usava para ir para os cultos, no interior, na zona rural.
Levava.
.
.
quando era para ir para cultos, ele colocava umas tábuas na carroceria de madeira e as pessoas sentavam e a gente ia para esses cultos.
Quando chegava defunto na beira da cidade, ele já levava o morto e a família naquela carroceria, já levava todo mundo.
Não existia carro fúnebre, ônibus, carro particular, não.
Na carroceria ia o caixão e a família do morto, já para ir para o cemitério.
Casamentos também, já ia, a noiva ia na boleia, que a gente chamava na época, né? E aí os convidados iam na carroceria.
Chegava alguém doente, normalmente chegava em redes, eles só faziam tirar do barco a rede, colocar na carroceria do carro e levar para o hospital.
Então, essa caminhonete era muito usada, pra tudo: fazer mudanças, carregar também motores, quando eram muito pesados, do porto, para a oficina dele.
Eram usados para os nossos passeios, né, de família, muitos filhos, ficava aquela coisa bonita.
E algo que é muito marcante, é o dia Sete de Setembro, que é quando ele levava para a praça pública, colocava a caminhonete lá e ela se transformava no nosso.
.
.
na nossa arquibancada.
Então, nós assistíamos de camarote, né, praticamente, o desfile escolar todinho, porque nós tínhamos aquela visão melhor das escolas passando, das bandas tocando, porque nós estávamos acima do povo, que estava em pé.
Nós estávamos em cima da caminhonete.
Então, marcou em muitos momentos da vida.
Tanto é que, quando o meu pai foi vereador, na década de noventa, um dos requerimentos dele é pedindo um carro fúnebre para o município.
Porque ele achava muito.
.
.
ele gostava de servir, não por ele não querer servir o povo que vinha do interior, mas por ele achar que o povo era digno de um tratamento melhor nesse momento tão difícil da vida.
Eu não me recordo a frase que ele usou no início do requerimento, mas o que ele pedia era isso: um carro fúnebre para o munícipio, para que as famílias tivessem dignidade, pelo menos nesse momento de despedida.
E foi algo muito forte, assim, que marcou a nossa família, quando nós passamos a entender que ele legislou, trabalhou muito em favor dos que realmente precisavam.
Isso acaba sendo uma inspiração para todos nós.
P1- Me conta como era Barcarena Sede nesse período.
Era diferente do que é hoje?
R1 – Ali na Avenida Cronge da Silveira, nós tínhamos apenas o terminal rodoviário.
Nós tínhamos o trapiche municipal, que chamávamos, que foi demolido para a construção do terminal hidroviário, recentemente.
E nós tínhamos a feira coberta, que nós chamávamos, porque tinha outra feirinha, que era do povo que vinha do interior, vender farinha, tapioca, vender frutas.
E nós tínhamos a feira coberta, que já era algo fixo.
Então, a feira coberta nós usávamos muito para brincar também, porque tinha as barracas dentro já e a gente usava muito pra correr lá dentro, pra brincar de pira-esconde, pira-alta.
Então, era praticamente o nosso parque de diversões, ali, a feira coberta, né? Então, quando nós não estávamos na rua, nós estávamos dentro da feira coberta.
No terminal rodoviário tinha uma lanchonete apenas, que era a Galo de Ouro e os bancos da Galo de Ouro eram redondinhos e giratórios.
Então, ali também passou a ser o nosso parque de diversões, né? Nós sentávamos, passávamos horas ali rodando, girando, girando, naqueles bancos e era nossa diversão ali.
A rua era bem ampla, porque ainda não havia as feiras, que foram construídas posteriormente, que agora nós chamamos de Vila Manteiga, porque acabou sendo construídas três fileiras, assim, de comércio, de feiras e ocupou a rua.
Tirou toda a visão, também, da frente da cidade.
Nós não temos essa visão do rio mais, porque as feiras estão ali.
Tem um projeto de serem remanejadas para outro local, para abrir novamente essa visão da frente da cidade, mas não tem previsão.
P1 – Conta para mim essas histórias do Cafezal, como é esse casarão? Você chegou a ir lá? Ou ouviu histórias de lá.
.
.
R1 – Não.
Eu não cheguei a visitar o casarão.
Não cheguei a visitar o casarão, mas as pessoas que foram e ainda vão, porque ficaram algumas coisas lá, algumas marcas, né, dizem que lá tem um poço, né? Alguns dizem que era onde eles jogavam os escravos, onde castigavam os escravos.
Só que, algo muito interessante que eu achei lá, daquela área do casarão, são alguns escravos que fugiram, atravessaram o Rio Carnapijó, que fica entre o Cafezal e a ilha, que nós chamamos de Trambioca e alguns anos atrás eu conheci a praia chamada Boa Morte, que é no final da ilha, dezesseis quilômetros corridos dentro da ilha, chega na praia da Boa Morte, que fica na costa da ilha e eu perguntei porque o nome de Boa Morte e me contaram que eram os escravos que fugiam do Cafezal, atravessavam, né, a nado o rio, inclusive um rio muito agitado, que é o Carnapijó e pegavam o mato.
Pegavam a Ilha Trambioca, atravessavam pelo mato e, quando chegavam na beira da praia, aí sim, eles se sentiam já livres, realmente, achavam que ninguém ia encontrá-los e que ali seria um bom lugar pra viver e pra morrer.
Aí foi ficando e alguém chamou de Boa Morte.
Ali seria uma boa morte, uma boa vida, mas também uma boa morte, que não seria escravidão.
Então, essa questão do Cafezal, é marcada pelo casarão, sim, mas a gente sabe que tem muitas histórias, assim, que precisam ainda ser contadas, ser registradas, né? Eu achei interessante saber dessa história dos negros que fugiam, né? Os escravos.
P1 – Me conta então como é que foi esse começo seu, que você falou que aprendeu a ler e escrever com quatro anos, isso foi na escola ou foi em casa?
R1 – A minha experiência de leitura começa dentro de casa, por nós sermos uma família evangélica, nós tínhamos esse contato muito próximo com a Bíblia.
Então, nós tínhamos essa leitura bíblica em casa, assim, diariamente, né? Víamos os pais lendo, as pessoas que frequentavam a nossa casa também lendo a Bíblia, usando a arpa cristã para cantar, que também é algo muito marcante nesse meu início da leitura, justamente por gostar de cantar.
Eu pegava a arpa cristã e fazia de conta que estava lendo, cantando.
Então, a partir desse fazer de conta, né? E a minha mãe é professora também, de formação.
Não chegou a atuar, porque decidiu cuidar dos dez filhos, né? Então, mamãe mesmo foi incentivando essa questão da leitura, mas se intensificou quando nós ganhamos - de um tio, que não era tio, sempre falo isso, de um tio que não era tio de sangue - um livro de histórias bíblicas.
Esse daí foi o ponto fundamental, porque todo mundo quis aprender ler, pra estar usando aquele livro de histórias.
E eu era mais ainda, porque eu queria aprender ler, para eu ler pra mim e eu já pensava em ler pra outros, pra quem eu iria contar aquelas histórias.
Então, esse livro chegou, eu estava já com uns quatro anos e foi quando realmente a leitura ficou mais forte pra mim.
Pelo interesse do livro.
Já tentava ler na Bíblia, tentava ler na arpa cristã, as músicas, mas o livro de histórias, assim, foi fundamental.
Foi ali a minha primeira leitura, foi naquele livro.
P1 – E você começou a ir na escola com que idade? Onde foi?
R1 – Bom, na época não existia, como tem hoje, o Jardim de Infância, Maternal, Jardim I, Jardim II, Jardim III, alfabetização, não.
Eu já fui para a escola aos sete anos, já era alfabetização mesmo, entrava para a alfabetização e, da alfabetização, como eu já cheguei lendo, eles me avançaram para a primeira série.
Já era.
.
.
eu estava com uns seis, sete anos, quando fui pra escola.
Mas já tinha essa prática da leitura, já conseguia escrever, já tinha até histórias, né? Então, os professores acharam que eu deveria avançar para a primeira série.
Inclusive, na época, tinha a primeira série fraca e a primeira série forte, eu já fui para a primeira série forte, porque eu já tinha.
.
.
já estava alfabetizada.
P1 – Que escola foi?
R1 – Escola Cônego Batista Campos.
Escola estadual.
Foi onde eu estudei todo o ensino fundamental.
De primeiro.
.
.
da alfabetização à nona série, na época.
P1 – E como que é essa escola? Como é que era, na época?
R1 – A Escola Estadual Cônego Batista Campos sempre foi uma referência no município, né? Até porque, na época, nós não tínhamos as escolas municipais.
Então, todo mundo ia para o Cônego e aí, depois, foi construída a Escola Aloysio Chaves, que já era municipal, né? Mas sempre nós estávamos ali.
Meus dez irmãos estudaram no Cônego Batista Campos.
Escola estadual.
E ali era um ponto de encontro para todo mundo, porque também a falta das escolas no interior, nas vilas, nas ilhas, fazia com que as crianças, que os pais podiam mandar para estudar, acabassem indo para essa escola.
Por ser próxima também da beira, que a gente fala, do porto, então muitas pessoas vinham das ilhas também, para estudar na escola.
Então, muitas amizades de hoje começaram lá na escola estadual, né? Pessoas tanto da Estrada, que a gente chama, dos ramais, quanto das ilhas.
Muitas amizades começaram lá dentro da Escola Cônego Batista Campos.
Lá ainda tinha um pouco da preocupação de ir para o “quarto escuro”, ainda era muito falado isso.
Se aprontasse, não respeitasse, não fizer o dever direitinho, vai para o “quarto escuro”.
Nós ainda escutávamos isso de alguns professores.
Tinha a história do buraco, de um buraco, lá atrás da escola, que diziam que foi onde eles enterraram um palhaço assassino.
.
.
(aqui tem um corte, mas a minutagem segue normal)
R1 - .
.
.
pessoas de outros municípios, até de outros estados, buscar a banha da baleia em garrafas e o meu pai dava a banha da baleia, que as pessoas levavam para usar como remédio.
P1 – Usa pra quê?
R1 – É uma das minhas pesquisas também.
Eu estou fazendo esse resgate da infância do meu pai e estou fazendo o resgate dos relatos da história da baleia, na visão de outras pessoas e estou fazendo essa parte de pesquisa do uso da banha da baleia.
P1 – E o que essas pessoas têm dito pra você, que você não sabia ou que você achou interessante? Novo, sei lá.
R1 – Bom, o que eu achei interessante, foi a maneira como a carne da baleia foi armazenada.
Então, na época, muitos não tinham geladeira, não tinham como guardar, congelar.
Então, eles salgaram a carne da baleia e estenderam, assim, em varais.
Essa amiga que relatou, ela conta que ela tinha uns quatro, cinco anos e ela lembra do quintal dela cheio de carne de baleia salgada, para se tornar em carne de sol, né? Só que era de baleia.
E ela disse que ela.
.
.
a mãe dela fazia de várias maneiras, aquela carne salgada da baleia e aí fazia e eles gostavam muito, gostavam muito.
É bem engraçado mesmo ela relatando, assim, dessa experiência de ver o quintal todo enfeitado, o varal, com carne de baleia.
Então, foi a maneira.
.
.
eu não sabia que tinha sido, eu imaginava que todos pegaram um pedacinho, mas não, não era um pedacinho! Tanto é que tem a imagem de um garoto levando um pedaço da carne na costa e esse tamanho da carne, assim, pega toda assim a costa dele e bate aqui, na altura do joelho.
Então, a gente imagina.
.
.
eu imaginava que cada um pegou, levou, preparou e comeu.
Não.
Houve também essa maneira de guardar a carne da baleia como carne de sol, salgado, né? E foi comendo, mesmo, conforme o cardápio de cada família.
Foram comendo, com açaí, claro, né? (risos)
(volta o assunto anterior)
R1 - .
.
.
então, quem não se comportasse, quem não estudasse direitinho, ia ser jogado naquele buraco, onde estava enterrado o palhaço assassino.
Então, todo mundo tentava ser o melhor aluno possível, para não cair naquele buraco.
Era um buraco que nós não sabíamos, não tinha explicação nenhuma aquele buraco, né? Ele era fundo demais e o nosso medo era que, realmente, o palhaço assassino estivesse enterrado lá, né? Então, algo que marcou muito esse.
.
.
nós tínhamos sempre uma preocupação um com o outro, por estar os irmãos lá, estudando, os amigos, nós tínhamos sempre esse cuidado de um com o outro, para não ir para o “quarto escuro” e para não ser jogado lá no buraco, onde estava o palhaço assassino.
Então, isso ficou muito marcante.
Já não tínhamos mais a questão de palmatória, o castigo de ajoelhar no milho, mas tinha ainda essas pequenas ameaças, de ir para o “quarto escuro” ou de ser jogada no buraco do palhaço assassino.
E eu era chorona, na época.
Eu chorava, não por medo meu, eu ficava preocupada com meus coleguinhas, porque alguns.
.
.
eu, devido eu já saber ler, saber escrever, fazia tudo muito rápido e via colegas com dificuldade, então eu sempre tinha medo que, a qualquer momento, um desaparecesse ou por estar no “quarto escuro” ou por ter sido jogado no buraco do palhaço assassino (risos).
Então, a minha preocupação já não era comigo.
Eu sabia que eu ia me salvar, eu ia me sair bem, mas eu tinha preocupação com os meus colegas.
Talvez isso tenha, até, sido um incentivo, para que eu buscasse o caminho da Educação, me tornasse professora.
P1 – Dona Lia, me mata uma curiosidade: por que era o palhaço? Exatamente o palhaço? Você sabe? Vocês tinham medo disso?
R1 – É.
.
.
eu lembro muito na minha infância, dos circos que chegavam em Barcarena, né? Então, era uma atração, assim, mudava tudo, mexia com toda a cidade, né? Até a gente acompanhava a montagem do circo, né? Acompanhava a parte da alimentação dos animais, quando tinha e ficava encantado com essa questão do palhaço, principalmente, né? Era algo que chamava muita atenção, pela nossa idade.
E eu acho que criaram essa história do palhaço assassino porque era totalmente o contrário daquela imagem do palhaço que nós tínhamos, de diversão, de alegria.
Então, quando criaram essa imagem do palhaço assassino para nos amedrontar, foi justamente para ir de encontro, acho, com essa lembrança boa que nós tínhamos do circo, do palhaço, com relação a alegria, vida, então, diversão.
Então, pensar num palhaço, que é contrário à tudo isso, então ia ser terrível pra nós, né? E era! Era amedrontador imaginar alguém que trazia alegria, sorrisos, brincadeiras e, de repente, um assassino? Então, imaginar que ia estar num buraco dentro.
.
.
junto com um palhaço assassino era algo, assim, bem amedrontador mesmo.
P1- Mas esse palhaço estava enterrado? Estava morto, então?
R1 – Sim, sim.
P1 – Pior ainda, então?
R1 – Pior ainda, porque nós tínhamos essa imagem do morto com possibilidade de voltar, né, pra alguma coisa.
De repente ele morto, mas jogando alguém lá dentro, vai que o cara volta pra matar mais um, mesmo em espírito? Então, acho que isso é que era amedrontador, né? Essa questão espiritual, mesmo.
Então, é como eu falei: eu não tinha tanto medo por mim, porque eu conseguia cumprir as tarefas, era uma menina bem comportada, mas eu chorava, a minha professora relata isso, ela é viva, a minha professora e ela relata que eu chorava muito.
Eu não sabia explicar, na época, mas eu tinha esse sentimento de medo que algum dos meus colegas fossem realmente jogados ali ou levados para o “quarto escuro”.
Então, esse medo não era por mim, porque eu sempre fui muito, assim, corajosa mesmo.
Meu lema, até hoje, é coragem.
Eu uso muito essa palavra “coragem” para me identificar.
E não era por mim esse medo, mas era pelos outros.
P1 – E, me diz uma coisa: você consegue me descrever como que era o espaço da Escola Cônego Batista?
R1 – Bom, a escola, na época, tinha muros baixos, tanto é que um dos meus irmãos era famoso por fugir da escola.
Dos dez filhos do meu pai, ele foi o único que não prosseguiu nos estudos, realmente.
Ele só conseguiu concluir o ensino fundamental, foi para o médio e não conseguiu estudar.
Ele é mecânico.
Tem oficina mecânica, igual meu pai.
Então, ele é alguém muito prático, muito.
.
.
é assim.
.
.
chama prático, mesmo.
Ele não.
.
.
ele acha, assim, que é perda de tempo: vai pra escola, todo dia, escreve, lê, ele acha que isso é perda de tempo.
Ele prefere ir para a prática, trabalhar, ganhar o dinheiro, sabe? Ele tem.
.
.
meu pai estudou até a quarta série, na época, né? Ele estudou na Itália.
No Brasil ele não estudou mais.
Depois que ele chegou aqui no Brasil, não estudou mais.
Então, esse meu irmão é o que tem mais, assim, o jeito do meu pai.
Inclusive a oficina mecânica dele, ele montou com equipamentos que foram ficando da oficina do meu pai.
P1- A escola tinha muro baixo.
.
.
R1 – A escola tinha muro baixo.
As salas eram amplas.
Permanecem até hoje as mesmas salas, né? Mas esse prédio não é o primeiro prédio da escola.
É o prédio que eu estudei, mas antes ele tinha um outro prédio.
O Cônego Batista Campos ficava na Rua Magalhães Barata, onde atualmente existe um Banco.
E a escola, depois, mudou para esse outro endereço, que fica na rua Travessa São Francisco, agora.
E as salas amplas.
As cadeiras eram, na época, de ferro.
Cadeiras de ferro com braço de madeira.
Depois mudaram para cadeiras de madeira.
E os quadros, que seriam os quadros negros, né? Para escrever com giz.
Mas era uma escola excelente.
Professores excelentes.
E, incrível como a relação professor-aluno, apesar de a gente viver ainda naquele clima de educar por ameaça, por algum tipo de chantagem, até, né, emocional, mas o vínculo com os professores sempre foi muito forte.
Ainda hoje nós temos o contato com esses professores.
E alguns até eu me tornei colega de profissão, porque eu sou da área de Língua Portuguesa e acabei me tornando colega de profissão de alguns ex-professores da Escola Cônego Batista Campos.
P1 – E quem, de professor, te marcou mais, que você pode registrar pra gente quem são os professores?
R1 – Na Escola Cônego Batista Campos, assim, a professora que marcou mais, foi a professora Maria das Graças, que foi da alfabetização, dos meus primeiros momentos na escola.
E professor, é o professor Altamir Ferreira, professor de História.
Foi um professor, assim, que trabalhou muito com a gente, essa necessidade da pesquisa, da busca, pelos fatos e pelos seres históricos também.
Então, ele nos incentivava muito a ir em busca desse conhecimento.
Ele era um professor, assim, tradicional, tanto é que a aula dele todinha era.
.
.
ele contava a história e a gente ia copiando.
Não tinha livros, ele não ia lendo de lugar nenhum, ia só tirando da memória.
Aquilo era a aula dele.
Terminava de ditar a matéria e ele passava um questionário.
De dez, quinze, vinte perguntas, com base naquilo que ele havia relatado, né? Então, era um método, assim, vamos dizer, tradicional, né? Só de escrita mesmo, de perguntas e respostas.
Mas no fundo, no fundo, ele nos incentivava a ser como ele, pesquisador e ter guardado para si essa história e esses seres históricos, que ele nos ensinava através das aulas.
Então, ele foi uma inspiração.
E ele sempre gostou de escrever também.
Recentemente eu estive presente no lançamento de um dos romances dele, né? Estive presente e foi muito emocionante o reencontro com ele e com alguns ex-colegas e ex-professores da Escola Cônego Batista Campos.
E ele continua sendo uma referência para mim, principalmente agora, nessa parte literária, de escrita, de produzir e deixar esse legado literário para as gerações futuras.
P1 – Como é que era o jeito dele e o jeito da professora Maria das Graças?
R1 – A professora Maria das Graças, professora Graça, muito atenciosa, muito carinhosa.
Ela tinha uma relação com os alunos que, apesar da questão didática, pedagógica, mas ela tinha o cuidado, assim, como se fossem filhos mesmo.
Muito atenciosa, carinhosa e até hoje, até hoje ela - posso dizer que quase quarenta anos se passaram - encontra com os ex-alunos, que eram os aluninhos e ela tem essa relação, ainda, muito afetuosa.
Ela nos trata: minha flor, minha linda, minha princesa.
A mesma maneira como ela tratava no Jardim de Infância, como a gente chama, na alfabetização.
Ela mantém ainda esse trato, esse cuidado, esse carinho.
Mesmo com o passar dos anos.
Mesmo nos vendo nessa vida adulta, né? Mas ela sempre tem essa visão, como se nós fossemos, realmente, especiais para ela.
Isso é muito importante na relação professor-aluno, quando o aluno se sente especial, importante para o professor e não apenas mais um, mais um número, mais um aluno que está passando por ali.
P1 – Aconteceu alguma coisa nessa escola que marcou você, ao longo desses anos todos, no Cônego? Você teria alguma coisa? Algum fato ou algum marco ali?
R1 – Algo muito interessante foi.
.
.
eu acredito que tenha sido na sexta série, com a professora Maria do Céu, foi quando ela pediu que nós escrevêssemos um poema, em homenagem ao aniversário da Escola Cônego Batista Campos, então eu deveria estar.
.
.
não lembro assim a idade, mas eu ainda.
.
.
apesar de já escrever historinhas, ilustrar, eu não tinha ainda experimentado escrever um poema.
Já admirava muito, né, Carlos Drummond de Andrade, gostava de ler muito outros poetas, mas não tinha experimentado brincar com as palavras, rimar, estruturar dentro de um poema as coisas que eu escrevia.
Então, foi a partir desse desafio, da escrita de um poema em homenagem à escola, que eu me descobri poeta.
E, daí pra frente, vieram os caderninhos, vieram os diários, as agendas, já só para produção poética, né? Foi quando eu deixei de lado, um pouco, a escrita das historinhas, né? Foi um avanço pra mim, uma evolução, da historinha para a poesia.
Aí já vem a fase da adolescência, primeiro amor, as desilusões, aquele sentimento de que vai morrer a qualquer momento e isso tudo foi enriquecendo, já, essa produção poética, que é algo que eu guardo e estou resgatando agora num livro que eu pretendo lançar.
P1 – Você pode contar, declamar alguma poesia que você fez nessa época? Assim, de cabeça?
R1 – Não vou lembrar.
Assim.
.
.
não tenho.
Eu tinha memorizado minhas poesias, mas na minha segunda gravidez eu tive um problema com a anestesia e eu, a partir da cesariana, da segunda gravidez, passei a ter uns problemas de esquecimento, porque eu tive depressão pós-parto também, entendeu? E mexeu com a minha memória.
Eu falo isso e as pessoas não acreditam, porque eu tinha uma memória.
.
.
na igreja eu declamava.
.
.
no Natal eu tinha o papel maior nas peças, porque eu decorava, né? Eu decorava salmos inteiros, salmos inteiros, declamava na igreja.
Só que hoje em dia eu já tenho dificuldade.
Eu pretendo, daqui a pouco, falar para vocês o meu poema mais recente, mas eu só vou conseguir lembrar um trecho dele.
Que é o poema Perfeições, que eu escrevi antes da história da pandemia.
Eu escrevi o poema Perfeições e agora ele ficou, tipo assim, um poema quase que profético.
Muito bom.
P1 – Se você quiser declamar agora, essa parte assim.
.
.
R1 – (risos) Deixa eu.
.
.
quero lembrar a data, vou lembrar só o mês? No mês de janeiro, antes de começar toda essa história de pandemia, né, corona vírus, covid, eu escrevi o poema Perfeições e, apesar de estar em um momento tranquilo da minha vida, mas eu me sentia como se eu estivesse voltando pra uma paz, para um estado de espírito mais tranquilo, depois de uma guerra.
Eu tive essa sensação e escrevi.
E o poema Perfeições, as diversas iniciais são assim:
“A vida em tempos de paz
com calma, então, se refaz
das muitas batalhas da dor
O mundo lá fora é sombrio
covarde, incolor, doentio
mas a alma respira amor.
”
Esses são os versos iniciais do poema Perfeições, né? Então, já nesse período agora, pandemia e quase pós-pandemia, que a gente já vai se acalmando, eu releio esse poema, muitas vezes e fico pensando dessa necessidade dessa volta, dessa paz, dessa calma, dessa tranquilidade de tocar nas pessoas, de conversar, de entrar nos locais, sem estar nesse clima realmente de guerra, de morte, de que a qualquer hora alguma coisa terrível vai acontecer.
Ou a qualquer hora eu vou perder alguém ou alguém vai me perder.
Então, esse poema é muito forte pra mim e ele tem.
.
.
ele tem.
.
.
eu tenho.
.
.
eu distribuo em forma de pergaminhos esse poema, agora.
Está na minha gaiola do projeto Liberte a Poesia.
E eu estou compartilhando-o com várias pessoas e incentivando à essa busca dessa paz, dessa: “Calma, senta, respira e bora tocar pra frente”, através desse poema.
P1 – Vamos voltar um pouquinho para o Cônego.
Você ficou até o nono ano, é isso?
R1 – É.
Era até a oitava série.
P1 – E como é que foi esse começo de namoro, assim, o primeiro amor? Como é que era esse clima, na época? Como é que vocês faziam para namorar?
R1 – Olha, eu comecei a namorar já em torno dos dezessete anos, porque eu tinha um.
.
.
eu era muito dedicada, assim, aos estudos e muito dedicada à igreja.
Era do grupo de oração, cantava no coral.
Então, eu achava assim que eu tinha de dedicar o máximo possível da minha juventude assim, para os meus sonhos, como eu falei, eu falei que eu fiz promessas para a menina Lia, prometi lançar livros, prometi fazer viagens, prometi conhecer pessoas e eu sempre focava para que nada e ninguém viesse impedir que eu alcançasse esses objetivos.
E na vida religiosa também era assim: eu achava que ninguém poderia vir e interferir na minha vida, na minha relação com Deus, através da oração, através da.
.
.
eu me dedicava muito ao estudo da palavra da Bíblia, né? Então, o namoro veio assim, mesmo, quase que eu não querendo, né? Mas já tinha uma amizade muito grande com o primeiro namorado.
O irmão dele era namorado da minha irmã mais velha.
Então, já tinha essa convivência, mas namorar mesmo eu não queria.
Mas acabou vindo, foi o primeiro beijo, o primeiro namorado, namoramos um ano e pouco, só que quando chegou o dia de eu ser batizada nas águas, eu participei de uma palestra e o pastor disse: “A luz não se une com as trevas.
Então, se você está namorando com alguém que não acompanha você nos caminhos, nessa busca de Deus, nessa busca da santidade, então você vai ter de escolher: ou o batismo ou o namoro”.
E eu, dezessete anos, sei lá, bem nova, né, falei para ele que eu não.
.
.
como ele não me acompanhava e não tinha pretensão de acompanhar, que eu ia escolher o batismo, que era meu sonho, o batismo nas águas.
E ele não acreditou e eu, sempre muito decidida, sempre fui, disse para ele que era a minha decisão.
E acabei o meu primeiro namoro assim, escolhendo o que realmente eu sempre quis e acreditava.
Eu achava que, se eu escolhesse ficar com ele, eu ia contra tudo o que eu havia planejado e até pregado e falado, porque eu sempre compartilhei meus sonhos com as pessoas.
Eu sempre chamei alguém e disse: “Olha, eu vou.
.
.
tá vendo essa história aqui? Um dia vai virar livro.
Olha, tá vendo esse sonho aqui? Um dia vai se tornar realidade”.
Então, eu sempre fiz isso.
Eu sempre compartilhei, porque eu queria ter testemunhas do que ia se realizar na minha vida.
Então, quando eu falava que meu sonho era ser batizada nas águas, para participar do momento de Santa Ceia, de comunhão, eu dizia que nada ia me impedir, quando chegasse esse momento.
E quando chegou esse momento, era justamente o namorado que estava atrapalhando, né? Então, entre ele e a minha vida religiosa, eu escolhi a vida religiosa.
E, daí pra frente, sempre tive essa atitude, né? Apesar de.
.
.
eu era muito.
.
.
eu já estava muito apaixonada por ele, amava e ele muito por mim, né? Mas eu achava que os meus objetivos estavam acima.
Que ele era o primeiro, não ia ser o último, como não foi (risos).
Como não foi.
P1 – E me diz quando é que começou, em que idade começou essas promessas? Quais foram as que você tinha feito naquela idade ainda?
R1 – Sim.
Bem, bem, bem cedo mesmo, na infância, como eu falei, desde a primeira história, as primeiras ilustrações, eu já fazia, dava um jeito de costurar, era costurado, né? Mamãe tinha máquina, eu costurava os papeizinhos, fazia os livrinhos, costurados.
Pena que não foram guardados, né? E já dizia que aquilo ia.
.
.
um dia ia virar um livro, né? Eu já pensava em compartilhar aquela história, aquele escrito, aquele desenho, com alguém.
E sabia, já tinha essa noção, que não ia ser possível fazer isso desenhando um por um, costurando um por um, eu ia precisar lançar, eu falava em lançar livros, né? Então, eu já tinha essa ideia.
Já tinha essa noção de que, para eu compartilhar com um número maior de pessoas, eu precisava fazer isso de uma maneira, vamos dizer, hoje em dia eu posso dizer, profissional, né? Não ia ser de forma caseira, amadora.
Eu já tinha um pouco essa noção.
Não sei como eu fui conseguindo essa maturidade para pensar assim, mas eu já tinha essa noção, de que eu não conseguiria fazer sozinha.
Por isso eu sempre chamava alguém pra vir: “Vem cá, sonha comigo, escuta aqui, olha o que eu estou fazendo”.
Então, eu tinha um tio, irmão caçula da minha mãe, quando eu chegava na casa dele, ele me dava logo papéis, lápis de cor, régua, tesoura, tudo o que nós não tínhamos em casa por sermos muitos, né? O papai não tinha condições de comprar, né? A gente não tinha cada um com seu lápis de cor, sua régua, sua tesourinha, mas quando eu chegava na casa do meu tio, eu tinha tudo já separado: papel, lápis de cor, canetas.
Para mim era um sonho, canetinhas, né, que a gente chama “caneta porosa”, né? Era um sonho pra mim, canetas coloridas, né? Tudo.
Então, cola, fita durex, essas coisas, para mim, eram sonhos assim e eu só tinha quando chegava na casa do meu tio, que é quando ele disponibilizava, né? Até porque ele era professor e o tempo todo eu estava falando, conversando, querendo mostrar alguma coisa.
Para eu ficar quietinha, ele já me dava o meu kit: “Te aquieta aí, vai desenhar, vai escrever”.
E lá, foi na casa do meu tio, que eu li o primeiro.
.
.
que eu comecei a ler o primeiro romance, que foi Dom Casmurro.
Depois que ele faleceu, esse livro veio ficar comigo, como uma das minhas heranças, né? Dom Casmurro, numa versão de capa dura mesmo, uma versão bem bonita do Dom Casmurro, que foi o primeiro que eu li.
P1- Você se lembra como é que foi essa leitura? Se você gostou? O que você achou?
R1 – Sim.
Achei muito interessante.
Até porque eu fui lendo devagar, eu só conseguia ler quando eu ia a Belém, né, quando eu ia para a casa dele e eu ia lendo devagar.
Demorou muito tempo para terminar.
Mas eu li, eu li muito jovem Dom Casmurro.
P1 – E o que mais você leu de poesia, de prosa, que te influenciou, você acha? Nesse período.
R1 – Nessa época também eu tive contato com um trovador paraense, chamado Antônio Juraci Siqueira e, inclusive, a partir de um livro dele que não era muito aconselhável para a minha idade, né? Que são os Versos Sacânicos.
Eram trovas assim bem.
.
.
para uma faixa etária já bem.
.
.
mas eu ia lendo, me divertindo e eu gostava muito de ler essas trovas, do Antônio Juraci Siqueira, né? Depois eu tive a oportunidade de conhecer o autor.
Também li muitos poemas do professor Otacílio Amaral Filho, que é professor e agora ele é diretor da Faculdade de Letras da Ufpa.
Professor Otacílio Amaral Filho.
E também tive a oportunidade de conhecer, alguns anos depois, né? Eu tinha contato com os livrinhos dele, livretos, na época, né? E o livreto do professor Otacílio é de.
.
.
eu acredito que seja de 1983, o livreto.
E agora ele lançou uma versão bem legal, né? Relançou o livro.
O mesmo livro, que é o Bailado das Aparências.
Mas foram, também, assim, os primeiros poemas que eu fui lendo, conhecendo.
Mas já lia Carlos Drummond de Andrade, já lia.
.
.
gostava muito de ler era um livro que era uma coletânea com vários autores também.
Como eu falei, eu memorizava os poemas, eu declamava, chegava na casa de alguém e pedia para declamar os poemas e já tinha, assim, admiração por vários escritores.
P1 – E quando você saiu do Cônego, você foi para que escola depois?
R1 – Também escola estadual, José Maria Machado.
José Maria Machado.
P1 – Como é que foi lá?
R1 – Foi muito bom, porque eu entrei na turma de Magistério, né? Eu já tinha essa vontade de ser professora.
Então, eu fui direto para a turma de Magistério.
E, dentro da turma, eu encontrei colegas do Cônego, né? Porque, quando foi para o Machado, já encontrou de outras escolas, mas muitos do Cônego acompanharam para o Magistério.
E foi lá no Machado, que eu fui mesmo ter certeza de que eu queria seguir essa carreira mesmo pedagógica, do Magistério.
E, lá, alguns professores nos deram oportunidade de ter assim experiências bem práticas.
O professor Deusimilson Góes, que eu admiro muito, nos levou para passar um dia inteiro na Apae, para conviver com as crianças, com os jovens deficientes e isso me despertou muito.
Tanto é que, anos depois, eu tive a oportunidade de trabalhar com a Educação Especial e me identifiquei muito com a área, mas porque eu tive essa vivência, foi algo que me inspirou muito.
O professor Leno, Luiz Antônio Valente Guimarães, também foi uma das grandes inspirações.
Foi com ele que eu aprendi um pouco do trabalho mais acadêmico.
Eu ainda.
.
.
eu fui para o ensino médio ainda com aquela imagem muito.
.
.
quase que infantil, né? Ainda com a letra muito.
.
.
a minha letra era letra de fôrma, que a gente chama.
Eu ainda escrevia com várias cores de caneta, cada frase era uma cor.
Uma ideia muito romantizada, ainda, do estudo, né? E foi o professor Luiz Antonio Guimarães, o Leno, que me puxou, né, para usar uma única cor de caneta, para melhorar a caligrafia, para formatar os trabalhos de maneira mais acadêmica e também me incentivou muito nessa questão da pesquisa.
Eu o tenho como uma referência, em relação ao estudo, a pesquisa, a essa busca histórica.
Tanto é que ele, sempre que ele tem uma palestra, alguma coisa, lançamento de livro, eu estou presente, para poder focar no que ele está fazendo atualmente, para não perder também esse rumo da pesquisa.
Da pesquisa e do estudo.
P1 – E você foi prestar vestibular depois ou terminou o Magistério e já foi dar aula?
R1 – Não.
Eu terminei Magistério e já fui trabalhar.
Fui trabalhar, porque uma das professoras, que era a professora Benta, viu meu desempenho em sala de aula e me levou para ser professora estagiária na escola dela, que era escola particular.
Então, ela já me levou para ser professora estagiária, substituta, para estar por lá.
E, a partir desse trabalho, como professora estagiária, eu já acabei ficando como professora efetiva por três anos, na escola da professora Benta.
Trabalhando com Educação Infantil.
P1 – Como era o nome da escola?
R1 – Escola Tio Patinhas.
P1 – Em Barcarena?
R1 – Em Barcarena.
Então, a partir dessa experiência de professora auxiliar, acabei ficando, desenvolvi um bom trabalho e fiquei como professora efetiva, durante três anos.
P1 – E depois? Você foi para onde?
R1 – Depois eu viajei para o estado do Amapá, para tentar concurso público, no ano de 1998.
Passei quatro meses morando no estado do Amapá.
Fiz prova de concurso público e acabei.
.
.
fui aprovada no munícipio de Santana, mas não fiquei para assumir.
Voltei para Barcarena.
E aí, no ano de 1999, eu recebi o convite para ir trabalhar numa escola na beira do rio.
Eu tive a chance de voltar para a Escola Tio Patinhas, escola particular, mas ao mesmo tempo eu recebi a proposta de trabalhar numa escola na beira do rio, numa ilha e trabalhar com multisseriado, que são todas as séries juntas.
A professora dá aula para todos os alunos ao mesmo tempo e para todas as séries.
Então, isso, para mim, foi um sonho, né? Era um desafio e também um sonho e era algo que eu sempre quis.
Eu dizia que eu ia ser professora, justamente pra trabalhar, pra dar aula, pra ensinar os que mais precisavam.
Então, quando surgiu essa oportunidade de voltar ou para a escola particular ou ir para a escola da ilha, eu não pensei duas vezes.
Fui para a escola da ilha, onde eu morei dois anos, na beira do rio, trabalhando com a escolinha de multisseriado.
P1 – Onde que é essa escola?
R1 – A escola fica na Ilha Sacaia.
Ilha Sacaia, próximo do Cafezal, que a gente chama.
São alguns minutos de barco, do Cafezal para a Ilha Sacaia.
P1 – E você teve de se mudar para lá?
R1 – Não.
Por vontade própria.
Eu tinha a possibilidade de ir todos os dias, como eu comecei a fazer nas primeiras semanas.
Eu ia de bicicleta para o Cafezal, não sei quantos quilômetros são, pegava barco e ia pra Ilha Sacaia e, com o passar do tempo, eu me adaptei tanto e gostei tanto de estar na beira do rio, que eu não quis voltar pra cidade.
Passei dois anos morando mesmo, por opção, na ilha.
E, no primeiro ano, eu consegui colocar a turma de alfabetização de jovens e adultos e, no segundo ano, já foi turma de EJA, que era continuação dos estudos para os adultos.
E os alunos que finalizavam lá a quarta série, na época, vinham para a cidade, estudar.
Então, eu consegui trabalhar tanto com as crianças, quanto com as famílias.
Desenvolver um trabalho assim, mesmo, bem amplo.
Não ficou fechado só nos filhos, nas crianças.
Mas a gente conseguiu alcançar as famílias inteiras, né? Estavam ociosas e muitos nunca tinham estudado mesmo, dedicadas ao trabalho, à coleta do açaí, pesca e eles tiveram oportunidade de estudar, lá mesmo na comunidade e alguns até prosseguiram os estudos, né? Vieram para a cidade e deram prosseguimento nos estudos.
Tenho alunos dessa época, do ano de 1999, 2000, final de 1999, 2000 e 2001, que já fizeram duas faculdades.
Prosseguiram os estudos e já fizeram duas faculdades, já estão com duas formações superiores.
P1 – E você saiu de lá por quê? Foi trabalhar em outro lugar?
R1 – Sim.
Foi na época que eu recebi a proposta para trabalhar com Educação Especial, que era um sonho.
Aí eu recebi essa proposta para trabalhar no bairro do Laranjal, aqui mesmo em Barcarena, com Educação Especial, com uma sala multifuncional, que atenderia crianças de várias deficiências e também crianças com dificuldade de aprendizagem, não por deficiência, mas por algum tipo de problema, talvez de saúde ou algum trauma.
.
.
alguma barreira que impedisse a aprendizagem.
Na época nós fazíamos esse atendimento.
E eu passei três anos na Escola Zita Cunha, no Laranjal, trabalhando com Educação Especial.
P1 – E, me conta uma coisa, como é que é.
.
.
como são as escolas aqui em Barcarena? Como que é esse circuito de escolas? Tem muitas escolas? Elas estão preparadas? Não estão? Como que está estruturado?
R1 – Sim.
De 2013 para cá as escolas ficaram bem melhores.
Eu já acompanho desde.
.
.
muitos anos eu sempre acompanhei, né, essa questão educacional no município e, de 2013 pra cá, as escolas ganharam uma estrutura bem melhor, principalmente as escolas da zona rural, que eram muito esquecidas, né? Quando eu fui, em 1999, final de 1999, quando eu fui trabalhar nessa escola da zona rural, que era multisseriado, eram vinte e cinco alunos, nós tínhamos apenas treze carteiras, ou seja, os maiores chegavam e sentavam, os menores sentavam no chão, ficavam deitadinhos lá.
Não tinha material escolar.
A merenda escolar era muito precária.
Tanto é que houve um dia que nós fomos para o igarapé pegar camarão, para fazer com macarrão, para as crianças terem a merenda.
A escola não tinha estrutura nenhuma, né? E, de 2013 para cá, inclusive, esse local, essa localidade foi uma das escolas que foi, assim, mais vista, mais cuidada.
Foi construído um prédio novo, foi construído sala de.
.
.
estilo uma sala de leitura, brinquedoteca, para as crianças da comunidade.
Então, uma realidade completamente diferente do que eu encontrei em 1999.
Tanto é que, quando eu cheguei, eu mandei tirar tábuas da parede, para fazer uma mesa e emprestei bancos da igreja para as crianças sentarem, para eu poder conseguir dar aula para as crianças.
Não tinham cadernos, não tinham lápis, nem canetas.
A minha primeira aula foi no chão, na areia, escrevendo com gravetos.
Meu primeiro dia de aula foi assim.
E alguns anos depois um amigo me presenteou com um livro, de Madre Teresa de Calcutá e conta.
.
.
ele me presenteou justamente por isso, como eu falei, eu sempre compartilho as minhas experiências, os meus sonhos, o que eu vivi, o que eu passei, o que eu fiz e ele lembrou, quando ele leu o livro e viu a Madre Teresa dando aula na terra, com graveto e ele lembrou do meu primeiro dia de aula, né? Então, ele me presenteou com esse livro e eu fiquei muito emocionada por saber que quem tem esse sonho de servir, de cuidar, de ajudar, de ensinar, ele não coloca barreiras, dificuldades, ele vai encontrando soluções e vai fazendo o trabalho, até que em algum momento alguém decida cuidar da maneira que tem de ser.
E foi assim: os primeiros dias de aula foram na terra mesmo, na areia, de maneira bem prática mesmo com as crianças e aí, depois, nós fizemos a mesa, com as tábuas da parede da escola e emprestamos bancos da igreja, pra colocar para as crianças.
E conseguimos também, nesse ano foi quando foi lançado o “Bolsa Escola”, pelo governo federal e nós conseguimos fazer o cadastro de todos os alunos no “Bolsa Escola” e isso foi um ganho muito grande para a comunidade.
As crianças nunca tinham participado de desfile escolar, a escola já existia há onze anos.
Eles nunca tinham vindo para a cidade, nunca tinham desfilado, que eles chamam de marchar, né? Nunca marcharam.
E aí eu consegui, com vinte e cinco alunos, eu consegui fazer um pelotão, com porta bandeiras, com cartazes, fardados e isso foi um marco também.
As crianças, as famílias ficaram muito impactadas, como nós conseguimos realizar coisas assim tão rápido e com pouco recurso.
Isso foi bom, porque a escola ganhou visibilidade.
Tanto é que, a partir de 2013, quando as escolas da zona rural foram mapeadas, essa foi uma das que foi vista, mas pelo que nós conseguimos realizar.
Então, a escola passou a existir, a partir das nossas práticas simples.
Ela passou a existir, passou a ser vista! Ninguém nem lembrava que essa escola existia.
Mas porque nós começamos a aparecer, aí sim a escola entrou na rota das que mereciam ganhar um prédio, ganhar estrutura melhor.
Então, isso foi muito bom.
A melhora na alimentação da merenda escolar.
Foram criados os Conselhos de merenda escolar, para monitorar o que chega, o que tem, como é feito, quem come, quem está consumindo.
Havia uma prática de servir para o aluno aquela merenda de uma maneira muito.
.
.
não posso dizer mal feita, né, porque não era uma coisa também geral, mas em algumas escolas era feito de qualquer jeito, né? Não havia um treinamento para a copeira, para a cozinheira, não havia um preparo para que elas fizessem isso da melhor maneira possível, mesmo com poucos recursos.
E aí, a partir dos Conselhos da merenda escolar, eles melhoraram muito isso.
A aquisição de alimentos também.
Há uma parte da merenda escolar que é adquirida das hortas que são feitas de maneira, vamos dizer, agricultura familiar.
Aí esse projeto, eu achei interessante isso, porque valoriza, né, essa questão da produção local e também garante que está consumindo algo saudável, sem muitos agrotóxicos, sem muita coisa que possa, de repente, trazer algum malefício.
P1 – E aí você continuou sua carreira depois, onde?
R1 – Sim, depois de três anos, no bairro do Laranjal, eu fui convidada, pelo desempenho na área da Educação Especial, né, para fazer parte da Coordenação Municipal de Educação Especial, dentro já da Secretaria Municipal de Educação.
E aí, a partir de 2003, eu já passei a fazer parte desse.
.
.
2004, eu passei a fazer parte já dessa.
.
.
desse.
.
.
dessa equipe especializada, que atuava já dando suporte para as escolas do município, porque eu tinha uma facilidade muito grande para desenvolver recursos, usar produtos reaproveitáveis.
Reaproveitar tampinhas, reaproveitar garrafas, reaproveitar papel.
Então, eu usava muito isso para utilizar nas aulas com os alunos, para facilitar a aprendizagem.
Então, como eu gostava de compartilhar, aí eles disseram: “Já que tu está com essa vontade de compartilhar, então vem para a coordenação, que daqui tu consegue compartilhar para um número maior de pessoas” São uma faixa de cento e quatro escolas no munícipio.
Então, eu estando em sala de aula, eu não conseguiria alcançar os meus colegas nas outras escolas.
Eu estando em coordenação, né, auxiliando na coordenação, eu já teria essa possibilidade de estar numa formação continuada, compartilhando o que eu produzia em termos de material didático.
P1 – E você está até hoje na Secretaria?
R1 – Não.
Eu passei.
.
.
eu fiquei até o ano de 2017.
A partir do ano de 2017 eu optei ir para a sala de aula, para trabalhar Língua Portuguesa mesmo, já para pôr em prática alguns projetos direcionados a produção, mesmo, escrita e incentivo à leitura, que é uma carência muito grande nas escolas.
Aí já foi um movimento inverso, eu já achei que, eu estando dentro da Secretaria de Educação, eu já não conseguia alcançar.
Às vezes fazia a formação do professor, mas o professor não levava adiante aquela formação que ele recebia.
Apesar de que alguns reclamavam muito: “Ah, a gente não faz, porque a gente não sabe, porque ninguém ensina”.
A gente ensinava, compartilhava, mas os professores não tinham coragem de levar em frente, então não chegava, o produto final, no aluno, né? O objetivo não era alcançado.
E aí eu preferi ir para a sala de aula, ter o contato direto com o aluno, trabalhar com algumas turmas específicas, de sétimo ano, inclusive e trabalhar essa questão da produção escrita, do incentivo à leitura, da pesquisa também e tenho experiências assim, ótimas, né? Comecei a desenvolver com eles o “correio da amizade”, quando eles escreviam cartas sem saber quem eram os destinatários, mas escreviam cartas.
Nós escolhíamos, assim, um tema: vamos escrever sobre a vida, sobre paz, vamos escrever.
.
.
eu dava o tema e os alunos escreviam as cartas, sem saber quem era o destinatário e depois eu ficava encarregada de entregar ou deixava em uma outra escola e eles entregavam para outros alunos, sem o escritor saber para quem ele estava direcionando.
Ele só tinha que saber uma coisa: que as palavras dele tinham de ter algum impacto na vida de quem lesse.
Então, nós conseguimos, assim, alcançar muitas pessoas e realmente ainda é algo que eu uso muito, essa questão do correio, de escrever sem saber para quem está escrevendo.
Mas escrever com uma boa intenção.
Eu uso isso muito nas igrejas também, onde eu passo, né? Tipo assim: “Fazer o bem, sem olhar a quem”.
Eu prego muito isso e procuro viver e incentivar as pessoas a viverem, porque é muito fácil tu escrever uma carta para alguém que tu já conhece, que tu já ama, quer bem, quer vivo.
Mas escrever para quem tu não conheces? Aí tu tem de investir um sentimento assim, bem forte, para poder impactar aquela pessoa.
Nós tivemos relatos de pessoas que receberam cartas, que estavam prestes a cometer suicídio.
Tivemos relatos de pessoas que receberam cartas que estavam à beira do divórcio e aquela palavra chegou, porque eu também trabalhei na turma de EJA, quarta etapa, né, turma de jovens e adultos, já trabalhei o “correio da amizade”.
Então, por eles terem já essa visão, eles escreveram coisas assim, tão fortes, que chegaram a impactar até na vida, na mente de quem estava também pensando em divórcio, estava de repente.
.
.
lê uma frase, uma palavra que fez sentido, né? Naquele momento ajudou a repensar, e achou melhor reconstruir o casamento, em vez de acabar com tudo.
Então, eu sempre.
.
.
essa corrente do bem, eu sempre aposto, mas pensando nessa produção, né? Escrita.
Quanto mais escreve, mais aperfeiçoa, mais tem essa capacidade de se comunicar, através da escrita.
Eu aposto muito nisso.
Minhas aulas são muito voltadas para isso.
E os alunos até riem, porque eu pego o livro didático, alguns, eu passo algumas páginas: “Professora, e.
.
.
” “Isso não vai servir pra nada.
Deixa.
Depois, depois” Eu digo assim: “Tu precisa disso aqui agora”.
Então, os alunos ficam.
.
.
até se divertem quando eu passo: “Pula pra página tal” “Mas professora.
.
.
” “Ei, tu não vai precisar disso daqui agora.
Tu precisa disso aqui”.
Então, o livro didático eu uso, sim, mas eu vou mexendo com ele.
Eu vou lá para o final, pego coisas do final, trago para o começo, do começo eu deixo para o final, se der tempo e vou mexendo, vou usando o livro didático de forma bem flexível, não daquela maneira como alguns pegam, né? E alguns nem usam, descartam o livro didático.
E eu o uso dentro da minha maneira de ensinar.
P1- Me diz uma coisa então, você teve filhos? Se casou? Como é que foi essa história?
R1 – Sim.
Eu casei em 2003, dezembro de 2003, com um antigo amigo do coral, né? Que era meu amigo do coral, onde eu cantava na minha juventude e nós nos reencontramos.
Na verdade, ele.
.
.
eu o levei para dar uma aula na escolinha do interior, ele foi dar essa aula na escolinha do interior, foi quando nós nos reaproximamos, na escola da beira do rio e aí pronto, a amizade voltou e foi além da amizade, né? Então, casei aos vinte e sete anos, casei aos vinte e sete anos e pelo propósito que eu levava, da minha vida religiosa, né? Da minha busca realmente de Deus, de eu me aproximar de Deus, eu me casei aos vinte e sete anos.
Casei virgem, né? E poucos meses depois eu engravidei e tive a minha primeira filha, Poliana, está com quinze anos.
E pouco tempo depois eu engravidei e tive o Timóteo.
Então, eu tenho só a Poliana e o Timóteo.
São bem próximos na idade e só.
Tive só um casal de filhos.
P1 – Como é que foi o dia que a Poliana nasceu?
R1 – Olha, a Poliana, ela.
.
.
na verdade, a Poliana me acompanhou muito no meu trabalho, durante a gravidez, quando eu ia para o Laranjal.
A Poliana já é minha parceira de trabalho e até hoje, aos quinze anos, ela é minha companheira.
Então, na gravidez dela eu ainda estava no Laranjal, né? Pegava dois ônibus para chegar no Laranjal.
Saía às seis horas da manhã, pegava dois ônibus, para chegar no Laranjal.
Trabalhava o dia inteiro e saía às seis horas da tarde.
Então, até quase os dias da Poliana nascer, eu estava trabalhando, dando aula, cuidando.
E o meu trabalho no Laranjal não era só pedagógico, eu tinha crianças que eu cuidava, tirava piolho, penteava os cabelos, colocava para tomar banho.
Eu ia além do que eu deveria fazer, né? Tinha esse diferencial no meu trabalho, como sempre.
E depois eu transformei isso em um projeto de voluntariado, que é o “Cantinho da Beleza”.
Quando tem alguma ação, eu levo o meu “cantinho”, as crianças vêm, eu cuido, eu faço penteados, eu faço maquiagem, converso com a criança, converso sobre o nome, a importância do nome dela.
Então, o que eu comecei lá na escola, eu acabei levando para outras ações.
Então, a Poliana nasceu no dia doze de março de 2005, de manhã, no Hospital São José, aqui na Vila dos Cabanos e ela nasceu já uma criança bem forte, bem saudável e ela nasceu e eu, pouco tempo depois, já voltei a trabalhar.
Foi tranquilo, amamentação, não teve complicações de saúde e eu voltei logo a trabalhar.
Deu os quatro meses e eu voltei a trabalhar e a Poliana passou a ficar na casa dos meus pais.
Tinha babá, mas ficava muito com meus irmãos, meu pai, minha mãe, todo mundo cuidando e aí ela acabou se tornando muito interativa, assim como eu.
Já o Timóteo, ele nasceu já num período que eu já estava na Secretaria de Educação e aí ele nasceu.
.
.
não nasceu na hora prevista, né? A cirurgia demorou mais um tempo, ele já nasceu quase de noite.
E aí ele nasceu de noite.
Então, essa demora na cirurgia, essa demora pra ele nascer, a demora no momento de concluir o procedimento cirúrgico, acabou me trazendo consequências e a Poliana era bebê ainda quando ele nasceu, tinha um ano e seis meses, quando ele nasceu.
Então, todo esse pós operatório, a questão com a anestesia também, que eu tive muito problema com a anestesia no pós operatório.
Então, tudo isso veio trazer, como consequência, a depressão pós-parto.
E aí o Timóteo já foi criado mais comigo, só comigo.
Ele teve problemas de saúde, problemas respiratórios, era muito chorão, não ficava com qualquer pessoa.
E a Poliana já era popular, né? Interagia com todo mundo, ficava com todo mundo, comia qualquer coisa.
E o Timóteo não se alimentava, ninguém conseguia fazer ele dormir, só eu, né? Então, eles acabaram ficando, assim, bem diferentes, até por essa questão de nascimento e de interação com a família.
E aí foi quando eu tive que parar de trabalhar por um tempo, para cuidar do Timóteo.
Aí fiquei, pelo menos, três anos afastada do trabalho, para cuidar do filho, né? Dos filhos que, na verdade, eram dois bebês, né? Aí tive de me afastar do trabalho, para cuidar só deles.
P1 – Agora vamos mudar, mudando um pouco de assunto e já indo para o final, eu queria perguntar para você como é que você vê a relação da cidade com esses projetos? Você viu isso acontecendo, né? Essa implantação toda.
Como é que você vê isso, assim?
R1 – Bom, eu tenho um trabalho guardado, da época do meu ensino médio, eu fiz uma pesquisa, na época, eu acredito que seja do ano de 1993.
Essa pesquisa que eu fiz, já inspirada pelo professor Leno, também inspirada pela professora Sandra Helena, que era minha professora na época e eu tinha uma visão muito negativa dos projetos, né? Até então.
E, com a pesquisa, eu acabei conversando com pessoas que vieram e fortaleceram um pouco essa visão negativa que eu tinha, das empresas que chegaram, das pessoas que migraram para Barcarena, né, atrás de emprego.
Dos que conseguiram emprego e dos que não conseguiram, que acabaram gerando, assim, um inchaço no município, né, populacional.
Então, eu acabei ficando com essa imagem muito negativa.
E aí, para piorar, eu acabei entrevistando uma pessoa que tinha um grupo folclórico e esse grupo folclórico se desfez por conta da chegada da empresa, porque eles foram remanejados para outro lugar e uns não foram pra esse mesmo lugar.
Eles acabaram se desmembrando e acabou, eles não dançavam mais juntos.
Então, isso foi.
.
.
me trouxe mais essa visão negativa, assim.
Mas, com o passar dos anos, eu fui percebendo que era necessário isso acontecer, né? Barcarena precisava ter vivenciado isso.
O que não houve foi um planejamento para que isso acontecesse.
Então, a falta de planejamento, a falta de preparação do município, que até então era algo pequeno, de pessoas tão próximas e depois se tornou algo maior e com pessoas estranhas chegando, as escolas lotando, muitos alunos novos chegando, outras culturas, né? Então, Barcarena não foi preparada pra isso, né? Deveria ter sido.
Tanto é que nós temos consequências até hoje, né? Mas aí a gente vê, com o passar do tempo, que as empresas têm buscado reverter essa situação com projetos sociais, com propostas, com.
.
.
até com alinhamento com a questão governamental.
Nós devíamos.
.
.
os nossos governantes anteriores, prefeitos, vereadores, sem o menor interesse de alinhar a administração pública com a questão da administração privada.
Havia um certo acordo, talvez, ou um descaso mesmo, falta de interesse e isso, na verdade, invés de haver um acordo, um alinhamento, havia conflitos.
E esses conflitos, como a gente fala: “A corda arrebenta para o lado mais fraco”.
Então, quem sofria era a população.
Os políticos não sofriam, estavam bem, né, da maneira como eles estavam.
E as empresas super bem.
E a população ficava no meio desse “fogo cruzado”, desses conflitos todos.
Mas aí, com o passar dos anos, a gente percebeu, principalmente de 2013 para cá, já essa tentativa de alinhamento entre governo municipal e empresas, para que houvesse um trabalho, vamos dizer, harmonioso, né? A empresa está aqui, ela precisa estar aqui e Barcarena precisa ser beneficiada da melhor maneira possível.
O máximo possível, por ter essas empresas aqui.
Então, o que antes era prejuízo, o que antes era negativo, né, eu tenho visto, de 2013 pra cá, essa busca de reverter.
De tornar o mais positivo possível.
Participei de projetos, direcionados à professores, algumas empresas patrocinaram, era o projeto “Entre na Roda”, projeto de incentivo à leitura.
Cheguei a participar do projeto “Catavento”, acompanhar também, patrocinado por uma outra empresa.
E tem um outro projeto, que é o.
.
.
é o projeto “Entre na Roda”, o “Catavento”, tinha mais um, não vou recordar agora, mas de incentivo à leitura, à produção textual também.
Então, isso já foi algo que eu vi nesses anos mais recentes.
Então, acredito que já são benefícios que não são só para agora, vão ficar as marcas, tanto para o professor que atuou, né, nesses projetos, que recebeu formação continuada, quanto para os alunos que participaram.
Tiveram a chance de ter contato com artista, com escritores, através das obras e tiveram também a oportunidade de produzir seus próprios textos, suas próprias obras de arte.
Então, essa conquista na área da educação, eu já vi esse avanço, graças as parcerias com as empresas.
Já houve essa boa vontade do governo municipal dar as mãos, né? Como eu falei: eu acompanhei o momento dos conflitos, quando a empresa batia na porta da Secretaria de Educação ou da prefeitura e eles não davam as mãos, não havia essa parceria.
Talvez só houvesse, se eles tivessem algum tipo de lucro, algum ganho, né? Não pensavam no coletivo.
E, de 2013 pra cá, eu já pude ver essa produção ser mais ampla, né? Alcançar escolas lá da ilha, do meio da ilha, que a gente nunca imaginou que seriam alcançadas e foram alcançadas por esses projetos direcionados à educação.
E também tenho visto, assim, as empresas com as portas abertas, né? Até mesmo a chegada de cursos profissionalizantes para o município.
A gente sabe que isso tem ajudado muito com que os próprios munícipes, né, consigam se especializar, se profissionalizar, ao ponto de conseguir a vaga de trabalho na empresa.
Porque, se vieram pessoas de fora, porque aqui nós não tínhamos essa mão de obra especializada, preparada para trabalhar.
Então, agora eu já entendo isso.
Antes eu não entendia, né? Eu achava que Barcarena virou colônia de exploração.
Era o que eu pensava.
Eles estão tirando a nossa riqueza e levando.
Tirando e levando.
E depois que eu pude observar já essa questão dessa necessidade de profissionalização, né? Então, a gente já começa a compreender e entender que nós temos de estar preparados.
Há o avanço, o progresso, ele chega.
Ele chega de qualquer maneira, ele chega.
E, se nós não estivermos preparados, nós vamos ficando à margem de tudo isso, vamos ter de ficar só assistindo alguém que venha para receber esse avanço, esse progresso.
Então, eu vejo muito por esse lado, né? Mas ainda falta muito.
Barcarena precisa.
Nós temos a escola tecnológica, a escola técnica, que há anos está abandonada, não foi concluída.
Só vai ser concluída agora, graças ao investimento de vinte e cinco milhões de uma empresa, dessa empresa que, para nós, era o monstro, era o explorador, era o do mal e agora a gente está vendo que eles vão abraçar esse projeto e vão concluir a construção da escola técnica.
Então, isso vai ser um avanço assim, eu imagino já que os meus filhos estarão estudando lá, se preparando, para vivenciar todo esse progresso que Barcarena ainda tem para viver.
Tem muita coisa pela frente.
Muita coisa.
P1 – Infelizmente a gente vai ter de encerrar, mas eu queria perguntar para você, professora, como foi contar um pouco da sua história?
R1 – Inicialmente, para mim que sou emoção, cem por cento emoção, né, eu mexer com as memórias de infância, é algo que eu estou trabalhando ainda muito, porque.
.
.
eu fico muito, ainda, emocionada, muito mexida, tocada, com tudo, né? Às vezes um episódio é capaz de mexer com muitas lembranças, com muitas pessoas, né? Então, falar das memórias, resgatar essas memórias e registrar, traz, assim, um misto de emoções.
O primeiro de poder lembrar, né? Contar.
E o segundo, o segundo sentimento que vem é de saber que isso vai ficar registrado de alguma maneira, né? E vai ser conhecido e vai ser lembrado por alguém, mesmo quando eu não esteja mais aqui.
Então, apesar de trazer um pouco da vergonha de não ser uma das.
.
.
um dos músicos da família, né? Até um tempo atrás tinha um pouco essa vergonha, né, de não ter aprendido música, não tocar.
Mas eu trago um pouco essa carga de responsabilidade de ser a pessoa que vai comunicar a história da família, né? Nenhum dos meus nove irmãos se dispõe a isso, se propõe a isso.
Eles se.
.
.
eles têm outros meios de fazer isso, da maneira deles.
Mas de contar, de falar, de compartilhar, isso é muito meu, né? E essa emoção, assim, acaba se tornando forte, até pela perda recente do meu pai, né? Três anos, mas ainda existe muito essa sensação de que: “Poxa, eu queria que ele estivesse aqui”.
Então, cada momento, cada conquista, cada perda, vai marcando muito forte em mim.
Sempre fui assim.
E poder registrar isso, para mim, é.
.
.
hoje, para mim, é um dia histórico! Um dia histórico.
Está marcado, vai ser lembrado, eu vou contar, com certeza.
Eu vou pedir que as pessoas assistam, eu vou pedir que as pessoas acompanhem comigo, porque a partir de hoje a gente fecha o ciclo do compromisso firmado lá no workshop.
Mas se abre um novo ciclo pra mim.
Eu saio daqui com o compromisso de levar em frente o que foi registrado pelo Museu da Pessoa e também incentivar a conhecer a história de outras pessoas, que vão estar ali, dentre as não sei quantas mil histórias que já foram contadas.
Então, a partir da minha história, muitas outras histórias vão ser conhecidas.
Então, quando eu conto a minha história, eu estou consciente de que eu estou contando a história de muitas outras pessoas.
Contei dos vizinhos, contei dos meus pais, meus irmãos, meus filhos, meu esposo e aí, muitas outras pessoas vão entrando nessa história e eu consigo eternizar isso cada vez que eu conto.
Assim como eu falo nos meus poemas: às vezes eu elogio alguém, elogio o olhar, elogio a boca, o sorriso, os braços, eu tenho poemas que falam sobre os braços, tenho poemas que falam sobre o olhar, sobre a boca.
Então, eu sempre falo, quando eu consigo contato com a pessoa que me inspirou, ou com o momento onde a pessoa estava e me inspirou, eu sempre digo assim: “Eu te eternizei no meu poema”.
Então, eu sinto que hoje eu estou eternizando, né, a história da minha família e a minha história, através desse depoimento, desse compartilhamento.
Essa é a ideia que eu tenho de eternidade! Então, cada vez que eu conto, é uma gota de eternidade que cai, que é derramada sobre a história da família Apolaro, da família Costa, né, que é a família da minha mãe e isso vai ficar, isso ninguém vai tirar mais de mim.
O que era meu, agora é de todos vocês.
(risos)
P1 – Obrigado, professora.
Foi um prazer, viu? Obrigado.
R1 – Tá bom.
Esqueci teu nome.
P1 – Lucas.
R1 – Lucas, esqueci teu nome.
Pois é, Lucas.
P1 – Obrigado, professora, queria poder ficar mais tempo aqui, mas infelizmente a gente tem de ir.
R1 – Pois é, né?
P1 – Precisa ir, você também.
Mas foi ótimo.
Recolher