Projeto SOS Mata Atlântica – 18 Anos
Depoimento de Maria das Dores Vasconcelos Cavalcanti Melo
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
Embu, 18/01/2005
Realização Museu da Pessoa
Código do depoimento: SOS_HV031
Transcrito por Susy Ramos
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Dorinha, obriga...Continuar leitura
Projeto SOS Mata Atlântica – 18 Anos
Depoimento de Maria das Dores Vasconcelos Cavalcanti Melo
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
Embu, 18/01/2005
Realização Museu da Pessoa
Código do depoimento: SOS_HV031
Transcrito por Susy Ramos
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Dorinha, obrigada por você estar aqui, boa noite.
R – Boa noite.
P/1 – Gostaria de começar com você falando seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Maria das Dores de Vasconcelos Cavalcanti Melo, eu nasci em Recife, no dia 10 de outubro de 1959.
P/1 – A sua família toda é de Recife?
R – Isso, minha família toda é de Recife. Meus pais, eles vieram do interior de Pernambuco, passaram por Campina Grande, agreste da Paraíba e vieram para Recife. Meus irmãos mais velhos nasceram em Campina Grande, eu e os irmãos mais novos já nascemos em Recife.
P/1 – Em quantos irmãos vocês são?
R – Somos cinco filhos. Eu sou a caçula, sou a única mulher. Meu irmão mais velho tem 21 anos a mais do que eu. Em princípio a mimada, não é? O mais velho é advogado, o outro é engenheiro agrônomo e o outro é agrônomo, mas se dedica à música, ele hoje é do Quinteto Violado, e o mais novo é médico. Eu fiz arquitetura. Tem de tudo! Somado com as cunhadas e com os sobrinhos dá um monte de gente.
P/1 – E quando você era criança, vocês moravam no centro de Recife ou mais afastados, em um bairro?
R – Era muito próximo do centro. Tem a história da minha família antes de mim. Meu pai, se estivesse vivo, teria 93 anos hoje, morreu o ano passado. Minha mãe tem 85 hoje, então teve uma vida anterior. Eu tenho 45, tem toda uma história da família anterior a mim. Eles moraram no centro de Recife, meu pai era comerciante, tinha loja no bairro, no centro de Recife. Eu nasci eles já moravam em um bairro próximo ao centro.
P/1 – E o comércio, era um comércio de quê, que o seu pai tinha?
R – Ele tinha uma variedade muito grande, ele trabalhou com venda da Texaco, como vendedor de produtos, gasolina, óleo e tal, isso antes de mim. Depois tiveram vários outros negócios, eu não sei de tudo. Mas eu soube que, em Recife, eletrodomésticos; tinham uma loja de instrumentos musicais lá no bairro central, lá na Rua da Imperatriz. Depois ele trabalhou com posto de gasolina também em uma época que a gente morou em Natal, quando era criança. Depois voltamos e ele trabalhou com uma fábrica de macarrão, depois com a venda de materiais de construção. Essa é a vida dele, mas era sempre muito distinta, pelo menos para mim... Eu e meu irmão mais novo, que fez medicina. Os meus irmãos mais velhos, eles trabalharam ajudando meu pai na loja, eles sempre trabalhavam atendendo nas lojas e tal, mas eu e o mais novo a gente só estudava mesmo.
P/1 – E você chegou a morar em Natal quando criança?
R – Morei de um ano até os cinco [anos]. Ele tinha um posto lá, a gente foi para lá e os três mais velhos ficaram em Recife, cursando universidade, e nós fomos para lá pequeno ainda. Depois voltamos para juntar de novo a família e aí ele voltou a ter um posto de gasolina junto com o meu irmão, depois uma fábrica de macarrão e essas atividades mais de comércio mesmo.
P/1 – O que você lembra da sua infância, da sua casa, como era? A família... É uma família grande, não é?
R – Hum, hum.
P/1 – Como vocês faziam?
R – Minha mãe é doméstica, ela é do lar. Uma dona lá assim, gordinha, cozinha super bem, borda, costura, faz de tudo na casa, mantinha a casa sempre muito arrumada. Sempre tinha mais de uma empregada que cuidava de tudo, que deixava tudo muito limpo e arrumado, e ela vivia dentro de casa. Eu acho que o meu interesse em arquitetura também... Eu tinha lembrança fácil assim da casa que eu morava. Lá em Natal eu me lembro da casa, eu, com cinco anos, me lembro da planta da casa; sobradinho, jardim, a rua, tudo eu lembro. Em Recife também eu lembro as casas que a gente morou, foram bem menos... Acho que com dez anos eu tinha morado em dez casas, para você ver a dinâmica. Mas depois de dez anos a gente ficou em uma casa, em um apartamento, depois se mudou para um segundo – eu já estava na universidade –, e é onde a minha mãe mora até hoje, que é o apartamento no bairro dos Pinheiros, é próximo do centro.
P/1 – Você sentiu muita diferença de Natal para Recife?
R – Não, veja, Natal eu saí com cinco anos. Eu voltei em Natal há alguns anos atrás. Então Natal não era uma referência, para mim a referência era Recife mesmo. E eu tinha uma paixão muito grande por Olinda, na minha adolescência. Era o lugar da liberdade, a paisagem sempre mais bonita, e eu tinha muita vontade de morar em uma casa e morar em Olinda. Acho que estou lá há 12 anos, mais ou menos, eu moro em uma casa, em Olinda.
P/1 – E nessa sua fase de infância, como era estar morando em Recife? As festas, as datas comemorativas?
R – Eu sempre digo que a minha infância não era muito agradável, não era muito festiva. Eu vivia muito em casa com meu irmão mais novo. Meu pai, nessa época, estava trabalhando muito. A minha família, meus pais, eles tiveram um momento... Quando casou, papai trabalhava na Texaco, era vendedor de melhor linha, premiado pela Texaco, tinha uma situação financeira muito boa. E quando eu nasci – e meu irmão mais novo –, foi uma situação de redução. Nunca faltou nada, nunca eu senti que nada tinha mudado, porque meu parâmetro era ter meu pai mais perto, ter minha mãe, e isso não mudava muito. Mas eu sei que houve um decréscimo muito grande. Eles tinham um padrão de carro importado, de casas assim, assado, e quando eu nasci, não. Inclusive eu lembro que, quando eu tinha uns 12, 13 anos, eu achava muito bom, porque foi uma época que ele não tinha carro, aí eu ia a pé com ele, e de ônibus. Isso era uma delícia, porque eu tinha meu pai para mim durante muito tempo. Depois é que eu soube que isso era sinal de uma crise financeira, mas que nem ele passava, porque acho que ele é de família de agricultor. Meu avô era agricultor, minha avó era professora de área rural, então ele teve e depois deixou de ter, mas nunca faltou o básico, todo mundo estudou, todo mundo teve tudo. Eu não sentia absolutamente nenhuma transição nessa coisa, só soube depois de grande.
P/1 – Vocês estudavam – você, seus irmãos –, era próximo de casa ou era muito distante?
R – Era próximo, eu ia com o meu irmão a pé e voltava com ele. Meu irmão mais novo tem três anos a mais do que eu, a relação era muito afetiva, eu era a boneca da casa, todo mundo tinha o maior apreço, e ele tinha esse cuidado. Me lembro uma vez que a gente vinha na rua e alguém parou e perguntou: “Não é possível que vocês sejam namorados! Dessa idade!”, mas é por que ele vinha abraçado comigo, fazendo carinho, pegando no meu cabelo. Era bem carinhoso. Esse era o mais novo, porque com os mais velhos eu até convivi pouco, porque casaram. O mais velho casou eu tinha cinco anos. Eu fui a dama de honra, carreguei a aliança. Então os outros... Era 21, 17, 15 anos de diferença, só o mais novo é que teve aquela convivência, mesmo, de irmão.
P/1 – Você foi tia muito cedo?
R – É, fui tia com seis anos, sete anos. Convivi com meus... Treinei ser mãe, também.
P/1 – E quando você foi estudando, você estudou sempre em Recife?
R – É, eu comecei a estudar, eu tive jardim da infância em Natal, no Colégio das Damas, que é um colégio... Não sei se na região sudeste, sul, tem, é um colégio religioso de freiras bem conhecido lá, colégio bem grande. Eu estudei lá em Recife, sempre escola que só tinha mulher. Até o científico eu só estudava em escola de freira que só tinha mulher.
P/1 – E quando você entrou na universidade, você entrou...
R – Depois eu fui fazer o cursinho. Inclusive, como meus irmãos todos tinham feito vestibular, até o dono do cursinho foi lá em casa para convidar a gente para estudar lá. Porque papai resistia muito para me retirar da escola para botar no cursinho, porque tinha muito menino, aquela coisa, era bem repressor. Foi o dono que convenceu que tinha aberto um curso específico e tal. Aí eu fui, fui fazer, na época era o clássico, que era específico para a área um que tinha arquitetura. Uma coisa também, meu pai foi muito forte na minha vida. Ele dizia, quando eu era pequena, ele discutia comigo que profissão eu ia ter, então ele dizia: “Médico não, porque passa a noite fora, não dá para ser” – não dava para ser médica –, “Dentista pode ter um consultório em casa, pode ser melhor, mas esse negócio de colocar a mão na boca...”. E arquitetura, como ele gostava de construção, ele fazia casas e tudo, ele achava que era uma profissão interessante. E ele botou na minha cabeça, porque eu gostava de desenhar, que eu ia fazer arquitetura. Quando chegou na hora de escolher, não tinha dúvida, eu ia fazer arquitetura. Até porque era o curso mais difícil, eu achava um desafio passar em arquitetura, porque ninguém passava. Eu também nunca fui muito estudiosa, então: “Bota aí como primeira opção, se passar é lucro”. Passei na federal em 1978, e achei legal o curso, nunca me arrependi de ter feito arquitetura. Se bem que eu dei uma guinada muito grande, mas eu achei o curso muito bom, gostoso de fazer.
P/1 – Pelo que você está falando seu pai era bem conservador, tinha um cuidado muito especial com você, não é?
R – Hum, hum.
P/1 – Porque todos os outros eram meninos. Como foi quando você entrou na universidade, isso, para ele?
R – Eu achei interessante, porque ele também era conservador, mas também era muito ousado, tinha umas coisas de vanguarda. Ele tinha o conservador no sentido da moralidade, da sexualidade, até porque ele nasceu em 1911. Quando eu nasci papai tinha 48 anos, então havia toda uma série de paradigmas, de concepções que não era fácil para ele compreender. Mas assim, com relação à novidade, dança, por exemplo: eu fazia balé; desde cedo ele queria que eu estudasse música, eu estudei piano por um tempo. Todo mundo lá em casa estudou música, todo mundo tinha atividade física, tinha algumas coisas básicas. Ele estudou só o primário, porque o pai dele morreu ele tinha dez anos, mas ele tinha essa ideia do que é educação, do que seria. Então, quando entrei na universidade, ele me levava e me buscava. Era muito longe a Cidade Universitária, mas ele ia, me levava, me buscava, tinha todo apreço em comprar todos os livros que eu precisasse, os equipamentos... tinha sempre muito interesse em ouvir minhas histórias da faculdade e tudo o mais. E tinha uma expectativa. Eu fazia o curso e não me via muito fazendo arquitetura, porque o público do arquiteto, em sua maioria, é um público que se destacam pelo poder econômico, poucas pessoas de classe média ou pessoas mais simples contratam arquiteto, em sua maioria são as pessoas de classe A que contratam arquiteto. Até porque a própria faculdade, ela não trabalha em cima nem do sustentável, ela trabalha em cima do “vamos fazer o que a gente sonha, a arquitetura é uma arte, é o senhor do espaço”. A gente vive muito fora da realidade, trabalhando em cima de um desejo, de um sonho, de uma fantasia, e a impor ao cliente. Pelo menos essa era a minha formação. O próprio respeito com a paisagem, o respeito com o conceito de biodiversidade, do planejamento ambiental, do planejamento da paisagem, nada disso era [abordado] na minha época. Hoje a coisa tem evoluído. Eu vejo... Fiz algumas palestras dentro da própria faculdade de arquitetura, que é diferente, mas na época não era, era muito “arquiteto é o dono”. Dependendo do preço do material de onde vai, não interessa se tem certificação, se não tem, não interessa se edifício alto vai quebrar completamente aquele ambiente: “ele é o arquiteto, ele tem que criar um ambiente que ali seja...” Então essa dicotomia foi uma coisa que não me atraía. Eu não conseguia me ver adiante, atrás de clientes, eu tendo que ir a determinados lugares para poder alcançar essa elite, sabe? Eu não me movia com isso. Eu trabalhava também com arte e educação, dança espontânea, porque fiz balé muito tempo. Depois expressão corporal, aí entrou nessa coisa da improvisação, da dança livre. Então era mais um motivo para que eu quisesse atingir o âmago das coisas, a coisa mais interiorizada. “Qual é o movimento da pessoa, o que ela vai chegar, o que ela vai querer, onde é que ela vai, o que significa o movimento que ela tem”. Então era uma busca diferente que poderia ter ido pela forma em artes plásticas ou outra coisa. Mas eu vejo sempre que a vida é uma parceria entre você e Deus, ou outra coisa que se queira chamar, mas é sempre uma parceria. Você nunca decide tudo. Decide uma parte, aí reflete sobre como deve caminhar e pronto.
P/1 – E quando você... Você falou que trabalhou com arte e educação. Você dava aula de dança?
R – Hum, hum.
P/1 – Isso você já estava na universidade? Ou foi antes?
R – Antes, até. Eu comecei a dar aula de dança eu tinha uns 16 anos, e continuei dando aula de dança até 30 anos, quando eu tive meu segundo filho, que foi uma menina.
P/1 – E como foi, assim, com todas essas questões, o primeiro namorado?
R – Como eu tinha uma família extremamente bem estruturada, e quando você tem uma família que já resolveu todos os problemas, você... É como aquela música da Marisa Monte (canta): “A gente não quer só comida...”. Porque quando você resolve as suas necessidades básicas, você começa a voar. Então é como se eu tivesse um lastro para pular e fazer o que eu quisesse. A arte era uma forma de atuação e, com relação à questão afetiva, o meu interesse era para o que fosse marginal. Meu primeiro namorado era um maluco, músico que tomava todas, bebia todas, que eu não podia levar lá em casa, era uma loucura! Isso criava várias crises, com meu pai, inclusive. Teve uma época que ele disse que não tinha mais filha, e eu fazia: “Não tem, mas eu tenho pai. Você não tem filha, mas eu tenho pai!”, ficava aquela coisa dele: “Não quero mais saber, não quero saber a que horas chega, não quero saber, resolva com a sua mãe!”. Isso foi um momento, mas no fundo, no fundo, é como se eu não acreditasse naquela birra dele. Ia levando, mas era sempre... Eram mais músicos, eram pessoas que tinham mais abstração do que eu. Embora eu tivesse essa tendência, mas sempre conduzi a minha vida muito regrada. Embora ele tomasse drogas, eu tomasse, ou bebesse, eu nunca entrei nisso. Eu me encantava pelo delírio dele, mas não que eu me encantasse, eu, para mim... Tinha também toda uma formação, teve um professor que foi muito importante para mim, que era de dança, chamado Rolf Gelewski. Era um alemão que fazia dança espontânea, e tinha um trabalho ligado à Casa Sri Aurobindo, que era um pensador indiano que trabalhava o ensino da educação integral, daí que vinha a filosofia da dança espontânea. Ele pregava, através da educação integral, o rigor físico, mental, espiritual, psíquico, então a consciência e o cuidado com o corpo, com a mente, com o que pensar, com o que comer, como agir. Então isso tudo era paralelo à paixão pela extravagância (risos).
P/1 – Dois lados?
R – É.
P/1 – Você entrou na universidade com quantos anos?
R – Com 18, 19. Eu passei com 18, depois fiz 19, entrei na faculdade. Saí com 21, 22, mais ou menos. Acho que 22.
P/1 – E quando você saiu você já estava trabalhando?
R – Não. Eu saí, aí havia a preocupação da família de que eu ficasse só trabalhando com dança. Na época eu estava em uma fundação, trabalhando, dando aula, e eles tinham certa preocupação, ficavam às vezes: “Não, tem que fazer um concurso, tem que fazer não sei o quê...”. Foi quando, em 1985, eu comecei a trabalhar na prefeitura. Foi também o ano que eu casei, casei e engravidei do meu primeiro filho. Aí organizou um outro ciclo.
P/1 – E quando você entrou na prefeitura você trabalhava com dança ou com a área...
R – Eu trabalhava com dança. Enquanto eu me formei até arranjar o primeiro emprego, eu dava aula de dança, que desde adolescente já era uma mesada que eu tinha. Papai nunca deu mesada para ninguém, bancava as coisas, mas não dava mesada. Isso fez com que todos os filhos começassem a trabalhar muito cedo. Meu irmão fazia medicina, dava aula de biologia, e eu fazia arquitetura e dava aula de dança. Era uma forma de eu ter meu dinheiro para o extra, para sair e tal.
P/1 – Na área de arquitetura, qual foi o seu primeiro trabalho?
R – Foi arquitetura e urbanismo, que eu me formei. Então, na prefeitura de Jaboatão, meu primeiro trabalho foi na área de projetos, projeto de arquitetura, que chegava, eu tinha que adequar à legislação, à lei de uso e ocupação do solo. Eu trabalhei na lei de uso e ocupação do solo adequando, tive que estudar para a cidade, porque Jaboatão é região metropolitana do Recife. Mas tem uma área que é contígua à Praia de Boa Viagem, que é Piedade, que é um distrito e tem a sede, que é a área mais no entorno, é uma sede pequena no entorno rural, agrícola. A minha atividade lá passava por essa análise de projetos. E em seguida eu fui convidada para ir para Moreno, que era uma cidade vizinha de Jaboatão, um pouco mais distante de Recife, mas também região metropolitana. Lá eu fui convidada para fazer a lei de uso do solo. Achei interessante a evolução, aí, além de trabalhar com o licenciamento lá, eu tinha um convênio com um órgão metropolitano, e eu fui discutir e construir a legislação de uso do solo lá, do zoneamento. Aí passa algumas nuances da área ambiental, definição de áreas prioritárias e tudo o mais.
P/1 – E como foi a sua saída de uma área que era totalmente o corpo, que é a dança, para outra área, que era uma coisa mais técnica, o uso do solo, projeto? Como você fez essa opção, foi uma coisa natural?
R – Eu acho que tem essas duas coisas em mim bem forte. Eu sou uma pessoa que gosta de artes, mas que também gosta de matemática, que também gosta de fazer conta, que também gosta de coisas técnicas, de material. Então não é uma coisa que criou algum tipo de divergência, até porque a arquitetura tem essa dualidade, na arquitetura você trabalha muito com matemática, com cálculo estrutural, etc. No entanto, você trabalha muito com história da arte, você trabalha muito com modelagem, com forma, então é aquela coisa da abstração, e também do senso bem prático. Essas duas coisas sempre conviveram em mim. Sempre... Tenho necessidade, ainda hoje, de trabalhar nesses dois níveis. Uma coisa só não basta, eu sinto sempre falta de alguma coisa mais abstrata, mais... Se for escolher, eu adoro ler poesia, minha biblioteca está entre muitos livros de poesia e muitos livros de meio ambiente, hoje, de geografia, de mapas de zoneamento, essa coisa toda.
P/2 – Você disse agora que foi na prefeitura que deu esse seu primeiro contato com a questão ambiental.
R – É, foi seguindo. Veja também paralelo, eu recebi um convite para fazer... Porque tinha uma disciplina de paisagismo dentro da faculdade, que eu optei que tinha urbanismo e tinha paisagismo. Então eu optei por paisagismo, aí eu peguei um projeto de um sítio histórico, paisagismo e adequação. Isso foi uma coisa que me tomou, eu fiquei com vontade de trabalhar com paisagismo, que é construção de praça, trabalhar com vegetação. Isso foi na prefeitura já, começava a dar umas pinceladas nisso. Em Moreno eu já comecei a fazer algumas praças, e quando eu saí de Moreno, fui para Olinda, trabalhar em Olinda. Em Olinda eu fui trabalhar em uma área em urbanismo, em um assentamento pobre que ia ser mexido, urbanizado. Eu me dediquei, eu era assessora, mas paralelo a isso, eu sempre tenho um jeito hiperativo, feito criança... Hoje mesmo o pessoal estava dizendo: “Não, bota que ela vai fazer de noite!” Termina que eu me entusiasmo e lá vai! Então eu fiz esse projeto dessa praça e achei muito interessante essa veia. Quando eu cheguei lá em Olinda, eu comecei a fazer um projeto para a comunidade de uso de arborização com frutíferas, era um lote pequenininho: “Dá um limoeiro ali, dá um maracujá para subir naquela grade... Vamos pensar em uma acerola, vamos pensar até em um coqueiro, vamos pensar...”, eu comecei a pedir muda pela universidade. Saía, pedia muda em todo o canto, e comecei a fazer um projeto de adequação, de envolvimento da população com o plantio. Eu achava super árido, botava aquelas casas populares e ficava aquela coisa ali, seca, acabava com a paisagem, com tudo, isso já me incomodava. Por conta disso, quando mudou a gestão, o paisagismo em Olinda estava completamente destruído, aí eles me chamaram. Ninguém queria, estava abandonado, aí disse: “Tome, leve”. Eu topei o desafio. Tinha 30 funcionários, o porquê de uma prefeitura como Olinda era assim, não sei. Quanto idoso não podia sair, outro com licença médica, mulher grávida, aquela confusão. E eu não sabia o estado da arte, era eu sozinha e aquele monte de coisa para eu saber, até quais são minhas atribuições e minhas competências. Comecei então a mapear, chamei uma amiga que estava à disposição em outro órgão, botei lá. Comecei a ver que começava a receber muita gente que mora perto de praça que tinha foco de lixo, tinha não sei o que. Eu comecei a ver que eu não tinha nenhuma habilidade para tratar com gente, com os pobres. Aí eu já chamei uma socióloga para ficar, anteparo. “Faça uma tradução para eu poder entender o que significa isso dentro...”, isso tudo a formação da faculdade não dá, então eu comecei a criar alguns anteparos para pensar. Eu fiz um levantamento de todas as áreas verdes, tinha um arquiteto que desenvolvia, tinha um sociólogo que atendia o público, que traduzia, e comecei a montar uma estrutura que foi super lindo, foi uma experiência super legal. Eu tinha um grupo de ação social, que era o GAS [Grupo de Atitude Social], cheio de psicólogos, sociólogos, eu tinha um grupo de arquitetos e tinha um grupo de engenheiros agrônomos. Com isso, quando chegava alguém com um problema, eu ia lá com os três, com os três olhares. Enquanto eu ficava olhando, me encantando com a paisagem, imaginando os volumes, o sociólogo ia lá, fazia uma entrevista para saber que uso ele queira, o arquiteto começava a ver o solo, ver que condição tinha para a construção, e os agrônomos iam ver o solo também, a vegetação. Eu chegava cheia de ideias, me sentava na prancheta, pegava um monte de lápis de cor e riscava tudo, deixava lá aquele espalhafato. Aí os arquitetos vinham e botavam... Na época não se trabalhava com AutoCAD, era tudo no papel, então eles iam e jogavam a racionalidade, os compassos e os esquadros, montava o projeto. Quando eu saí de lá eu tinha 313 funcionários, de 30. Tinha 50 projetos no arquivo, tinha 15 praças implantadas, e uma sementeira com 60 mudas em estoque. Isso foi, para mim, uma experiência super legal, de uma equipe grande. Mas, no entanto, aquele sentimento depois de impotência total, porque muda o governo, independente de eu sempre ter sido contra o governo que estava me apoiando, eu dizia que não ia votar nele porque não ia apoiar, ele dizia assim: “Ótimo, não precisa você me apoiar, se você me der o seu trabalho eu já consigo os votos”. Quando ele saiu, o outro prefeito não pensava assim, achava que eu era do governo, e acabou com tudo. Em dois anos não tinha mais nada, tanto que eu resolvi sair da prefeitura. Ganhava pouco e estava em um estado tal de desengano, que eu disse: “Não quero mais não”. Foi quando eu comecei a fazer contato com a SNE [Sociedade Nordestina de Ecologia], e o prefeito me chamou, não queria que eu saísse. Ele começou a reclamar porque não tinha isso, não tinha aquilo, não tinha aquilo, e depois eu digo: “Sim, tinha, antes tinha. Estão aqui as fotos, está aqui o estoque, estão aqui os relatórios, tudo que tinha foto de tudo o que acontecia. Como que agora não tem?” “Não, porque o outro prefeito roubava”. Eu disse: “Se ele roubava o senhor faz o que? Porque essas praças todas foram construídas com dinheiro público. O salário da gente era o dinheiro público. Quer dizer, se ele roubava, o senhor deve estar fazendo a mesma coisa, porque acabou com tudo! Isso é patrimônio público!” Isso me deixava horrorizada, eu saí sem nenhuma perspectiva de trabalho, larguei lá e fui embora. Ele depois chamou, mesmo soltando os desaforos ele me chamou, aí eu saí. Foi quando eu comecei a trabalhar na SNE, e começou uma outra história. Há dez anos, eu fui convidada para também pegar a SNE em um momento de dificuldade. Quando não tinha sede, quando não tinha a parte de toda a documentação, toda a contabilidade, estava tudo confuso, aí a gente assumiu como conselheiro, a gente assumiu a presidência, e aí organizamos a casa, estruturamos.
P/1 – Dorinha, você podia explicar para a gente o que é a SNE?
R – É o seguinte, a SNE é a Sociedade Nordestina de Ecologia. É uma entidade ambientalista sem fins lucrativos, uma organização não governamental fundada em 1986. Tem como objetivo articular pessoas e instituições para a proteção do meio ambiente. Tem um conselho, tem uma estrutura de gestão, mas como muitas instituições que nasceram na época, havia um espírito muito combativo de ir contra. Formada principalmente por biólogos, isso criou em mim certa dificuldade em segurança, de repente assumir a frente de um discurso que eu não tinha absolutamente capacidade, informação para absorver. Mas, com o apoio de Osvaldo, que foi o meu vice-presidente – depois e até hoje está aí no seminário, é botânico, biólogo –, ele me dava toda essa estruturação, organizava para eu seguir. A SNE foi, digamos, quem fez o primeiro mapeamento da Mata Atlântica, isso antes de eu entrar, inclusive, na SNE. Todo um trabalho de educação ambiental, tinha uma porção de atividades bem interessantes de um grupo. Como a maioria eram funcionários de universidade, de governo, então a visão da instituição era aquela visão de botar a capacidade do sonho. Não se via muito essa coisa da própria instituição, do patrimônio como uma empresa, como uma entidade, de maneira geral. Eu cheguei a um momento em que não tinha projeto, então a coisa estava muito desorganizada. Como eu digo, tem o sonho e tem essa coisa da gestão, aí novamente eu tive essa tarefa de pegar do começo, de organizar. Embora uma instituição que tivesse uma história, tivesse excelentes currículos, para mim era uma escola, um aprendizado, e as pessoas estavam apostando em mim... Pouco tempo de conhecimento, mas como não tinha ninguém que quisesse assumir, na realidade, a instituição, eu achei que era uma oportunidade muito grande de aprendizado. Eu estava apaixonada pelo tema, porque dentro da prefeitura mesmo, de Olinda, comecei a trabalhar, mesmo quando eu saí da diretoria ainda fiquei lá dois anos trabalhando na área de meio ambiente, começando a vislumbrar coisas que eu não tinha sentido antes, visto antes, e a SNE era a oportunidade de pôr em prática algumas coisas que eu tinha percebido, eu achava importante atuar. Inclusive a gente fez um projeto, logo o PDA, começamos a fazer sementeira, a produção de mudas, reflorestamento. Trouxe um companheiro da prefeitura que era um engenheiro agrônomo, o Raul, amigo meu, então a gente fez uma equipe, super gostoso, também. Montamos, passei seis anos na presidência com o Osvaldo, depois saí para presidir o Congresso Nordestino de Ecologia, porque a SNE tem congressos de dois em dois anos. E dentro da SNE a gente deu continuidade ao projeto de mapeamento, definição de áreas prioritárias. Iniciamos um projeto em 2000, que é o que hoje a gente está, eu estou ocupando a maior parte do tempo, que é a região de Murici, que é uma região que fica em Alagoas e que é considerada pelos birdwatchers, pela BirdLife International como a área de maior riqueza de biodiversidade de ave e fauna, e que tem cerca de 10% das espécies ameaçadas da ave e fauna, do Brasil, ou do hemisfério sul. É uma área de três mil hectares e que vem sendo destruída. Era uma área contínua de Mata Atlântica acima do rio São Francisco há muito pouco tempo atrás, e hoje está reduzida a pequenos fragmentos. Isso foi um projeto que a BirdLife, através da Jaqueline Goerck, me procurou e pediu ajuda, e a gente estabeleceu uma parceria muito produtiva, incluiu outras instituições, como a The Nature Conservancy, a WWF Brasil, e depois a SOS Mata Atlântica, a Conservation International, o Centro de Estudos e Pesquisas Ambientais do Nordeste, Instituto Amigos da Reserva e da Biosfera da Mata Atlântica. Montamos um consórcio denominado Pacto Murici. O Pacto Murici apresentou um projeto ao Funbio [Fundo Brasileiro para a Biodiversidade], o Funbio aprovou a primeira etapa e a gente está hoje em plena estruturação desse projeto, esse é um dos principais projetos da SNE hoje, e a minha principal ocupação.
P/1 – Só voltando um pouquinho.
R – Sim.
P/1 – Você começa a atuar nessa área na década de 80?
R – É, se a gente pensar na transição... Eu faço, às vezes, uma imagem, digamos, de que eu trabalhava com arquitetura às vezes na escala de um para um, depois no paisagismo na escala de um para 200. Depois eu fiz a especialização em cartografia aplicada a geoprocessamento para poder mapear a Mata Atlântica, coordenar os trabalhos de mapeamento da Mata Atlântica, que aí vai para a escala de um para 100 mil. Eu falei assim: “Eu acho que eu estou subindo” (risos). Se a gente pensar nessa escala, então desde os primeiros contatos com a prefeitura, na área de paisagismo, no lidar com sementeira de mudas que não eram de nativas... Porque isso já é uma crítica que eu fiz depois, aqui, porque se trabalha em paisagismo urbano com espécies exóticas quando a Mata Atlântica tem a maior biodiversidade, os biomas de maior biodiversidade do planeta, e a gente usa no domínio da Mata Atlântica espécies exóticas. Você olha a paisagem, vê praticamente a maioria de espécies exóticas, principalmente no nordeste. Eu acho que esse foi o primeiro contato com a área biológica, com a área de mudas, de floresta. E a Mata Atlântica foi a minha grande paixão. Eu começo a entrar na mata, esse projeto de levantamento, de monitoramento da Mata Atlântica que a gente faz é uma experiência também super legal. Ver que a gente constrói o projeto, a gente capta recurso, a gente realiza, a gente vai lá no campo e depois fica brigando... Porque dizem assim que eu sou a maior chata que tem, pois: “Lá no Piauí ninguém nem acredita mais que tem nada, essa daqui fica dizendo, reclamando, um titico que tem lá, nem o pessoal do Piauí, nem o pessoal do Ceará”. E eu fico lá, encrencando, porque a gente vai lá e vê. Digo: “Pelo menos vamos mapear, escrever e dizer que existiu, mesmo que amanhã acabe. Mas aqui tinha, então deixa escrito para as gerações futuras saberem que um dia teve”. E esse mapeamento a gente teve uma grande parceria com a SOS Mata Atlântica, que a Márcia sempre ajudou, sempre participou das discussões. E é um trabalho muito interessante, porque envolve muita gente, passa por uma coisa que eu tenho destacado, assim, na minha vida, que é a articulação de entidades, de pessoas, e que você cria uma rede de amigos, fica super à vontade quando sai viagem, vai um monte e começa a sonhar junto, a crescer as ideias e ver o que pode somar. Enfim...
P/2 – E através desses mapeamentos que você fez, como está a situação da Mata Atlântica no nordeste, atualmente?
R – Está pior do que em qualquer outro lugar. Primeiro porque assim, desde que eu entrei nessa história da Mata Atlântica, eu participei da rede de ONG’s da Mata Atlântica, da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, e eu sempre percebi que o sudeste e o sul estavam bem mais articulados do que o nordeste. O nordeste não tinha instituições organizadas, não tinha informação, não tinha recursos para fazer nada; os estados não estavam organizados. Isso foi sempre, os órgãos financiadores... Até hoje a gente fala assim: “A KFW, que eu não considero que tem Mata Atlântica acima do São Francisco”. O último congresso sobre unidade de conservação eu fui, saí de lá passando mal, porque o mapa dos biomas do Ministério do Meio Ambiente saiu e não inclui Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte. Quer dizer, não tem o decreto 750, não tem... Quer dizer, “Por que mudou o mapa? Por que saiu?” Isso tudo, se o próprio Ministério não ratifica a informação, é como se dissesse... Hoje eu até falei para o Ibama que então é mais cômodo dizer que acabou. Só que a Mata Atlântica no Nordeste sempre foi menor o domínio. Considerado o domínio original, ele sempre foi menor do que em outras regiões porque tem a Caatinga. Embora o Almirante Ibsen, naquele livro dele e outro parceiro, que os limites originais da Mata Atlântica no Brasil... Ele fala da possibilidade da Mata Atlântica ter se conectado pela Mata Amazônica. Outros dizem isso, lá pelo Maranhão, e que a coisa foi se acabando. Até essa perspectiva histórico-geográfica deveria ser considerada nessa análise cuidadosa. O próprio Ministério é que está financiando esses mapeamentos, ele mesmo tira do mapa; quer dizer, é doloroso. Eu tenho algumas pessoas, como a professora Angélica Figueiredo e o Osvaldo Lira, que vão para campo com a gente, a Terezinha Uchoa diz... A Maria Angélica diz assim: “Eu vim aqui com os meus alunos e tinha o pau amarelo” – que era a tinta amarela, tinha de tinta vermelha e tinha de tinta amarela – “E de repente eu venho, não tem mais”. É um dado cultural, um dado histórico, certo? E alguém queria botar alguma coisa ali, plantar alguma coisa, botar gado em cima. Cortou a única espécie que tinha daquela planta, e ninguém fala nem para contar a história, está entendendo? Isso é uma coisa que sensibiliza. Eu digo: “Bom, pelo menos serve para isso. Para dizer aqui, teve um dia isso.”. Eu saí um dia em dois carros, com um monte de gente, com foto, com filme, com tudo: “vamos provar que aqui tinha, que ninguém ligou e acabou”. Situações como essa de Murici, por exemplo,que é um remanescente pequenininho, tem outras áreas como agora mesmo a gente está, a BirdLife novamente está apoiando, comprou uma área junto com outra instituição local, a Serra do Urubu, que também tem quase a mesma biodiversidade que tem em Murici, está cheia de carvoeiro. A gente foi lá semana passada, cheio de carro tirando mata, tirando carvão, menino de burro, criança trabalhando, andando quilômetros com um burrinho para ganhar um real. Essa situação que a gente vai, liga para o Ibama, o Ibama não tem combustível, isso a gente bate: “Eu não posso andar no seu carro”. É muito lento, e a gente precisa... Aquela coisa, precisa de todo mundo, que todo mundo escute, que todo mundo apoie, que a SOS use a grande capacidade que tem de comunicação para nos apoiar nessas ações. A situação é muito grave. Por exemplo, em 1998 eu participei do workshop de Atibaia que definiu as áreas prioritárias e foi definida uma área no Rio Grande do Norte, na Serra dos Martins, que no levantamento que nós tínhamos em 2002 ela acabou completamente. Uma área prioritária está lá entre as áreas prioritárias do Probio. Outras áreas como o Vale do Gurguéia que se esperava encontrar uma grande quantidade no Piauí, quase não tem remanescente. A coisa vai se acabando e a gente, pelo menos, testemunha. E tentamos isso, grandes consórcios como esse do Programa PICUS, que foi uma grande iniciativa da Funbio, que é o Programa Integrado de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade, aí a gente tenta proteger e recompor a paisagem de uma eco região que liga Pernambuco e Alagoas.
P/2 – E hoje existem quantas – mais ou menos – instituições que você conhece ligadas ao meio ambiente na região nordeste? E como se dá a articulação entre elas?
R – As duas grandes redes importantes na região, que têm âmbito nacional, é a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, que é uma instituição que também eu participo desde o início, desde o meu início, e é um pouco parecido com o início deles. Se bem que eles são mais antigos, a SNE já estava dentro antes de eu chegar lá, fundador tanto da Rede Mata Atlântica como da Reserva da Biosfera, a SNE, e eu entrei nessas representações. Então são essas duas grandes redes que articulam os atores locais. A Reserva da Biosfera com abrangência maior, porque inclui vários setores, universidade, governo, população tradicional, comunidade moradora e instituições de pesquisa, ONGs e tal, e a Rede de ONGs da Mata Atlântica que atua com as ONGs, especificamente. Só que, por exemplo, em Pernambuco, a Rede de ONGs têm cinco ONGs cadastradas que atuam na Mata Atlântica. É provável que possa existir até outras, mas nem essas cinco, elas têm uma estruturação. Eu estava conversando até agora com o Alexandre Krob lá do Curicaca, do Rio Grande do Sul, e ele me dizendo: “A gente lá criou uma secretaria executiva e criou um grupo de trabalho”. Isso a gente não chega a ser possível lá no nordeste, porque Sergipe, por exemplo, tem uma instituição associada à Rede de ONGs da Mata Atlântica. A Bahia tem um número bem maior, tem mais apoio, tem mais projeto nessa área de conservação, e tem mais Mata Atlântica. Na Bahia a estimativa é que tenha o número de cartas topográficas que incluem Mata Atlântica equivalente ao resto do nordeste. Então Sergipe tem uma, Alagoas tem umas três, Pernambuco tem umas cinco, isso dentro do cadastro da Rede de ONGs. Não é necessariamente, obrigatoriamente... Todas não teriam que estar afiliadas, mas naturalmente quem está trabalhando tinha algum tipo de articulação, até porque a Rede de ONGs também está articulada com a Reserva da Biosfera na indicação de seus representantes. Esses são os atores que a gente tem, e estão extremamente sem infraestrutura e sem articulação. Não é fácil a gente buscar instituições locais. Murici, por exemplo, nós botamos algumas instituições, mas nenhuma delas até agora assumiu nenhuma ação, não deu continuidade a uma ação para a gente entregar a realização de alguma atividade. Essas são grandes dificuldades, porque falta informação, falta recurso, falta instituição, e é complicado. O Estado quando quer, faz, quando não quer, não faz, e não faz.
P/1 – E Dorinha, você consegue ver três momentos no movimento ambientalista, eles são distintos? Fim da década de 80, década de 90 e hoje?
R – Eu digo assim, que a minha vida como ambientalista, ela ainda é pequena, dez anos nessa militância, então eu poderia citar dois momentos. Um momento de grande efervescência há alguns anos atrás, poucos anos atrás, a minha vivência dentro da Rede de ONGs mostrava isso. Era uma posição combativa, mas ao mesmo tempo pró-ativa. A gente fazia denúncia, a gente fazia passeata, fazia esses movimentos, mas ao mesmo tempo a gente estava dentro dos Ministérios, estava dentro das discussões. E hoje eu acho muito mais difícil, porque é como... A maioria das instituições ambientalistas era oposição, então elas podiam criticar, e na hora que elas eram convidadas para trabalhar elas poderiam trabalhar se aquilo, de alguma forma, entrasse em acordo com a construção de uma situação na questão ambiental. Hoje nós não temos mais essa força de oposição, inclusive isso fez com que eu até me afastasse mais da luta ambientalista, ela enfraqueceu muito porque os ambientalistas estão dentro dos governos. Não é que antes não houvesse isso, mas a postura mudou. Inclusive no caso da Rede de ONGs, eu acho que isso foi muito forte. A postura que tinha que ser combativa resguardou-se e perdeu um pouco a força. Eu dizia sempre assim: “Existe uma questão que eu acho que é o maior problema ambiental, é a questão populacional. Ninguém quer de fato encarar isso, ninguém quer discutir a questão de população, limites, formas e estratégias, ninguém quer mexer com isso”. Ainda citando aquela coisa de crescer, crescer, e essa é a pressão nos recursos naturais. Aí a desigualdade faz com que alguns poucos usem, e outros, embora se degrade... Mas se você tem uma população muito grande de pobres, eles vão consumir menos recursos naturais, por mais que digam: “Os pobres agridem, tiram lenha, tiram isso...”. Mas uma grande empresa, uma grande indústria madeireira atua [de maneira] muito mais impactante. Quando você, de alguma forma, melhora a qualidade de vida e não trabalha no sentido da educação, da sustentabilidade, de maneiras alternativas de recursos energéticos, qual é a realidade? É o aumento da pressão em cima dos recursos naturais. Eu acho que essa é uma situação que a gente tinha que ver com mais clareza, porque aí a gente ia bater em alguns problemas que saem dos limites que os ambientalistas vêm tratando de uma forma geral. Porque muitas vezes a gente não vai proteger a Mata Atlântica dentro da unidade de conservação, a gente vai proteger a Mata Atlântica dentro de um banco, estabelecendo financiamento para pecuária ou não naquela região. Ou estabelecendo incentivos ao Proálcool [Programa Nacional do Álcool] ou não. Isso tem a ver com o conjunto gestor, e é muito mais complexo do que o que a gente vem fazendo. Essa visão do todo não é tida, e eu acho que a gente tem se fracionado e tem perdido força. A gente vê até em um workshop, em um seminário... Existem seminários, alguns grupos aqui, grupos ali e que há alguns anos atrás estava todo mundo junto e com o mesmo foco. Eu acho que isso é uma perda, não tenho condição de analisar a grande conjuntura disso tudo, as perspectivas, mas só percebo que houve uma desconexão aí. Por que eu vou deixar de ir para uma área que tem uma riqueza tal para tratar... O problema é o pessoal só preserva o lugar, você não preserva o espaço. O lugar é aquele que você tem por ele alguma referência. O lugar que você nasceu; a casa que eu vivi quando era criança, eu passo por ela, se eu pudesse comprar e manter, eu mantinha. Como, digamos, se a mata do meu quintal fosse a Mata Atlântica, com certeza tem referência para mim, assim como as frutas, como a paisagem, como o mar. Quem viveu junto do mar tem uma referência de mar, uma representação. Eu trabalhei em cima de representação social, que é um conceito da sociologia e da psicologia, um conceito do Serge Moscovici, que é o que você... Quando você vê alguma coisa, o que você representa a partir do seu contexto anterior com aquela coisa. E essa representação faz com que você tome uma atitude. Essa representação, ela define a sua atitude. Por exemplo, se a vaca é sagrada na Índia, então ele vai agir com a vaca diferente se ela não fosse sagrada, essa é a concepção do que seja representação social. Eu fui procurar saber qual era a representação social da floresta para o homem urbano vivendo na sua margem. Onde a floresta era o lugar, não mato, um espaço ermo na cidade, mas onde a floresta era o lugar. Aí, o que a gente percebe, é que quem toma decisão é o homem urbano, não é o homem que mora na área rural, que toma alguma decisão. Ele vai tomar uma decisão, ele vai estabelecer prioridades a partir, nada mais nada menos, do que do seu afeto. Se o cara está ligado, ele vai lutar em um Congresso, em um Senado, por quê? Pela sua região, pelo seu povo, pela sua família, pelo seu lugar. Se a Mata Atlântica não está dentro da cidade, ela pode não estar mais em lugar nenhum. Como a gente observa? Por exemplo, a Mata Atlântica em São Paulo, a Mata Atlântica no Rio de Janeiro, ela invade a paisagem. O Rio de Janeiro está o Cristo em cima do morro coberto de floresta que foi recomposta por um homem. Cadê a floresta do Piauí, por exemplo? Está na área rural onde não tem quase ninguém, não está na cidade. A gente chega a Teresina e pergunta a um professor que trabalha com Mata Atlântica. A gente não acha na Universidade Federal, não encara ninguém. Isso é uma coisa fundamental, é ter esse link com a cultura, que foi... Isso eu vi hoje, foi colocado também, a importância de se trabalhar em cima da cultura, em cima do afeto. Na pesquisa que eu fiz, a gente via assim, uma professora que a mãe levava ela para tirar lenha na mata, enquanto a mãe pegava lenha ela brincava, via os bichos, passarinho. Ela, hoje, vive ali, é professora de educação ambiental das crianças da região. Para ela, aquela paisagem é fundamental, é super importante, é a paisagem natural dela. Já à margem de Murici tem um assentamento do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. A população está lá há seis anos, somente. Então a mata é um lugar de fazer as necessidades fisiológicas, de jogar os resíduos, de tirar o que tem, porque a mata não significa nada para eles, a não ser ir buscar algum tipo de recurso que possa melhorar a vida deles fora do contato com a mata. Esses componentes foram importantes nessa pesquisa, que eu tenho reparado.
P/2 – E Dorinha, como foi que se deu o seu contato com a Fundação SOS Mata Atlântica e quando?
R – Logo no início do trabalho, logo que eu entrei na SNE, eu entrei logo em contato com a SOS, porque assumi a representante da SNE na Rede ONG’s da Mata Atlântica, a coordenação da rede de ONGs, aí a gente tinha reunião aqui em São Paulo. A SOS, se não me engano ela ainda estava sediando a coordenação geral da Rede de ONGs, então a gente tinha reuniões aqui. Eu conheci logo o Mário Mantovani, o Belô, e depois a Márcia Hirota, e a partir daí a gente tinha reuniões aqui, se via. A SOS, na realidade, representava para a grande maioria das entidades uma referência, era uma grande referência do que consegue, do que dá certo, de como agir, de como ter essa visibilidade, de como atuar. Então esse link com a SOS se deu desde o início, e a gente sempre teve uma afinidade. Inclusive na hora que a gente saiu da coordenação, A SNE saiu através de mim, também a SOS se afastou um pouco da coordenação da Rede, saiu da coordenação geral. Participa como membro, mas saiu da coordenação geral. Quer dizer, há uma série de afinidades, nesse sentido. E depois, com relação ao mapeamento, quando eu, a partir de 1998 comecei a articular os parceiros para a realização da segunda etapa do refazer o mapeamento do nordeste. Então o contato com a SOS foi fundamental. Eles participaram desde as primeiras reuniões, e acompanharam. A gente teve uma preocupação muito grande de manter a mesma metodologia para que a gente um dia tivesse o Atlas do Brasil, o Atlas da Mata Atlântica, esse é o envolvimento de campanhas. A gente convidou a SOS para ir a Murici, para conhecer Murici, para se envolver no projeto em Murici, porque, para a gente, tinha um componente que a SOS pode nos ajudar muito lá, que é a comunicação. Acho que um grande item de sucesso da SOS é conseguir levar, em cima dessa coisa que eu falei da imagem, do que representa para as pessoas a Mata Atlântica no Brasil, porque eu acho que fora da SOS, as pesquisas... Inclusive dizem que a SOS é a referência em termos de informação sobre a Mata Atlântica, mais do que o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], até, e outras instituições governamentais.
P/2 – E antes desse contato, você já tinha ouvido falar alguma coisa da SOS, ou lido alguma coisa?
R – Eu acho que foi através desse contato com a Rede de ONGs, o primeiro contato eu acho que foi pela Rede de ONGs. Você fala assim, antes de eu me envolver com ambientalismo?
P/2 – Isso.
R – Se eu tinha entrado em contato com a SOS? Eu acho que não. Acho que não porque eu vivia muito em um ambiente ainda de arquitetos urbanistas e paisagistas, eu acho que eles não têm, ainda, esse... Pode ser que tenha hoje, mas na época não.
P/2 – Em sua opinião, quais são as perspectivas para a Mata Atlântica, não só na região nordeste, mas em toda região que tem, ainda, esse bioma?
R – Um dia desses, uma amiga me perguntou assim: “Me diga uma coisa, esse seu trabalho serve mesmo para alguma coisa?” (risos). Uma pergunta bem sincera, assim: “adianta mesmo isso ou, se não tivesse, tanto faz?” Eu acho que adianta, no caso, o trabalho que a gente faz na SNE e em todas as instituições. Porque tem uma coisa também que é a mudança de paradigma, é a mudança no processo que é lento, gradual, mas que se constrói e se consolida. Agora, eu, hoje, vendo dentro dessa análise o plano de ação, que foi feito em 1991 e a gente estava revendo, tem uma porção de coisas que, embora não estivessem no governo, na ONG, na universidade, ninguém sabia a quem ia fazer aquilo. Mas, na hora que um seminário como esse – que a SOS organizou em Atibaia e aqui, em São Paulo, em Embu, que lá também foi em São Paulo – aqui, muda. Na hora que você reflete, você incorpora novos conhecimentos que vão definir um pouco a conduta futura. A ideia de ilhas já não existe, hoje a gente pensa em manchas, em corredores, em áreas tampões, corredores ecológicos, ligação de fragmentos; tem coisa que você vai, aos poucos, pensando. Eu não sou uma pessoa pessimista, eu acredito que se a gente sofre porque está acabando, se a gente não fizesse, aí é que estava difícil mesmo. Eu acho que a gente consegue, através do entusiasmo pela Mata Atlântica, da amizade que nós temos também de trabalhar acima das instituições, acima dos engessamentos burocráticos. Eu acho que a questão da informação é pressuposto, é uma coisa que a gente sente a necessidade de ter uma uniformização de dados, de informação. De alguma forma, mesmo com algumas divergências... Mas a gente fala mesmo o mesmo idioma entre governo, não governo, universidade e demais setores. Isso tem a grande força e responsabilidade que a Reserva da Biosfera também atuou nesses anos, nesses dez anos últimos, 11 anos, e essas outras instituições todas, e a Rede de ONGs e tal. Então eu acho que a tendência é que a gente se especialize, a gente se infiltre mais em outras áreas e consiga proteger e melhorar ainda mais. Acho que hoje a gente tem muito mais instrumentos, muito mais condições, tem uma legislação, tem fontes financiadoras. Em alguns momentos, se a gente sente dificuldade em determinados setores para captar, a gente procura outros, a gente vai buscando maneiras de se organizar. Tem as ONGs internacionais que estão apoiando, fazendo um trabalho sério, como a TNC [The Nature Conservancy], que trabalha dando apoio institucional às instituições que realmente têm uma história e têm uma forma de atuação. Eu acho que a minha expectativa é de que a gente tenha exemplares, tenha regiões protegidas e que possa replicar modelos de conservação e uso sustentável, porque essa também é uma tendência. Aí o Funbio tem esse projeto, e eu acho que é uma tendência muito positiva de unir setores, os conservacionistas e os que trabalham com uso sustentável. Tem momentos em que há certa divergência, projetos que associem essas duas visões. Eles são muito importantes, porque tratam da questão do homem na sua relação com a floresta em ações sustentáveis, ações economicamente sustentáveis, melhoria de qualidade de vida associada à questão da conservação e a compreensão da biodiversidade como uma riqueza que pode gerar situações de melhoria para todos. Eu acho que a gente tem um privilégio nesse grupo da gente que é a informação que a gente tem demais. Assim, a gente tem encontros, tem rede, a internet, hoje, que estabelece uma agilidade, uma conexão. A gente constrói projetos em oito estados, cinco estados, a gente está junto construindo projetos, buscando apoio. Eu acho que a gente tem mais ferramentas para avançar mais do que avança, nos últimos 18 anos.
P/1 – Dorinha, pegando um gancho do que você estava falando, da quantidade de informação que vocês têm, que o movimento ambientalista tem. O que você acha que falta dessas informações, essa comunicação com o resto? “O resto”, eu digo, com a população. Porque para você preservar, você tem que sentir um pertencimento, e que às vezes fica uma coisa muito distante.
R – Isso.
P/1 – Como você vê essa questão?
R – Isso passa em cima dessa pesquisa que eu tinha colocado, de compreender um pouco o que está por trás da atitude das pessoas. Se você começa a identificar por que as pessoas agem de tal ou tal forma, e algumas estratégias que se pode fazer em comunicação, como associar peças publicitárias, associar moda, associar o marketing, associar a cultura à paisagem e à biodiversidade, eu acho que é um grande argumento. A comunicação, a mídia, ela tem muito a ajudar nisso. Na realidade é difícil a gente dizer: “É isso ou aquilo”, é tudo em grande quantidade. Na realidade é conseguir alavancar grandes ações, e aí novamente a gente precisa de todo mundo. Tem que ter o professor da universidade lá que só entende de passarinho, o outro que só entende da plantinha ali, e outro que entenda de gente, que entenda de educação, de saúde, que consiga linckar. No caso lá de Murici, por exemplo, que o desafio da gente é a população, moradores vizinhos lá da área, o que a gente observa é que, se você estabelece para o dono da terra que ele pode ganhar mais plantando árvores e fazendo turismo, associado à conservação do que a cana... Quer dizer, tem um francês que eu não sei como se pronuncia o nome dele, que ele fala: “Existem três motivos para a biodiversidade, para a proteção da biodiversidade: o motivo ecológico, o motivo patrimonial e o motivo econômico”. Eles têm que estar de alguma forma associada. Uma vez eu perguntei a um amigo que tem uma mata que vivia cuidando, um biólogo, aí eu disse: “Se tivesse petróleo debaixo?” “Cortava!” (risos). Que triste. Mas tem que ter todos, tem que amar, ter uma relação cultural, tem que amar, ter uma relação de patrimônio. Não adianta a gente ficar dizendo assim: “Ele tem que proteger de todo jeito, ele tem...”. Muitas vezes a gente tem que barganhar. Eu me lembro quando eu fazia paisagismo, a gente ia lá para poder barganhar com o cara, tinha hora que ele rola o tronco e a árvore morre. Tem que ir lá, conversar com ele para ele plantar outra, dizer assim: “Quando essa daqui estiver grandinha, que eu ver que ela pega, aí eu deixo você cortar essa”. E a gente negociava, começava a dar folheto para ele, panfleto, e associar, e dar também uma plantinha que ele gostava ou coisas assim. É negociar, é um processo. O problema é que a população avança como trator em cima dos ecossistemas naturais, e aí, se a gente também não estabelecer alguns procedimentos com joga ali, joga aqui, amarra ali, a gente não vai ter nem alguns exemplares.
P/2 – Dorinha, você conhece algum programa específico da SOS que tenha te marcado ou alguma ação da SOS que tenha te impactado de maneira especial?
R – Algumas ações, nós fizemos algumas campanhas junto à SOS, à Rede de ONGs, com relação ao projeto de leis da Mata Atlântica no Congresso. E quando chega lá todo mundo e impacta... A gente, que está vivendo, para a mídia, para a população de uma forma geral, unir a arte, o lúdico, com a questão dos... Não sei como chama, mas esses grandes movimentos que se estabelecem dentro de uma paisagem urbana que impacta, isso é uma coisa que é marcante. Junto com a rede também a gente fez uma passeata em Campo Grande para a criação do Parque Nacional da Bodoquena, também a atuação da SOS foi muito interessante. O projeto de leis, participei também de alguns eventos. Isso é, um bolo de dez anos da não aprovação do projeto de lei lá no Congresso, foi também muito interessante. Esse programa Clickarvore que a gente participa também dele, é muito criativo, extremamente criativo, e joga no cotidiano a coisa da conservação, acho muito legal. O mapeamento que eu acho fundamental em termos de estruturação, qualquer coisa que você queira fazer você tem que saber onde está, tem que saber como fazer. E todo o trabalho de voluntariado, por exemplo, que é um trabalho bem interessante, as palestras que o Belô faz, que organiza. O Tietê, o monitoramento da qualidade da água, tudo isso é bem interessante. A produção gráfica também, as publicações. Tudo isso é muito importante e está dentro de uma estratégia bem interessante.
P/2 – E fazendo um balanço da questão ambiental, do momento em que você passou a ter contato com ela, para hoje, são dez anos. O que você pode dizer, qual é o saldo?
R – Em termos de concepção, em termos, digamos... Nessa pesquisa que eu fiz, achei interessante que às vezes a população adotava um discurso ecológico fantástico, mas a prática era outra coisa. Muitas vezes assim: “Alguém precisa proteger isso aqui. Não eu, não na minha casa, não com o meu dinheiro”. Então eu acho é como se a gente tivesse crescido muito no conhecimento, na consciência, às vezes, que não muda a atitude. Muitas vezes não é isso que vai mudar, mas isso é uma coisa bastante interessante e fundamental para qualquer passo seguinte. Eu acho que a questão econômica é a grande chave. A taxação de serviços ambientais, a formação de excelência ecológico e outros mecanismos, esse realmente faz a diferença. Por exemplo, no caso das florestas urbanas, a taxação da água, toda a população que se beneficia com aquela mata que está ali, ninguém paga para ela estar ali. A água não é taxada por uma floresta que produz ela. Eu acho que a gente avançou muito em conhecimento, em informação, em articulação, em formação de redes, em legislação ambiental, em alguns procedimentos, mas ainda falta caminhar muito em chaves econômicas mais eficazes. Acho que tem a chave econômica e outras associadas à questão afetiva que a comunicação é a grande porta dela. Isso é o que eu vejo. Em termos de saber o que de fato mudou, por exemplo, no meu estado, em Pernambuco, a situação não mudou muito não. A gente sequer sabe onde elas estão, onde estão os remanescentes. As unidades de conservação não foram implementadas, não são implementadas, não estão implementadas, então a população na área rural continua tirando madeira e lenha. As áreas que ainda têm algum conceito de unidade, de conservação e de reserva estão dentro de área urbana, recebem a pressão toda dela, e não são implementadas, também. Se a gente for ver, em São Paulo mudou muita coisa, embora a pressão tenha sido muito grande, da população. Mas em termos de ações, em termos de planejamento... Mas em Pernambuco, por exemplo, não houve isso. A gente fez uma avaliação do estado da Paraíba, do estado do Rio Grande do Norte, de dez anos. Embora a gente não possa chegar a números, mas a gente pode dizer assim: “Isso aqui foi mapeado assim, hoje está assim”. A gente vê que continua sendo a cana-de-açúcar o elemento de destruição, a mata ainda cede espaço para a cana hoje, na Paraíba, por exemplo, no Rio Grande do Norte. A agricultura, a monocultura da cana, do caju, ainda é quem ocupa essas áreas de remanescentes, a pecuária extensiva no nordeste. Tem muito que ser feito, é muito difícil a gente dizer, porque às vezes têm horas que, dentro da reserva, a gente diz: “O estado está todo organizado, tem comitê, tem isso. No estado de Pernambuco, por exemplo, a gente tem o Comitê, tem um grupo, tem expertise, tarara”. Mas se não existe fiscalização, se não existe mapeamento, se não existe gestão de unidades, no mínimo, então a gente ainda não melhorou. A gente tem que ter a estruturação, mas, chegar a um fim específico. Mesmo que você converse com os gestores, converse com o governo, mas será que há uma lei que obrigue ele a investir tanto? Uma época eu pensei assim, se a gente tivesse uma ISO (Organização Internacional para Padronização) urbana, e dissesse: “O prefeito, ele tem – ou o governador – mais recurso ou menos recurso a partir de alguns indicadores” – no caso urbano seria o prefeito – “Ele teria isso, aquilo, a partir de comprovar alguns indicadores que ele apresente”. Só que não é por aí, é lento.
P/1 – Dorinha, nesses anos que você tem contato com a SOS, uma parceria, tem participado, como você vê a SOS? Uma avaliação dela.
R – Olhe, a minha visão é uma visão até... Primeiro porque você está envolvida com os amigos, e depois... Porque dentro eu nunca vivenciei dentro da instituição, como é lá dentro, como é a coisa. Eu vejo é que ela tem às vezes alternativas super criativas e super eficazes na questão da proteção à Mata Atlântica, e que serve de modelo para muita gente. E trabalha diversas informações, trabalha em comunicação, trabalha em reflorestamento, trabalha... Quer dizer, eu acho que trabalha em muitos níveis, e não teria mais subsídios. É uma visão de quem está fora, de que participa de rede, que se relaciona e que tem uma responsabilidade. Acho que ela é importante, a SOS, até já conversei algumas vezes da importância da SOS apoiar outras instituições menores, é uma expectativa que se tem. Não sei se, como a expectativa que a gente teria da Rede de ONGs era de fortalecer as instituições, porque a gente sabe que não é uma instituição só que vai conseguir fazer as coisas. Tem que estar articulado com uma série de outras, e tentar buscar recurso para que as outras também consigam existir, sobreviver e ter condição de evoluir. Essa é a visão, minha expectativa, é o que eu teria a dizer.
P/1 – Dorinha, o que representa hoje, para você, o movimento ambientalista na sua vida? Qual o peso que ele tem?
R – No movimento ambientalista? Bom, o meu trabalho na minha vida. O meu trabalho na minha vida, ele tem um peso muito importante. Eu às vezes me escondo para trabalhar, como se dissesse assim: “Eu me sinto culpada por trabalhar muito”. Às vezes, na minha relação familiar, o meu trabalho é motivo de ciúme, tanto do marido como dos filhos, como da minha mãe. Eles dizem: “Só faz trabalhar! Ainda está aí? Não chegou?” Às vezes eu falo assim: “Não tem ninguém, está tudo mundo dormindo!” Eu corro e vou trabalhar. Então é um espaço muito grande. Acho que a gente tem, na vida da gente... Acho que a gente precisa de um monte de componente, não pode ser só trabalho. Claro que se eu tivesse só o trabalho, talvez não fosse bom. Então acho que tem a família, principalmente a questão dos filhos, do marido, da mãe, dos irmãos, isso tudo eu tenho muito. Eu acho que o trabalho, para mim, é como um... Osvaldo, meu amigo e companheiro de trabalho, ele diz assim: “E ainda pagam a gente para fazer isso!” (risos). Às vezes a gente sai, vai conhecer lugares super lindos, ver mapa, mapear, conversa, sai, vai almoçar não sei aonde, vai comer não sei aonde, ou vem para cá, por exemplo, encontra um monte de gente amiga, troca um monte de ideias, aprende um monte de coisa. Como eu vou para campo com eles, se eu tivesse que escolher uma aula, um curso para fazer, não podia escolher melhor do que ir para o campo, do que ter um carro, de levar as pessoas. Então é uma dádiva a pessoa ter um trabalho assim e aprender cada vez mais. Mistura com a coisa da paixão mesmo, com o encanto e tal... Tanto que o trabalho, para mim, quando eu não consigo ficar bem ali, eu não fico mais. Eu vou para outro lugar porque tem que... Eu acho que o que a gente tem na vida é o tempo da gente. Se a gente fica contando a hora para o tempo passar, está matando a gente, a vida da gente. Então às vezes eu entro no escritório, eu digo assim: “Meu Deus, como eu faço para esse relógio andar mais devagarzinho? Eu posso ficar aqui até sete, oito [anos], vamos ver o que a gente faz para poder continuar”. Para mim, esse trabalho na questão ambiental preenche muito, me encanta muito e começa a envolver todo mundo. De repente envolve meu irmão, que tem fazenda, o outro que é músico, meus filhos já estão fazendo geografia, e a gente começa a envolver muita gente nessa coisa. Acho que é isso.
P/1 – Dorinha, você quer deixar um recado, alguma coisa para a SOS nesses 18 anos dela?
R – Eu acho que a SOS está de parabéns. Está de parabéns por tudo que tem feito pela questão ambiental, pela Mata Atlântica, pelas pessoas, pelo planeta. Tem a instituição e tem as pessoas que são encantadoras, que trabalham também com entusiasmo, com amor. E é um trabalho que tem um retorno e uma alimentação desse próprio encanto, dessa própria emoção, dessa própria construção. Ele se retroalimenta nisso e nunca pode ser só, tem que envolver sempre muita gente, e está todo mundo muito envolvido nisso tudo. Eu tenho que parabenizar e desejar que haja muitos anos, muitos 18 anos pela frente para que a gente consiga... Se a gente estabelecer metas para a SOS, a gente vai dizer que a gente tenha um Atlas atualizado, que a gente tenha as unidades mapeadas, implementadas, que a gente consiga criar uma rede séria e continuada de instituições e de pessoas que possam gerir bem as unidades, produzir informação e mostrar para a população do Brasil e do mundo a importância da Mata Atlântica. É isso.
P/1 – Dorinha, você gostaria de falar alguma coisa que nós não te perguntamos, que passou?
R – Não, acho que eu falei foi muito.
P/1 – Foi ótimo!
P/2 – Foi ótimo!
R – (risos).
P/1 – Te agradecemos por você ter vindo!
P/2 – Obrigado, Dorinha!
R – Tá bom. Agora vou comer que estou com fome!Recolher