Memória da Televisão Brasileira
Associação dos Pioneiros da Televisão Brasileira / Museu da Pessoa
Entrevista com Tatiana Belinky
Entrevistada por Luís André do Prado e Paulo Tosetti
São Paulo, 27/06/1997
Local: residência da entrevistada
Entrevista MTB_HV002
Transcrito por Marina D’Andre...Continuar leitura
Memória da Televisão Brasileira
Associação dos Pioneiros da Televisão Brasileira / Museu da Pessoa
Entrevista com Tatiana Belinky
Entrevistada por Luís André do Prado e Paulo Tosetti
São Paulo, 27/06/1997
Local: residência da entrevistada
Entrevista MTB_HV002
Transcrito por Marina D’Andrea
Revisado por Ana Calderaro
P - Então, Tatiana, vamos começar com a sua identificação, seu nome completo, data e local de nascimento.
R - Eu me chamo Tatiana Belinky, nasci em São Petersburgo, na Rússia. Na época em que nasci, em 1919, se chamava Petrogrado, depois virou Leningrado, e depois virou São Petersburgo outra vez. Foi lá que eu nasci, em 1919, em plena guerra civil, depois da Revolução.
P - Bom, vamos falar um pouco sobre as suas origens, pegando pelo lado de pai, depois pelo lado de mãe. Quais são as origens da família?
R - Das minhas origens o mais que me lembro é dos meus avós, maternos e paternos. Eu tive um avô paterno que eu conheci e uma avó materna que eu conheci. Os outros dois já haviam morrido quando eu nasci. E meu avô paterno era um patriarca, tenho umas fotografias lindas dele com a barba até aqui. Era um judeu hassídico, de um metro e oitenta de altura, que naquele tempo era muito alto. Agora as pessoas são mais altas, mas ele era alto e tinha uma voz tonitruante, eu ficava muito impressionada com ele. (risos) Ele era muito bonito e muito interessante. E tinha uma avó materna que era uma doçura, que era toda suave, bem diferente do avô, com o sogro dela. Dele não me lembro bem. E me lembro bem de muitos tios e tias, primos e primas. Meu pai era o 15º da mãe dele. Minha mãe era uma 15ª também. Então eu tinha muitos tios, muitas tias e muitos primos, uma parentela enorme. Quando viajamos, quando fomos embora de lá, a última coisa que eu me lembro é de um primo meu, que era um ano mais velho do que eu — eu tinha dez e ele tinha 11 — na estação de trem, chorando e dizendo: “Você não se casa, eu vou te buscar.” Coitado. Foi assassinado pelos nazistas com toda a família. Salvaram-se os que ficaram na Rússia, mas os da Letônia... Foi uma tragédia total.
P - Qual era a atividade dos seus familiares lá, dos seus avós?
R - Meus dois avós — paterno e materno — eram madeireiros, eles tinha empresas de madeira, de pinho de Riga, eram pinheirais. Meu avô paterno tinha uma fábrica, uma olaria e uma madeireira. Era industrial. E o avô materno era só madeireiro. Trabalhava com grandes empresas e com operários, que eram os que derrubavam o pinho de Riga. Mas lá é substituído, não é replantado, então as florestas de pinho de Riga continuam lá. Quando estive lá em 1963, 1964, fui lá e encontrei todos aqueles pinheirais maravilhosos, cheirosos, lindos.
P - Então, a origem da sua família está toda em São Petersburgo, seu pai nasceu, cresceu lá...
R - Meu pai e minha mãe nasceram em Riga e meus avós também eram de lá.
Se não eram de Riga eram de alguma cidade próxima a Riga, na Letônia. Agora, durante... Antes da guerra, da Grande Guerra, meu avô foi morar em Petersburgo, e meu pai e minha mãe estudaram lá. Então eles moraram lá muito tempo, até depois de eu nascer. Eu nasci em 1919, numa época muito difícil, guerra civil, fome e, além disso, eu nasci em casa, em Riga. O médico disse para minha mãe: “Você quer uma filha ou quer São Petersburgo? (risos) Então vai embora para Riga, que o clima é melhor.” E então eles voltaram para Riga e nós crescemos lá, até virmos para o Brasil.
P - A senhora sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R - Estudantes ainda, mocinhos, com 15 anos. Minha mãe era mais velha que meu pai. Ele tinha 15 anos, ela tinha 17. E eles eram de orientação religiosa diferente, os pais. Eram judeus todos, mas uns eram ortodoxos e outros eram mais místicos. E era uma história de Romeu e Julieta, os pais não queriam, não gostaram. Mas eles enfrentaram tudo e acabaram se casando. (risos) E foi muito bom. E tendo três filhos, não nós três. Eu e meus dois irmãos. Eu nasci em São Petersburgo, eles nasceram em Riga.
P - Como eles se chamam?
R - Abraão e Benjamim.
P - E o nome dos seus pais?
R - Aaron é o meu pai. Aaron Belinky. E minha mãe era Rosa, Rosa Belinky.
P - E sua mãe estudou?
R - Estudou na Estônia. Se formou dentista, cirurgiã-dentista, em 1915.
P - Depois de casada?
R - No ano em que se casou. Meu pai não se formou, ele era mais novo que ela dois anos, dois anos e meio, e por causa da Guerra e da Revolução ele não conseguiu terminar os estudos. Ele estava indo... Imagine, naquele tempo, para psicologia. E ele era um psicólogo nato. Sabia das coisas. Mas não calhou, não aconteceu. Nos desviaram para cá. Minha mãe começou a trabalhar como dentista logo. Dois, três meses depois de chegar, ela já estava trabalhando. E veio imigrante, com três criancinhas e os boticões — os instrumentos do ofício. (risos)
P - Lá ele fazia o que, o seu pai?
R - Era representante comercial. Como não conseguiu se formar ficou no comércio, que ele continuou aqui. Era representante de países estrangeiros, de celulose para fábrica de papel, produtos químicos, materiais de refrigeração, toda a sorte de coisas.
P - Que memórias a senhora tem da Rússia? Como era a sua casa, o seu cotidiano?
R - Olha, na Rússia, meus pais, meus avós, tanto materno como paterno, eram pessoas ricas. Eram realmente gente de posses, industriais, então meus pais foram criados como uns principezinhos. Mas com a guerra e com a revolução, essa coisa toda acabou. Da casa que eu me lembro, era um apartamento. Aliás, foi o único apartamento em que eu morei na minha vida, porque aqui só morei em casa. Era um apartamento de dois dormitórios, três dormitórios, uma sala, e cozinha. Um apartamento classe média média. Não era alta, nem era muito baixa. Meus pais eram aqueles intelectuais dos livros, da música, teatro, e nós fomos criados com essas coisas. Minha mãe cantava uma barbaridade. Tinha uma voz linda, cantava, era toda uma educação, a cantoria da minha mãe. Ela cantava em russo, em alemão, em iídiche... Cantava canções, árias de ópera, canções revolucionárias, canções de dor-de-cotovelo, cantigas de ninar... Em várias línguas, com letras maravilhosas, de grandes poetas, então aquilo foi... Nem eu me dei conta. Só muito mais tarde entendi o quanto isso contribuiu para mim. Meu pai contava histórias, lia, dizia poemas... Nos levavam, nos carregavam para balé, para teatro, para concerto, então tivemos uma infância muito rica. E tínhamos uma governanta, uma Fräulein, que falava alemão conosco. Então me criei com russo e alemão. Eu falava russo em casa, alemão com a professora na escola — a primeira escola que frequentei era uma escola alemã —, letão na rua, português quando cheguei aqui, e o inglês e francês vieram com o Mackenzie.
P - Na Letônia se fala normalmente, se falava…?
R - A classe burguesa, digamos assim, a classe educada. O povão fala a língua da terra, não vão falar russo nem alemão. Aliás, eles tiveram que falar, foram obrigados a falar russo quando a Rússia tomou conta. Falavam a língua deles, o letão. Agora todas as pessoas, digamos, com um certo nível educacional, tinham que falar mais uma língua: inglês, francês ou alemão — que eram as línguas cultas. Então meu pai falava, inglês, francês, alemão e russo. (risos) Minha mãe não era tão poliglota como ele, mas ele era.
P - E como era o posicionamento político da sua família, na situação da revolução, que estava em plena...
R - (risos) Minha mãe era comuna e meu pai era liberal, laissez faire. (risos) Eles discutiam muito. A minha infância toda me lembro da nossa mesa da sala na hora de jantar e de almoço, falava-se de política. Mas o que se falava de política…. Muito. E era muito bom, porque a gente aprende a ver os dois lados da coisa. Discutiam muito. Não brigavam, mas discutiam muito. Discutiam política,
literatura, música… Mas principalmente política.
P - Por que a decisão de mudar da Rússia e por que o Brasil, especificamente?
R - Na Letônia... Porque as coisas estavam começando a ficar ruins lá. Tanto a situação econômica, como a situação política. Depois piorou de vez, tanto que toda a nossa família foi exterminada lá. Mas, eles estavam sentindo que as coisas não estavam boas e queriam tentar a vida em outro lugar. Claro que a primeira tentativa foi os Estados Unidos, tinha uma fila, cota de imigração, uma fila de três anos... Nem pensar. Então eles pensaram em outra América, a outra América, que era a Argentina. Essa tinha só um ano, um ano e meio de fila. Nós tínhamos um primo de meu pai, aventureiro, que fugiu, fugiu com uma namorada, e veio para o Brasil, que era a coisa mais exótica que você pode imaginar, e ele morava no Rio de Janeiro. Ele escreveu para o meu pai dizendo “venha para o Brasil, aqui está tudo bom, aqui é fácil, aqui não tem problema, não tem guerra, não tem fila...” Pelo contrário, naquela época o governo brasileiro convidava imigrantes, abria os portos e os braços, principalmente para uma imigração que ia para o campo. Precisavam de braços para lavoura etc. Mas como a porta estava aberta, veio muita gente que não era — nem muita, mas veio —, uma leva de imigrantes assim como nós, burgueses, de uma classe mais intelectualizada. Então o Brasil foi fácil. Viemos para o Brasil e direto para São Paulo. Engraçado que esse primo morava no Rio, mas o meu pai se informou, se informou, e achou que São Paulo era mais adequado para o tipo de gente que ele era.
P - Quer dizer, foi um pouco de aventura também, porque ele não tinha nada definido, um trabalho...
R - Nada. Era uma aventura total. Nada. Ele veio para o Brasil três meses antes de nós. “Fiquem aí, que eu vou dar uma cheirada lá. Uma apalpadela. Se achar que dá, mando vir todo o mundo”. E foi. Ele veio três meses antes, e disse: “Agora vocês podem vir”.
P - Em que ano?
R - Veio antes de meu irmãozinho fazer um ano. Ele fez um ano em julho, então ele deve ter vindo em junho. Isso foi em 1929, fim de 1929. Nós viemos em setembro de 1929, ele veio um pouco antes. E ele já estava falando português. Ele andava com um dicionário nas mãos mas falava português bonitinho quando nós chegamos.
P - E a viagem? Que memória ficou? Foi um momento muito emocionante?
R - Imagina, para uma criança de dez anos, com minha mãe e dois irmãozinhos pequenos, de terceira classe, terceiríssima classe. (risos) Porque éramos mesmo duros e pronto. Não tinha dinheiro. Minha mãe veio com alguns cobertores, algumas roupas e os boticões dela, os instrumentos. E viemos de navio, 22 dias. O navio se chamava General Mitre, alemão, e a viagem começou em Riga, de trem até Berlim, de Berlim para Hamburgo, e de Hamburgo embarcamos no navio — nesse General Mitre — e viemos para o Brasil. E fomos lá instalados em uma cabine de terceira classe, que era pouco maior do que a nossa mala. (risos). Muito ruim, mesmo. Da primeira vez que subimos no convés — que não dava para ficar lá — estava minha mãe, eu com dez anos, meu irmão com sete anos, outro com um aninho — que estava começando a andar — e fomos vistos pelo capitão do navio. Ele achou que não éramos imigrantes da lavoura, não tínhamos cara. Então ele desceu e foi falar com minha mãe, em alemão. E eles conversaram em alemão e a mamãe contou, uma coisa ou outra, e ele se encantou com o meu irmãozinho Benjamin, que tinha um ano, loirinho. Chamou ele de pequeno Colombo, que vai para a América, e nos arranjou uma cabine oficial, com três beliches. Uma cabine mesmo. Então nós viajamos bem, viajamos bem acomodados, por causa do capitão, que talvez tenha se engraçado um pouco com minha mãe, que era bonitinha. (risos) Uma loira bonita. Não sei, mas eu não reparava em coisas assim.
P - E como é que foi a chegada? Foi em Santos?
R - Primeiro foi no Rio de Janeiro. Papai nos esperou no cais no porto do Rio de Janeiro. A chegada ao Rio de Janeiro foi um deslumbramento, uma coisa nunca vista. Como era bonito, inesperado, diferente de tudo! Nossa, aquela baía, aquela curva da praia de Copacabana, aquele colar de pérolas — chamava colar de pérolas a iluminação, que eram postes com três globos que pareciam um colar de pérolas de três voltas. Como era bonito! Nós passamos a noite fora da Barra, antes de poder atracar. Então foi uma coisa deslumbrante. Depois, no dia seguinte, encostou no Rio de Janeiro, e lá estava nosso pai no meio de uma porção de gente, todos de palhetas — chapéus de palha brancos —, todos vestidos de branco... Era uma coisa também diferente. Usava-se ternos brancos. Ternos, roupas inteiras. Imagine que se andava de camiseta. (risos) Então estava cheio de gente, homens vestidos de branco com chapéus de palha brancos chatos, palhetas. Agora a única palheta que sobra é a daquele sambista, que batuca nela? Moreira da Silva.
P - Na Letônia só se usava terno escuro, não se usava roupa clara?
R - Roupa clara só no verão. E no verão fazia bastante calor lá. A gente ia para a praia. Riga não é uma cidade muito grande, mas é uma cidade civilizada, tinha apelido de “pequena Paris”, tinha ópera, tinha prédios muito bonitos. Era lindinha a cidade, rio, ponte sobre o rio. Nós morávamos em um apartamento que dava para o rio e a gente olhava três pontes lá, uma da estrada de ferro, uma de pontões — que foi construída durante a guerra, que se abria para passarem os navios de mastro alto, de chaminé alta. A ponte se abria, nós ficávamos lá e passava na frente. Me lembro de coisas interessantes lá. O degelo, o rio... Riga é um porto que dá para o mar Báltico. É por onde saem os navios com o pinho de Riga. Exportação... Era um porto, um estuário grande, e era fundo lá. Agora, no inverno gelava. Tinha gelo de um metro de fundo, então não se usava as pontes. Andava-se por cima do gelo. O paquete — o naviozinho — também não podia durante o inverno. Então eram os carros, os trenós, as pessoas de patins, todo o mundo por cima do gelo. Eu achava muito natural. Hoje eu acho que era interessante. (risos) No último ano, quando já estávamos para viajar para cá, no degelo, ele foi tão violento…. Porque rachava aquele gelo fundo, que estourava como uma explosão, béh-béh... Rachava, e saíam aqueles blocos de gelo para o mar. Vimos uma vaca, coitada, em cima de um bloco de gelo, essa ia para o mar. Coitada, não contava com essa viagem. Mas o degelo foi tão violento que arrancou a ponte provisória. Aquela da guerra foi embora com o degelo, com grande estrondo. Foi muito impressionante. Essa foi a última visão que eu tive do Rio Daugava.
P- Bom, vamos falar da chegada ao Brasil. Como é que foi se situar, estudar logo de imediato?
R - Papai subiu para descer conosco, porque ficamos no Rio de Janeiro duas ou três noites. Tinha que pôr uns documentos em ordem e o navio ficava lá aqueles três dias. Então descemos e ficamos conhecendo aquele tal primo aventureiro, que tinha até um carrinho, uma baratinha, naquele tempo. Nos levou para passear pelas praias, pelos lugares, e tivemos uma aventura lá. (risos) Eu conto também no meu livro isso. Eles tiveram que sair, papai e mamãe, para fazer não sei o quê à noite, e nos deixaram lá. Me deixaram tomando conta dos irmãozinhos, um de sete anos e um de um ano, no quarto de pensão onde nós estávamos. Então tinha um bercinho e uma cama para os dois, e a cama grande. Eu estava na cama grande. Então meu irmãozinho acordou e estava todo pipizado, nadando no bercinho. Eu tirei o irmãozinho de lá, troquei a fralda dele e pus na cama com meu outro irmão. Pouco depois, ele repetiu a façanha. (risos) Eu me rio quando me lembro. Então eu peguei os dois e fomos para a cama grande esperar pelo papai e pela mamãe. E aconteceu uma coisa horrível, apareceu um monstro lá. Apareceu uma barata, uma barata desse tamanho! (risos)
A barata que eu conhecia era do tamanho da minha unha. Era baratinha. Barata tropical é muito diferente. (risos) Parecia um monstro. Fiquei tão assustada, meus irmãos começaram a chorar, eu comecei a chorar também, e meus pais chegaram e encontraram nós três ali, chorando, apavorados. (risos) E esta foi a primeira noite no Rio de Janeiro. E depois disso voltamos para o navio, fomos até Santos, e em Santos tomamos um trem, que era também muito emocionante, porque era um trem nunca visto. Eu conhecia o trem lá em Riga, mas no plano. Esse aqui subia pelas paredes, furava túneis escuros, era uma aventura impressionante para chegar em São Paulo. E em São Paulo vi uma cidade muito estranha, toda baixinha — porque naquele tempo ainda não havia prédios altos em São Paulo. O prédio Martinelli era o primeiro e único prédio alto, de 20 andares, e estava em final de construção, não estava nem pronto ainda. As outras casas eram, no máximo sobrados, pequenininhos. E eu conhecia... Nós morávamos em Riga em apartamentos, em prédios de três, quatro andares, alguns até com elevador. O nosso tinha elevador. Nem todos tinham. Era o elevador de gaiola. Mas aqui era tudo baixinho, era uma cidade baixa. A gente via o céu o tempo todo, era muito bonito. Então meu pai, para grande alegria nossa, tomou um carro, táxi. Eu nunca tinha andado de carro, nunca. O único veículo motorizado que eu cheguei a entrar foi um ônibus, quando nasceu meu irmão do meio, eu tinha dois anos e meio. Era uma coisa tão impressionante para mim aquele ônibus, era uma coisa tão grande, uma casa sobre rodas. Eu entrei com meu pai, fomos lá para a maternidade ver meu irmãozinho, coisa que eu não esqueci. Eu tinha dois anos e meio, me lembro como se fosse ontem, de tanto que me impressionou.
P - Mas, não tinha muitos carros em Riga?
R - Não tinha. Tinha carruagens, cavalos, trenó, tílburi... Tinha alguns carros, mas era uma coisa do arco da velha, uma coisa nunca vista. Imagina se nós tínhamos carro! Nada de remotamente semelhante. O primeiro carro em que entrei foi aqui em São Paulo. E nós andamos, e papai pediu para parar na Praça do Patriarca — na Praça Ramos de Azevedo —, onde tinha o prédio da Light, que era uma coisa muito linda, porque ele era todo iluminado por holofotes de todos os lados, todo fosforescente. Muito bonito. E a praça era muito bonita, jardim, tudo. E o prédio Martinelli, era uma coisa monstruosa que eu nunca tinha visto nada parecido também. Tinha no alto do prédio um holofote de marinha, eu acho, que varria o céu. Aquele facho de luz era tão bonito. (risos). Então viemos cheios de impressões, e viemos direto para a Rua Jaguaribe. Tanto que meu livro se chama Transplante de Menina: da Rua dos Navios para a rua Jaguaribe. Na Rua Jaguaribe nós
fomos primeiro para uma pensão onde meu pai estava morando, em um sobradinho. E meu pai estava morando lá antes de procurar uma casa para a família toda. Então ficamos algum tempo em um quarto daquela pensão. Era um quarto mais ou menos grande, devia ter uns quatro metros. Ficamos todos amontoados lá, papai, mamãe, eu e meus dois irmãos. Cheia de gente naquela pensão, um banheiro só, fila de manhã para o banheiro, era muito triste. (risos) E eram imigrantes, os próprios donos da pensão eram letonianos. Era gente de Riga, camponeses. Da guerra do banheiro também nunca mais me esqueci. Havia lá um imigrante russo que era um grã-fino, um aristocrata desses que espirraram fora da Rússia, e minha mãe, comunista daquele jeito, não gostava dele. (risos) Ele não deixava a gente entrar no banheiro, fazia esperar, brigava. Um dia ela voou para cima dele e disse para ele — e era desse tamanhinho: “Você não pense que você está na Rússia! Você está no Brasil e aqui é diferente! Faça o favor de respeitar essas crianças, abra essa porta, deixa elas entrarem.” E o homem se encolheu. Ela era muito brava. (risos). Então ela resolveu o problema do banheiro. Mas logo, logo, papai encontro esse sobradinho na rua Jaguaribe, mais para perto do Largo do Arouche e lá mamãe se instalou com o gabinete dentário dela, falando latim com os clientes que eram da Santa Casa, médicos... Não, os médicos falavam alemão, naquele tempo médicos tinham que falar alemão. A literatura médica era quase toda em alemão. E enfermeiras, freiras, toda essa gente da igreja católica sabia latim. E minha mãe na universidade europeia tinha que saber latim também. Então, eles se entendiam em latim. Por mais estranho que pareça. (risos) Me lembro dela falando em ácido bórico. Ela trabalhava o dia inteiro das sete às sete, cozinhava para a família toda, tinha dois inquilinos para ajudar. Era um dínamo essa minha mãe, e meu pai procurando trabalho. Até que encontrou, uma coisa ou outra.
P - Quer dizer que no início foi ela que segurou as pontas?
R - Ela segurou a barra o tempo todo porque dinheiro eles não tinham nada. Mas fomos tão bem recebidos aqui. Havia um departamento aqui, acho que se chamava Serviço Sanitário, que acolheu mamãe com o diploma estrangeiro dela. Disseram que “não tem problema, não pode ser oficialmente dentista”, mas deram uma licença de prático licenciado. Ela tinha uma prática danada, de prática ela não tinha nada, era uma cirurgiã dentista... Mas com aquele papelzinho podia trabalhar logo. Então começou logo a trabalhar e nós logo fomos para a escola... Primeiro nos puseram em uma escola alemã, e já tinha cheiro de nazismo lá. Ficamos lá meu irmão e eu um trimestre. Era tão prussiano aquilo lá, que eu estava numa classe mais adiantada — acho que na terceira primária —, e meu irmão na primeira. Eram classes mistas e os professores lá eram bravos, exigentes, e por qualquer “dá cá aquela palha” tinha castigo, e o castigo para as meninas era escrever 500 vezes uma besteira qualquer, mas menino apanhava na frente da classe. Pá-pá, no rosto. Eu fiquei horrorizada. No recreio todo o mundo batia em todo o mundo. (risos) A minha lembrança é que as meninas grandes batiam nas pequenas, e os meninos grandes batiam nos pequenos, e os meninos batiam nas meninas. (risos) Todo o mundo batia em todo o mundo. (risos) Talvez não fosse nem tanto assim, mas nós dois, coitadinhos, tão estrangeiros, tão gringos, tão sem língua, tão sem nada. (risos) E, um dia, no recreio, defendi meu irmãozinho. Briguei muito por causa dele. Mas um dia ele chegou chorando no recreio, e disse: “A professora me bateu porque eu escrevi com lápis, não com tinta, um menino me dedou, e ela me bateu”. Eu disse: “Foi a primeira e a última vez que ela te bateu, porque amanhã nós não voltamos mais aqui”. E chegamos em casa, contamos para mamãe e para papai, e pulamos fora daquela escola na mesma hora, e no semestre seguinte estávamos no Mackenzie, na escola americana. Era uma escola cara, mamãe não tinha dinheiro para me comprar sapato, eu andava de sapato furado na sola, mesmo. Punha papelão. Mas para boa comida e boa escola tinha dinheiro. Todo o dinheiro ia para isso. Até começarem a respirar. Tenho também uma experiência dolorosa no Mackenzie, mas me dei muito bem. (risos) Eram também classes mistas, mas era uma democracia total, uma maravilha, e eu gostei muito. Eu ainda quase não sabia nada de português, muito pouco, mas eu lia muito bem. Comecei a ler com quatro anos. Em russo, é verdade, mas logo mais em alemão, que era outra língua com outra letra, outra escrita, e olha.... A escrita latina eu conhecia por causa do letoniano, e eu tinha desenvoltura para ler. Eu lia muitos livros, lia bem, lia fácil. Agora, meu sotaque, minha pronúncia daquele tempo, era, imagina... Não tinha nem ideia de como é que era. Eu, por exemplo, diziam que eu era “Tatjana”. Porque o “j” em alemão é “iota”. Eu ia escrever meu nome com “j”, “Tatjana”. E eu lia do jeito que eu entendia. E uma vez me mandaram ler alguma coisa. Eu li e havia uma palavra fatídica lá que eu não sabia o que queria dizer, eu li ,“tehado”. Era telhado. Porque eu pronunciava o “h”, como em alemão, e esse não existia em russo. (risos) Então foi uma gozação, riram muito de mim. Imagina essa burra dessa gringa, não sabe nem falar, nem ler, e me gozaram muito. Fiquei com uma raiva... Peguei uma régua, e disse: “Tá bom, vocês vão ver com quantos paus se faz uma canoa.” Pensei em russo, não em português. (risos) No trimestre seguinte fui a primeira aluna em português. (risos) Meu pai sabia muito português, aprendeu muito. Eu comecei a ler muito e a minha primeira descoberta em português... Adivinha o que foi? Monteiro Lobato, que já existia. E eu desisti de ser bruxa, porque quando era pequena eu queria ser bruxa. Era muito bom ser bruxa, porque bruxa tinha poder e eu não tinha. Ela podia fazer o que eu não podia. Claro que queria ser bruxa bonita, que nem a da Branca de Neve. (risos) Mas, quando conheci a Emília, desisti de ser bruxa. Quero mais é ser a Emília da vida. Acho que sou até hoje um pouco. (risos)
P - Mas a senhora conheceu Monteiro Lobato lendo na escola?
R - Na escola. Não... Primeira vez que tive contato com Monteiro Lobato foi na Rua Jaguaribe, com um panfleto que era do Laboratório Fontoura, do Cândido Fontoura, que tinha a história do Jeca Tatu, o Jeca Tatuzinho. Era almanaque do Biotônico Fontoura. Foi a minha primeira literatura do Brasil. A primeira coisa que meus pais fizeram quando chegaram aqui, foi se inscreverem em duas bibliotecas circulantes. Uma em russo, outra em alemão, para não perder contato com o livro. Então eu continuei lendo meus russos, meus alemães, meus poetas e na escola, no Mackenzie, há uma biblioteca enorme. Um prédio inteiro. E quando eu tinha uns 11, 12 anos fui para lá procurar livros. Vi uma estantezinha lá com uns livrinhos cor-de-rosa, dei uma olhada assim, disse: “Acho que não quero isso.” Fui procurar outro, achei não sei o quê, fui para a bibliotecária. “Não, isso aqui não é para você, estante de menina é aqui.” “Estante de menina? Isso existe?” (risos) “É. Criança e menina é isso aqui”. A biblioteca era tão cor-de-rosa que até os livros eram cor-de-rosa. Eu fiquei muito frustrada, levei um livro qualquer, li, não gostei, e me queixei com meu pai. Disse: “Olha, lá na escola me disseram que tem livros de menino e de menina, biblioteca cor-de-rosa. Não me deixaram pegar livro onde eu queria, o que é que eu faço?” Ele me disse: “Eu faço.” Escreveu um bilhete para a bibliotecária curto e claro, dizendo: “A minha filha Tatiana tem minha autorização para tirar da biblioteca o livro que ela quiser.” A autoridade paterna não tinha nenhum juiz de menores que atrapalhasse. (risos) E, então, para grande escândalo da bibliotecária, eu podia tirar os livros que eu queria da biblioteca. (risos) Depois começou minha vida no Mackenzie, que foi muito boa. Professores bons, gostei muito. Meu irmãozinho menor também foi para lá, entrou no jardim da infância e saiu engenheiro, no Mackenzie. Então foi uma época boa.
P - E a senhora se formou até que grau?
R - Esse curso comercial. Um bom curso comercial. Tinha o propedêutico de três anos, depois era um curso técnico. Muitas línguas, inglês, francês, até legislação fiscal tinha, economia política... Era um bom curso. Me formei lá com uma média geral de 8,6 e não era mais porque eu não gostava de matemática. (risos) Tirava notas baixíssimas, como 7,5 e 8, que isso era para mim nota muito baixa. (risos) Eu gostava de história, geografia, de línguas gostava muito, gostava de escrever...
P - E a senhora já começou a trabalhar naquela época?
R - Com 15 anos comecei a trabalhar com meu pai para escrever a correspondência dele em português e inglês. Ele me deu uma máquina de escrever quando fiz 15 anos. Quando fiz 13, o melhor presente que ganhei foi uma bicicleta, na Rua Jaguaribe. Lá, eu era a única menina que tinha uma bicicleta. Isso me deu muito prestígio, muito status. Porque a Rua Jaguaribe fervia de moleques terríveis. Nos perseguiam, nos gozavam… Eu e meu irmão sofremos com eles. (risos) Mas, com a bicicleta, eu fiquei muito importante. (risos) Começaram a me tratar bem.
P - Então, a situação de seu pai logo também melhorou.
R - Começou a melhorar. Fomos morar... Saímos daquele sobradinho ali para uma outra casa na Rua Jaguaribe, na esquina da Rua Aureliano Coutinho, e já era uma casa isolada, de esquina. Era uma casa de dois andares, com quintal, com um jardinzinho na frente. Mamãe instalou o consultório dela lá e então já éramos burguesia. (risos) Pois é.
P - Já estamos na década de 1930?
R - É. Ficamos lá até eu fazer 13, 14 anos. Ficamos na Rua Jaguaribe por quatro ou cinco anos e depois fomos para a Rua Itacolomi, na qual moramos em três casas. Lá já era Higienópolis, pertinho de lá, mas já era outro nível. E não havia moleques horríveis que nos perseguiam. (risos) Eu me defendia na Rua Jaguaribe, porque eu era habilidosa. Tive aquela Fräulein, aquela governanta, que ensinou a fazer coisas, então eu sabia fazer pipa, papagaio, e os meus eram os melhores da Rua Jaguaribe. E sabia empinar também, para grande raiva dos moleques. Que atrevimento! Gringa e, ainda por cima, menina. (risos) Jogava bolinha de gude, jogava o pião, pião de fieira com a esquerda — sou canhota. (risos) Era bastante moleca.
P - E na fase de adolescente, como é que a senhora se lembra, na fase assim de namoro...
R - Olha, na Rua Jaguaribe tive grandes impressões. Primeiro aquelas guerras com os moleques, que eram um horror, realmente era muito ruim. E eu não sabia o que fazer para me entender com eles. Uma vez um daqueles moleques... Saí de carrinho com meu irmãozinho, tinha um ano, e apareceu um moleque grande. Eu teria... Não tinha nem onze anos ainda. E jogou um bicho, não sei o quê, uma barata, uma abelha, dentro do carrinho, na cara da criança. O menino começou a chorar, eu me assustei. Larguei para pegar aquele bicho, o moleque pegou, empurrou o carrinho e o carrinho atravessou a rua. Se viesse um carro, pegava. Mas, graças a Deus tinha poucos carros naquele tempo. E o carrinho prrrrrrr atravessou a rua. Lá na Rua Jaguaribe. Era uma travessa, uma daquelas travessas. Eu fiquei com tanto ódio, com tanta raiva... Eu era muito de boa paz, viu? Mas eu pulei na cara daquele moleque, fui com unhas e dentes, grrrrr que fiz umas avenidas na cara dele. Ele ficou tão assustado que foi embora, e eu corri atrás do carrinho. Mas não me dei por satisfeita: “Ele me paga ainda.” Deixei passar o tempo, fiz um plano. Eu ficava às vezes naquele sobradinho, sentava no degrau em baixo e ficava olhando a rua. Então, de vez em quando, aquele moleque passava por lá. Graças a Deus nem sei o nome dele. Esqueci. Quando eu o vi ali por perto, pensei: “Ele é burro e vai fazer o que eu quero.” Então comecei a brincar com as mãos, a fazer assim… Eu estava muito distraída, não estava nem aí. (risos) E, como eu pensei, ele parou e ficou olhando. E eu continuei. Então ele disse: “Como é que você faz isso?” Eu disse: “Eu mostro como é que eu faço.” (risos) Quando ele me pediu pela terceira vez eu disse: “Tá bom eu mostro. Vem cá. Você faz assim, assim, ó, como se fosse rezar, viu? Desse jeito.”
Você sabe o que que é isso? Isso é uma ruindade que não tem tamanho. Pega assim, não precisa nem de muita força, pode quebrar os dedos. Um primo meu, capeta, foi que me ensinou isso. Ele fez, eu peguei e apertei... Mas o cara ajoelhou de dor. (risos) “Ehhh, larga!” E eu disse: “Eu não largo!” “Ehhhh!” (risos) Até que ele disse: “Por favor, por favor!” E eu disse: ”Você jura que não faz mais? Jura que não se mete mais comigo na vida?” Então ele jurou e foi embora. (risos) Uma ruindade assim, premeditada, foi a única vez que eu fiz. Muitas vezes eu usei uma língua afiada para alguma coisa, para dizer alguma coisa. Mas uma violência física dessas, nunca mais. (risos)
P - A senhora no seu trabalho com seu pai... Qual foi o seu primeiro trabalho?
R - Era alguma carta comercial que eu tinha muito bem aprendido na escola, no Mackenzie. Eu sabia fazer isso e escrevia para os Estados Unidos, escrevia para fornecedores daqui. E então fui secretária dele muito tempo até. Até resolver trabalhar fora depois que me formei.
P - Foi trabalhar onde?
R - Tinha a impressão que já contei. Primeiro, fui trabalhar em uma companhia de turismo. Chamava-se Brasiltur, na Praça do Patriarca. Eu ficava lá no balcão, gastava meu alemão, meu inglês e tal. Queriam que eu fosse guia, que não sei o quê, e até me propuseram. “Você vai ser guia, vão te dar gorjeta.” E eu disse: “Eu não quero gorjeta, quero ordenado.” Estou te dizendo que eu era feminista. Fiquei lá não sei quantos meses, depois resolvi me oferecer. Tinha uma lista de pretendentes no Mackenzie mesmo. Então fui chamada logo por uma multinacional, a Swift, um frigorífico. Me convidaram, fui lá, fiz uma provinha, me deram um ordenado descomunal de grande. Os meus colegas do Mackenzie, que se formaram engenheiros, eles tinham emprego garantido na Light e em lugares assim. Mas, no primeiro emprego deles, eles ganhavam 400 mil réis, coisa assim, que era um bom ordenado. De cara me perguntaram quanto eu queria e eu chutei 800. Pensei que iam me chutar escada abaixo mas, não, aceitaram. Então eu era rica. De repente fiquei rica. (risos) Porque do meu pai eu não aceitava nem mesada. Ele tinha que me pedir para me dar dinheiro. Dizia: “Você não precisa de nada?” “Não preciso, eu tenho tudo, vocês me dão tudo”. Era orgulhosa. Quando pedi 800 e me deram 800, era um senhor ordenado. Eu recebia ordenado, ia direto para a Rua São Bento... (risos) Para uma casa de calçados caríssima, um dos calçados mais caros da cidade, para me vingar daquela sandália furada que eu usava, e comprava o sapato mais caro que encontrava. (risos) Durante vários meses fiz isso. E o resto, torrava. Comprava livros, presentes. Não precisava de dinheiro. Mas enjoei. Poucos meses depois me enjoei dos presuntos e dos quartos traseiros, do óleo, da patroa, não sei o quê mais, e pensei: ”Não é isso o que quero na vida.” E lá era correspondência em inglês e português. Então fui procurar outro emprego e encontrei um, por menos dinheiro, mas também não era pouco. Eram 700 mil réis, no escritório de um advogado, um senhor brasileiro advogado que precisava de uma secretária. (risos) Ele era engraçado, se orgulhava muito de mim. Ele chamava os amigos dele e dizia: ”Dona Tatiana, fala alemão com eles, fala russo com eles.” (risos) Ficava exibindo a secretária dele. Eu tinha 20, 21 anos e não aparentava, não me deixavam entrar nos lugares proibidos para 18. (suspiros) É...
P - Quando a senhora conheceu seu marido?
R - Em baixo da mesa, por estranho que pareça. (risos) Foi o seguinte: uma colega minha, do Mackenzie, tinha uma irmã mais velha que se casava. E eram vizinhos, moravam na Rua Jaguaribe. Fui convidada da noiva. E o Júlio, meu marido, era estudante de medicina, sextanista, e era “escravo” — como eles se chamavam — do Chefe da Enfermaria da Santa Casa, onde ele trabalhava. E como ele era bom aluno, amigo do chefe, foi convidado do noivo. Foi um casamento judaico muito bonito, na sinagoga. Eu estava em cima, no balcão, olhei para baixo, estava a minha colega lá, irmã do Paulo Autran, e disse: ”Olha, um rapaz bonito lá, com olhos bonitos, lá em baixo. Olha.” Era o Júlio. Eu não sabia, não conhecia, e ficou por isso mesmo. Depois fomos para a festa, para o banquete, e tinha uma mesa de banquete como daqui até lá, com toalha até o chão. Era gente muito rica, muito cheio de comidas,bebidas e coisas loucas, e um colega, meu amigo da Mac Med — tinha muitos amigos da Medicina por causa da competição da Mac Med —, e ele disse: ”Olha, Tatiana, eu tenho um colega, um amigo, que você vai gostar dele, quero te apresentar, o Júlio Gouveia.” E eu disse: “Tá bom, apresenta.” Então fomos procurar o Júlio Gouveia. Uma casa enorme, o Júlio Gouveia não estava em lugar nenhum, e disse: ”Ah, ele foi embora.” “Imagina se ele foi embora de uma boca livre dessas. Nunca. Vamos procurar. Acho que eu sei onde ele está.” E começou a levantar a toalha de mesa. Chegou em um ponto, levantou, e lá estava o Júlio, sentadinho em baixo da mesa, com uma travessa de ovos recheados desse tamanho. (risos) Ele gostava muito, com uma garrafa de champanhe, a taça, posto em sossego, na maior. (risos) Ele disse: “Tá vendo, sabia onde encontrá-lo”. E disse: “Júlio, vem cá.” Júlio pôs a cara para fora, aquela cara linda que você viu naquela fotografia, aquela cara zoiuda, com covinha no queixo. E já bem alto, bem lânguido, botou a cara para fora e o Alexandre disse: “Olha, Tatiana, este é o Júlio, Júlio esta é a Tatiana.” E ele olhou bem para mim e falou: “Tatiana, quer casar comigo?”(risos) Famosas últimas palavras. Dez meses depois estávamos casados, isso porque nos primeiros três meses não o vi mais. Encontrei com ele na rua, saindo do escritório onde eu trabalhava, eu com uma amiga, uma colega. Então apareceu o Júlio e me reconheceu da festa. Pensei que nem iria me reconhecer mais de tão alegre que ele estava. Mas reconheceu, veio conversar e disse: “Ô, meninas, vamos para o cinema, eu convido.” Então, de molecagem, eu disse: ”Eu não vou em três para o cinema.” (risos) “Vamos jogar cara ou coroa para ver quem vai com o Júlio ao cinema.” Jogamos e eu ganhei. (risos) E foi assim que conheci o Júlio Gouveia. Uma semana depois ele estava escrevendo poesias para mim, levando flores. A fita que fomos assistir era de Shirley Temple, da qual eu vi talvez metade, talvez um pouco menos, e foi desse jeito. Ele ia se formar em Medicina no fim daquele ano. Conheci o Júlio em julho, e casamos em maio do ano seguinte. Reencontrei o Júlio em setembro na Praça do Patriarca. Nós íamos namorar na Praça Buenos Aires e discutir política, porque ele era de direita e eu era de esquerda. (risos) Discutíamos muito. Até um guarda do parque chegou à noite, devia ser meia-noite, e perguntou se éramos namorados. “Eu nunca vi namorado que só fala. Só discute.” (risos) Nós tínhamos muito assunto, ele gostava de teatro, de música, tinha livros, biblioteca... Acabamos juntando duas bibliotecas, indo muito ao teatro, acabamos fazendo teatro, televisão... Ele era psiquiatra, terapeuta.
P - Então logo que vocês casaram ele começou a clinicar?
R - Ele começou fora da especialidade que ele tinha escolhido. Ele queria psiquiatria mesmo. Mas como as coisas estavam apertadas ele teve um convite de um professor pneumologista para trabalhar com ele, então ele foi. O primeiro consultório dele foi de tisiologia, de pneumologia. Mas depois ele começou com o trabalho dele de psicoterapia, depois teatro e televisão.
P - Em que ano vocês se casaram?
R - Em 1940. Maio de 1940.
P - E durante a década de 1940, que atividades a senhora desenvolveu?
R - Voltei a ser secretária do meu pai. Ele pediu. Porque eu quis sair para mostrar que podia passar sem ele, (risos) podia ter um bom ordenado fora, mas então voltei para trabalhar com meu pai. Fomos morar em um apartamento gracinha na Rua Avanhandava, ao lado da sinagoga, em cima da Avenida Nove de julho. E cinco meses depois, infelizmente, meu pai morreu em um acidente de avião. O primeiro acidente aéreo que aconteceu no Brasil foi com um avião da VASP. Ele vinha do Rio de Janeiro para casa. Foi em 8 de novembro. Ele embarcou no Rio de Janeiro, telefonou do aeroporto e disse: “Daqui a uma hora podem me esperar em Congonhas.” Tomou o avião, e um avião da Palmex — um avião pequeno, com um piloto bêbado, irresponsável — foi brincar com o avião de passageiros, passar por baixo. O avião tinha subido pouco, ele passou por baixo e bateu. O avião de passageiros caiu no mar, morreu todo mundo. Foi terrível. E minha vida mudou radicalmente.
P - E a senhora assumiu o escritório de seu pai?
R - Então eu assumi o escritório. Já conhecia, fazia a correspondência dele, conhecia as pessoas com as quais ele trabalhava. Então minha mãe disse: “Vocês não pensem que vocês vão ser empregadinhos em qualquer lugar, vocês vão assumir o trabalho do seu pai e vão continuar independentes.” E meus irmãos, um estava fazendo vestibular para engenharia no Mackenzie, e outro ainda tinha 12 anos, era um menininho. E eu assumi, fiquei os primeiros quatro anos sozinha, o Júlio me ajudando também. Foi uma época muito difícil e muito triste, muito depressiva. Mas atravessamos aquilo e alguns anos depois meu irmão também assumiu, e a vida continuou. Então eu já tinha filho. Tinha um filhinho que nasceu no Ano Novo de... (risos)
Ele está com 54 anos agora, eu nunca sei o ano.
P - E, falando já de televisão, como foi esse início de carreira? Antes, falemos do teatro.
R - Veja. Sempre gostei muito de teatro. Fazíamos teatro em casa, teatro amador. Minha colega de classe, de banco, era Gilberta Autran, irmã do Paulo Autran, que tinha 14 anos. Ela vinha em casa com o irmãozinho e brincávamos de teatro. E o Paulo já era, nasceu ator. Brincávamos no quintal da minha casa, na garagem. Penduramos uns panos na boca da garagem, púnhamos umas cadeiras lá fora, no quintal, convidávamos toda a vizinhança, e fazíamos nossos shows. (risos) Isso ainda antes do Júlio aparecer. Nessa época, eu tinha 16 anos. [Quando] eu conheci o Júlio, eu tinha 20 anos. Era no tempo do Mackenzie.
P - E com o Júlio só reforçou.
R - Só reforçou, foi embora. E era tão divertido. Meu irmão menor fazia, era um dos nossos atores. Ele era alto, grandão, então ele fazia monstros, gigantes, toda a sorte de vilões. E meu outro irmão do meio, que não era tão alto mas era muito forte, era diretor de cena, ponto, apoio de todo o mundo. (risos) O Júlio era diretor e eu escrevia.
P - E como se dá a criação do TESP [Teatro Escola de São Paulo]?
R - Quando começou o TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia, em 1948, já éramos casados. O Júlio se dava muito bem com o Paulo Autran, eram amigos, e o Paulo vinha na minha casa buscar livros, porque nós tínhamos uma biblioteca grande, e ele lia muito. Ele vinha toda a semana, levava dois livros, lia. Na semana seguinte chegava, trocava. Ele era estudante de direito, se formou. O Paulo Autran é advogado, como o pai dele também era. Começamos brincando e resolveram fazer um espetáculo amador. No TBC, a Cultura Inglesa tinha um diretor de teatro que fazia teatro amador. Eles precisavam de atores amadores e chamaram o Júlio, e o Júlio chamou o Paulo. A peça se chamava “A Noite de 16 de Janeiro”. Foi o primeiro papel em teatro que o Paulo fez e o Júlio também. Era uma história que era um julgamento. A beldade lá era a Nídia Lícia, acusada de um assassinato, e era o julgamento dela, em que o Paulo Autran era o promotor e o Júlio era o advogado de defesa. E a peça tinha o palco montado, era um tribunal e tinha um curralzinho lá para o júri, que era escolhido entre o público. Cinco pessoas, acho que eram, que assistiam daquele balcão. E a peça tinha dois finais. Conforme o júri resolvesse, no intervalo eles iam para o camarim discutir, e resolver se era culpada ou inocente. (risos) Então foram algumas semanas o espetáculo e o Júlio ganhava sempre. (risos) E me lembro até que o Décio de Almeida Prado, que na época já era crítico, escreveu que o ator Júlio Gouveia sempre ganha porque ele é advogado. Mas o advogado era o Paulo. (risos) O Júlio tinha uma voz tão bonita, era bom ator, tão sedutor, que ele ganhava. (risos)
P - Isso foi feito pelo grupo de ingleses que era English Players, da Cultura Inglesa?
R - Da Cultura Inglesa. Era produção deles. E nessa peça estrearam uma porção de atores que depois se profissionalizou. O Júlio, dali, partiu para o infantil. E o Paulo partiu para a Tônia Carrero. (risos)
P - Mas não no TBC. Ele chegou a fazer teatro infantil no TBC?
R - Não. Começamos no Municipal e fomos para todos os teatros de São Paulo, onde não havia teatro eram em salões, em auditórios, porque a prefeitura pagava a montagem da peça em toda São Paulo. Até a periferia. E éramos amadores lá, sem contrato. Ficamos três anos lá todo o fim de semana, sem contrato. Na prefeitura, sem contrato, e na TV também sem contrato.
P - Depois daquela montagem do Peter Pan que foi feita meio amadoristicamente, que depois foi para o Municipal, não é isso?
R - Isso. Foi do Municipal para vários outros bairros, e foi toda uma escola para nós, por isso que era Teatro Escola de São Paulo. Foi escola mesmo.
P - Então, o TESP... Havia uma sede do TESP, uma história dessa casa, queria que a senhora me explicasse.
R - Ah, sim. Quando conheci o Júlio, ele morava em um palacete na Rua Artur Prado, mas era um palácio, uma casa, construção do Ramos de Azevedo. Ele morava lá com a mãe dele. E era um palácio mesmo, antigo, muito bonito. Um dia, muitos anos depois, a mãe dele morreu, e o Júlio herdou essa tal casa. Era um elefante branco, porque não tínhamos dinheiro para reformar, só dava despesa de impostos, não podia vender porque era vinculada, era uma complicação, um elefante branco. (risos) E a utilidade que achamos para o elefante branco era montar a sede do TESP, com sala de ensaios, com uma porção de coisas. Essa casa foi trocada por aquele prédio. Um dia, foi transferido o vínculo.
P - E como é que se deu o convite para a televisão?
R - Foi assim. Foi por causa do teatro, do TESP, dos teatros. Aconteceu esse primeiro ano da televisão em São Paulo, em que a TV Tupi no fim do ano não tinha nada para oferecer ao público infantil, porque o pessoal da TV Tupi era todo vindo do rádio. Eles não tinham espetáculo para criança. Precisava de uma coisa visível, não só vozes. Não era rádio, era televisão. Então alguém lembrou e nos convidou para levar o nosso espetáculo pronto como estava para o estúdio, para eles transmitirem, com três câmeras. Fizeram um ensaio de câmera, organizado lá, dirigido, e transmitiram isso como presente de Natal e Ano Novo para as crianças de São Paulo
P - Que peça foi?
R - “Os Três Ursos”, que tinha inclusive uma cena de Natal, com árvore de Natal e tudo. Calhou. Meu irmão menor, que era o maior, era o urso pai. Havia um amigo, que até agora ele faz teatro de vez em quando, Roberto, fazia os ursos. Enfim, meu irmão menor era o ursinho pequeno, e esse Roberto era o urso cinzento, uma espécie de vilão que quando [era] ursinho teve problemas psicológicos, por isso era mau. Mas depois ele ficou bom. E eles trabalhavam com um macacão de nylon durante duas horas e meia. Meu irmão perdia quatro quilos em cada espetáculo, tamanha sauna que era aquilo lá. (risos) Então quando foi transmitido esse programa foi um tamanho sucesso, já havia alguns aparelhos de televisão. Começaram a telefonar querendo esse programa, querendo patrocinar, querendo não sei o que, e começou assim, com um programinha. Nos pediram um programa de meia hora e lembrei de fazer fábulas. Existem tantas e é tão fácil fazer o roteiro de fabulinha, então começou um programa chamado “Fábulas Animadas”. Foi o primeiro programa montado. E foi também sem contrato, no fio de barba, como se diz. (risos)
P - E tinha um patrocinador fixo?
R - Depois tinha muitos. Tinha fila de patrocinador que você pensa... (risos) Era um espetáculo importante. Esse foi o primeiro. Depois já nos pediram mais um, foi o “Sítio do Picapau Amarelo”, Monteiro Lobato, que conhecíamos pessoalmente mas ele já tinha morrido. A viúva nos cedeu os direitos. Então comecei a escrever um por semana. E já pediram mais, foram dois programas por semana, uma mini-série, uma espécie de novela, e aí foi embora. (risos) Eu escrevia furiosamente, escrevia todos os programas. (risos) Todos. Quatro por semana. Três horas de televisão ao vivo por semana.
P - A senhora me contou que antes da Tupi houve uma passagem pela TV Paulista.
R - Pela TV Paulista, que era aqui na esquina da Avenida Paulista com a Consolação, em um prédio... Eu me lembro. E foi numa época em que a TV Paulista estava em fase experimental. O diretor artístico lá era o Rugiero Giacobbi, que era nosso amigo desde o tempo do TBC e ele nos convidou. “Venha fazer qualquer coisa para as crianças, de meia hora.” Fomos fazer o “Sítio do Picapau Amarelo”. Nós já tínhamos um grupo de teatro muito bom, porque o Júlio nessa época era diretor do Teatro do Sesc, teatro de amadores do Sesc. O primeiro diretor foi Décio de Almeida Prado, e quando ele saiu, entrou o Júlio. E havia lá já um grupo de teatro também. De amadores, muito bom. Então juntou a fome com a vontade de comer. (risos)
P - Quer dizer que fora o teatro e a televisão, o TESP durante um tempo atuou fazendo teatro
em palcos, antes da TV durante três anos? E onde é que se apresentavam nesse período?
R - Começava no Teatro Municipal. Cada montagem fazia uma turnê pelos teatros de São Paulo. Estreava estrondosamente no Municipal, e ali por perto havia o Teatro Santana, que era um teatro muito bonito, um teatro construído para ser teatro. Havia o Cultura Artística, havia os velhos teatros dos bairros, São Pedro, São Paulo, Colombo, São José do Belém... Ia de teatro em teatro. E a prefeitura dava o teatro, dava o maquinista, dava o guarda-roupa, dava tudo. Mandava uma perua pelo bairro anunciar o teatro, imprimia o programa — era programa impresso, com ingresso numerado —, comme il faut. (risos) Com todo o respeito. E dava ainda um cachezinho para o pessoal comer um sanduíche durante aquela festa toda. Sem contrato e três anos aquele pessoal trabalhando, sem um dia de férias. Mas eram amadores, do verbo amar.
P - E na TV, já podia entrar um pouco mais de dinheiro ou não?
R - Começou muito pouco. No começo a emissora dava uma verba para o Júlio, um “x”. Às vezes dava para pagar tudo, às vezes, não. Porque o Júlio pagava os atores, dava um cachezinho, mas era um cachê. Então quando era uma peça com poucos personagens, menos complicada, sobrava alguma coisa. Quando era mais complicado, o Júlio pagava do bolso dele, durante anos. Mas depois, no fim, já estava pagando bem, mas não era nada de parecido com o que é agora. Nós éramos pioneiros mesmo, era com a cara e a coragem, por amor, paixão. (risos)
P - E como a senhora via como o público daquela época via a televisão que estava nascendo, ninguém tinha televisão… As pessoas acreditavam na televisão?
R - Júlio e eu acreditávamos muito, nós percebemos logo. Eu tinha uma coluna no Diário de São Paulo, havia um suplemento de rádio e televisão, e eu tinha a primeira coluna do lado esquerdo. E já em 1952, escrevi uma coluna, uma crônica, dizendo “isto é um monstro, isto vai tomar conta de tudo, isso é a coisa mais forte que já apareceu.” E o Júlio sentia isso também. Isso que nós gostávamos muito de teatro! Até hoje gosto de cinema, gosto de televisão, gosto de tudo, mas gosto mais é de teatro. Ao vivo, gente de carne e osso. Mas o público imediatamente se interessou. O pessoal de rádio, tinha esperança. (risos) Ainda não sabia o que fazer, mas tinha. E logo começaram com a TV de Vanguarda, Teatro da Tupi, e já descobriram a televisão. O público descobriu logo. Gente de teatro —
diretores e atores —
torcia o nariz. Achavam que aquilo não era digno da importância deles. Mas já descobriram que não era bem por aí.
P - E como era escrever para a televisão nesse início?
A senhora estava acostumada a escrever para teatro, mudou alguma coisa no seu trabalho?
R - No começo foi meio difícil, deu trabalho, mas eu peguei o jeito logo. E como éramos uma dobradinha —
Júlio e eu —, trabalhávamos realmente juntos, um ajudava o outro, então nenhum ficou muito perdido. Mas logo peguei o jeito. Peguei o jeitão e, no fim, eu já escrevia direto do estêncil. Não havia xerox, mas havia o estêncil. E eu já pegava, punha aquela página do estêncil e já fazia direto lá, era só copiar. Mas eu passava o dia inteiro pensando, matutando: “O que é que vou fazer?” Lendo, procurando assunto, indo à feira, levando os filhos para a escola, trazendo, e pensando “o que vou fazer hoje à noite?” Eu sentava na máquina às nove e meia da noite mas já estava tudo bolado, pensado, e levava praticamente só o tempo de redação.
P - E a senhora criava ou adaptava?
R - Olha, eu fazia questão, desde o começo nós fazíamos questão de promover leitura, livro. Então assim como comecei com fábula animada, que era livro, comecei com o Sítio do Picapau Amarelo, que era livro, as outras coisas todas. O programa de duas vezes por semana, que era minissérie, não era novela e não era peça inteira. Era minissérie de 50 capítulos, duas vezes por semana. Eram romances, livros que eu já tinha lido, livros que procurava ler. Fazia questão de mostrar o livro. O programa começava no livro, saía da estante de livros, entrava a mão do Júlio tirando um livro — um livrão —, afastava e mostrava quando ele abria o livro. Olhava o título, o nome do autor, alguma informaçãozinha, e começava a ler. Tá-tá-tá-tá-tá, e passava para o espetáculo. Fazia o espetáculo inteiro e voltava para o livro para encerramento. Ele dava uma encerrada e as histórias sem capítulos — como o Sítio e minisséries — ele fingia que começava a ler o capítulo seguinte. Começava a ler, interrompia e dizia: “Mas isso é outra história que fica para uma outra vez.” Era o Gancho. E no domingo, que era um teatrão de uma hora e meia ou até mais, ele encerrava com o: “Entrou por uma porta, saiu por outra, quem quiser que conte outra.” Mas sempre com o livro. E o livro que eu adaptava, vendia edições. As editoras me telefonavam pedindo para adaptar este ou aquele, o que eu nunca fiz, só adaptava aquilo que eu gostava. (risos) Se coincidisse com a editora, muito que bem, mas não era o que me pediam, era o que eu queria. E era essa a condição nossa de trabalhar lá. Fazer o que nós queremos, do jeito que nós achamos que tem que ser feito e não se intrometa. “Se começarem a meter o bedelho demais”, disse o Júlio, “amanhã não volto mais.” (risos)
P - E a audiência, como é que era?
R - Carro-chefe. Eram o carro-chefe: o TV de Vanguarda, o Grande Teatro —
que tinha uma Cacilda Becker e gente assim — e o nosso. Nossos programas que tinham Ibope de 60%, 70%. As pessoas deixavam de viajar para assistir o nosso programa, não brinca. Era sério. Nossa minissérie não era novela, não era uma coisa que marca passo. Porque novela, se você pula três capítulos, não pulou nada, não faz diferença. Agora, aqui, cada vez acontecia alguma coisa. Era como o livro.
E o “Sítio do Picapau Amarelo” cada vez era uma outra história. É verdade que era a mesma cenografia e praticamente os mesmos personagens básicos, mas cada vez era outra história. E então era um trabalho frenético, de gente louca. E sabe porque que nós conseguíamos fazer isso? Quatro programas, três horas de teleteatro ao vivo, escrever, copiar, decorar, ensaiar —
coisa de louco?
Pelo mesmo motivo pelo qual aquele general inglês ganhou a Batalha de Waterloo... Welington. Sabe por que ele ganhou? Porque ninguém lhe disse que era impossível. (risos)
P - Bom, vamos pegar programa a programa. O primeiro que houve foi “Fábulas Animadas”?
R - Foi.
P - E logo depois já foi o “Sítio do Picapau Amarelo”?
R - Não, o “Sítio” era em outro horário.
P - No mesmo ano?
R - Foi no mesmo ano. Coisa de meses. Porque começou a aparecer muito patrocinador querendo, isso já interessava à televisão. E quando acabava o patrocínio — veja você que coisa interessante — a emissora nunca interrompeu um programa nosso. Mesmo quando acabava o patrocínio, tinha que aguardar outro patrocinador. Não porque não houvesse patrocinadores lá prontos para pegar, é porque o Júlio não aceitava qualquer patrocinador. Se fosse um produto com o qual ele não concordasse ou achasse que não era bom para criança, ele não aceitava. Tinha que esperar. Às vezes esperava duas, três semanas, quatro.
P - E ele rejeitou algum produto?
R - Por exemplo: certas coisas como cigarro, bebidas. Jamais. Em geral, eram produtos alimentícios, biscoitos, chocolate. Tivemos um caso engraçado com o “Sítio do Picapau Amarelo”, em que o patrocinador que apareceu se chamava Completo Puritas. E era uma bebida maltada, como o Toddy, uma coisa muito boa, gostosa, saudável, tudo. (risos) Eu tive uma inspiração. Veja só, essa coisa de passar produtos sub-repticiamente, como é que se chama isso? Porque não tinha intervalo nos nossos programas e não tinha anúncio. Era só no começo, fulano de tal oferece e, no fim, fulano de tal ofereceu. Não tinha interrupção para propaganda comercial. Mas o “Sítio do Picapau Amarelo” tinha uma pausa que fazia parte da história, que era a hora da merenda. Que é quando a Tia Anastácia trazia bolinho de frigideira, pipoca, não sei o quê. Então... Existia uma pausa. Eu disse: “Júlio, vamos por o Completo Puritas na mesa”. Isso se chama merchandising. Não tinha esse nome ainda. E disse: “Ponha o Completo Puritas na mesa, três copos para cada um tomar o seu Completo, e eles apostam para ver quem toma mais depressa com o canudinho, suhhh…” Então, a câmara pegava uuuuuu, aquilo descendo. (risos) Sabe o que aconteceu? Quatro meses depois o Puritas tirou o patrocínio porque não dava conta dos pedidos. (risos) Então até nisso nós somos pioneiros. (risos)
P - E as “Fábulas Animadas”, era cada programa uma fábula?
R - Era uma fábula cada vez. Era uma coisa de 30 minutos, 35, 40. Fábulas diversas: russas, alemãs, francesas, brasileiras, histórias de bichos.
P - Tinha um elenco permanente?
R - Era o nosso TESP. Eles faziam tudo, faziam qualquer coisa. E não tinha astros nem estrelas. Ou fazia figuração, ou papel principal, tanto faz. Isso fazia parte da psicologia. (risos)
P - E depois, no “Sítio do Picapau”, cada história era completa?
R - Era completa.
P - E também com o Teatro da Juventude?
R - Também. O Teatro da Juventude já era coisa de uma hora, uma hora e meia, duas horas. Tinha mais liberdade, muito tempo. Então dava para fazer uma história inteira com um intervalo, como se fosse do teatro. Um intervalo teatral.
P - Os outros demoravam quanto tempo?
R - Trinta e cinco minutos, 40 às vezes, conforme o caso. O horário não era tão rígido ainda.
P - E o Teatro da Juventude?
R - Olha, o teatro que foi sensacional, foi quando o IV Centenário de São Paulo, 1954. Claro que tinha uma programação completamente especial. E tinha até uma estação intermediária, retransmissora para o Rio de Janeiro, que não pegava. Mas essa tinha uma retransmissão para o Rio de Janeiro, de tão importante que era. E a Tupi, o programa que escolheu para comemorar o IV Centenário foi o Teatro da Juventude, com todos os outros lá, o nosso foi escolhido, e para mostrar a história de um herói paulista. Quem você poria de herói paulista?
P - Borba Gato.
R - Pois, com certeza, ia nos Bandeirantes mas o Júlio era paulista. Era Emílio Ribas, que se inoculou de febre amarela para mostrar como se cura essa coisa horrorosa. Eu fico até arrepiada, fomos procurar a viúva do Emílio Ribas, mostrei até a fotografia, a menina fotografou. Fiz uma pesquisa rápido, escrevi uma história que durou mais de duas horas, e o Júlio, ele mesmo, fez o papel do Emílio Ribas, porque não confiava em ninguém, porque podiam fazer um caco qualquer e dizer uma bobagem que não fazia parte. E foi a nossa contribuição para o IV Centenário. Era Emílio Ribas.
P - O Teatro da Juventude então já era para um público mais...
R - Para qualquer público.
P - Não era só para crianças?
R - Não era proibido para maiores. (risos)
P - Mas tinha uma linha mais infanto-juvenil, enquanto os outros eram mais infantis.
R - Infanto-juvenil e até adulta, mas não imprópria. Se pus lá histórias de Tchékhov, de Maupassant ou de Somerset Maugham, era para qualquer público. Como eu podia ler aos 12 anos qualquer coisa que eu quisesse, assim podiam assistir também. Não tinha nenhum sexo explícito lá. (risos)
P - A senhora chegou a criar algum original naquela época?
R - Muitos, diversos. Mas eu fingia que tirei de livro. Porque eu queria mesmo era passar o livro. Era essa a minha intenção.
P - Bom, a senhora falou da loucura que era para fazer o texto e produzir, por que eram...
R - Ah, inventava truques, porque não tinha mesa de coisa que faz agora... Qualquer milagre, apertando botão. Tínhamos três câmeras jurássicas desse tamanho, uma girafinha, um toca-discos que tinha que segurar o pick-up e esperar aquele momento para soltar aquele acorde naquele instante, tinha iluminação, tinha cenografia, mas não tinha recursos
técnicos. Com três câmeras você faz uma porção de coisas. Você faz superposição, fusão, afastamento e essas coisas. Era uma espécie de cinema, era um teatro-cinema. Júlio até
escreveu um trabalho, A Estética da Televisão, importante. Ele foi professor de televisão na USP depois. Mas a gente inventava mágicas. Porque infantil tem muito truque, tem muita mágica, tem muita coisa extraordinária que tem que acontecer em preto e branco, com três câmeras jurássicas e um pick-up. (risos) De vez em quando eu até sugeria. No próprio texto tinha uma ideia, eu já punha para ele, ou: “Olha, se vire, não sei como fazer isso.” (risos)
P - A senhora lembra uma dessas mágicas?
R - Eu lembro. Por exemplo, no “Sítio do Picapau Amarelo”, no começo, há uma história em que a Narizinho vai para o Reino das Águas Claras. No fundo do riacho, o reino do Príncipe Peixinho. E tinha que fazer cena com os atores dentro d’água, era o Reino das Águas Claras. “Como vamos fazer isso?” Disse: “É tão simples... Pega o nosso aquário.” Tínhamos um aquário assim, deste tamanho. “Põe na frente da câmera e representa atrás do aquário. Simples. Os peixinhos.” (risos) E foi feito. E funcionou mesmo. Tinha muitas sacadas assim, diversas.
P - Bom, a pergunta que eu ia fazer era justamente sobre essa questão do improviso.
R - Não tinha muito improviso, não, porque era tudo muito ensaiado. Furiosamente ensaiado. Intensivamente ensaiado. Mas com presença do maquiador, com presença do cenógrafo, que eram do estúdio. Com presença do iluminador, do sonoplasta. Eles assistiam ao programa, assistiam ao ensaio. Então já era tudo muito planejado. E antes de ir para o ar havia um ensaio de câmera. Passava a peça sem transmitir para ver se as portas abrem, se tudo funciona. Então, desse jeito, dificilmente tinha problemas. Teve, claro que teve alguns
incidentes de percurso.
P - Essa é a pergunta que todo o mundo faz. A senhora lembra de algum?
R - Lembro, claro. Meu irmão era ponto. Ele se arrastava no chão e rastejava que nem uma cobra. Com placas, desse tamanho, dando a deixa em baixo. A câmera não pegava no chão, a não ser que precisasse, mas nunca precisou. Precisou uma vez, quando tinha um outro programa que o Júlio tinha, “Lições de Coisas”, em que ele trazia coisas para fazer lições, e trouxe cobras do Butantã, uma caixa cheia de cobras. E, na hora do programa, a caixa virou, as cobras saíram todas. (risos) Os atores saíram de perto e os valentes câmeras ficaram lá... (risos) E meu irmão...
e funcionou, viu? Então tive que mostrar as cobras rastejando. Mas também não houve nada, nenhum problema além desse. Mas nas histórias houve alguns probleminhas inesperados. Por exemplo, na história da “Rapunzel”, a Lúcia Lambertini, que era a princesinha, e que ficava muito solitária na torre onde a bruxa a trancou, ela não tinha com quem conversar, só falava com os passarinhos, era tão lindo. Então a produção nos trouxe um passarinho, passaroca desse tamanho, não sei que passarinho era, que ficava no dedinho da Rapunzel. E ficava conversando com o passarinho Tão bonitinho, passarinho dopadíssimo, coitado. (risos) No ensaio de câmera deu tudo certo. E, na hora, ela foi conversar com o tal do passarinho e ele acordou, lhe deu uma bicada, mas uma bicada que pulou sangue. (risos) Mas ela, heroicamente não piscou, continuou conversando, então tinha que ser o improviso. O câmera que estava em cima dela saiu depressa para outra cena, para outra câmera. A mesa de técnica era ágil, mas aconteciam coisas assim.
P - A senhora contou em uma entrevista que não gostava de ficar no estúdio.
R - Ah, não. Fui algumas vezes, acabei de roer todas as unhas, eu ficava num desespero... Eu ficava tão nervosa com aquilo, era uma coisa, uma adrenalina tão forte, todo o mundo é responsável. O Júlio se responsabilizava, o tal do cabo — que arrastava o cabo —, o que empurrava a câmera, o que varria o chão é responsável. Se tiver uma ponta de cigarro, a câmera passa em cima, ela pula e estraga a câmera. Tem que ser tudo perfeito. E ele era muito psicólogo, cantava todo o mundo. (risos) Cantava e encantava, e as coisas funcionavam.
Mas era um stress enorme. Depois eles vinham lá para casa relaxar. Eu fui lá uma vez assistir, e quando um truque dava certo eles ficavam loucos, subiam nas mesas, berravam. (risos) Era muito interessante, mas eu desisti de assistir. Assistia em casa. Assistia e me espantava. “Puxa, fui eu que escrevi isso?” (risos)
P - Gostaria de falar um pouco sobre o elenco que trabalhava no TESP e nos programas de televisão. Quem eram as pessoas, como é que era feito o ensaio, o trabalho com eles?
R - As pessoas eram amadores, eram engenheiros, estudantes, advogados, comerciantes, donas-de-casa. (risos) Eram amadores mesmo, gente que vivia de outras coisas, com raras exceções. Alguns se profissionalizaram depois. Nem me lembro de todos os nomes. Em geral eram amadores mesmo. Havia um núcleo central, que era, por exemplo, o “Sítio do Picapau Amarelo”, que era uma série com os mesmos personagens. De vez em quando tinha que trocar. O Pedrinho, por exemplo, tinha que trocar porque menino... Sabe como é, chega numa certa idade engrossa a voz, fica esquisito, não dá para ser Pedrinho mais. Ele tem que ser menininho. Agora, a Narizinho, que foi a Edy Cerri, ela foi Narizinho durante dez anos, porque era miudinha, bonitinha, magrinha, pequena. Podia fazer papel de menina o resto da vida. Lúcia Lambertini que fazia qualquer coisa, que era a Emília, que era... Podia ser… Fazia o papel de feia, papel de linda, papel de velha, papel dramático, papel cômico, qualquer coisa ela fazia. Era uma grande atriz e ficou muito marcada pela Emília. Não vou dizer que não aconteceu. Ela aconteceu. Ela era uma Emília muito importante. Muito conhecida. Mas ela podia ter aparecido em muitas outras coisas. Ela de fato aparecia, ela participava de todos os programas do TESP, do Teatro da Juventude, de tudo. Onde precisava de alguém muito bom, lá estava ela. Mas ela ficou muito marcada pela Emília. Havia um Visconde de Sabugosa que era espetacular também, Hernê Lebon. E um Visconde de Sabugosa, que foi no segundo período, quando foi já em videotape, na Bandeirantes, em 1968. foi o Everton de Castro, que foi um espetacular Visconde de Sabugosa. Muito bom. Ele sempre foi muito bom. Engraçado que com ele tem uma história gozada. Eu conheci o Everton em uma peça infantil, como amador. Assisti à uma peça infantil de uma professora que fazia teatro infantil, e estava ele lá. Não me lembro em que papel, não sei se era um gato, o que era, mas eu achei ele tão bom que quando nós precisávamos de um novo Visconde de Sabugosa, para a Bandeirantes, o Júlio dizia: “Não tem um ator. O Hernê não pode mais, está doente, não sei o que fazer.” Eu disse: ”Eu sei de um que faria, mas não sei nem o nome dele. Não sei onde encontrá-lo.” E era o Everton. Estávamos nós lá, pensando no que fazer, e em um domingo de manhã toca a campainha em casa. Era o Everton de Castro que veio me procurar. Me procuravam por causa dos programas. Não me lembro nem para quê ele veio. Ele entrou aqui e eu disse: “Escuta, estou à sua procura, não sei nem o seu nome.” E ele disse: “Everton de Castro. Por que à minha procura?” “Porque eu preciso de um Visconde de Sabugosa, você quer?” Imagine se ele não queria. E ficou durante 14, 15 meses. Todos os dias. Já era todos os dias e era gravado. E a Emília dessa época também não foi a Lúcia, foi a Zodja Pereira, que faz agora dublagem. É uma boa atriz pernambucana.
P - Durante todo o período da Tupi sempre foi a Lúcia?
R - Sempre foi a Lúcia. De vez em quando a Lúcia ficava grávida, ou ficava doente, então era substituída por alguém interino, por exemplo Fanny Abramovich, que é muito famosa, professora, educadora, também pequeninha assim, ela fazia a Emília. A primeira Emília, que fez alguma vez, foi a Dulce, Dulce Margarida Oliva, que era atriz também do TBC. Fazia muito bem, imitava a Lúcia muito bem. Agora, no “Sítio do Picapau Amarelo” da Globo não
há nenhuma Lúcia, nenhuma Emília como aquela. É muito bonito, muito rico, muito colorido, muito outra coisa, outro produto.
P - A senhora atuou alguma vez?
R - Como tapa buraco. Fui a Princesa Isabel uma vez porque achavam que eu era parecida. Eu fui Vovó Benta, figurante algumas vezes quando era uma emergência, mas sempre brinquei de teatro, desde pequena. (risos) O meu primeiro papel de teatro, lá em Riga, eu tinha quatro anos, e também nunca mais esqueci. Foi muito importante, eu era uma mosca, eu tinha asas, tinha antena e me arrastava no chão limpando o focinho como mosca faz, cantando uma musiquinha. “Zum, zum, zum, estou andando pelo teto, vou para o canto visitar o meu amigo besouro, o velho besouro.” Então... Essa sensação de andar pelo teto para visitar o besouro, nunca mais esqueci. (risos) Também representei umas fábulas russas, um papelzinho ou outro. A gente sempre brincou de teatro. Meus primos faziam teatro em casa.
P - Ok, Dona Tatiana. Continuando, por que se deu o fim dos programas da TV Tupi?
R - Porque chegou uma época em que começaram alguns a querer dar palpite e ensinar Padre-nosso ao vigário e o Júlio não gostou. “Então chega, não fico mais. Vou reabrir o meu consultório.” Que ele fechou por dez anos por causa da televisão. Voltou para o consultório. E como havia contratos ainda correndo, seis meses, um ano, não sei quanto, os assistentes do Júlio cuidaram disso. O Ricardo Gouveia, que é filho meu e do Júlio, que acompanhou tudo, desde os primeiros dias. Ele foi ator, ele foi Marquês de Rabicó no primeiro “Sítio do Picapau Amarelo”. Quando ele tinha oito anos, nove anos, foi da direção. O Felipe Wagner, que era um dos assistentes, o Ernê, eles levaram adiante. E eu continuei escrevendo durante mais um ano, um ano e tanto, até acabarem os contratos de patrocínio, e então saímos de uma vez.
P - Os três programas estavam no ar?
R - É, saíram todos. Mas eu ainda escrevi durante algum tempo. (risos)
P - E depois disso a senhora foi fazer o quê?
R - Depois disso fui imediatamente convidada para a Comissão Estadual de Teatro. Pouco depois, onde eu inventei o Teatro da Juventude. Fiquei de 1965 até 1972 fazendo a revista e cuidando da parte de teatro infanto-juvenil da Comissão Estadual de Teatro. Depois saí da Comissão e me convidaram para jornais. O primeiro que me convidou foi a Folha de São Paulo. Primeiro eu fazia alguma coisa na Folhinha, coisas para criança, coisas pequenas, com a Tia Lenita, mas então me convidaram — acho que o Boris Casoy na época — para fazer duas colunas por semana na Folha Ilustrada, de crítica de televisão e livros para crianças. Fiquei dois anos lá. Então me chamou o Estadão para o Caderno 2, para fazer as mesmas duas colunas de crítica de teatro e televisão, e livro para crianças e jovens. Fiquei mais dois anos lá, depois saí e me chamou o Jornal da Tarde, para a mesma coisa. Fiquei mais dois anos ou três, não me lembro mais. Nesse meio tempo também fiz crítica para o Shopping News e, esporadicamente, para outras publicações, artigos e coisas. Quer dizer, fiquei no jornalismo, de repente, sete anos. (risos) Depois, de repente, uma editora me telefonou, uma editora grande, Ática, perguntando se eu não teria uma história, se não queria escrever uma história, porque eu era um nome conhecido por causa da televisão. E eles estavam programando uma série de livros assim, assim, assim. Se eu não queria, se eu não teria alguma coisa na gaveta ou não queria escrever especialmente. E eu tinha muita coisas na gaveta, só que eu nunca pensei em publicar livros, estava muito ocupada com outras coisas, avassalada. Eu disse: “Bom, eu tenho algumas histórias, vou mandar umas cinco para vocês verem se podem aproveitar alguma.” Então mandei as cinco, eles escolheram as cinco e saíram cinco livros. Estreei com cinco livros na literatura infantil. E então foi embora. Outras editoras convidaram e comecei a escrever mais livros.
P - Isso já na década de 1980?
R - É.
P - A senhora estreou em que ano? Lembra?
R - As primeiras publicações em livro? Em 1985. Nem faz tanto tempo assim.
P - Quantos livros editados?
R - Ah, muitos. Eu sou tradutora também. Eu comecei a traduzir literatura, nem a infantil, qualquer literatura, desde 1948, 1949, 1950, antes da televisão ainda. Então eu traduzi muito também. Do russo, do alemão, do inglês. Continuei fazendo isso, as historinhas que inventava e as historinhas que eu adaptava. Então estou até agora nisso. Tem muitas publicadas, entre adaptações, recriações e originais. Deve ter cerca de 100 publicadas. No meu tempo de menina o livro era uma coisa com 250 páginas, pelo menos. Aqui, não. Uma história é um livro. Então, não é bem a mesma coisa. Mas é uma literatura muito gostosinha.
P - Como é que a senhora cria as suas histórias? A senhora busca a expressão desses clássicos?
R - Claro, a gente é influenciado por tudo. Eu leio histórias, vejo teatro, cinema e não sei o quê. Desde os meus quatro anos de idade, a vida inteira. Claro que tudo influencia e brotam coisas umas das outras. Uma coisa puxa a outra. Além de que, eu tenho um livro chamado Olhos de Ver, que é de crônicas. É preciso ter olhos de ver, você olha em volta e está sempre acontecendo alguma coisa. E tudo dá samba, tudo dá uma crônica, dá uma historinha. Há coisas, idéias que me estalam de repente. Por exemplo, tenho um livro que é um daqueles primeiros cinco que saíram, que se chama A Operação do Tio Onofre. Como essa história aconteceu: é que eu tenho um cofre que tem segredo, e eu nunca consegui decorar aquele tal de segredo. Então resolvi marcar o segredo na agenda de telefones. Então se põe segredo na agenda não fica tão segredo assim. E disse: “Bom, vou por uma coisa terminada em “ofre”, Onofre. O tio Onofre. O tio Onofre tem esse telefone.” Então ninguém ia desconfiar. Deu uma idéia e saiu a história. E a história saiu assim: tinha uma menina que gosta de dar nomes a objetos de casa, então o armário é o doutor Mário. Brinca de rima, os pais topam e eles conversam assim, brincam assim. Vai buscar o vestido que está no doutor Mário. Até que, um dia, eles estavam em casa — a mãe e a menina Talita —, bateram na porta e a Talita foi correndo abrir a porta para saber quem era. Eram dois ladrões. Entraram com armas apontadas. “Abre o cofre, beh, beh, beh…” Elas ficaram nervosas, muito assustadas. E, de repente, tocou o telefone. O ladrão pediu para a menina que fosse atender, mas não deixasse perceber nada. “Se não, ó, vai ter.” E ela, com medo, foi atender e era o pai. A voz dela tremia e ele perguntou o que estava acontecendo: “Você está bem, filha?” “Não, estou muito bem. Só que estou preocupada com o tio Onofre.” E o pai disse: “Tio Onofre?” “É, ele teve que ser operado de emergência, tem dois médicos abrindo a barriga dele, (risos) mas o resto está tudo bem.” Então o ladrão se deu por satisfeito, o pai disse que ia chegar uma hora atrasado. O ladrão ouviu isso na extensão e disse: “Ótimo, agora vamos ter tempo de resolver o assunto.” E continuou a história com eles, amedrontando a mãe, “abre o cofre”, porque tinham tempo: “Não precisam ficar nervosas calma porque temos muito tempo.” (risos) E começaram a abrir o cofre, eis quando
ouviram o clique da porta e abriu-se a porta. Entraram dois policiais e papai junto, e levaram os ladrões. Enfim, a mãe pergunta para o marido: “Mas como você chegou tão em cima da hora? Quando você disse que ia chegar uma hora atrasado o que aconteceu?” E o pai disse, piscando para a menina: “E desde quando nossa filha tem um tio chamado Onofre?” (risos) Então esse livro é um sucesso. E foi o primeiro.
P - Tatiana, a volta do “Sítio” na Bandeirantes aconteceu por que motivo? Uma volta breve também, não é?
R - Resolveram fazer uma coisa brasileira, um programa brasileiro para crianças. Não havia nada, só esses programas de auditório. Então pensaram no “Sítio do Picapau Amarelo”. Vieram falar comigo e pediram os scripts, e eu disse: ”Não, sem o Júlio eu não quero. Nós trabalhamos juntos.” Eles tinham uma equipe de 300 pessoas para fazer, psicólogos, sociólogos, não sei o quê, e eu disse: “Não.” Éramos o Júlio e eu, e a gente levava muito bem. Agora com sociólogos e psicólogos… O Júlio era psicólogo sozinho e não precisa de sociólogos. “Não quero, não.” E então eles fizeram de outro jeito deles.
P - E na Bandeirantes, então, já não foi com o seu texto?
R - Foi com o meu texto. Cinco anos depois.
P - Mas...
R - Ainda não estava, acho que a da Globo. Não estava ainda.
P - Ah, sim. É que eu perguntei da Bandeirantes.
R - Na Bandeirantes. O Júlio tinha saído da Tupi, já estava com o consultório, tinha feito três pontes de safena e estava posto em sossego. (risos) Quando chegaram lá da Bandeirantes, quem é que veio? Antonino Seabra, que foi diretor de TV nosso. Trabalhou conosco, conhecia o trabalho. Vieram convidar da direção da Bandeirantes. E eles insistiram, insistiram, insistiram, nos cantaram tanto, que a disse: “Tá bom, então nós vamos.” E foram mais 14 meses na Bandeirantes, em tape, gravado e todos os dias, não uma vez por semana como era na Tupi. Ele dirigindo, eu escrevendo. Não precisava nem escrever, era só atualizar um pouco porque passaram-se anos. E, na época, tudo tinha que passar pela censura. E muitas coisas não passavam.
P - Como era a relação da censura com o teatro?
R - No começo da época todos os textos tinham que passar pela censura. Os nossos também. E iam para Brasília, não sei para onde... Desde 1961. E tinha que vir com carimbo, com o “habite-se” da censura. (risos) E, durante algum tempo, isso funcionou assim. Depois de algum tempo percebemos que a censura carimbava o “habite-se” sem abrir, porque eram programas infantis, tão aprovados pela família, padres, rabinos... (risos) Todo mundo aprovava, não tinham mais medo dos espetáculos do TESP, então carimbavam direto. E um dia, o juiz de menores — o representante dele —, tinha que ficar também no estúdio, ver se não acontecia nada de horrível lá com as criancinhas. E isso durante algum tempo. Até que, um dia, o próprio juiz de menores disse para o Júlio: “Nós não precisamos disso, a senhora mesmo toma conta de tudo isso tão bem… Fica a senhora sendo a representante da censura aqui no estúdio, e não precisamos mais vir aqui.” Então, assim, acabou a censura. De vez em quando a gente até passava algumas coisinhas que talvez até nem passassem. Coisinhas pequenas. (risos)
P - Bom, eu queria, antes de a gente encerrar a entrevista, perguntar sobre um tema mais de opinião. A televisão sempre tem sido apontada como um veículo que passa cultura, e que talvez não seja tão benéfica em termos de educação, porque tira a criança do livro. Como a senhora avalia isso, já que fez tanto tempo televisão e hoje está fazendo literatura?
R - Meus filhos se criaram com a televisão, meus sobrinhos também, e todos lêem e gostam de ler. Criança tem que ser exposta ao livro, e o livro tem que ser exposto à criança. Deixar o livro ao alcance da criança, não fazer do livro uma obrigação, uma tarefa, e sim um lazer, um prêmio. O castigo para as crianças da minha família é não deixar ler. Acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra. E aqueles programas que fazíamos — que eram para promover a leitura —, promoviam a leitura, mas maciçamente esgotavam-se as edições.
Nunca se vendeu tanto Sítio do Picapau Amarelo como naquele tempo. Não tem nada a ver, não sei o quê, ou livro ou televisão. Tem lugar para tudo. Criança tem que ter opções, tem que lhe oferecer outras coisas. E o livro tem que ser uma das coisas oferecidas, não embrulhadas, não impingidas. Tem que escolher como eu fiz na biblioteca. Ler aquilo que tem vontade de ler.
Tem um livro que recomendo muito, de um escritor francês, se chama Daniel Pennac, professor de literatura, que tem um livro chamado Comme un Roman — Como um Romance, não sei se você já ouviu falar, mas é uma delícia de livro, você lê como um romance mesmo, e é a experiência dele com literatura e adolescentes. Como professor de literatura na França, onde existe televisão e todas as distrações que existem aqui. E ele conta coisas muito interessantes, não dá para contar aqui. Ele tem uma espécie de decálogo sobre a leitura, os dez mandamentos, os dez direitos fundamentais do leitor, dos quais o primeiro é não ler. Não quer ler, não leia. Agora, se quiser ler, tem direito de ler de trás para diante, do fim para o começo, de parar no meio, de reler... Tem todos os direitos. Não são obrigações, deveres. Ler é um direito, lazer. E nosso trabalho todo foi direcionado para essa alegria de ler.
P - E a senhora não tem saudade, não tem vontade de fazer televisão? A senhora continua em atividade?
R - Eu não sou saudosista. Tenho uma boa memória, me lembro das coisas, tenho prazer em lembrar algumas, e desprazer em lembrar outras. (risos) Até um desprazer muito grande da Rua Jaguaribe, por exemplo. Posso contar agora? Quando eu fiz 12 anos, resolvi fazer uma festinha. Já estava no Mackenzie, já estava tudo bom. Então minha mãe preparou doces e salgadinhos e uma mesa bonita; na escola até escrevi convites, desenhei — eu desenhava direitinho também; e convidei as colegas lá que eu simpatizava mais — não eram muitos, uns dez colegas do colégio, e fiquei toda contente, convidei para o meu aniversário umas 12. Quando chegou o dia, estava tudo pronto, arrumado, enfeitado, e chegou a hora de chegarem as visitas. Não chegou nenhuma, nem na primeira hora, nem na segunda hora, nem na terceira hora. Não chegou ninguém. Foi a maior frustração da minha infância. Foi uma coisa horrível. Não dá para contar como foi horrível. Como eu fiquei… Nossa! Passei a noite chorando. Eu era brava que nem minha mãe. Chorei muito, roí as unhas. Era difícil ser gringo. (risos) Pouco depois, aconteceu em 1932 a Revolução, e resolvi participar. Então, nós brincávamos de enfermeira com os irmãos e com os colegas. E eu tinha uma correntinha de ouro, pequenininha, era a única jóia que eu tinha. Dei para Campanha Ouro para o Bem de São Paulo, e com isso me naturalizei paulista. Foi importante na minha vida. Mais tarde me naturalizei mesmo, aquilo foi uma resolução importante.
P - Para a gente fechar: dentro da sua carreira, que importância a televisão teve? Como a senhora situaria assim aquele momento?
R - Muito importante, porque foi um grande momento. Quer dizer, foi o teatro e a televisão desde 1948 até 1968. Foram 20 anos, com interrupções, de um trabalho intensivo, de um trabalho cultural. O que eu li naquele tempo de livros... Essas fileiras e a outra é tudo televisão. (risos) E era um prazer muito grande, era uma realização, como eu disse. Assistia pela televisão o que eu escrevia e não acreditava que fui eu que escrevi. Foi muito bom. E me deu muito prazer e alegria. E essa coisa de ser conhecida, de ser famosa, e de desencadear uma epidemia de “Tatiana”.
Quando eu estava no Mackenzie, que é uma escola muito grande, tinha muita gente, e de Tatiana eu era a única, era um nome tão esquisito que as pessoas não entendiam. Perguntavam se era Bastiana, Sebastiana, tia Ana, coisas assim. E depois que entrei na televisão começaram a pipocar Tatianas. (risos) Virou nome até da moda. O que eu tenho de afilhada, pessoas que me param e dizem: ”Minha filha se chama Tatiana por sua causa.” (risos) É uma epidemia.
P - A televisão tornou a senhora muito conhecida?
R - A televisão... Pois é, de nome. A cara conhecida era o Júlio. O Júlio não podia sair para a rua, a estrela.
P - Havia muito assédio de fãs?
R - Muito. O Júlio dizia que não era ele. Conheciam era o meu nome. Agora me conhecem, pessoalmente também. Talvez por causa das escolas. Tenho dois públicos. Quando vou conversar com crianças nas escolas os pais me conhecem da televisão e as crianças me conhecem dos livros. Tenho dois públicos com uma geração de permeio e eu adoro. (risos) Estou com 78 anos, chegando na maturidade. (risos) Produzindo, traduzindo.
P - Tá bom, então, Tatiana. Queria agradecer esse tempo que a senhora gastou com a gente.
R - E eu é que agradeço.Recolher