Memórias da Literatura Infantojuvenil
Depoimento de Claudio Fragata Lopes
Entrevistado por José Santos, Thiago Majolo e convidados
São Paulo, 24/04/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº MLIJ_HV004
Transcrito por Winny Choe
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Claudio, boa noite.
R - Boa noite.
P/1 - Queria começar a entrevista perguntando seu nome completo e local de nascimento.
R - Meu nome é Claudio Fragata Lopes. Eu nasci em Marília, no interior de São Paulo. Mas com poucos meses eu vim para... Para São Paulo, capital, com a minha família.
P/1 - E você poderia falar o nome dos seus pais e a profissão deles?
R - O nome do meu pai é Álvaro Augusto Lopes, o nome da minha mãe é Altair Fragata Lopes. Normalmente é um nome masculino, né? Altair... Uma vez, eu conversando com ela sobre isso, ela me disse: “Não, mas é um nome feminino porque é o nome de uma estrela” A minha mãe é professora e meu pai, desde menino, mexia com editoração. Os pais deles tinham uma pequena editora em São Paulo e ele aprendeu o ofício desde cedo. Depois de casado com a minha mãe, eles resolveram tentar o interior. Mexer com fazenda, eles compraram um sítio no interior e mudaram pra lá. E foi quando eu nasci, exatamente. Mas aí eu vim pra São Paulo com pouquíssimos meses e fiquei aqui até os sete, oito anos… Não, sete anos. E depois eles voltaram pra lá, para o mesmo lugar, que era Marília.
P/1 - Você passa a infância aqui, essa primeira infância, em que bairro?
R - Essa primeira infância... Vila Mariana, num apartamento que existe até hoje. O edifício existe até hoje, está intocado. Há pouco tempo eu fui fazer um passeio pelo bairro e fiquei emocionado porque está tudo ali.
Durante essa fase eu tive uma vida de cidade mesmo. Era o começo da televisão no Brasil e eu, como calouro da cidade, assistia televisão. Aconteceu uma coisa muito curiosa porque eu tinha uma imensa paixão pelos desenhos animados do...
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Depoimento de Claudio Fragata Lopes
Entrevistado por José Santos, Thiago Majolo e convidados
São Paulo, 24/04/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº MLIJ_HV004
Transcrito por Winny Choe
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Claudio, boa noite.
R - Boa noite.
P/1 - Queria começar a entrevista perguntando seu nome completo e local de nascimento.
R - Meu nome é Claudio Fragata Lopes. Eu nasci em Marília, no interior de São Paulo. Mas com poucos meses eu vim para... Para São Paulo, capital, com a minha família.
P/1 - E você poderia falar o nome dos seus pais e a profissão deles?
R - O nome do meu pai é Álvaro Augusto Lopes, o nome da minha mãe é Altair Fragata Lopes. Normalmente é um nome masculino, né? Altair... Uma vez, eu conversando com ela sobre isso, ela me disse: “Não, mas é um nome feminino porque é o nome de uma estrela” A minha mãe é professora e meu pai, desde menino, mexia com editoração. Os pais deles tinham uma pequena editora em São Paulo e ele aprendeu o ofício desde cedo. Depois de casado com a minha mãe, eles resolveram tentar o interior. Mexer com fazenda, eles compraram um sítio no interior e mudaram pra lá. E foi quando eu nasci, exatamente. Mas aí eu vim pra São Paulo com pouquíssimos meses e fiquei aqui até os sete, oito anos… Não, sete anos. E depois eles voltaram pra lá, para o mesmo lugar, que era Marília.
P/1 - Você passa a infância aqui, essa primeira infância, em que bairro?
R - Essa primeira infância... Vila Mariana, num apartamento que existe até hoje. O edifício existe até hoje, está intocado. Há pouco tempo eu fui fazer um passeio pelo bairro e fiquei emocionado porque está tudo ali.
Durante essa fase eu tive uma vida de cidade mesmo. Era o começo da televisão no Brasil e eu, como calouro da cidade, assistia televisão. Aconteceu uma coisa muito curiosa porque eu tinha uma imensa paixão pelos desenhos animados do Pica-pau, mas eu via o “Sítio do Pica-pau Amarelo”, que era uma adaptação da Tatiana Belinky e do Júlio Gouveia para a televisão, e era um momento assim pra mim: o mundo parava eu ficava em estado de graça. Eu ficava aguardando o momento do programa com muita ansiedade; tive contato, então, com a obra do Monteiro Lobato dessa maneira, muito antes de aprender a ler eu acompanhava as histórias pela televisão. Fiquei familiarizado com a Emília, enfim, com todos os personagens pela TV e, claro, isso também me estimulou muito a ler os livros mais tarde.
Quem tinha os livros na verdade era o meu irmão mais velho e também desde... Exatamente por causa disso, por conhecer os personagens, por gostar das aventuras, eu olhava as ilustrações dos livros, né? Antes de aprender a ler. Uma vez chegou a acontecer o seguinte: os livros ficavam numa estante alta demais pra mim, então tinha todo um esquema de cadeira. Uma vez eu fui pegar o livro, mas invés de usar a cadeira eu usei o velocípede. Levei um tombão assim e desmaiei, um atropelo, cheguei a desmaiar, bati a cabeça no chão. Tinha também nessa mesma estante algumas prateleiras mais altas, tinha um “Dom Quixote”, com… Umas ilustrações muito sinistras e aquilo me enchia de medo e de pavor, mas eu sentia uma atração irresistível por aquilo, então eu fazia o mesmo esquema da cadeira. Não cheguei a levar tombo. Ainda bem! Levar tombo tentando ver as ilustrações sinistras do “Dom Quixote”… Mas era assim, eu já tinha uma certa curiosidade em relação aos livros.
Voltando um pouquinho à história do “Sítio do Pica-pau Amarelo”, aconteceu uma coisa na minha vida que foi muito curiosa. Foi assim de fato, os episódios da televisão e, mais tarde, os próprios livros tiveram uma importância muito grande na minha vida. “O Sítio do Pica-pau Amarelo”, eu conheci cada palmo desse sítio, era uma coisa que eu entrava, ficava imaginando. Mais tarde, quando minha família... Quando eu tinha seis, sete anos, que a minha família voltou pra Marília, eu fui morar numa fazenda. Uma fazenda cheia de bichos e animais e plantação, então a identificação ficou maior, porque pra mim era o meu sítio do pica-pau amarelo, então teve essa importância, que eu diria... Monteiro Lobato e o “Sítio do Pica-pau Amarelo” teve uma importância vital mesmo para minha formação e até no meu interesse pelos livros, pela leitura.
Muitos anos mais tarde, já trabalhando como editor pela revista Recreio, eu havia publicado alguns textos e poemas na revista. Um dia, eu chego em casa e encontro na secretária eletrônica um recado da Tatiana Belinky que era quem fazia as adaptações do “Sítio” para a televisão, que fez a adaptação pioneira do “Sítio”. Eu não a conhecia pessoalmente e tinha um recadinho dela que eu jamais vou esquecer. Dizia o seguinte “Olha, Claudio, você não me conhece, mas eu te conheço porque eu te leio sempre na Recreio. E eu queria te dizer que você faz, você escreve poemas muito do meu jeito.” Aquilo pra mim foi um verde. Ouvi o recado um milhão de vezes e depois entrei em contato com a Tatiana, liguei pra ela e por causa disso acabamos muito amigos, até hoje. Então eu acho que foi curioso isso, porque foi como um grande círculo se fechasse. Aquilo tinha uma importância tão grande pra mim quando eu era menino e de repente estou eu amigo… Jamais podia supor uma coisa dessa. Essa é uma das histórias que eu gosto de lembrar e me faz muito feliz.
P/1 - Voltando lá para Vila Mariana, eu queria que você contasse qual as diferenças das brincadeiras que você tinha na cidade. Além de ver televisão, você devia brincar de alguma coisa. E na fazenda, quais eram as brincadeiras?
R - Brincava também. Bom, a diferença foi absurda porque eu desde meninos gostei muito de animais. As pessoas me traziam carrinho e eu não gostava muito, não, mas quando eles me davam alguma coisa de bicho… Nossa, eu tinha álbum de figurinha de bicho, meu quarto era cheio de bicho. Então, mesmo morando na cidade, eu tinha uma ligação muito forte. É estranho até que eu não tenha sido, não ter me tornado veterinário, por exemplo. Até hoje não sei bem porque, mas era um fascínio muito grande.
Mesmo morando em apartamento, eu olho esse período da minha vida dessa maneira. Quando eu olho pra mim, eu [vejo que] tinha uma imaginação muito forte, eu ficava o tempo todo imaginando coisas. Embora eu tivesse outras crianças no prédio, eu brincava… Tinha aquelas brincadeiras possíveis de uma cidade grande, mas tinha um jardim muito legal também no prédio, então a gente brincava de pega-pega, mas eu passava muito tempo comigo, mesmo assim.
Era um apartamento duplex, de dois andares e tinha uma escada que ligava um andar ao outro. Aquele lugar era um lugar… Não sei por que, eu ficava no meio daquela escada, com… Eu era muito pequeno, tinha três, quatro anos e ficava com um lápis, fingindo que escrevia. Na verdade, eu não estava fingindo porque eu achava que escrevia mesmo. Eram histórias que estavam na minha cabeça e eu ficava, preenchia papéis. E aí minha mãe passava, a empregada passava e: “Olha, esse menino tá escrevendo não sei o quê.” Eu mostrava assim, muito orgulhoso, aquele papel todo rabiscado. “Ah, rabisco.” Eu ficava ofendido: “Como assim?” E eu ficava horas nisso.
Ontem ainda li no UOL uma ideia. Eu não li direito, mas enfim, uma empresa qualquer está lançando rolos de papel higiênico com poemas, literatura para pessoa poder se distrair enquanto vai ao banheiro. Essa ideia é minha. Quando eu era pequeno, os meus pais ficavam desesperados, porque quando entravam no banheiro tinha um rolo todo despencado e todo rabiscado. Rabiscava o rolo inteiro, ficava ali… Acho até que existe uns pedaços dispersos desses escritos.
Eu me lembro de mim assim, realmente, imaginando muita coisa, nesse período. Ficava imaginando coisas. Eu tinha pensamentos que hoje, quando eu lembro, eu penso: “Que engraçado, uma criança pensar isso”, mas eu pensava. Eu me lembro exatamente do dia em que tive a consciência de que eu era uma pessoa viva e que ocupava um lugar no espaço. Então eu ficava meditando sobre essas coisas.
Enfim, acho que esse período… Apesar de ser um menino de apartamento, confinado num apartamento - confinado entre aspas, né? -, eu tinha também um outro estímulo: eu sempre vivi cercado de livros. Era uma coisa que meu pai gostava, meu irmão gostava, minha mãe gostava, então eu pedia muito pra eles me contarem histórias; mesmo o meu irmão, que era uns poucos anos mais velho que eu, contava história assim pra mim. E geralmente eu gostava mais das histórias que ele contava, porque eram histórias assim mais… Tinha uns acontecimentos assim mais heavy metal, umas coisas que a minha mãe e meu pai já não incluíam muito nas histórias. Eu gostava muito das histórias dele. Tinha muita velocidade, carros que explodiam e inventores malucos…
Também tinha discos de história. Eu ouvia muito discos de história, e naquela época... Acho que hoje em dia as crianças não escutam muito histórias em disco, mas naquela época, que era o começo dos anos cinquenta, isso existia. Eram histórias com muita música, com uma produção muito legal, com interpretações muito legais de atores. E eu me lembro que era um disco de massa pesada, então eu me lembro que “Chapeuzinho Vermelho” vinha em seis discos que tinha que ficar... Pra você ouvir a história inteira, que era 72 rotações, era muito rápido. Você tinha que ir virando o disco e isso me dava um desespero muito grande. Eu era tão pequeno que não sabia fazer isso ou não era autorizado, não sei, mas acabava o primeiro lado do primeiro disco com a Chapeuzinho… Sei lá, o lobo chegando muito próximo e eu ficava desesperado porque eu queria que… Não era nem exatamente saber, porque a história eu sabia em décor, mas era a situação da Chapeuzinho. Queria que alguém fizesse alguma coisa por ela, então eu gritava, berrava. Vinha minha mãe, meu pai pra virar o disco e a história continuar. Então eu me lembro muito disso, de ouvir muita história, e conviver muito com livros, cercado de livros. Eu adorava isso.
Tinha o Tico-Tico. Eu era pequeno, ainda não lia, mas as ilustrações, eu lembro que aquilo me encantava e... Acho que quando eu mudei de um apartamento tinha também uma tia que, sabendo que eu gostava muito de animais, me deu de presente um coelho e foi assim… Isso também criou uma situação familiar: um coelho é um animal bonitinho, mas você manter um coelho num apartamento é uma coisa complicada, porque ele faz muito cocô, então minha mãe ficou desesperada com a ideia de se ter um coelho no apartamento fazendo cocô por todo o canto. Aí se criou um problema porque eu não queria... Eu queria aquele coelho de toda a maneira. Talvez isso tenha ajudado meus pais a adiantar a mudança para o interior, a voltar pro interior, porque logo depois eles voltaram pra Marília, eu fui morar na fazenda e o meu coelho foi junto. Só que chegando lá era uma coisa de espaço, eu fui uma criança que subiu em muita árvore, tomei banho de rio, nossa! E tinha aquela coisa com os animais. Isso pra mim era um negócio assim, né?
Agora eu acabo de escrever um livro, “João, Joãozinho e Joãozito”, que é sobre a infância do João Guimarães Rosa. Eu dedico esse livro ao meu irmão porque... Ele era mais velho do que eu e eu me lembro muito disso. A primeira vez que a gente chegou do pasto, com aquele gado, a vacaria toda lá e o meu irmão falando: “Vem, vamos”, passando pela cerca, e eu: “Não, como? Como passar pelo...” “Não, eu vou te ensinar como passar no meio das vacas, não tem problema nenhum.” E aí eu assim, querendo muito… Ao mesmo tempo que eu queria muito chegar perto de uma vaca, botar a mão no chifre da vaca… Mas estimulado por ele, eu fui e de fato aprendi esses segredos, essa sutileza de lidar com os animais mesmo, de saber até onde você pode se aproximar, que você não pode gritar, que você pode fazer movimentos leves, de baixo pra cima. Enfim, foi um mundo que realmente eu fui descobrindo.
Dessa fase, as lembranças mais fortes que tenho realmente estão em contato com os animais. Vaca, pato, galinha, cachorro, gato, eu era completamente fascinado por isso. Mas ao mesmo tempo eu continuei lendo Monteiro Lobato, eu continuei... Só que aí eu tinha uma coisa talvez mais ampliada. Não perdi a mania de ficar inventando coisas. Eu gostava de escrever, isso era uma coisa em que os professores tiveram um papel muito importante, porque eu sempre era notado por isso na sala de aula.
Chegou até uma época [em que] acabou acontecendo uma coisa muito divertida. Eu gostava tanto de escrever, e eu tinha umas notas tão boas escrevendo, fazendo redações, que meus colegas todos, que não eram tão bons assim no negócio, pediam que eu escrevesse pra eles. Eu não me importava, porque adorava escrever. Então aconteceu uma vez o seguinte: meu professor de literatura, ele... Eu passei um semestre inteiro, um ano inteiro escrevendo as redações dos meus amigos, dos meus colegas. Quando chegou a época dos exames, ele e falou assim… Isso tudo era lido em sala de aula, então ele falou assim: “Durante o ano nós tivemos grandes histórias nessa sala, ouvimos histórias. Então agora a nota final vai ser assim: o Claudio, que fez tantas redações, vai ficar de fora e vocês vão fazer agora, aqui, uma redação que vai valer a nota.” Foi aí então que todo mundo descobriu que o tempo todo ele sabia que era eu que escrevia, mas ele permitiu que isso acontecesse. Então era assim, eu tinha esse negócio, que era uma facilidade de escrever e pra mim sempre foi uma coisa assim, muito… Eu tinha esse sentimento que era uma coisa que... Não sei se era a única coisa que eu sabia fazer direito, mas com certeza uma delas, que era... Se tinha uma coisa que eu sabia fazer era escrever, então foi isso que deu sentido a minha vida, a toda a minha vida, mesmo. Acho que tudo isso está fortemente entranhado nesses dois momentos da minha vida como garoto de cidade morando em São Paulo num edifício, num apartamento, e depois no interior, morando numa fazenda. Eu não sei, talvez eu tenha mais histórias desse período, mas não me ocorre agora.
P/1 - Então só voltando ao Monteiro Lobato, que livros te marcaram mais do Monteiro Lobato, porque são tantos, né?
R - São tantos. Um livro que me marcou, que foi um grande insight foi o “Reinações de Narizinho”. Acredito até que tenha sido o primeiro livro do Monteiro Lobato que eu li, mas o meu livro predileto do Monteiro Lobato desde então é um livro que eu trouxe aqui. É “A Chave do Tamanho”, que é um livro pouco conhecido, até. As pessoas, quando falam do Monteiro Lobato, citam outros livros, mas eu gostava do “A Chave do Tamanho” porque… Primeiro porque a história toda já começa com uma descompostura da Emília: ela vai lá e desliga a chave do tamanho das pessoas no mundo. Todo mundo fica pequenininho e tem toda uma aventura a partir daí.
P/1 - E esse é o exemplar da sua infância?
R - Esse é o exemplar da minha infância e essas capas eram capas que eu adorava, assim como as ilustrações até hoje, eu gosto muito de olhar. Como essa aqui, por exemplo. Também tinha esse lado: os personagens passam o tempo todo pelados porque, quando eles diminuem, ficam todos no meio de um monte de roupa.
Aqui eu também tenho outro livro de infância, esse realmente era um dos meus livros prediletos, “A viagem da Dona Ratinha”.
Um livro meu que é o “Seis tombos e um pulinho”, é um livro que fala sobre o Santos Dumont. Eu conto as aventuras do Santos Dumont e os desastres que ele sofreu até conseguir voar pela primeira vez. Lá no finalzinho do livro eu coloco, tem um capitulozinho que se chama “O sonho de voar do autor”, que está extremamente relacionado com esse livro aqui [“A viagem da Dona Ratinha”]. Esse livro, ele conta a história de uma ratinha que vai fazer uma viagem. Na verdade, a irmã dela fica doente e ela vai cuidar da irmã. Ela dá início à viagem e em determinado momento ela perde o trem, logo no começo da história. Depois de andar muito tempo a pé, ela então vai descansar num cogumelo, que está aqui. Repentinamente, o cogumelo começa a crescer e a única saída que a ratinha tem é abrir o guarda-chuva e saltar. Essa parte da história era a parte mais fascinante.
Tanto eu quanto a minha prima - eu tinha uma prima que a gente era muito ligado; ela tinha uns poucos anos a mais que eu, uns três anos a mais, talvez. Por isso mesmo, muito mais sabia do que eu e então a gente fazia muita coisa junto. Os planos geralmente eram dela e eu [os] executava com muito fervor. Ela também gostava dessa história. Depois de ler e reler esse livro milhares de vezes, ela teve essa ideia: “Vamos fazer a mesma coisa que a dona Ratinha.” Ela morava num sobrado que tinha sótão, então a gente subiu até o sótão. Ela arrumou um guarda-chuva pra cada um, a gente chegou na janelinha do sótão e combinamos tudo: “Eu pulo primeiro e depois você pula.” Ela era mais velha, além do mais, as mulheres sempre em primeiro lugar, então ela saltou primeiro, abriu o guarda-chuva e se lançou da janela do sótão.
O meu tio, o pai dela estava no escritório, uma janela abaixo e a viu passando pela janela, então imediatamente deu alarme a todo mundo: a família toda, às empregadas. Todo mundo, cachorro, correu lá pro jardim. Ela, por sorte, estava pendurada nos galhos de uma árvore que tinha no jardim.
As pessoas ainda [estavam] muito nervosas. Quando olham pra cima, veem a mim prontíssimo pro meu salto. “Não salte, não se mexa! Fique aí, não saía daí!” Isso me deixou uma frustração muito grande, acho que por isso que eu tive que escrever o meu “Seis tombos e um pulinho”. Mas foi a partir dessa ideia, a partir dessa sugestão da Dona Ratinha.
P/1 - Quando você percebeu que era isso que você queria fazer mesmo, profissionalmente?
R - Profissionalmente? Olha, que era isso que queria fazer, eu acho que sempre soube. Até por isso que eu disse: na hora de pensar o que sabia fazer, eu não sabia fazer mais nada. Acho que eu não sei até hoje fazer mais nada.
Profissionalmente, foi na adolescência. Na hora de escolher uma profissão, não tinha uma profissão escritor. Todo mundo ia pra uma faculdade, então eu fui por exclusão: eu quero fazer Medicina? Não. Eu quero.... Não. Então onde se escreve? O jornalista escreve, então eu fiz escola de jornalismo e me formei como jornalista. Mas, mesmo como jornalista, eu nunca me senti completamente feliz, porque você como jornalista tem uma outra maneira de escrever, uma outra história. .
O que eu sempre gostei mesmo foi de inventar história, foi sempre de... A hora que eu estou escrevendo é o único momento que eu me sinto uma pessoa livre. Nessa hora eu não tenho medo de nada, eu não tenho nada. É um momento assim, que eu... É uma coisa maluca, é uma coisa até de se sentir meio Deus. Eu posso ser o que eu quiser, eu posso fazer o que eu quiser, é um território completamente meu, enfim. A minha carreira como escritor começou tardiamente até, mas eu sempre soube que era isso que queria, sempre.
P/1 - E por quê para crianças jovens? Isso foi uma marca ou isso foi acontecendo?
R - Isso foi bastante circunstancial, porque eu, quando escrevia ainda sem ser profissionalmente, eu escrevia não pensando exatamente em um público. Mas depois eu tive uma fase que fui trabalhar na Editora Globo. Trabalhei em parceria com o Maurício de Souza e fiz pra ele, desenvolvi os manuais para a Turma da Mônica. Nesses manuais, eu inventei de usar contos de fadas adaptados para a Turma da Mônica, então tinha “Vestidinho Vermelho”, que era a versão Mônica para a Chapeuzinho Vermelho e aí eu vi que eu tinha uma certa facilidade para escrever para crianças também.
Mas tem uma outra coisa... Desculpa esse discurso meio caótico, mas quando eu era menino, [quando] tinha dez anos eu formei um grupo de teatro de marionetes. Era eu e mais três colegas, três amiguinhos e a gente fez carreira lá em Marília. A gente ia fazer apresentações pela cidade e pelo interior, a gente ganhou prêmios. A coisa funcionava assim: eu escrevia os textos das peças de teatro e fazia muita adaptação de peças e contos de fadas, então tinha a minha versão da Branca de Neve, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, essas coisas assim. Então essa coisa de adaptar histórias, dando uma outra versão pra elas, foi algo que eu fiz desde sempre. Claro, trabalhando com o Maurício virou uma coisa mais profissional. E aí eu percebi que as crianças gostavam, achavam divertido e foi meio caminhando assim, não foi uma escolha.
Quando eu fui para Recreio me pediram.... Na verdade, eu ainda nem trabalhava na Recreio. Eu fui para Abril por conta de outro projeto e me pediram uma história infantil para ser publicada na Recreio. Eu publiquei uma história chamada “Um sapato em cada pé”. Publiquei sem nenhuma intenção. Passadas algumas semanas... Eu fazia na época um trabalho como jornalista para editora Record. Editora não sabia de nada, não sabia que eu escrevia, aliás nem sabia que eu trabalhava com a Recreio. Um dia toca meu celular, era a Luciana Villas-Boas da Record e fala: “Claudio, meu filho chegou hoje da escola com uma revista Recreio onde tem um conto que está assinado “R”, então eu queria saber: é você? Ou é um outro?” “Não, sou eu mesmo.” “Então é o seguinte: você vai me mandar um livro imediatamente pra publicar, porque eu quero publicar. Eu adorei essa história.” Foi assim que eu comecei a publicar livros e para crianças.
P/1 - Claudio, só pra pegar o gancho: eu acho que você, a partir do seu próprio sobrenome, tem uma relação especial com certos animais. Como se deu essa relação com esses incríveis animais de bigode?
R - Os felinos? Eu tinha já contato com os felinos, com os gatos, desde o tempo de... Morando na fazenda [havia] muitos gatos, mas eram gatos que circulavam pela fazenda, pelos telhados da fazenda, era uma relação um pouco distante. Quando, já adulto, eu vim pra São Paulo, tinha muita vontade de ter animais, mas sempre morando em apartamento, era complicado. Cheguei a ter um cachorro, mas era muito complicado pra mim e pro cachorro, ele sofria muito com esse negócio de ficar esperando por mim pra sair pra passear.
Um dia, uma amiga minha, jornalista… A gata dela tinha tido filhotes e ela disse: “Claudio, eu acho que você vai adorar ter um gato.” Na época eu não quis. Eu tive essa experiência com cachorro, tive que me afastar dele, foi horrível. Eu tinha medo, essa ideia de animal em apartamento e ela falou: “Não, não é assim. Os gatos se adaptam bem a espaços pequenos.” Enfim, ela me convenceu e me deu um gatinho, ainda com essa condição: “Você vai ficar três dias com esse gatinho e se você não se acostumar você me dá de volta.” Mas aí foi paixão a primeira vista - aliás, é uma qualidade felina muito grande essa de cativar o dono. E aí convivendo tão intimamente, tão de perto num espaço de um apartamento com os gatos eu fui conhecendo o animal e sou completamente fascinado por eles. Aprendi muita coisa com eles e hoje nem consigo me imaginar escrevendo, por exemplo, sem a presença deles à minha volta. Agora, que minha tela é plana, eles não podem mais deitar em cima do computador como era antigamente, que volta e meia eu tinha que tira uma cauda do meu caminho. Ainda assim eles dormem, tem umas almofadas em volta do meu computador e fica um monte de gato enquanto estou trabalhando. Se eles não estão eu sinto falta, parece que está faltando alguma coisa. Então foi um mundo que eu descobri, o mundo felino.
P/1 - O seu primeiro livro foi sobre gatos?
R - Coincidentemente, o meu primeiro livro é sobre gatos. De certa forma, foi uma coisa que eu fiquei muito feliz.
P/1 - Mostra o livro aqui pra câmera...
R - Vou pegar aqui, trouxe também o livro. Eis o livro, “As filhas da Gata de Alice moram aqui”, com ilustrações belíssimas do Marcelo Hardt, que são ilustrações digitais - ele não usou uma aquarela, nenhum pincel aqui e criou imagens magníficas. Na verdade, eu gostei muito desse trabalho com a editora Record porque eu não imaginei que esse texto, foi um texto assim... A Luciana me deu liberdade absoluta para criar esse texto e ele é na verdade uma homenagem ao Lewis Carroll, que é ainda um dos meus autores prediletos. “Alice no país das Maravilhas” é um livro que eu li desde sempre. Desde menino, quando eu aprendi a ler, antes de eu ler meu pai e minha mãe me contavam a história da Alice, mostravam as ilustrações. Eu sou fascinado, é um dos meus livros prediletos.
Esse livro conta as aventuras de um leitor - é um homem -, ele está lendo o livro da Alice e de repente vê que tem um gatinho ali miando, perto dele. Quando ele vê, é a gata da Alice que havia saltado do livro e estava ali, na casa dele. Aí tem toda uma aventura, ele fica dividido porque, ao mesmo tempo que ele está adorando ficar com a gata da Alice, ele sabe que a gata é da Alice, então sabe que tem que devolver. Então ele tem uma ideia: ele acha que se ler bem devagar ele vai ficar... E a gata só reaparece no livro bem no final da história, então ele tem essa ideia: se lesse a história bastante devagar, ele ficaria mais tempo na companhia da gata da Alice. E assim a história vai.
É engraçado que muita gente… Esse personagem, esse leitor é um leitor, nem nome ele tem na história. É um homem que está lendo “Alice no país das Maravilhas”. Engraçado, mesmo as críticas que fizeram no jornal, as resenhas que fizeram sempre falavam assim: “Claudio, conta a sua aventura quando está lendo o livro.” Eu não sei por que chegaram a essa conclusão que o personagem sou eu.
P/1 - Claudio, você pode ler um trechinho?
R - Claro. Deixa eu ver... Deixa eu ver que trecho eu poderia ler. Não sei, eu posso ler esse trecho que eu acabei de mencionar? Em que ele decide ler bem devagar? Muito bem:
“Os dias foram passando e passando, fomos ficando tão amigos que tive medo de sentir sua falta quando a devolvesse para Alice. Então me veio uma ideia: se eu lesse o livro bem devagar, mais tempo Alice ficaria no país das Maravilhas, pois ela só volta no final da história, assim eu teria mais tempo com Dinah.
Passei a ler apenas alguns parágrafos por dia. Nos sábados e domingos lia somente uma linha. O tempo foi passando tão devagar que parecia até uma tartaruga bem velha. Notei uma coisa, a cada dia Dinah ficava mais gordinha. Tão barriguda que quase nem se mexia. Eu pensando que era por causa das pilhas de lata de sardinha e ração úmida. Puro engano. Ela estava esperando bebês gatinhos. Só percebi quando ouvi um miado fininho assim: Mii. Era uma linda gatinha preta que tinha acabado de nascer. Logo depois ouvi um miado ainda mais fininho: Miii. Era uma gatinha branca igualzinha a mãe, batizei-as de Kiti e Flocos de Neve.” E a história vai.
Desde que eu recebi o seu convite eu não tinha pensando em nada assim, agora a caminho daqui...
P/1 - Claudio, eu queria saber. Quando você escreve, você já escreve pensando logo num começo, meio e fim, dependendo de alguma encomenda? Ou você começa a escrever sem pensar necessariamente no que aquela história vai finalizar?
R - Eu sei que os escritores… Cada um tem o seu jeito, né? Mas uma vez, conversando com a Ruth Rocha, ela me disse que só consegue escrever depois que a história está completamente acabada na cabeça dela, então, começo meio e fim; só aí que ela escreve. Eu tenho uma teoria assim: acho que todos os caminhos podem levar a uma boa história, então eu sou bem disciplinado sobre isso. Eu já escrevi depois de pensar na história e como... Depois de ela pronta, passar para o papel, alguma coisa assim. E já fiz mais que isso, até.
Tem uma história que eu gosto muito, achei o resultado muito bom. Quando eu leio, acho que ela flui e eu mesmo não acredito que ela tenha saído assim, milimetricamente planejada. Eu fiz um esquema mesmo com os personagens, “vai acontecer isso daqui”... Cada personagem e ação foi planejada antes, depois eu escrevi a história e o resultado foi interessante, eu gostei de... Mas eu te confesso que eu teria muita preguiça de escrever sempre assim, entendeu? De passar horas planejando uma história, pra depois...
Na maioria das vezes, eu escrevo na mais absoluta escuridão. Eu vou escrevendo sem a menor ideia do que e como é que a história vai acabar. Isso é uma coisa que me estimula muito a escrever, porque eu também quero saber como aquela história vai acabar. Geralmente eu me surpreendo muito com o final da história... “Ah, então acabou assim!” Em geral é assim que eu escrevo, de uma maneira um pouco aventureira, eu diria.
P/1 - Claudio, desde menino ou até agora tem aquela ânsia de tirar a ideia da cabeça e escrever logo? Dez milhões de idéias, mas não consigo escrever... Como era isso quando você era menor e como é agora?
R - A diferença agora é que realmente eu não tenho grandes dificuldades para escrever assim. O problema é que se eu penso: “Isso eu vou publicar, isso eu vou oferecer para uma editora”, outras pessoas vão ler. Porque a gente… Sempre ouvi escritores falando isso: “Depois que eu publico, o livro não é meu mais” e é verdade isso, eu sinto isso mesmo. Eu olho para esses livros, eu sei que o meu nome está aí, mas eles têm uma vida própria uma coisa, é muito engraçado isso.
As pessoas me mandam e-mail, encontram comigo no salão de livros da Bienal e falam: “Li seu livro. Olha, aconteceu tal coisa”, relatam coisas que eu fico impressionado. Como o livro mexeu com aquela pessoa, enfim, como ele tocou aquela pessoa. Isso aumenta um pouco minhas responsabilidades na hora que eu penso: “Esse texto eu vou mandar para editora, vou mandar para Sônia.” Então eu trabalho o texto, escrevo, reescrevo e aí não é nada fácil, é uma tarefa... Um sofrimento muito grande, eu diria, não tem nada de... Não é muito alegre essa parte. Não tem nada de alegria, é um sofrimento muito grande, uma angústia muito grande, que não termina até o livro fica pronto. Depois que eu mando para a editora, eu assinei o contrato, enquanto eu não vir o livro pronto, enquanto não falar pro filho “agora vai” eu não... Esse livro, o “João, Joãozinho e Joãozito” que está no prelo, foi pra editora no final do ano passado e a ideia é que fosse lançado no começo desse ano. Mas tiveram um problema com ilustrador, enfim, tem sempre essa questão num livro que também tem imagens. Teve um problema com a ilustração e o lançamento foi adiado. Isso está me causando uma angústia tremenda, porque enquanto esse livro não estiver publicado eu sei que não vou ter um minuto de paz.
Então é assim, acho que esse é um problema de todo escritor: por mais facilidade que você tenha pra escrever, acho que você sempre vai ser muito rigoroso na hora em que pensar esse texto como um texto publicado, como um livro. Eu sou muito rigoroso, me preocupo demais. Felizmente também, eu nunca tive essa... Eu faço, antes de ir pra editora ou mesmo quando o texto está está nas mãos da editora, mas o livro não foi produzido… Eu faço mil sessões, na minha casa, de leitura com os meus amigos. Eu peço que eles leiam pra mim, eu quero ouvir. É muito diferente quando você escuta. Nós temos outro escritor aqui, que é o José Santos, ele deve saber disso também: quando você ouve um texto você descobre muita coisa, você descobre, às vezes puxa... Se eu inverter fica mais sonoro, se eu trocar essas duas palavras, se eu tirar, enfim, você faz toda uma edição em cima só da sonoridade, essa... Acho que o texto é isso, sobretudo um texto infantojuvenil: ele tem que ter uma sonoridade, tem que conduzir o leitor. Não é só a história que conduz o leitor, eu acredito nisso. Eu acredito que o som das palavras têm a capacidade de levar você até o final do livro.
P/1 - No jornalismo, a gente costuma dizer que se um cachorro morder um homem isso não é notícia, mas se um homem morder um cachorro isso é notícia. Diante de tantas ideias, de tantas coisas que surgem, de tantos pensamentos nessa parte de criação, como você define que aquela ideia vai virar ou não? Como você seleciona?
R - Eu acho que tem… Eu não sei se tem mais de dois modos, mas eu estou me lembrando de dois modos que acontecem comigo. Em algum momento aquele assunto, aquele tema, eu acho que você olha e fala assim: “Puxa, esse assunto dá uma história”. Eu não sei se minha formação jornalística também me ajuda um pouco nisso, de olhar algumas coisas e: “Hum, isso dá uma boa história.”
Tem uma outra coisa. Eu posso começar a trabalhar. Se aquilo não funcionar, se eu mesmo não me divertir um pouco com aquele texto, não me interessar com aquele texto, eu estou com algum problema. Então eu abandono aquele texto, um dia eu volto pra ele, enfim. Mas isso eu faço também depois de insistir muito nesse texto. Já teve histórias que eu terminei, aí depois daquele tempo regulamentar que eu dou para o texto eu percebi que a história é chatíssima. Ninguém vai se interessar por esse texto, ninguém vai ter paciência de ler essa história. E aí eu refaço tudo.
Atualmente eu estou fazendo exatamente isso. Eu passei meses trabalhando em cima de uma história que já estava pronta, cheguei até a mandar pra uma editora há alguns anos. O editor mandou um bilhetinho muito simpático, mas falando que não queria editar e ainda fazendo assim: “Na verdade...”. Eu fiquei muito ofendido quando eu li aquilo: “Mas como? Como assim?” E depois: “Sabe que eu acho que essa editora tem razão?” Comecei e refiz a história toda, agora estou bem no final da história. Estou realmente a três parágrafos de terminar essa história e é uma luta muito grande até a última palavra, não é, José Santos? Você escreve e ela também te dá trabalho, um livro tem que terminar.
Quando você termina, tudo é importante no livro. A maneira de você terminar o livro também é importante: me dá a impressão de que se você não termina… A primeira palavra de um texto, a primeira palavra de um livro eu também acho que é fundamental, porque é ela que fala: “Vem comigo”. A primeira linha, o primeiro parágrafo, enfim, ela tem uma missão a ser cumprida. Mas a última também, porque me dá a impressão que se você terminou a história, aí ficou um final meio chocho, primeiro que você não se sente estimulado nem a reler aquela história e acho que também você fala: “Nunca mais vou ler nada desse autor. Pra mim chega, história boba”, sei lá. Então eu me preocupo até o último momento com o texto.
P/1 - Claudio, aproveitando que você está falando disso, tem um suor seu muito grande até terminar o texto...
R - Tem, bastante.
P/1 -... para achar que ele está bom e oferecê-lo para alguém. Na hora que você está com o editor, o editor faz sugestões, como você recebe isso? Como é a sua relação com os editores?
R - Eu acho que… De novo eu percebo, em relação a outros amigos escritores, eu percebo que a minha relação é bem flexível. E aí não tenho dúvida que a minha experiência como jornalista influenciou muito. Porque quando você trabalha, o jornalismo não tem muita… Não tem ali esse glamour. Acho que é um texto [em] que você tem que informar, você tem que... E mesmo você está fazendo um texto jornalístico, se você vai fazer uma resenha, é um trabalho de grupo e o editor vai falar assim: “Não cabe nessa página, você vai ter que cortar”, então é um artesanato, vamos dizer assim.
Agora acho que passei um pouco disso. Eu não tenho essa ideia de que é um texto literário, então eu ouço, eu sou bem... Eu percebo, sou muito mais flexível do que outros autores que eu conheço. Eu ouço sim o editor. Foi um caso, eu gostava muito dessa história quando entreguei pra essa editora e fiquei um pouco ofendido quando ela fez os reparos, mas depois de um tempo eu reconheci que ela tinha razão. Eu aceitei, acatei as sugestões dela e também acrescentei outras coisas, tanto que se o texto tivesse terminado eu não estaria trabalhando nele até agora. Então acho que ela tinha razão.
Eu gosto… Não acho que essa é uma atividade sagrada que você… Eu gosto de ouvir. Essas experiências que faço em minha casa, de chamar meus amigos - eu tenho alguns amigos assim, sempre fico morrendo de medo que eles um dia falem que não aguentam mais. Por isso que eu tenho vários, até. Às vezes eu simplesmente não consigo me convencer com um, né? Não adianta nada, peço pra todos eles no final, e faço leituras coletivas, todo mundo palpitando. Eu não tenho muito, sabe...
É claro, existe um limite. Por exemplo: a editora, na época da produção do “Seis tombos e um pulinho”. Como era um livro infantojuvenil, teve uma discussão sobre o título. Ela achou que o “pulinho” infantilizava demais, esse “pulinho” diminutivo. E pra mim era importante esse “pulinho”, porque se você fala “Seis tombos e um pulo”, pra mim não é a mesma coisa. Eu não achava que “pulinho” era uma coisa tatibitate, você dá um pulinho… Aliás era isso, porque essa ideia do pulinho surge a partir de um fato real. Depois que o Santos Dumont levanta voo no “14 Bis” os redatores, invejosos, chegaram a dizer: “Mas só deu um pulinho, voo [de] sessenta metros. Isso não é voo, foi um pulinho.” Por isso que essa palavra entra no título. Então foi assim, uma coisa que se discutiu muito. Eu não abri mão desse “pulinho” e claro que… Sei lá, se fosse um… Felizmente, o editor acabou concordando e aceitou. Mas eu acho que existe esse espaço, acho que você deve lutar com o editor. Se aquilo é muito importante para você, se aquilo é muito visceral na obra, pro livro, acho que você tem que fazer o editor perceber também, discutir com ele. De forma alguma se fechar. O editor não é um Deus. Ele existe para isso e é um trabalho, eu gosto muito desse trabalho, gosto muito de dividir. Eu já fiz o pesado, que é o texto, então dividir com outras pessoas o texto. Vejo que, pelo menos a princípio, são coisas que contribuem para que o texto fique melhor. Realmente eu acredito nisso.
P/1 - Só pra registrar sua produção, então você começa com “As filhas da gata”...
R - Com “As filhas da gata de Alice”. Eu sou um pouco esquecido, mas acho que a seqüência foi essa. O segundo foi “O balaio de bichos”. Na verdade, existe um primeiro livro. Eu considero “As filhas da gata” o meu primeiro livro, mas antes dele lancei um outro livro e o projeto editorial ficou tão horrível, foi tão decepcionante. Eu fiquei tão triste quando vi que é um filho que eu renego completamente. É uma pena, porque até hoje eu gosto do texto.
Tem um livro de poemas e que eu gosto muito também do formato escolhido, foi uma ideia do editor e uma ideia muito feliz, porque eu acho esse formato muito bom para poesias. Posso contar a história desse libélula?
P/1 - Você pode, além de contar a história, ler um poema...
R - Ah, muito bem. Conto a história antes ou depois da libélula?
Bom, vou ler primeiro o poema: “O balé da libélula”.
“A bela libélula revoa ao léu a dona da lagoa. Lânguida dança seu balé à toa. Baila tão leve no véu de névoa, mal se vê seu pai dedê tão breve. As borboletas vividas de inveja batem asas, vão borboletear nas poças rasas. A libélula dança livre e leve. Quando se cansa pousa na pétala da vitória régia.”
as ilustrações do livro são do Biry Sarkis que eu considero um dos grandes ilustradores da nova geração. A Sônia, que está aqui presente, sabe disso. Quando foi fazer essa libélula, ele quis usar asas de verdade. Ele mandou pra editora uma, ele faz isso normalmente. Ele trabalha muito com aquarela e ele já faz isso habitualmente, No dia a dia, ele vai guardando habitualmente coisas que acha pelo mato - asas, insetos, flores secas. Porque ele tem um hábito ecológico, muito desenvolvido: ele jamais mata os bichos pra usar, fazer as artes dele. Acontece que quando ele mandou, as asas de uma libélula são muito frágeis e a editora não estava habituada, nunca tinha visto isso uma asa de libélula de verdade numa arte e a asa se rompeu. Tinha um prazo apertadíssimo pra esse livro sair e chegaram a sugerir que ele desenhasse uma asa. Ele não quis de jeito nenhum, então ele foi obrigado a se armar de uma rede, se meteu no mato, caçou uma libélula e arrancou as asas da libélula pra poder fazer a sua arte. Quando eu perguntei se quando ele olhava ele não se sentia culpado, ele [respondeu]: “Não, ela ficou eterna.” Então eu acho que foi em boa causa.
É isso, a história da... Esse então é o segundo livro e depois foi “O voo supersônico da galinha Galateia”, eu acredito. Não, não foi não. O próximo livro foi “A princesinha boca suja”, que saiu pela Scipione. É uma história que gosto muito e realmente fiquei surpreso quando a editora aceitou fazer o livro. Eu achava que é um texto tão descontraído, despretensioso, bem humorado que eu achava que talvez o livro não tivesse aquela, assim... Na verdade, é isso que eu percebo que as crianças gostam e os adultos também, é exatamente esse humor que percorre. Ouvi até um conselho da Fanny Abramovich, depois que ela leu o livro: “Eu, se fosse você, só escreveria histórias assim.” Depois disso eu escrevi algumas histórias parecidas, que mandei para editoras, mas elas não acharam tão divertidas assim.
P/1 - Mas a Fanny é “Uma princesinha boca-suja”.
R - É “Uma princesinha boca suja”. Aliás, a Fanny… Eu quero fazer um tributo, aproveitar o momento para fazer um tributo, porque a Fanny, quando eu lancei o meu primeiro livro, ela muito simpaticamente se prontificou a fazer a quarta capa. Escreveu um texto muito bacana e desde então eu a considero… Foi ela que se autointitulou de minha fada madrinha.
Bom, na sequência, depois do “A princesinha boca suja” foi “O voo supersônico da galinha Galateia”. Esse livro, na verdade, é uma dívida que eu tinha com o escritor Caio Fernando Abreu, que eu conheci nos anos 80. A gente ficou amigo e o Caio também contribuiu um pouco para essa história de escrever para crianças. Porque ele sabia que... Nessa época eu trabalhava na divisão infanto da editora Globo. Um dia, conversando com ele, ele me contou que tinha escrito um livro, um único livro infantojuvenil. Era uma história de galinhas que se chamava “As frangas” e a história tinha nascido de um livro da Clarice Lispector, que a Clarice escreveu para crianças também, que bem no finalzinho do livro ela... O livro se chama “A vida íntima de Laura” e bem no finalzinho do livro a Clarice escreve assim: “Se você conhece alguma história de galinha eu quero saber ou invente uma bem boazinha e me conte.” O Caio tinha feito isso; o livro dele, “As frangas”, na verdade é… Ele atendeu o pedido da Clarice e escreveu uma história de galinha pra ela. Nessa época, quando eu o conheci e a gente se tornou amigo, [ele perguntou]: “Porque você não escreve uma história para a Clarice também?”
Naquela época, eu achava isso uma coisa grande demais, era um projeto estratosférico. Eu escrever pra Clarice Lispector? Não. [Respondi:] “Ah tá. Um dia eu vou escrever, pode deixar então.” Aconteceu que o Caio morreu e eu fiquei com essa dívida. Mesmo quando eu pensava no assunto, continuei achando que era um projeto muito além da minha capacidade. Até que um dia, conversando com a Fanny Abramovich, que foi amiga do Caio Fernando Abreu, eu contei toda essa história pra ela e ela falou “Então agora você está com dívida com duas pessoas: com a Clarice e com o Caio, que já morreu, então você tem que contar essa história pros dois.” Ela me falou de uma forma tão incisiva que eu voltei pra minha casa e essa história nasceu naquela noite. É essa aqui, “O voo supersônico da galinha Galateia”, então foi isso.
P/1 - Esse foi o que ganhou o prêmio IBE?
R - Foi esse livro [que] ganhou o prêmio IBE.
P/1 - Ela está perguntando o que é isso...
R - Foi o Programa Nacional de Bibliotecas, é isso?
P/1 - Prêmio da biblioteca na escola.
R - Isso, eu sou péssimo pra siglas, prêmio IBE. Finalmente, em 2006, eu lancei o “Seis tombos e um pulinho”. Aliás, eu queria voltar um pouquinho a sua pergunta, [sobre] quando você diz o que serve de tema, quando você sente que pode dar uma história.
Aqui, por exemplo, é uma experiência diferente, gostei muito da experiência que era escrever a partir de fatos reais. Eu só havia escrito histórias completamente inventadas. Acontece que eu trabalhava na Globo Ciência e um dia chegou em minhas mãos um livro escrito pelo próprio Santos Dumont. Lendo aquele livro, eu vi que não sabia nada da vida do Santos Dumont e que a vida dele tinha sido uma história fantástica, realmente uma aventura, com todos os ingredientes de uma aventura, de uma boa história. Pra mim, uma boa história tem que ter emoção, tem que ter... A vida do Santos Dumont tinha todos esse ingredientes: surpresa, movimento, enfim, suspense. Então cheguei a pensar: “Poxa, seria legal escrever um livro contando a vida do Santos Dumont dessa maneira, do ponto de vista de uma grande aventura.”
O que me fascinou também foi o relato que ele fazia dos grandes tombos que ele tinha levado. Despencou de grandes alturas, tombos completamente... Um deles, que ele ficou pendurado em um hotel em Paris. Ele teve que escalar o prédio como se fosse o homem-aranha pra ser resgatado, coisas mesmo... Passados alguns anos, voltei a essa ideia, a esse projeto, e comecei a escrever o livro com essa intenção.
Assim como eu desconhecia - eu era um jornalista e desconhecia a história do Santos Dumont, sabia que ele tinha inventado o 14 Bis -, depois do livro lançado, eu lembro… No salão do livro infantil do MAM do Rio de Janeiro - o livro foi lançado lá também -, eu me lembro que, conversando com uma plateia de pessoas de todas as idades, eu perguntei assim: “Alguém sabe que estado que o Santos Dumont nasceu? Ele é paulista, ele é carioca?” Ninguém sabia. Demorou para alguém falar “ele é mineiro” porque ninguém sabe mesmo, a gente não associa esses detalhes à figura de Santos Dumont. Acho que foi tão forte o que ele fez, a proeza de voar foi tão grande que ficou concentrado ali, né? O que eu sabia era isso, que ele tinha construído o 14 Bis, que ele tinha voado a primeira vez num aparelho mais pesado que o ar e que era o patrono da aviação, enfim, essas coisas que todo mundo sabe. Foi a partir dessa ideia, o projeto inicial foi esse.
Depois que eu acabei de escrever o livro eu fiquei muito preocupado, porque procurei dar um tratamento demorado ao texto. Não queria que fosse uma biografia chata, não queria que fosse um texto chato, um texto didático. Queria que as pessoas lessem esse livro com muito prazer, então eu abusei muito do bom humor.
Depois do livro pronto eu fiquei com duas preocupações: eu fui debochado demais, será que pode parecer um desrespeito à figura do Santos Dumont? E a outra coisa foi: será que, com esse trabalho de transformar o texto em um texto literário, eu deixei escapar fatos históricos? Porque eu queria que fosse factual ao mesmo tempo, eu queria que o projeto tivesse essas duas faces. Aí foi a parte mais arriscada da história, quando eu decidi mandar o original pro sobrinho-bisneto do Santos Dumont ler. É um sobrinho-bisneto que cuida da memória do Santos Dumont. Mandei o original pra ele com esse pedido, de que ele fosse bem rigoroso: se tivesse algum deslize histórico, pra ele me dizer qual era.
Esse texto ficou com ele durante seis meses, sem eu nem obter nenhuma resposta. Fiquei completamente alucinado porque eu pensei: ele detestou o livro, achou que foi um deboche, sei lá. Depois de seis meses, ele então me deu uma resposta.
Espero que vocês tirem isso na edição, um celular tocando no meio da entrevista é um pouco…
Finalmente ele me respondeu, falando que não tinha lembrança de nenhum texto dirigido a esse público que tivesse esse gancho de humor, que foi exatamente o que ele gostou mais no livro. Foi um grande alívio, depois de seis meses. Mas ele foi tão bacana comigo que eu fiz questão de colocá-lo como consultor histórico do livro. Então, só completando um pouquinho o que você disse, tem isso também: você pode perceber que tem uma boa história até num acontecimento concreto, real factual, histórico. Acho que tudo pode virar uma boa história, é isso.
P/1 - Claudio, você falou já um pouco sobre essa questão do livro. É uma construção que passa pelo autor, ilustrador e editor. Tem a outra ponta, que é o leitor. Tem um elemento importantíssimo nesse processo, que é o professor. Eu queria que você contasse algumas histórias em relação ao professor.
R - Até hoje, a minha relação com os professores foi a melhor possível porque, em geral, eles me procuram depois de terem trabalhado os livros em sala de aula. Eu fico muito feliz, porque nenhum dos meus livros foi escrito nessa intenção de servir como instrumento de educação formal.
Os meus livros nascem sempre de um ponto de vista literário. Quando estou escrevendo um livro, a única coisa que posso dizer é que eu estou fazendo literatura. Mas eu não estou pensando assim, realmente não é… Acho que a literatura, não a que eu produzo, mas a literatura produzida pelos escritores, ela já é altamente educativa. Você não precisa escrever textos tão paradidáticos, tão em cima dos temas transversais, ficar na camisa de força. Tanto que não só eu tenho esse retorno tanto dos professores, quanto várias editoras que trabalham com livro didático. Ontem mesmo eu autorizei o uso de um poema publicado em “Recreio” para um livro didático. As editoras tem usado muito material meu como didático e fico muito feliz com isso, porque eu acho que assim que tem que ser.
Acho que quando era adolescente, quando era criança, eu me lembro que a gente tinha livros didáticos antiquados. Mas eu nunca me esqueci da “Serra do rola-moça”, entende? Eu nunca esqueci, achava aquilo maravilhoso, era um poema, era uma tragédia, Mário de Andrade. Era um poema que ele escreveu em cima de uma tragédia, de uma moça que caiu num abismo, mas são versos tão musicais. Eu adorava aquilo e tenho certeza que o Mário de Andrade não escreveu aquilo pensando nas escolas brasileiras nem nos estudantes brasileiros. No entanto, aquilo funcionou. Acho que é assim que tem que ser. Quando esse casamento acontece, da literatura com a escola, eu acho maravilhoso. Então eu tenho tido também...
Confesso que fiquei chateado quando “As gatas de Alice”... O livro foi comprado pelo governo do Estado e distribuído também nas bibliotecas estaduais. A coordenadoria da educação me chamou pra uma reunião com professores, para que eles se familiarizassem com o livro. Achei a ideia bacana e fui, mas fiquei surpreso quando vi que a grande maioria dos professores presentes ali naquele auditório não sabia, não tinha lido e desconhecia a história da “Alice no país das maravilhas”. Ainda um professor falou: “Mas também é uma história estrangeira, não é uma história brasileira.” Como assim? É um clássico, literatura mundial.
Realmente, eu não sabia. Então tentei primeiro contar a história da “Alice no país das maravilhas”. Dei a sugestão de leitura, existem milhões de versões da “Alice” no mercado e sobretudo o desenho do Disney, [em] que a história está bastante sintetizada, mas pra pelo menos ter um primeiro contato com a história. Então existe esse lado também, que eu acho bem triste da educação brasileira. Por mais que possa parecer choradeira, eu atribuo sim aos terríveis anos de chumbo da ditadura militar, onde esse país andou muito pra trás em relação a educação. Hoje os professores… Essa história, por mais que já tenha virado um clichê, “porque o professor ganha pouco, por isso não pode se informar”, é verdade, ele não tem. Ainda que as editoras façam um trabalho também, de fato, boa parte dos nossos professores não têm uma formação que a gente poderia desejar.
P/1 - Bom, Claudio, estamos chegando aqui ao fim, então eu queria aproveitar para ver se alguém quer fazer mais alguma pergunta para o Claudio.
P/2 - Na verdade, não é uma pergunta, mas eu queria complementar a sua pergunta sobre livros didáticos. Além das crianças que tem acesso pela escola, eu trabalho com crianças hospitalizadas, eu conto histórias para elas, então queria dizer que isso é muito legal. É muito importante, resgata uma série de coisas que a criança está ambientada pelo clima hospitalar. Queria pedir até, não sei, para alguém que trabalhe em editoras uma sugestão: fazer mais, procurar fazer livros que sejam plastificados pra gente poder fazer higienização dos livros. Acho que é uma parte importante que deveria trabalhar nos livros. E agradecer pelas crianças.
R - Eu realmente não tenho muitas informações nesse sentido e sei que já se fazem no Brasil livros infantojuvenis em braille. Alguns autores consagrados - a Tatiana Belinky acabou de autorizar que transformasse um texto dela em braille e eu acho um projeto maravilhoso. Eu sei que já existe, pode ser que ainda seja meio tímido ainda, mas que já existe esse tipo de produção de livro para um uso específico e para leitores específicos também.
P/1 - Já sim, mas espero que o próximo seja o seu.
R - O meu? Tomara que sim, espero que sim.
P/2 - Mas mesmo assim, a gente usa os livros. Os livros de papel são mais difíceis de trabalhar, pra gente divulgar pras crianças, mas a gente trabalha contando a história ou, dependendo do quadro clínico, levando pra criança poder ter o contato com o livro e depois passando para uma outra. Mas só para expandir, para...
P/1 - Fica ai o registro. Não custa pedir, né? Não custa sonhar.
R - Eu acho que quando começam essas sessões de leitura doméstica, que eu peço para os meus amigos lerem, as pessoas lerem, eu acho que essa relação visceral com o texto começa a se desfazer e realmente você vai se distanciando. Você começa a olhar o texto de outra maneira, você começa a ouvir o texto. Ao mesmo tempo que ele é seu, você começa a pensar nele funcionando. Como é que ele vai batendo nas pessoas, de acordo com a reação de cada um.
Eu me lembro recentemente [de] uma experiência muito legal. Depois que eu acabei de escrever o livro sobre o Santos Dumont, que foi em cima de fatos reais, eu comecei a escrever um livro que conta a passagem do Saint-Exupéry pelo Brasil, que é uma história pouco conhecida. Embora também não tenha documentos que prove que isso aconteceu, existe uma prova, que na minha opinião é melhor do que milhares de documentos, que é o apelido. O Exupéry fez amizade com um pescador em Santa Catarina, num povoado. Esse pescador contou pros amigos e pras outras gerações que ele tinha um amigo que voava, que de vez em quando aparecia ali e que chamava “Zéperi”. Isso é a prova maior que ele esteve entre nós. Então eu escrevi esse livro e ... Meu Deus, esqueci o que ia falar.
P/1 - Mas esse livro já está pronto?
R - Já está pronto, na verdade. Ele ia ser lançado esse ano pela Record e eles resolveram trocar pelo Guimarães Rosa, porque esse ano é o ano do centenário do Guimarães Rosa. É outra coisa que está me deixando muito aflito por estar parado.
Mas era alguma coisa relacionado à linguagem... Ah, sim. De ler e reler, esse laboratório posterior. Aconteceu isso: eu comecei a escrever o livro e fiz uma sessão com alguns capítulos desse livro e alguns amigos, foi engraçado. “Essa história é muito bacana mas não é você, essa história não está soando como você, parece que não é você que está contando essa história.” Eu fiquei muito perturbado com isso. “Como assim? Claro que sou eu!”
Aí, lendo e relendo - eu estava muito mergulhado no universo do Exupéry, lendo tudo o que ele escreveu e aí eu percebi que era o seguinte, que a melhor maneira de eu contar a história que eu queria contar era usar uma linguagem, uma prosa poética, que era o que o Exupéry fazia. Claro que o Exupéry… Não estou dizendo que eu quis imitá-lo, mas eu percebi que o caminho era esse, a prosa poética. De fato, eu não tinha escrito nada até então com esse viés de prosa poética e era isso que as pessoas estavam estranhando um pouco.
Eu ainda resolvi fazer assim. Pra você ver como existe toda uma margem, também. O escritor não fica tão à mercê das opiniões. Quando ele tem um projeto ele vai, ele vai... Porque eu poderia ter abandonado - bom, abandonei aquele caminho e parti para uma história parecida com meus textos habituais. Está uma coisa mais divertida, mas isso não é a história que eu quero contar, não é essa, não tem esse tom. É uma coisa de diapasão.
Voltei e me deu um trabalho incrível porque fazer uma prosa poética… Se prosa já dá trabalho, se poesia já dá trabalho, prosa poética… Então eu persisti nisso. Depois de trabalhar muito nesse texto original eu fiz e comecei a testar os meus amigos e eles não tinham mais essa impressão. Falaram: “Puxa, sabe que você tem razão? A história tinha que ser por aí mesmo.” Então foi uma forma de…
Acho que existe também esse trabalho de encontrar o tom exato que você tem que ter pra contar aquela história. Então eu suponho que esse livro vai ter uma marca minha. Fui eu quem fiz, embora seja uma outra vertente, uma outra maneira. Ainda assim sou eu, garanto que fui eu quem escrevi e eu gosto muito, gostei muito do resultado no final.
P/1 - Claudio, quando eu li “As filhas da gata de Alice”, embora você tenha dito que o personagem não era você, eu o vi muito no personagem. Uma casa, os livros, o cenário ilustrado… Eu queria saber isso de você: esse universo, esses cenários todos ligados a Galateia, fala de música e poesia e de “As filhas da gata de Alice”. Quanto tem de você na criação dessas histórias e desses personagens. Tem um pouco de Claudio Fragata nisso tudo?
R - Tem tudo de Claudio Fragata nisso tudo porque eu acho assim, não sei se você vai... Por mais que você tente ser racional, que você tente produzir um texto, por mais que você fique arquitetando um texto vai, sempre vai ter... Principalmente esse tipo de texto que eu faço. São histórias, talvez se eu fizesse poesia concreta, mas ainda assim o escritor sempre vai ter o seu acervo pessoal, o seu mundo, enfim. Essa sempre vai ser a base do escritor.
O que eu fiquei surpreso, na época de “As filhas da gata de Alice” [é que] o livro foi resenhado por pessoas que realmente não me conheciam e afirmavam categoricamente: “O autor estava lendo Alice quando a gata da Alice saltou no colo dele.” Eu fiquei surpreso como é que eles descobriram. Mas tem a ver, claro, esse universo aparece de alguma maneira. Tanto que a Tatiana Belinky me disse isso uma vez: “Isso acontece também quando se fala da famosa moral da história.” Claro, ela é absolutamente contra história com moral, moral com dedo em riste e eu também acho chatíssimo isso, detestava. Quando era pequeno, que eu lia história que tinha aquela coisa da moral no fundo, que terminava com uma lição, eu me sentia absolutamente traído. Eu ficava com muita raiva, muita raiva mesmo. Tudo isso pra me dizer como eu tinha de ser, como eu tinha de me comportar? Não gostava mesmo. Mas é claro que [quando] você escreve o livro você não consegue, eu como Claudio tenho minha moral e isso vai aparecer no meu livro, então acho inevitável. A única coisa é que eu acho que isso não precisar ser e ficar tão explícito, não precisa ser uma bandeira. Não precisa ter aquela fórmula de final, de mensagem de moral com dedo em riste, é isso.
P/1 - Eu fico pensando em tudo que você está falando e eu acho que escrever é ao mesmo tempo, pode ser… Corajoso porque você tem que pensar em duas coisas, você mesmo, e quando você fala, você sente uma super curiosidade de saber qual é fim da sua história você está buscando uma coisa que não está dentro de você e eu acho isso super curioso. Em muitas pessoas isso soa tão ameaçador que elas nem escrevem e pra outras isso tem um tom interessante, que instiga.
Quando você escreve, você publica, você tem a crítica do outro. Eu acho muito complicado. Como você falou: “O crítico falou que esse livro não é meu, não foi escrito por mim”, mas eu acho que isso mostra um lado seu que as pessoas não conhecem, não tem como você tirar do nada. É complicado, porque a gente tem que saber quando é uma imagem que as pessoas têm da gente. Você começa a se criticar quando você está criticando a você mesmo, parece que é uma pessoa que não se conhece. Eu penso que isso é o que faz, às vezes, a diferença de uma pessoa que é autocrítica, que vai melhorando os textos e de uma pessoa que fica com tanto medo dessa crítica dos outros sobre uma coisa que é tão nossa que não consegue escrever nada.
R - Acho que isso pode servir como um bloqueio muito grande. Eu realmente confesso a você que em nenhum momento, de nada que eu escrevi até hoje eu fiquei pensando a priori no que as pessoas iriam dizer, não. Quando eu estou escrevendo isso não entra em questão. Sou eu com a palavra e com o que eu quero dizer, as dúvidas são minhas, as minhas inseguranças em relação ao texto são minhas e não assim, usando um outro como espelho. Realmente não.
É claro que aquele texto, você sabe que aquele texto vai ser lido por outras pessoas. Você começa a se preocupar até que ponto esse texto vai chegar no leitor, até que ponto ele vai chegar, até que ponto ele vai emocionar. E é maravilhoso também quando, depois do livro pronto, você recebe um e-mail de um leitor, dum leitorzinho. Isso é um negócio… Pra mim não tem nada melhor nesse mundo do que receber um e-mail dum garoto: “Li seu livro e achei legal pra caramba.” Putz, é o máximo.
P/1 - Eu queria te agradecer...
R - Eu que agradeço.
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