Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Emily Ganum Areal
Entrevistada por Marcia Trezza e Tereza Farias
Rio Branco, 26/04/2018
Realização Museu da Pessoa
HTC_HV15_Emily Ganum Areal
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado/Editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – E...Continuar leitura
Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Emily Ganum Areal
Entrevistada por Marcia Trezza e Tereza Farias
Rio Branco, 26/04/2018
Realização Museu da Pessoa
HTC_HV15_Emily Ganum Areal
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado/Editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 –
Emily, a gente vai começar esta conversa. Você pode começar falando o seu nome completo, onde você nasceu e a data.
R – Eu me chamo Emily Ganum Areal, nasci em Sena Madureira, a 144 quilômetros de Rio Branco, Capital, no dia 12 de novembro de 1976.
P/1 – Emily, quais as suas primeiras lembranças da infância?
R – A minha memória afetiva me traz muito a referência dos meus avós. O meu avô era português, então o que mais me chamava a atenção nessa relação era o hábito de tomar café na casa dos meus avós, no final da tarde, e ouvir o meu avô falar muito enrolado, uma língua que eu não dominava muito bem (risos).
P/1 – Ele era pai da sua mãe ou pai do seu pai?
R – É pai do meu pai. Aqui, o Acre, ele foi… Existe um processo migratório muito forte de árabes, portugueses e nordestinos. Eu sou descendente... O meu avô paterno é português e o meu avô materno tem descendência de turcos.
P/1 – O seu avô, com quem você ia tomar café, era o de descendência portuguesa?
R – Isso.
P/1 – E do seu avô árabe, tem alguma lembrança?
R – Como ele não morava na mesma cidade, a gente não teve tanto contato. Eu lembro de poucas vezes... Porque a minha cidade era isolada, só tinha acesso via aérea ou terrestre, mas demorava um dia para chegar na minha cidade, não existia estrada. Então, eu via de vez em quando o meu avô quando ele ia até o seringal, porque a nossa família… Na verdade, o povo acreano, a cidade se constituiu em torno dos rios, e o meu avô era regatão, ele fazia comércio no rio. Então, de vez em quando é que eu tinha contato com esse avô materno.
P/1 – Você tem alguma imagem, daquelas que ficam na memória assim, do seu avô com as mercadorias?
R – Sim.
P/1 – No barco?
R – Sim, na catraia, sempre pegando as estivas, levando para o barquinho e sempre procurando combustível para armazenar, sempre atrás de camburões vazios, de maneira bem rústica, ele perguntando e tentando fazer isso. Esse era o meio de vida dele, essa é a história dele e foi nesse meio que eu vivi.
P/1 – E a sua mãe, ela traz alguma herança da origem portuguesa?
R – O meu pai, não é? Na verdade…
P/1 – O seu pai, é…
R – Na verdade, a gente preserva alguns hábitos de estar em família. É muita comida em torno da mesa, reunir, rir, sorrir junto, então nós temos esse hábito. Até hoje, todos os dias, a gente chama que a gente precisa se encontrar para ir para o ‘moca’. ‘Moca’ é o chá da tarde, ‘moca’ é o momento de falar de tudo, da vida, dos filhos, de política. Minha família tem uma militância política forte até hoje, não é? Então, é lá onde a gente se reúne, é como se fosse o grande ponto de encontro da cidade, é na casa de um da família sempre. Em geral, pelo menos três vezes por semana (risos), cidade pequena...
P/1 – Além da família, outras pessoas participam?
R – Sim, os chegados, como a gente costuma dizer. Os agregados mais próximos, mas sempre todo mundo é… Cidade pequena, a gente é muito próximo, não é?
P/1 – E você consegue descrever um pouquinho esse momento? Assim... Na época do seu avô, como era à mesa?
R – Sim, consigo. Meus avós paternos, eles sempre trabalharam com usina de cana-de-açúcar. Então, a única usina de cana-de-açúcar da cidade era do meu avô. Moer cana era uma tradição. Para tomar garapa, fazer o mel, a rapadura, o alfenim. O leite, tirado da ordenha da vaca direto, minha avó fazia isso, eu via minha avó fazendo isso. Então, a gente tem a tradição de ter uma mesa simples, mas muito farta e sempre com muita gente, falando alto, panelas grandes, em forma de tacho, para receber bem. Ele tinha muito esse cuidado, de receber bem.
P/1 – O seu avô?
R – Sim. E até hoje…
P/1 – Seus avós, não é? Sua avó também…
R – Até hoje a gente guarda isso, de receber bem. Quem chegar é nosso, a gente sempre pensa assim.
P/1 – Você convive com os seus pais, ainda?
R – Eu tenho os meus pais, nós não moramos na mesma cidade mas eu sempre estou perto.
P/1 – Fale o nome desses seus avós completo, depois o nome dos seus outros avós árabes. A sua avó materna também era árabe?
R – Não. Ela já é descendente de nordestino. É tudo muito misturado aqui no Acre. Então... Meu avô paterno chamava-se Eugênio Areal, que era português. A minha avó, Raimunda Areal, era filha de paraense. Meu avô materno era filho de turco, e chamava Jamil Sadim Ganum. E minha avó materna também era filha de turcos, ela se chamava Najma Sayde Ganum.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Eugênio Areal Filho e ____00:06:20_____ Areal.
P/1 – E você disse que agora vocês mantêm essa tradição, essa participação política. Você consegue dizer um pouco como é que foi acontecendo?
R – Então…
P/1 – Da história, não é? Como você foi…
R – O que eu lembro desde cedo, acho que antes de eu nascer, é que minha família já vivia no meio político. Desde muito pequena meus tios já tinham mandato. Então, como era o trabalho? Na verdade, o que os levou à política? A razão pela qual eles estiveram ali e estão até hoje? Como eles sempre foram… Eu sempre estive numa família de professores e professoras, eles trabalhavam em áreas ribeirinhas, fora da cidade, na zona rural, no campo, na educação do campo e sempre foram lideranças dessas comunidades. E nessa liderança se forjou um processo de amadurecimento de representatividade. Eles sempre foram porta-vozes de algumas demandas. E, nesse processo, sendo professores e professoras num lugar simples, na zona rural, não que ele não seja, mas ele é muito importante, não é? Como se fosse, realmente, um protagonista de uma grande repercussão. E nesse processo eles foram militando, e aí foram construindo essa trajetória política e até hoje nós temos alguém na família, político, com mandato (risos), porque todos somos muito políticos, mas com mandato.
P/1 – E vamos voltar para quando você era bem pequenininha. Você tem irmãos?
R – Eu tenho um irmão.
P/1 – Como ele se chama?
R – Alan Areal, infectologista. Fez mestrado na UnB e até hoje atende na nossa cidade pelo menos três vezes por semana. Ele tem um trabalho bem relevante, de pesquisa, sobre hepatite delta no Brasil.
P/1 – Na cidade onde você nasceu?
R – Na cidade onde nós nascemos.
P/1 – Você mora em Rio Branco, hoje?
R – Eu moro em Rio Branco.
P/1 – Você convivia com ele, bastante, quando era criança? Conte um pouco como era.
R – Sim. A diferença de idade é de um ano, então eu sempre fui… Eu sempre cuidei do meu irmão. Como ele era muito doente e era sempre muito frágil, eu acabava tomando as dores, cuidando, zelando, coisa de irmã mais velha, não é? Eu sou a irmã mais velha. Então, nós sempre tivemos essa relação, esse afeto, essa proximidade. Minha família é muito pequena - o núcleo da nossa família - e a gente sempre esteve muito perto dos primos, dos tios e muito envolvido com todo mundo dentro de casa.
P/1 – E as brincadeiras, como eram?
R – As nossas brincadeiras eram muito simples, coisa de cidade pequena: elástico, bambolê, bandeirinha, damanja; eu subia muito no pé de azeitonas do lado da minha casa. Quase todos os dias eu apanhava, porque eu perdia uma sandália havaiana e era muito importante ter essa sandália, guardar essa sandália até o número mudar (risos). Enquanto o pé não crescesse, você tinha que ter essa sandália. E eu não lembro de ter apanhado da minha mãe, mas só por esse motivo, eu vivia… Eu sempre fui muito esperta, então eu vivia na azeitoneira do lado da minha casa, que era como se fosse minha, e sempre fazendo isso para todo mundo, eu perdia a sandália. Deixava, quando chegava não estava mais a sandália e tomava umas palmadas boas por isso.
P/1 – Emily, você falou que a azeitoneira era como se fosse sua. Como é essa sensação, assim, de subir em árvore, lá em cima? Como era a sensação?
R – Lá em casa não tinha muro, cidade pequena… Hoje não, hoje já tem uma segurança maior por conta da violência mesmo. Mas não tinha muro, então lá no quintal da minha casa tinha uma goiabeira e eu subia muito rápido. E do lado, que não era nosso terreno mas eu tinha como minha porque era do lado da minha casa, então todo mundo: “Eu posso subir no pé de azeitona?” (risos) Porque eu tinha uma relação de afeto com a azeitoneira, eu vivia em cima da azeitoneira, qualquer coisa que acontecia comigo eu fugia para a azeitoneira; tanto eu gostava de azeitona, como eu gostava de derrubar as azeitonas para os outros. Na verdade, eu gostava de subir em árvore, então, a relação é que eu me sentia livre, livre, me sentia íntima da azeitoneira.
P/1 – Muito bom, muito legal. E aí, conta um pouco assim a entrada na escola, não é? A escola era perto da sua casa?
R – Sim, bem próxima. A gente chamava de Jardim da Infância, não é? Chapeuzinho Vermelho. Até hoje eu lembro muito disso, uniforme igual ao da Chapeuzinho Vermelho mesmo. E aí a gente ia, eu sempre fiz o processo de escolarização normal, em todas as atividades da escola, participando de tudo, muita coisa de quadrilha... No interior, as diversões são essas: quadrilha, caipira, arraial, minha cidade é muito católica, tem uma grande referência para o país, que é o padre Paulino, não é? Ele é um mito, na verdade, e aí a gente congregava muita gente em torno desse movimento, que não era só religioso, era um movimento social da igreja. Então, eu fazia parte do grupo de jovens, da catequese, mas eu queria mesmo era o grupo de jovens, conversar, organizar torneios, campeonatos, encontros, piqueniques. Na minha época, nós fazíamos muito piquenique, a gente ia para chácaras um pouco mais distantes da cidade, era uma programação que era o máximo, era a gente conseguir organizar um piquenique e ir, porque a gente ia mesmo para longe da cidade. Na chuva, descalço, na lama, era um sucesso, programar isso era um sucesso e, dentro da igreja, a gente participava muito dos movimentos sociais, da pastoral da criança e da catequese, de crisma, muito mais pela socialização, pelo pertencimento, pelo movimento do coletivo, do grupo, por discutir, por debater, não muito religioso propriamente dito. Acho que o que me levava mais era esse outro movimento (risos).
P/1 – Que idade você tinha, mais ou menos, nessa época do grupo de jovens?
R – Ah, desde muito cedo, dez, onze, doze, sempre estive muito envolvida. A minha família é muito atuante dentro da igreja, então a gente está lá desde sempre.
P/1 – Emily, e num desses piqueniques aconteceu algum fato assim que até hoje você lembra? Ou difícil, ou engraçado?
R – Na verdade, a gente arrumava lugares complicados mesmo, porque era como se fosse um grande desafio e a gente adorava quando o desafio aumentava, que era quando chovia e era estrada de lama; então a gente caía muito. Os fatos mais inusitados. Era todo mundo muito saudável, não é? A diversão era essa assim, a gente conseguir movimentar toda aquela quantidade de comida para um lugar distante, sem carro, numa carroça de boi. Então, andava muito de carroça de boi. Carroça de boi, vocês devem conhecer, não é? Na frente da minha casa tinha um senhor que entregava areia, vendia areia, e no dia do piquenique a gente sempre pegava uma carona do Pedro.
E a gente fazia de tudo para conseguir, era o máximo chegar na zona rural nessa condição, no piquenique, na carroça de boi.
P/1 – Todos na carroça, junto com tudo…?
R – Nós éramos pequenos (risos), a gente conseguia.
P/1 – Vocês eram bem pequenos?
R – A gente era pequeno. Mas assim... Era sempre para terra de alguém parte do grupo, não é? Ou pai, ou tio, ou mesmo nas terras do meu avô, que hoje é um bairro na cidade, virou uma escola. Era sempre de alguém nosso, então não tinha esse receio, não é? A gente queria voltar, a ideia era essa.
P/1 – E você disse que entrou nessa escola. Ainda vamos falar um pouco dessa sua primeira escola, a Chapeuzinho Vermelho. Foi mais o Jardim de Infância?
R – Jardim de Infância, educação infantil como a gente chama hoje. Aí, depois, eu fui para o Fontenele de Castro, que é uma escola de ensino fundamental I, primeiro ciclo; Eliziário Távora, também fundamental I; e aí, Dom Júlio Mattioli foi o meu ensino médio. Então, até o primeiro ano do ensino médio eu fiz na Dom Júlio Matiolli, em Sena Madureira. Depois eu vim para Rio Branco para estudar e fiz o segundo e terceiro anos em Rio Branco.
P/1 – Lá, ainda nessas primeiras escolas, teria alguma fase que foi marcante? Assim, principalmente marcante? Porque talvez tenham outras coisas, mas…
R – Eu lembro… A recordação que eu tenho, nas minhas memórias afetivas, é sempre de uma adolescência muito livre, sem receio de segurança. A gente brincava, ficava no meio da rua até tarde, podia ir às praças, participava de grêmio, não é? Eu participava muito de gincana, sempre ia muito representar a minha escola em gincana. Eu sempre fui enxerida, não porque eu soubesse, mas porque eu era a pessoa que: “Eu não sei, mas eu vou” (risos). E eu lembro muito das gincanas, isso era muito forte em Sena. As escolas tidas como escolas com uma referência de trabalho gostavam muito de fazer esse trabalho, é como se fossem atividades… Era uma disputa, mas uma disputa saudável também, que dava conta de questões mais pedagógicas e de conteúdo mesmo, e também culturais: de teatro, de dança, de música. Então, essa movimentação é uma coisa que eu guardo até hoje. E que a gente, quando encontra os amigos da mesma época, diz: “Tu lembras daquela gincana no Gutemberg?” Eu digo: “Lembro”. ‘Que a tua escola ganhou”. Eu digo: “Lembro” (risos). Então é assim…
P/1 – Conte alguma gincana, alguma atividade, uma tarefa que vocês tinham que…
R –
Na verdade, assim... As tarefas davam conta de muitas coisas, não é? Na minha cidade, vez por outra, no período de enchente, de alagação, que a gente chama aqui inverno amazônico, tem alguns bairros que alagam, que tipicamente alagam, não é? E o Siqueira Campos é um deles, é um bairro que fica muito próximo do rio, então, enche. E as atividades eram muitas, desde as mais conteudistas, como por exemplo, arrecadar alimentos no meio da rua. Isso lá na década de 1980, para ajudar as crianças, as famílias mesmo, porque a gente tinha colegas que estavam alagados e porque, mesmo não tendo, a gente, como vivia dentro do movimento social da igreja, a gente sabia também quem estava precisando, qual era o colega que não estava vindo, ou mesmo que não fazia parte da nossa comunidade. Então, a gente sempre arrecadava, fazia daquilo uma atividade com fim social também, não é? Então, isso para a gente era importante. Hoje isso é muito forte, talvez, mas na minha época não era muito recorrente, não acontecia.
P/1 – E você disse que curtia muito a quadrilha, que era forte?
R – Festa junina, arraial.
P/1 – Você lembra de algum momento assim, um par que você… Um estilo, um momento… Porque você sempre participava das quadrilhas, não é?
R – Sempre.
P/1 – Mas teve assim, um flash, sabe, que você quando…
R – Na verdade, a disputa das quadrilhas era muito boa também, porque a gente… Como a nossa diversão era, na época de maio, junho, no mês de maio, em Sena Madureira, todos os dias tem arraial. A cidade... Todas as noites tem uma instituição, uma escola, um movimento social, uma organização que fomenta.
P/1 – Até hoje?
R – Até hoje. É tradição. Do dia primeiro de maio até o dia 30, e termina com a coroação de Nossa Senhora, que é padroeira de Sena Madureira. Então, nesse movimento de arraial, de quadrilha, eu lembro muito forte das danças, dos ensaios de que a gente participava. E o que eu lembro muito é que, como a padroeira da cidade é a Nossa Senhora da Conceição, a gente tinha a tradição de que as pessoas que eram também da igreja, que eram do grupo de jovens, eram anjinhos. Então, era uma coisa que eu tinha muita vergonha, não porque eu não queria ser anjinho, mas é que eu me sentia grande para ser anjinho. Aí, depois que eu fui anjinho muito, eu entendi que tinha que ser anjinho, mas eu queria mesmo era coroar Nossa Senhora. E isso nunca aconteceu porque eu fiquei grande demais, aí eu nunca fui (risos) a pessoa responsável. Essa tradição cultural até hoje existe. Tem uma outra tradição muito forte na… Eu digo, na minha família, porque a minha família é a referência dos azuis e dos vermelhos, dos encarnados, que são as cavalhadas, as corridas de cavalo, que você tenta içar as argolas… Com a lança você tenta içar as argolas. E o capitão do azul era o meu pai, o capitão do encarnado era o meu primo, então a nossa família estava ali, muito dividida. É uma tradição cultural que a Fundação de Cultura Garibaldi Brasil recuperou, então é patrimônio histórico também.
P/1 – E as crianças participavam da cavalhada?
R – Sim. Eu ia para a torcida, torcer pelo meu pai.
P/1 – Por quê? Como é que é? Um cavalo de cada lado…
R – É um cavalo de cada lado, tem uma tradição medieval e você leva uma lança e sai correndo, sai lutando, você sai de um lado e eu saio de outro. E eu tento pegar aquela argola que está naqueles pontos estratégicos. Ganha aquele que conseguir resgatar a argola. E aí assim... A história toda é de que quando você tem a argola, é muito nobre receber uma argola de alguém, e eu ia porque eu queria receber a argola do meu pai. Então, a ideia era que ele me visse no meio da multidão para que eu tivesse a chance de ter a argola.
P/1 – E ganhou alguma vez?
R – Já. Muitas vezes. Muitas vezes, eu tenho muitas fotos. Quando eu trabalhei no Poronga, como professora, a gente desenvolveu um projeto do resgate histórico das cavalhadas. E foi muito bom.
P/1 – Precisamos dessa foto, depois.
R – Ah, eu consigo, tenho várias fotos. São bem bacanas. É uma cidade onde a tradição cultural é muito forte. O Acre, como um todo, eu acho que a gente estava um pouco esquecido dessa parte cultural muito forte, mas na década de 1990, e com a aproximação da Fundação Roberto Marinho, eu acho que resgatou muito isso no Acre. Eu acho que a gente conseguiu ter uma valorização da nossa própria autoestima e de quem nós somos. Isso foi no governo do Jorge e hoje nós falamos com muito orgulho, com muita importância, daquilo que, antigamente, para nós, talvez fosse até um motivo de não falar, de se envergonhar, porque era meio fora do comum, não era muito dentro do estereótipo do que acontece nos grandes centros. E hoje, acho que a gente tem muito orgulho das nossas raízes, do nosso jeito de ser.
P/1 – Emily, fale então como foi esse processo, depois a gente volta na sua história nesse ponto, mas esse processo desse projeto que você está dizendo que é o Telecurso…
R – Sim.
P/1 – Então... Como foi recuperar essas tradições? Como aconteceu isso? Se você puder detalhar um pouquinho…
R – Na verdade, nós estávamos trabalhando questões relacionadas à cultura, à relação de pertencimento e de você se identificar com alguma coisa, e aquilo, realmente se fazer presente e não fazer por uma obrigação, porque você vai comemorar uma data cívica. E aí, a gente foi recuperando o que era valoroso. Surgiram as cavalhadas, eram valorosas, e a gente não tinha nada escrito, isso podia se perder, não é? A gente conseguiu recuperar, numa revista, uma publicação. Nós conseguimos retomar essa publicação e a gente conseguiu desenvolver um projeto, onde a gente participou desde as atividades em si, dos treinamentos, conversamos com as pessoas, ouvimos essas pessoas, era um pouco também de trabalhar a identidade, não é? A cultura, a identidade, quem somos, de fato, nós. O que é representativo para o nosso povo. O que faz parte da nossa história; quem, de fato, nós somos.
P/1 – E você disse que conversou com pessoas?
R – Sim. Sempre.
P/1 – Mas que pessoas?
R – Pessoas que participavam da atividade, não é? Eram cavaleiros, famílias dessas pessoas. As pessoas que eram plateia, que assistiam como a gente. Então, todo mundo que estava no entorno, inclusive a liderança local, os políticos. Por que fomentaram? Qual a importância disso para a sociedade? Nós demos voz a muitas vozes.
P/1 – Seu pai participou desse momento?
R – Participou…
P/1 – Vocês conversaram?
R – Ele tem um poema publicado em uma das revistas do estado e ele participou muito, foi quem nos apoiou, de fato, a chegar muito junto do grupo, não é? Nós temos registro disso.
P/1 – E você, como participante ativa desde aquela época, como você se sentiu fazendo essa retomada, assim…?
R – Na verdade, o sentimento era da gente trabalhar a identidade na perspectiva prática, mas ela tendo uma referência de sentido para eles, também. Foi tocado por eles o assunto, não é?
P/1 – Eles, quem?
R – Os alunos, os professores também que ouviram sobre o projeto acabaram incorporando. Então assim... Não era um projeto que nascia por um desejo meu. Nascia por um desejo meu, mas sobretudo, era deles. E aí eu ajudei a fomentar, não é? E foi importante porque a gente identificou muitas coisas das questões ligadas à história, a relação com a Idade Média, o porquê daquilo, por que nós preservávamos isso. Sim, ele dizia muito que porque a nossa tradição era portuguesa, então eles trouxeram. E os acreanos aqui também cultivaram, não é? Continuam até hoje.
PAUSA
P/1 – E nesse meio todo, primeiro namorado, primeiro amor? A gente pergunta também sobre isso.
R – Então... Como menina do interior casa cedo, eu casei cedo, eu casei com quinze anos. Não deu certo muito tempo, por razões óbvias. Quinze anos eu estava num processo ainda de amadurecimento e a pessoa com quem eu casei era um prefeito de um outro município, eu tive que mudar para outro município; então era um desafio…
P/1 – Foi uma paixão?
R – É. E aí assim... O primeiro amor, não é? Encantamento. Nesse outro município eu fiz a minha formação superior e comecei a trabalhar. Eu era aluna do ensino médio, do último ano do ensino médio. E como eu me destacava em Literatura, a única professora da cidade, de Literatura, se aposentou e eu virei a sucessora da professora (risos).
P/1 – Qual cidade?
R – Tarauacá. E aí, enfim, terminei o ensino superior e, como teve o divórcio, eu vim, voltei para Rio Branco. E aí comecei toda… Comecei lá como professora do ensino médio já, e aqui…
P/1 – Em Tarauacá?
R – Tarauacá, e aqui continuei no Colégio Acreano, no ensino médio. Reinaldo Pereira no ensino fundamental; Goergete Kalume no ensino fundamental e ensino médio. E no Reinaldo, eu tive o enamoramento com a possibilidade de fazer algo diferente, que era trabalhar com a metodologia nova, um processo de interação, em que havia a reflexão, mas havia ação e reflexão. E isso causou um reboliço, um burburinho, uma explosão na cidade e com os meus colegas professores, não é? Os mais arvorados, como eu, resolveram, então, ir para o novo. Foi aí que eu conheci o Telecurso e me tornei professora no Telecurso.
P/1 – Então... A gente vai conversar bastante sobre essa fase. Eu queria só voltar um pouquinho. Você disse que fez um ano de ensino médio na sua cidade ainda e depois você foi para onde fazer o… Em Tarauacá fazer o ensino…
R – No segundo eu vim para Rio Branco, aí noivei. Aí, depois, fui para Tarauacá. Na verdade, eu cursei mesmo o terceiro ano lá, o último ano do ensino médio.
P/1 – E a gente começou a falar das lembranças da escola, mas falamos mais das atividades culturais. E da escola, você tem algum momento marcante, ou no ensino fundamental, ou no ensino médio? Um professor, talvez, que tenha marcado.
R – Sim. Na minha cidade nós temos uma escola muito tradicional, o Instituto Santa Juliana. Uma escola de freiras, não é? Que, na época da minha mãe, elas viviam em módulo de semi-internato. E lembro… É um fato curioso, na verdade. Como eles eram muito rigorosos, tinha muita coisa da tradição com uniforme, com a
saia… E eu gostava muito - talvez nem venha ao caso - eu gostava muito de enrolar a saia para que ela ficasse bem curta e quando as irmãs passavam eu deixava ela bem comprida, no joelho. E quando elas saíam… E eu vivia com saia desembainhada, porque ela rasgava, ela puxava, mesmo porque eu fazia aquilo. E eu sempre tinha que me justificar: “Por que você estava fazendo isso?” “Porque eu estava ensaiando para uma coreografia da escola, então…”. Era um fato… A gente queria meio que subverter a irmã, mesmo. Adolescente, ela com aquele rigor todo e a gente queria era ensaiar para as nossas danças, um movimento dos Menudos, RPM, da Xuxa, que eu sou dessa geração, não é? Então a gente queria estar no movimento natural de adolescência, não é? E eu acho que a escola era muito boa, mas muito rigorosa, dentro da perspectiva do civismo, de alguns valores mesmo, morais, que eram desnecessários porque era muito extremado. Escola católica, de freira…
P/1 – E era só de meninas?
R – Não, meninas e meninos, mas a gente não formava… As meninas formavam de um lado, os meninos de outro, com todo aquele rigor de igreja católica e escola liderada e dirigida por irmãs, servas de Maria. Então, tinha todo um ritual que eu subvertia, sempre que podia. De vez em quando eu ia lá para a diretoria visitar a irmã (risos), porque eu achava que não precisava daquilo tudo.
P/1 – Além da saia, tinha outras coisas que aconteciam?
R – Às vezes a gente queria fugir de algumas regras e eu agitava meio que os grupos na sala. E por isso também ia lá visitar, de vez em quando, porque estava pactuado… Estava pactuado, não, estava decidido por ela e eu achava que precisava estar pactuado pelo grupo. Isso era motivo… Eu não me enquadrava da forma como era para ser, dentro das regras da escola. Eu não… Acho que eu não daria certo numa escola militar ou numa escola muito rigorosa, com regras, não é? Eu acho que as pessoas têm que ser livres.
P/1 – E na igreja, nos movimentos de jovens e pastoral, tudo mais, essa situação, como que você sentia isso?
R – Não, era tranquilo porque eu tinha um líder muito tranquilo, que era um líder religioso, era alguém ligado à igreja, mas as nossas atividades, nosso campo de atuação tinha regras também, tinha horário, tinha disciplina, obviamente, por se tratar de uma atividade religiosa. Mas não tinha alguns rigores que eu chamo de preciosismos desnecessários, eu acho que era… A forma de dizer também fazia muita diferença, a forma de se comunicar, eu acho que ela não conseguia tocar o nosso coração mesmo, da forma que deveria. Eu acho que faltava a pedagogia do afeto ali (risos).
PAUSA
P/1 – Emily, a gente estava falando desses costumes de escolas, e tudo mais. E aí, você indo para o ensino médio, junto com o casamento. Conte um pouco dali para cá, como é que você entrou na Universidade, que curso você escolheu? Esse momento aí para a gente.
R – Então... Na verdade, eu casei no último ano do ensino médio. Eu já morava na Capital e aí, como eu ia casar, eu fui morar em Tarauacá que era a cidade em que o meu ex-marido morava e era prefeito. E aí também tive a oportunidade nessa época... Porque abriu o vestibular para Letras, em Tarauacá, e eu sempre gostei dessa área. Aí, acabei prestando vestibular, fui aprovada e, junto com o marido, casamento, eu entrei na Universidade. Fui morar em Tarauacá. Morei quatro anos, durante todo o mandato e um pouco mais depois do mandato. Foi um momento difícil de conciliar. Uma jovem de quinze anos, morando longe dos pais, da família, não tinha ninguém lá, conciliar estar à frente de uma gestão, não è? Porque quando você está casada, você está do lado de alguém que está gerindo a cidade, gestando a cidade... Foi difícil, por conta de enfrentamentos, de embates políticos, não é? A minha ideologia política era distinta da do meu marido, então isso era muito problemático para mim. E eu sempre fui muito militante também, mas do lado oposto do dele, não é? E dentro da Universidade, tinha alguns embates naturais, tinha o lugar de onde eu falava que era primeira-dama e tinha a estudante que era militante, que acreditava que as coisas podem dar certo com mais justiça social e menos desigualdade, a gente pode ter um mundo melhor. E eu vivia dentro desse universo de conflitos, de impasses, de lutas ideológicas e de um relacionamento, não é? E foi uma fase onde tive muitas pessoas que me ajudaram, que estiveram do meu lado, foi um tempo de amadurecimento, um tempo de ser forjado, mesmo. Eu não tive o tempo de viver uma juventude natural, eu tinha que participar de momentos, de receber pessoas, políticos, de promover ações sociais e políticas também. E conciliar isso com a faculdade. Eu era uma estudante e estudante professora, eu também entrei logo na Educação, não é? Eu tive essa feliz oportunidade de ser, já no terceiro ano do ensino médio, a substituta de uma professora que era referência. Então eu tinha que fazer o máximo para dar conta, para fazer o melhor. Até porque eu gostava muito também.
P/1 – Emily, você lembra de um momento assim, de uma situação que esse embate acontece, ou então uma situação na Universidade, da militância, para ilustrar mesmo esse momento?
R – Eu fazia parte de um grupo na Universidade, bem comunista, não é? Meu ex-marido era de centro… Da direita, direitona. Então, em alguns momentos eu era muito confrontada e desafiada pelos próprios professores, pelos colegas, pelos meus pares professores, pela minha pouca idade. Eu casei com quinze anos, aos dezesseis anos eu já era professora, era acadêmica e esposa do prefeito, então eu era muito desafiada. Eu tinha que ser muito adulta, eu tinha que dar as respostas, porque as pessoas esperavam isso, não é? Então, eu já passei por diversas situações desafiadoras e de limite extremo, e de viver numa linha muito tênue entre o difícil e o dificílimo. Sempre foi muito difícil.
P/1 – E você, chegando a substituir essa sua professora, primeiro dia de aula, você lembra como foi? A sua primeira entrada, assim…
R – Lembro.
P/1 – Conte para a gente, em detalhes.
R – Ela me fez o convite. Ela é uma referência até hoje na cidade, professora Lurdinha Maia. Eu disse: “Professora…”. “Não tem ninguém na cidade, você é a pessoa que é apaixonada por Literatura e vai ser minha substituta”. Quando ela disse: “Não tem ninguém na cidade e você é apaixonada, e eu acredito em você”... Ali estava a resposta de que eu precisava, dentro de mim, para aceitar o convite, porque ela acionou o botão: “Eu confio em você”. E aí eu confiei em mim mesma, eu acreditei que era capaz. E eu só fiz uma exigência: “Eu não quero ser a professora da minha turma”. Porque eu estava terminando, mas eu terminei antes porque eu tinha que assumir a sala de aula. Aí eu fui para os quartos anos de magistério, que existia à época; o magistério, o normal e outros terceiros anos, assumi essas turmas dela. E assim... O primeiro momento era a leitura: “O que essa moça jovem, esposa do prefeito, o que está fazendo aqui, essa iniciante que caiu de paraquedas na aula da professora Lurdinha?” Então, num primeiro momento, era tentativa de me comparar, em que medida eu daria conta sendo sucessora de alguém que era uma referência, e os testes todos possíveis quando a
gente está iniciando qualquer processo ou quando há substituição de professor. É um processo natural. E eu acho que fui aprovada, no sentido de que eu continuei, passei por alguns momentos desafiadores, de brincadeiras desnecessárias, mas eu acho que a credibilidade, ela aconteceu a partir do momento em que eles perceberam que a professora Lurdinha tinha percebido, na sala de aula, que eu era mesmo apaixonada e que mesmo não sendo a professora Lurdinha, eu teria condição de ser uma boa professora porque eu amava o que fazia.
P/1 – E você lembra da sua primeira sala em que você entrou assim, o que você fez, como que… Que atividade você escolheu? Dá para lembrar?
R – Eu lembro que foi o quarto ano do magistério, eu trabalhei Literatura infantil com eles. Na verdade, eu me senti confortável e pude escolher onde eu iria no primeiro dia. E foi para essa turma. Como eram pessoas mais maduras, bem mais maduras do que os terceiros anos, de formação integral, que eram pessoas que almejavam não ficar mesmo na Educação, lá eu me sentia confortável, é como se eu fosse cuidada pelos alunos e alunas, não é? E o meu primeiro gesto foi dizer para eles que eu estava lá para aprender junto com eles. E em nenhum momento houve a censura: “Mas você não veio ensinar nada aqui?” Eu acho que foi muito feliz a forma como eu cheguei, a presença foi muito feliz porque se eu tivesse dito: “eu vim ensinar aqui para vocês”, não pensando que quando a gente faz esse movimento a gente aprende muito mais do que ensina, talvez eu tivesse tido uma resistência. E foi o que não houve. Então, foi muito acertada a escolha da turma, foi muito boa.
P/1 – E você continuou fazendo esse trabalho lá?
R – Eu continuei fazendo esse trabalho lá…
P/1 – Em outras escolas, que você falou?
R – A única escola de ensino médio até hoje, Doutor Djalma da Cunha Batista. Então eu fui direto para a escola de ensino médio e fiquei lá. Depois eu tive outro trabalho, na Justiça do Trabalho, aí já fugia da Educação. Aí, quando o casamento não deu mais certo, eu voltei para Rio Branco, e sempre professora. De 1998... Eu me formei em 1998, em 1998 eu já estava na sala de aula. E de lá para cá, eu estou na Educação. Minha trajetória, minha
escolha. Já fui servidora do Tribunal de Justiça do Acre, mas pedi demissão porque eu passei no concurso para professora e era isso que eu queria (risos). E todo mundo dizia: “Você é louca”. Eu passei em alguns concursos, eu passei em nove concursos públicos, (risos) e aí eu sempre ia mudando - gestor de política pública, analista judiciário, servidor da Justiça do Trabalho em Tarauacá. E quando eu entrava na Justiça era sempre para trabalhar com Educação, Juizado da Infância, eu sempre tentava um braço para não ficar na frieza dos processos e dos carimbos, não é? E aí, graças a Deus, deu certo. E, por último, entrei na Universidade Federal do Acre. Era o meu sonho.
P/1 – Como professora?
R – Então, eu sou professora formadora do Programa Nacional de Formação de Professores, que é o PARFOR. Lá, de carreira, eu sou analista de assuntos educacionais, é como se fosse um assessor para assuntos educacionais na Universidade, mas eu estou sempre dentro do PARFOR, que é um espaço onde eu tenho a oportunidade de estar na sala de aula. E também fiquei com o contrato de professora na Secretaria de Educação e hoje eu presto o meu serviço, eu estou à disposição da Secretaria e trabalhando na Coordenação de Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação. Eu trabalho no fomento…
P/1 – Dentro da Secretaria de Educação…
R – Do Acre. É, eu trabalho no fomento de amostras científicas, à experimentação, à pesquisa… Esse trabalho de fomentar a Ciência dentro das escolas. É isso o que atualmente eu faço.
P/1 – Na universidade você disse que tem um programa de formação de professores?
R – É um programa nacional, não é? Na verdade, o PARFOR não é um programa estadual, ele é nacional, de formação de professores. E eu atuo nele desde que ele era o PROFIR. Então, desde sempre. Mesmo o Telecurso eu conseguia conciliar porque na Universidade eu trabalhava à noite e os professores que atuam no PARFOR, eles trabalham no período de férias, eles estudam no período de férias, porque eles atuam na zona rural. Então, é possível a gente conciliar essas atividades porque são sempre no período de férias, não é?
P/1 – E você… Como que você encontrou e entrou no Telecurso? Como foi esse encontro?
R – Então... É uma história bonita. A minha trajetória profissional, ela é marcada mesmo, de verdade, fortemente, quando existiu, dentro do estado, um movimento de que ia vir uma coisa nova, ia vir uma coisa nova para o Acre. E eu estava na sala de aula, lá no Reinaldo Pereira. E o diretor, a coordenadora, os professores, na hora do lanche, no intervalo: “Gente, está vindo aí uma coisa nova”. Eu digo: “Aí, professora, sério?” Eu já trabalhava projetos. Como eu sou professora de Língua Portuguesa, eu trabalhava Língua Portuguesa e Artes. Então, Artes eu trabalhava sempre num parque chamado Capitão Siríaco, fazia teatro. Auto
Compadecida... Eu fazia várias peças e resgatava essa coisa da Literatura, de ler, de fazer, de, realmente, atuar. Então, eu já gostava de fazer um trabalho vivo dentro da sala de aula. Apareceu esse movimento de que a Secretaria de Educação ia selecionar professores para um trabalho novo que estava chegando, que eles queriam fazer diferente. Eu não sabia qual era a diferença, mas eu queria fazer diferente também. Eu acho que eu já fazia alguma coisa próximo do diferente, intuitivamente eu fazia. E aí, nessa escola em que eu atuava, o diretor disse: “Esses professores aí, Gelma – que era a coordenadora – que são mais despachados, que gostam de estar com esse negócio de projetos, toda hora me pedindo material, me pedindo coisas... E compra isso e compra aquilo, e vamos para fora, e pede ônibus, e é movimentação, e é ensaio…”. E a escola tinha que abrir, porque a gente tinha que ensaiar, então a gente dava trabalho, não é? A existência dá trabalho, isso é ótimo, não é? A escola serve para isso. E aí teve um movimento de que teria uma formação, onde a escola poderia encaminhar seus professores, aqueles que tivessem interesse, e eu fui uma dessas professoras, tinha um grupo grande da minha escola. Aí fomos para a formação. Na formação, houve um mix de sentimentos, de dúvida, de medo de fazer o novo e de vontade enorme de fazer o novo, não é? Aí a gente se apaixonou na formação. Naquele primeiro momento, foi o enamoramento e a paixão, foi você viver ali a formação continuada.
Para a
gente, era o primeiro contato que a gente estava tendo com a formação de professores, onde eu via aqueles formadores dando vida, trabalhando teorias, mas sendo leve, trazendo para a realidade, fazendo transposição didática de um
modo que você estava numa conversa e estava discutindo Química, Camões, estava discutindo Língua Portuguesa, Matemática, História, tudo junto e fazendo muito sentido, e na perspectiva da integração, de um modo muito colaborativo, não é? Dentro de uma perspectiva de solidariedade, de pertencimento. A formação, realmente, dentro de um processo de encontrar sentido para aquilo que você faz, você dá vida ao currículo desse modo, quando você associa, quando você relaciona. O currículo não faz sentido se ele estiver sendo tratado ali como um documento institucional, ele faz sentido quando trata dos problemas do dia a dia das pessoas, das relações, do porquê de estar fazendo aquilo. E ali eu descobri que podia fazer também, que eu conseguia, assim como os formadores, fazer também. E aceitei o convite, cheguei em casa à noite, à noite mesmo eu liguei para o diretor: “Antônio José, a vaga do Reinaldo é minha”. Nós fomos num grupo de quatro para escolher dois, porque iam ter duas turmas, aí uma era minha mesmo, eu consegui, eu liguei logo, eu falei que queria. Fiquei nesse desafio e quando estava na formação o sentimento que eu tinha é de que não queria ir embora, não ficava controlando relógio, a hora: “Gente, demora tanto para chegar o final do dia”. Eu não ficava assim, eu ficava... “Gente, mas está tão bom, não é?” E quando chegava no intervalo, a gente queria conversar sobre o assunto da formação, não queria sair de dentro da sala. Então, foi um movimento muito novo para mim, foi um momento em que eu me descobri professora, foi quando fez sentido aquilo que eu estudava, foi quando, de fato, eu aprendi a ser professora. Foi quando eu acho que vivi a Educação mesmo, quando fazia sentido o que eu estudava, quando eu conseguia… Porque tudo que eu fazia, eu tentava relacionar com a vida. O que é Educação senão estudar, realmente, para fazer sentido tudo o que você faz, o que você é como cidadão? Como ser social, político? E aí eu me vi nesse movimento, a gente continuou, eu fiquei como professora um tempo.
P/1 – Voltando para a formação, você já fazia suas atividades com os alunos dessa forma mais aberta e tal e sempre já pensando que tinha que fazer sentido para eles como pessoas, não é? Sentido para a vida. Você consegue exemplificar um pouco mais quando você encontra lá na formação do Telecurso. Tem a ver, não é? Você estabelece essa sintonia com o que estava acontecendo lá na formação. Você consegue dar um exemplo para a gente, para quem não sabe… Não é da Educação, um momento?
R – Na verdade, tudo… No Telecurso, os trabalhos são com teleaulas, tudo é representativo. O que é usado, os símbolos, tudo que é tratado, não é? Se a gente vai trabalhar com conceitos matemáticos de área, você usa uma relação de sentido no comércio, vendendo tecido, é operacionalizando algum coisa no dia a dia que as pessoas normais, como eu e você, fazemos. Então, todas as relações, as teleaulas que são veiculadas, elas fazem sentido com a vida, não era difícil porque não era descolado. O conteúdo teórico estava lá dentro e eu conseguia associar aquilo com a vida. Só que, na teleaula, eu tinha um suporte, já estava lá de maneira mais clara para me ajudar a desenvolver isso. Então, desenvolver essa relação que a gente chama de transposição didática, eu não partia do abstrato, eu tinha uma referência e isso para mim era mais tranquilo de fazer, não é? E mesmo em qualquer situação em que eu esteja, academicamente falando, que eu não estou no Telecurso, eu tento sempre associar a uma relação de sentido. Um artigo que eu estou lendo, um paper que eles estão construindo, porque a minha referência de base me fez entender que eu só posso provocar e desenvolver quando faz sentido. E isso, todas as aulas eram temáticas, faziam sentido, tinham uma linha de continuidade, havia uma relação histórica que desencadeava fatos, então tinha uma lógica, tinha uma associação… Até um objeto simples, que era utilizado na cena, tinha que fazer sentido no contexto, não é? Então, coisas simples como vender um tecido, como servir um café, como escrever uma reportagem, fazia sentido. Tudo estava concatenado, não estava dissociado do mundo. E talvez seja isso que faça com que se chegue mais fácil ao estudante, porque eu não estou ensinando aqui algo que é abstrato, que não faz parte da minha realidade, não é? E traduzir isso, eu não conheço outras experiências que traduzam realidade, currículo, vida, que façam essa associação tão bem. E isso me despertou para tudo que faço na vida. Eu sempre penso: Qual a razão de ser? Por que eu estou fazendo isso? Qual é a intenção? Qual é o valor simbólico? Qual o poder simbólico? Qual o valor ideológico? A razão de ser? Para onde ir? Como ir? Quais são os motivos que me levam a ir? Então, a dúvida, o questionamento, a provocação, a experimentação, a busca ativa, a provocação, a formação de professores nessa perspectiva fazia sentido, porque o que eu fazia era intuitivamente, eu não tinha uma orientação pedagógica, consistente, que me desse conta de uma formação de professores e um acompanhamento pedagógico que me desse um braço para apoiar e sustentar essa prática. Então o caminhar sozinho é diferente do caminhar junto, não é? Me sentia muito confortável caminhando junto.
P/1 – E você, como professora…
PAUSA
P/1 – Ele está me pedindo para fazer uma pergunta. Você, como professora de Literatura e Teatro…
R – E Língua Portuguesa…
P/1 – É, e Língua Portuguesa, quando você entrou nessa proposta e tinha que trabalhar com todas as áreas de forma interdisciplinar, sempre falando - e é isso que o Vitor está propondo aqui, e também, a toda hora eu estou lhe pedindo - do seu sentimento mesmo, sabe, das suas sensações, até das dúvidas, enfim… Lá, naquela hora. Vamos transportar para aquela hora.
R – Tá!. O sentimento foi de medo. primeiro sentimento foi de medo, primeiro planejamento foi um pânico! Nós fomos para o planejamento e tínhamos que estar na sala de aula na semana seguinte, não é? Era no sábado. E era medo. Medo de não dar conta, medo de não dar certo, medo de não fazer direito, medo de, sei lá… De não ter sustentação a minha prática pedagógica, de ser questionada e não ter consistência para me apoiar. E não conseguir aprofundar determinados conteúdos que pudessem me trazer algum desconforto natural. É natural que alguns conteúdos sejam assim. E esse medo, com a prática de planejamento contínuo, permanente, praticamente... Era diário mesmo. O nosso planejamento e a nossa busca eram diários, e o planejamento coletivo fazia com que a gente se apoiasse muito. O planejamento semanal, coletivo. E o planejamento de área do profissional fazia com que a gente tirasse as dúvidas, compartilhasse as angústias, dividisse o sucesso, os êxitos, o que deu certo na minha sala, o que deu na sua, o que não deu na minha, entendendo que são processos diferentes, são pessoas diferentes, então nem tudo que é planejado num lugar dá certo no outro. Nessa construção coletiva, a gente foi quebrando os paradigmas, entendendo de Educação e construção. É processo. Mas tirar essa casca de que o professor especialista, ele sim sabe do conteúdo. E que eu não sou capaz de provocar, de estimular e de mediar um processo pedagógico. Era isso que estava incrustado dentro da formação de caixinhas, a formação… Aquela que a gente foi formado. E deu muito medo, no primeiro mês, assim - eu chamo de mês da sobrevivência. O mês da sobrevivência foi o mais difícil mas, ao mesmo tempo em que eu tinha medo, eu tinha certeza de que era ali onde eu queria permanecer porque, ao mesmo tempo em que eu era desafiada por desacomodar algumas coisas que para mim eram muito confortáveis, como estar na minha área de especialização, onde eu fui formada para aquilo e que eu tinha muita tranquilidade de passear pelo repertório que eu já tinha, eu também queria conhecer e entender se era realmente possível mediar um processo. Porque desconstruiu não só a perspectiva da formação acadêmica do especialista, mas desconstruiu a perspectiva de que o professor, realmente, pode mediar um processo. Então, foram questões metodológicas e pedagógicas que foram tocadas, pontos nevrálgicos que são muito caros e que são muito delicados de serem tocados.
P/1 – Por exemplo?
R – Por exemplo, professor especialista. Ele consegue mediar um outro conteúdo? Sim. Eu vi isso, vivi isso, fiz isso, orientei isso no processo. Porque eu fui supervisora e depois eu estive numa coordenação-geral. Então, sim, a resposta é sim. O aluno consegue aprender dentro dessa proposta pedagógica, metodológica? A resposta é sim. Por quê? Quem diz isso? Alguém que é apaixonado? Não só isso, porque existem avaliações externas que dão consistência e dão conta de responder a isso, não é só o olhar de uma pessoa apaixonada, é o olhar de alguém que vivenciou o processo mas consegue se afastar e tem dados para dizer que sim. Então, o fato do aluno… A gente está na Educação para que as pessoas aprendam, não é? Faz sentido ensinar quando, realmente, a aprendizagem está acontecendo. E isso acontecia.
P/1 – Deixe eu lhe perguntar uma coisa: você, em algum momento, vai encontrar uma turma de professores especialistas. Como é que você os convence? Falando de você, assim, você vai precisar convencê-los de que dá certo, de que funciona, mas contando um pouco do que… Sabe? “Eu sei que funciona porque foi assim comigo”. O que você falaria? Você vai entrar num grupo e dizer: “Funciona, gente.”?
R – Eu já entrei diversas vezes nesse grupo, não é? Eu fui diversas vezes para um ‘front’ de batalha que é uma Universidade, uma instituição, e fui falar da experiência metodológica e pedagógica. E quando a gente traz a nossa experiência, a fala de professores, a fala de alunos, resultados de avaliação; quando a gente convida para ir a uma sala de aula, a uma telessala nossa; quando a gente mostra, no dia a dia; quando a gente socializa um memorial; quando a gente o convida a participar de uma aula que está sendo mediada por um professor unidocente, ele consegue perceber que com o planejamento, com seriedade, com o trabalho consistente pedagógico, é possível fazer. Digo até mais: que, se ele, especialista, não se preparar e não planejar uma boa aula, ele também não conseguirá dar uma boa aula, desenvolver uma boa aula, mesmo sendo especialista. Então, eu digo que não tem receita, o segredo do sucesso não é o segredo, é a prática pedagógica que é consistente. Então o ato de planejar, acompanhar, você planeja, acompanha, faz uma formação consistente, dá conta de caminhar junto nesse processo, você tem um bom trabalho pedagógico.
P/1 – Mas assim... O que você falaria para ele que ele tem que largar? Pensa… Eu quero dizer assim: a gente está gravando o máximo possível a sua vida nisso, não é? Como você passou por tudo isso, não é? Então, você teve que largar as suas aulas como elas eram, assim…
R – Na verdade, eu tive que me permitir. Quando eu me permiti acreditar... Primeiro que eu me permiti acreditar que, se em outros estados do Brasil deu certo; se eu tenho um colega que faz dar certo; se eu tenho experiências mundiais de países desenvolvidos que dão certo; se eu vejo tanta gente apaixonada e louca dizendo que dá certo, eu tenho que, no mínimo, pela prática da dúvida, como professora e pesquisadora, eu tenho que me permitir conhecer. Então, não tem nada que você consiga contrariar se você não for pesquisar, não for a campo tentar descobrir. O estigma, ele acaba sendo rompido ou quebrado, ou sendo reconstituído, quando você se abre para conhecer, não é? Então, a primeira coisa que eu falo: “Permita-se”. É a palavra que eu digo: “Permita-se. Tudo bem, eu respeito a sua opinião, ela não é igual a minha, mas venha conhecer”. A primeira coisa que eu faço é um convite, não tem uma outra forma. Primeiro eu faço um convite, depois eu chamo para o planejamento, levo o acompanhamento amostral: “O professor atua nessa aula, conversa com os alunos, lê o memorial”. Então, o convencimento é um processo natural de quando você, realmente, está munida das informações necessárias. E, às vezes, a gente tem um preconceito muito imediatista quando a gente desconhece. E sempre que eu ia para um confronto, eu dizia: “Fale mais sobre o que você sabe, porque diante do que você sabe eu vou lhe ajudar ou não”. Então eu deixava muito as pessoas dizerem: “Diga o que você sabe daí da Universidade, do lugar de onde você fala, me diga o que você sabe de Aceleração. Eu vou tentar te ajudar, porque o pouco que eu souber, eu vou compartilhar contigo”. E sempre eu entrava no pouco que eu sabia: planejamento; processo avaliativo; acompanhamento pedagógico; trabalho colaborativo a partir das equipes do dia a dia da telessala; da dinâmica que é desenvolvida; todo o trabalho de coordenação, de monitoramento; de apoio pedagógico; toda a trama que era muito bem tecida em tudo que era feito - formação de professores, formação continuada. Tudo que acontecia e que fazia sentido e tinha razão de estar ali, eu entrava dizendo como era. Na verdade, eu só ia dizer algumas coisas, não é?
P/1 – Isso quando você já era coordenadora?
R – Quando eu era supervisora, quando eu era coordenadora…
P/1 – Do projeto Telecurso?
R – Sim. Do Telecurso.
P/1 – Vou perguntar uma coisa que a gente estava deixando para esse momento de síntese, e depois eu vou continuar com várias coisas. Você disse que aí você virou professora, mesmo. A gente queria que você falasse desse sentimento, dando exemplo, de repente. Sabe aquele momento: “Nossa! Agora eu sou professora”. Teve um momento assim?
R – Teve, teve sim. Parece não ser importante, mas quando... Assim… Nas primeiras aulas que percebi o Machado, não é? Quando eu percebi os personagens sendo os interlocutores da trama da teleaula, eu disse: “Gente, mas tudo faz sentido: a Cecília, o Machado. Então eles estão aqui presentes”. Quando eu conseguia entender aquilo que eu desenvolvia na teoria, que eu conseguia associar aquilo que era desenvolvido no material pedagógico, a prática metodológica, toda ela fazia sentido. Quando eu conseguia colocar os meus alunos em círculo, porque eles não tinham mais que ficar alinhados, porque a gente tinha que ter uma relação de se olhar, de se ver, de se preocupar com o outro, de fazer sentido por que o João faltava à aula, de saber que a Maria não vinha porque ela era violentada, porque ela passava por um problema difícil, porque existia uma desestrutura familiar muito grande, então o trabalho, o papel social que eu desenvolvia na sala de aula era muito maior. O alcance que eu tinha com a minha turma... Como eu era unidocente, eles estavam comigo todos os dias. Eu sabia muito mais deles, eu podia dizer muito mais deles e eu era uma grande referência para eles, e eles para mim. Então, quando eles faltavam, eu sabia, não era o número dois que faltava, era o João, era a Maria, era o Francisco, eram as pessoas com quem eu conversava, não é? Então, essa postura de ter a aproximação, quando eu contribuía para a estima pessoal dele ser melhor, quando ele sabia que já tinha passado por várias reprovações e era o pior da turma, aquele aluno que a escola não queria porque, em geral, as nossas turmas eram constituídas pela história da escola, tudo aquilo que a escola não queria, no sentido de aluno que reprovou, aluno que dava problema de indisciplina, aluno que se evadia, estava nas turmas do Telecurso. Esses eram os alunos em potencial. E nós estávamos para esses e precisávamos fazer diferença com esses, porque nisso residia o mérito. Trabalhar com o ideal não tem mérito nenhum. O resultado, a gente via, de transformação a partir daquele aluno que dava trabalho e que não saía da escola de jeito nenhum, enquanto o professor - no caso, eu tinha uma motinha - enquanto ele não subisse na sua moto... Porque ele ajudava a guardar o material, porque ele ajudava a guardar os equipamentos tecnológicos, porque a sala tinha que ficar organizada, porque no outro dia tinha a outra turma, então, aí sim, fazia sentido. Eu promover uma mudança de algum modo. Não eu. Mas contribuía tudo o que eu fazia - a metodologia; a forma de ensinar; a forma de estar na sala; a forma de trabalho em equipe; a colaboração; a solidariedade. Tudo isso fazia com que eu pudesse tocar aquela pessoa que estava ali, incrustada, e que a escola não tinha chegado nela.
P/1 – Você lembra de um caso bem…?
R – Sim.
P/1 – Conte… Sempre eu peço para você contar em um pouco mais de detalhes, a história. Conte a história.
R – Então... Vou contar uma história de um rapaz chamado Samuel. Eu era supervisora do Samuel na escola Serafim Salgado, no ensino noturno. Eu tinha vinte e cinco turmas de Telecurso, à noite, para supervisionar - a maior escola no turno, não é? A escola maior dentro do turno. Samuel era de uma família muito, muito humilde, ele passava o dia inteiro numa catraia. Catraia é um barquinho bem pequeno que você fica atravessando as pessoas de um lado para o outro, de uma extremidade do rio, do segundo distrito para o primeiro distrito. E o Samuel vivia e sustentava a família com isso. Passava o dia inteiro no sol quente atravessando as pessoas de um lado para o outro e, no final do dia, se arrastando, ele chegava no Serafim. Sempre chegava atrasado, inclusive, o Samuel sempre… Era de praxe o Samuel chegar atrasado. Como ele sempre chegava atrasado, uma vez ou outra a gente conversava muito: “Samuel, precisa melhorar o horário”. Aí, num dia, a gente foi conversar, ele foi me falar um pouco da trajetória dele, do que tinha acontecido com o pai, a perda prematura do pai, a condição da mãe, dos irmãos, a vida... Ele foi falar da vida, a gente foi conversar sobre a vida. E naquele dia, o Samuel chorou. E ele disse assim: “Eu vou desistir, hoje é o último dia que eu venho para a aula, professora”. Ele me chamava de professora, porque a professora é sempre professora. “Eu não venho mais”. E nesse dia eu fiquei mais do que o necessário com o Samuel. Ele era uma referência para a turma: “Eu não venho mais porque eu não aguento mais viver no sol quente, chegar aqui à noite, e até às dez, e voltar para lá”. Porque
era muito distante. Eu conversei com ele, a diretora conversou com ele, a Professora Lúcia, o professor conversou com ele, e nós conseguimos convencer o Samuel. O Samuel é a minha maior referência no Telecurso. Samuel começou a estudar dentro do barco, dentro do barquinho. Samuel passou em vários concursos públicos, é gerente do Banco do Brasil, pessoa jurídica, aqui no Acre. E toda vez que ele me encontra, ele diz: “Se eu não tivesse te encontrado, eu não seria o que eu sou hoje”. Ele vai fazer mestrado e, tudo que ele faz, ele manda para mim. E a gente se encontra de vez em quando, já tem família, então assim... Ele tem… A maior referência de transformação para mim é o Samuel, porque eu vivi aquilo, eu acompanhei toda a dor e aí eu consegui também acompanhar o sucesso. E aí a gente se encontrou nos quarenta anos do Telecurso, a gente já se encontrou no banco (risos), ele é gerente de pessoa jurídica, mas professora é sempre professora, quando eu chego, ele vai lá falar comigo. E para mim, ele é a minha principal liderança e referência quando a gente fala de superação. E assim como o Samuel, a gente tem outros samueis, tem outras alines, tem gente fazendo Medicina, tem gente já formado, tem gente… Todo tipo de boa gente por aí espalhada, professores… Quando eu chego para ministrar aula no interior do Acre, professores que atuam na zona rural, de difícil acesso, eu me deparo com ex-aluno do Poronga. E quando eu chego: “Minha coordenadora”. Porque eu já fui visitar, como coordenadora. Eu digo: “Sua professora, muito prazer, meu colega professor”. E agora eu estou indo, amanhã,
para a formatura de Pedagogia, em Basileia, de ensino superior, dessa turma que atua em zonas rurais de difícil acesso. E assim como essa turma, tem um calendário enorme de formaturas, de alunos que foram ex-alunos nossos no Telecurso e que agora são professores da rede, formados. Para eles, assim... É uma vitória. E para mim, mais ainda, não é? Então o poder de transformação… Como eu acompanhei muitas histórias, eu acho que essa, ela é muito representativa porque foi logo nas primeiras turmas do Telecurso. O Samuel foi formado logo quando da implantação aqui no Acre.
PAUSA
P/1 – Você consegue relacionar isso que você acabou de contar com ser professora?
R – Ser professora no Telecurso?
P/1 – Ser professora. Você falou: “Aí eu virei professora quando eu entrei no Telecurso”. Você consegue? Só para fechar.
R – Eu consigo entender que hoje eu estabeleço uma leitura vinculada a partir de uma prática social que eu vivi, não é? Eu não estava lá ministrando aula simplesmente, eu não estava lá cumprindo um rito da Secretaria, uma carga horária, ministrando uma disciplina com determinados conteúdos curriculares específicos e vivia olhando no relógio para dar o horário certo para voltar para casa. Ser professora, na perspectiva integral, é mais do que isso. É você levar as vidas para casa, é você levar o Samuel para dentro do coração e você saber que ele está bem. E você se preocupar quando ele não está bem, e isso fazer sentido para você, ser importante. Não estou preocupada mais só em dar a aula que eu vou dar no outro dia, e nem em conseguir recuperar um conteúdo que o aluno teve déficit de aprendizado, que não conseguia desenvolver com aquela aula, que eu não atingi o resultado esperado. Eu estou preocupada com ele como um todo. Se ele está indo bem, por que ele não está indo bem, no que eu posso ajudar no processo, o que é esse ser humano para mim. Então, ser professor é ser mais do que um mediador de conteúdos, é você tratar com vidas, é você tocar no coração das pessoas, é você ter afeto, ter presença, ser presente e também ser um bom profissional, que planeja, que desenvolve as suas atividades. Mas é você ser gente. Era isso que eu queria dizer que, talvez, eu não tenha dito. É isso, é ser gente.
P/1 – Muito bom.
R – Meu Deus do céu, me dá vontade de chorar (risos).
P/1 – Passa um filme, não é?
R – É, e quando eu penso que a gente quer muito que as coisas boas sejam perenes, dá saudade. Saudade, a palavra é saudade.
P/1 – E a memória, também.
R – Saudade boa, não é? Saudade boa, das coisas boas que eu gosto de lembrar, que me dão esperança.
P/1 – Essas falas são tão importantes para a gente levar para outros professores ouvirem, não é? Eu acho que são falas importantes.
PAUSA
P/1 – Você falou da… A gente gostaria de saber, eu acho que você pode falar bem rapidinho assim das equipes. Como você acha que contribui, se você pudesse explicar um pouco... Como acontecia na sala? Dando exemplos mesmo. Então, talvez... Vocês foram formadas e, de repente, como isso aconteceu. E aí, você poder explicar, sabe? Fulano fazia isso, aí ele era assim, mas na equipe… Enfim…
R – Então... O trabalho colaborativo é que era a essência do trabalho em equipe. Desde o processo de formação, de que a gente participava como professores, nós éramos formados nessa perspectiva e tudo... Que a gente era formado na perspectiva, a gente também vivia na sala de aula, então não era uma formação que não fazia sentido, não era descolado. Tudo que acontecia aqui com o professor tinha ressonância aqui com o aluno. Então, existia uma vinculação direta. Eu, naquele primeiro momento da formação inicial, a primeira, eu não tinha noção do quão grande era aquilo. Eu imaginava: “Meu Deus…”. Mas a gente tem que avaliar aquilo que aconteceu no dia, a gente tem que ponderar sobre o que aconteceu, a gente tem que dizer o que foi positivo, aquilo que pode ser melhorado para o processo. Eu achei que era um rito, que não ia perdurar. Ao passo que isso perdurou. Na sala de aula fazia todo o sentido quando a Maria levantava: “Profi, hoje a turma realmente não contribuiu, me atrapalhou, não estou aprendendo desse modo, queria que a senhora também possibilitasse que a gente fizesse de outro modo”. Então essa coisa da participação social, eu me colocar como sujeito, sujeito crítico, que avalia, que pondera, sujeito político. A avaliação dava muito conta disso. E fazíamos, nós professores, e faziam cá os alunos, nós fazíamos, era uma via de mão dupla, todo mundo fazia tudo. E nós, na Coordenação, com a Supervisão, também fazíamos. Então, todo mundo realmente vivia todas as atividades, não é? A gente também tinha uma equipe de coordenação que cuidava do ambiente, que organizava os espaços, as atividades, o que a gente ia desenvolver; que dava conta de deixar o ambiente mais harmônico. Todas elas tinham um papel muito importante. Gente que tinha dificuldade com disciplina mesmo, organização, que não levava material, que não contribuía para a harmonia da sala quando posto… Quando posto, não, porque todo mundo passava por todas as equipes. Quando a gente fazia as atividades e que ele parava lá na Coordenação, a gente percebia que aquilo... Que talvez ele não tivesse tido a oportunidade de desenvolver, ele era um cara colaborativo, que ajudava todo mundo, entendeu? E a oportunidade de ser protagonista aqui fazia com que ele despertasse, talvez, coisas que não foram desenvolvidas lá atrás.
P/1 – Você lembra de alguém assim?
R – Sim! Eu tinha a Samires, ela era super rebelde, ela já tinha sido interna da Casa do Adolescente Mocinha Magalhães, então ela vivia em conflito com a lei, não é? Ela cumpria medida socioeducativa em semiliberdade e a mãe dela me visitava quase toda semana. E como ela era difícil, ela passava por tudo que era canto. Aí, na Coordenação, ela começou a entender que as pessoas têm papéis, que a gente precisa ter responsabilidade, que a gente precisa respeitar o outro dentro do seu espaço. E eu consegui trazê-la para ser a minha principal ajudante: “Olha, Samires, você não falte porque eu preciso de você demais, não tem pessoa melhor para me auxiliar nisso”. Aí eu conseguia… A gente conseguia, juntos, entender o que cada um fazia melhor dentro do seu espaço. Sabe, porque as pessoas interpretam, na verdade. Todo mundo aprende diferente, todo mundo tem a sua inteligência, que Gardner fala. A gente conseguia, dentro das equipes, entender que cada um, dentro de um espaço, atua melhor, fala melhor, se coloca melhor, se porta melhor. Então, hoje, quando eu encontro os meus ex-alunos, que a gente se encontra pela rua, eles: “Professora, aquele trabalho em equipe, professora!”. Eles dizem assim: “Salvou a lavoura. A senhora acredita que eu consegui ser promovido na empresa, eu era boy, hoje eu sou gerente?” Eu digo: “Por quê meu filho?” “Porque eu sei me expressar. Eu trabalhava em equipe, eu sabia coordenar o processo, aí o meu chefe, quando eu fiz algumas atividades de liderança, disse: “Eu vou dar oportunidade para esse cidadão’”. Eu digo: “Meu filho, que prazer, que alegria”. Então esse sujeito colaborativo, que pensa, se coloca, que sabe emitir uma opinião, que sabe coordenar um processo, que sabe avaliar aquilo que ele está vivendo, que sabe se integrar socialmente, ele é extremamente importante dentro do século 21, não é? Uma sociedade da informação, que a gente tem um perfil de juventude, que pede o protagonismo juvenil e que a gente já dava, nossa!
P/1 – A Samires, você disse: “Ela realmente me ajudava”. Fale disso, assim. Por que ela lhe ajudava? O que ela tinha que rolava isso?
R – Ela me ajudava porque ela era uma menina difícil, ela entrou nesse… Ela cumpria medida socioeducativa por conta de tráfico de drogas, a família era muito pobre e ela servia de mula, e nessa situação foi pega, não é? Ela não era má, ela era rebelde. Ela era rebelde e precisava de alguns limites, estabelecer combinados. E dentro da Coordenação, dentro dessa equipe, quando eu estabelecia, eu sabia falar com ela os combinados, na linguagem dela. Ela era a minha principal colaboradora porque eu conseguia falar com ela do modo como ela esperava, com respeito, com afeto, mas eu também dizia que precisavam ser cumpridas. Numa certa ocasião, eu pedi que ela coordenasse a entrega de algumas atividades que eu precisava que fossem coordenadas. Eu não dei para ninguém, eu dei para ela porque primeiro, ela tinha que ser o exemplo; para ela pedir que os trabalhos fossem entregues, ela tinha que entregar. Ela tinha dificuldade de cumprir as coisas, não é? Ela queria sempre infringir. E aí eu disse para ela: “Para você ter respeito e alguém lhe ouvir, primeiro você tem que entregar o seu, não é? Esse é o primeiro passo, leva o seu e aí você dá o exemplo: ‘Olha, gente, estão faltando tantos dias, o meu já está pronto, eu espero que vocês entreguem’”. E quando eu dava essas atividades, ela sempre dizia: “A senhora faz isso para me testar, não é, professora?” “Não, eu estou fazendo isso para lhe ajudar na sua própria disciplina, porque você é muito boa”. E ela era muito boa. Então, hoje ela está atuando, hoje ela é gerente de uma loja bem importante aqui. A menina que teve essa trajetória das medidas socioeducativas, ela sempre disse: “Professora, não diga para ninguém que essa história é minha”. “Não digo, você vai dizer com orgulho quem você é, porque onde você chegou é muito orgulho da sua trajetória, do lugar de onde você saiu, que tinha um pai presidiário e uma mãe que vivia com muita dificuldade, cuidando dos irmãos”. Ela foi cooptada, ela não era má. Ela estava num momento de fragilidade e cedeu, precisava do dinheiro e foi. Então eu acho que, de algum modo, eu ajudei. E eu só ajudei porque eu conhecia esse trabalho com as equipes, as atividades, a metodologia, ele fazia com que a gente pudesse perceber o melhor que tem na pessoa, não é? E eu consegui. Essa menina me marca por isso, porque hoje ela está bem e ela disse: “Professora, foi fundamental a senhora ter me dado a mão, eu poderia estar lá junto com o meu pai, não é? Não estaríamos no mesmo lugar porque tem a ala feminina, mas olha onde é que eu estou. O meu pai já saiu, cumpriu pena e estamos bem”. São coisas que não têm preço, não é? Essas histórias não têm preço, elas… É a razão de ser da Educação, é a transformação.
P/1 – Eu estou realmente explorando você hoje. Só vou perguntar mais uma coisa sobre isso, está cansada?
R – Não. Só estou com calor mesmo.
P/1 – Não, porque cansa, não é? Emoção desgasta…
R – É, é mais emoção mesmo, do que cansaço.
PAUSA
P/1 – Emily, para quem não conhece como funciona, é muito esclarecedor você contar assim, por exemplo, você trata toda essa situação como uma proposta de transformação, não é? Então isso é Educação. As equipes... Se você puder contar até um outro caso. Então teve a equipe de Coordenação, teve essa situação, teve a equipe de Avaliação. Então, se você puder contar mais um... Como que você faz? Uma coisa… Vamos ver se eu entendi. Uma coisa é você trazer a pessoa, porque ela vai se sentir importante fazendo aquilo. Mas, no que ela mudou? Entendeu? Quando ela não estiver com a coordenadora? Não sei se você entendeu o que eu quis dizer.
R – Sim.
P/1 – Como isso educa no sentido de transformar? Como você contou da Tamires…
R – Samires…
P/1 – Tem algum outro caso, assim?
R – Tem vários.
P/1 – E outra equipe, talvez?
R – Sim. Tem vários casos. A Socialização, por exemplo, era um desafio no início, quando eu trabalhei com a turma da Reinaldo. A gente tinha… Era uma comunidade muito periférica; em geral as nossas turmas são periferia, não é? E já existia uma rixa que a gente não chamava de guerra de facção, mas existia uma rixa de pessoas que moravam no bairro e outras num outro bairro. Então assim... Eu tinha muita resistência de que esse grupo participasse com esse grupo, a integração era um desafio. Eu pedia para que o grupo x promovesse uma atividade de integração e o y não queria fazer, porque o x promoveu, não é? E aí a gente foi trabalhando miudinho: “Gente, a importância da gente estar no mundo, a gente vive em sociedade, a gente precisa dividir com o outro, a gente precisa se permitir olhar para o outro com mais generosidade, de enxergar no outro o que ele tem de melhor”. Então, coisas assim primárias, que eu achava que era natural que eles soubessem e eles não sabiam. Porque era como se fossem castas, eles não socializavam, não ficavam juntos, sabe? Histórias de comunidades que não se afinam com a outra, de escola que não se afina com a outra, coisas que não fazem sentido. E, em grande medida, isso tinha uma interferência direta, e depois eu fui descobrir com uma pessoa que era do tráfico e _____01:28:20____ x e depois y, não é? Então, não podia realmente. Eu não entendia ali, naquele momento. Depois a gente foi entendendo o porquê e conseguimos desconstruir essa coisa de: “Eu não vou fazer”. “Gente, nós vamos fazer juntos, porque não é o x e não é o y, é a turma única; não existem aqui dois grupos nessa sala. Nessa telessala, existem pessoas que estão juntas com o mesmo propósito”. Então eu tive essa resistência e que não foi de uma pessoa, foi de dois grupos que formavam a turma e uma ou outra pessoa não estava nesse grupo e nem nesse, mas não tinha força para garantir que a equipe de socialização funcionasse sempre, porque era rodízio, não é? E sempre que um parava aqui ou ali, eu tinha dificuldade. Então, a gente conseguiu romper isso com dificuldade, não foi fácil, não foi simples, mas a gente conseguiu romper. Eu sabia que, fora da sala, eles tinham as divergências, mas dentro da sala a gente conseguia viver em sociedade mesmo, em harmonia mesmo…
P/1 – Você lembra do dia em que aconteceu?
R – Meu primeiro dia de proposição de atividades de socialização não deu certo, não é? No segundo dia eu descobri qual era o motivo. Então, logo nas primeiras aulas foi assim... A gente começou a delinear a metodologia, aí fui começando a sentir quem eram as pessoas, quem eram as pessoas com quem eu vivia, não é? Que comunidade era aquela lá no final da Seis de Agosto? O que faziam aqueles meninos? Do que viviam? Quais eram os seus sonhos? E quando a gente, de algum modo, toca os sonhos, aquilo que para mim é o mais caro numa pessoa, os meninos não sonhavam: “Não quero ser nada, eu quero ser chefe do tráfico, eu quero ser assaltante…”
P/1 – E como que reverte isso? Sempre quando eu pergunto é mais no sentido de você contar uma história.
R – A gente… Quando a gente está num momento como esse, a gente perde pessoas também. Nós perdemos um dos nossos colegas. Houve uma armadilha para ele, digamos assim, e ele foi preso. Um dos nossos alunos, não é? O Rodrigo foi preso, ele ficou com essa referência, uma pessoa também que era um bom aluno, participativo, não era usuário, mas praticava o tráfico. E a gente tratava de lembrar dessa referência para que eles pudessem entender que não era ali que eles queriam estar. A gente começou a tratar de sonhos e, de algum modo, a gente já falava de projeto de vida sem intenção mesmo. Assim... A metodologia leva a isso, mas não foi premeditado, a gente estava tocando em projetos de vida. E eu sempre dizia para eles: “Eu não quero saber se você vai ser o médico, a doutora, a professora”. Isso faz parte do seu projeto de vida. Mas se você me disser que quer ser um técnico em enfermagem, que isso vai lhe fazer feliz, eu vou estar super feliz. Se você for feliz fazendo o que você quiser, é essa área que eu vou lhe apoiar”. Então, a importância não estava no status da profissão, a importância estava em encontrar alguma coisa que fizesse sentido, e a gente conseguia.
P/1 – Muito bom.
R – Eu vou chorar o dia todo? Ai, meu Deus, gente, desculpa.
P/1 – A gente está encerrando. Como acabei de dizer, a gente falaria muito, lhe ouviria muito. Você gostaria de falar alguma coisa que nós não perguntamos, dessa experiência? De alguma história, de alguma situação? De algum sonho? Não, sonho depois. Da experiência?
R – Essa experiência me trouxe muitas coisas, não é? Primeiro, me trouxe o significado real do que é ser professor na sua integralidade, do que é ser aluno nesse contexto, do que é trabalhar numa perspectiva que faça sentido. Então eu sou muito grata às oportunidades que eu tive dentro dessa perspectiva porque o meu olhar é muito mais amplificado quando eu olho para a academia; quando eu olho para a prática pedagógica; quando eu olho para um currículo; quando eu olho para uma avaliação; quando eu olho para um processo de formação continuada ou um processo de formação inicial; quando eu me sinto sujeito de um processo. Então foi isso que me motivou, que me despertou e que me instigou a pesquisar e a saber mais, foi isso que me motivou a chegar aqui e querer chegar muito mais longe, de poder saber um pouco mais. Então, a constituição da minha própria história profissional se confunde com a minha trajetória mesmo, no Telecurso. Eu não sou conhecida por Emily, eu sou a Emily do Poronga, que é o nome do Telecurso aqui no Acre. Todo mundo sabe quem eu sou. Se tem uma pessoa conhecida, sou eu. E todo mundo fala dessa história e associa, o meu sobrenome não é mais o meu de nascimento, é o meu profissional, porque isso marcou tanto o Acre, porque da história que nós construímos originaram-se outras histórias, outros projetos, outros processos que derivaram desse trabalho inicial pioneiro e que eu tenho muito orgulho e gratidão de ter feito parte, não é? Então, não adianta nunca deixar de negar isso, porque tanto é para a identidade da nossa gente, de que eu faço parte, como é da minha pessoal. Então, quando eu começo o memorial descritivo, a primeira coisa que eu falo… Às vezes eu pulo esse preâmbulo todo inicial, eu digo: “Aqui é a linha de corte, aqui é o divisor de águas, aqui é onde eu nasci profissionalmente”. Então eu sou muito grata de ter vivido na academia, com os contrapontos da academia e estar na sala de aula, no chão da sala de aula e saber o que é isso. E dizer aqui, porque eu vivi. E não porque eu ouvi falar. É muito caro para mim, isso. Então, o sentimento é de profundo pertencimento, porque se constitui e se mistura com a minha trajetória profissional e com a minha identidade como sujeito. É isso.
P/1 – Você está fazendo uma pesquisa?
R – Eu escrevo, não é? Eu sempre estou escrevendo, eu sou mestre em Educação mas estou pleiteando o doutorado. Sempre estou publicando, tenho um capítulo de livro, tenho artigos, tenho ensaios, sempre… Aí todo mundo, quando vai citar alguma coisa: “Areal, 2016”. E eu sei que é da Aceleração, que é do Telecurso. Aí eu digo: “Meu Deus, enche a alma”. Não porque me citou, mas porque é da minha história, mesmo, não é? Então, eu já tive outras gerências assim, mas sabe aquele orgulho santo? Não é vaidade pela vaidade, é porque… E quando eu chego, quando eu posto alguma coisa na rede social, os professores: “Mas você é a nossa referência”. Porque eu estava lá desde o primeiro tijolo, eu estava lá com todo mundo na formação, então a relação é essa mesmo, não é? A razão de estar ali e de fazer parte; foi construído tudo muito junto. E ser uma referência nesse sentido é importante para mim porque algum dia alguém foi referência para mim, por isso que eu estou aqui, não é? Teresa é referência para mim até hoje.
P/1 – Qual Teresa?
R – Essa aqui, Teresa Farias, não é? Vilma Guimarães é referência para mim até hoje. A Fundação são pessoas que… Todos nos tratam de maneira especial, como pessoas especiais mesmo.
P/2 – Você é que é especial.
R – E é isso que faz a diferença. Eu acho que alguém tocou o meu coração e eu consegui tocar o coração das pessoas. E muita gente hoje escreve sobre o programa no Acre e assim... Como eu fui a primeira mestra no Acre, com essa pesquisa então acaba sendo referência (risos). Eu vou para Endipe, na Bahia, apresentar um painel sobre esse tema: A Reforma Educacional da Década de 90 e os Reflexos na Educação do Acre - Um Olhar Sobre a Prática Pedagógica.
P/1 – Muito bom, parabéns. O que você achou de contar a sua história neste momento?
R – Assim... É difícil falar da gente, não é? Eu achei emocionante, foi prazeroso pela forma como vocês conduziram. Mas foi difícil recuperar algumas coisas das quais eu sinto saudades. Eu sinto saudades de estar… Eu sinto saudades da forma como foi desenvolvido o trabalho no Acre, mas é aquela lembrança saudável, não é? E o quanto a gente fez aqui, o quanto a gente reverteu o indicador, que era péssimo e que hoje, se eu fosse falar do ponto de vista dos dados, da estatística, da pesquisa, o quanto a gente revolucionou... Então todos os momentos… Vinha passando um filme e é isso: mistura de sentimentos. É alegria, mas é também, de: “Poxa, eu toquei em coisinhas lá paradinhas, não é? Quietinhas, acomodadas.
P/1 – Para nós foi bom, não é?
P/2 – Ótimo.
P/1 – Parabéns…
R – Mas eu fiquei muito feliz também. Sabe aquele sentimento…? É porque é a saudade mesmo, a saudade, porque eu… Agora não está gravando?
P/3 – Está gravando.
R – Eu nunca quis sair da Aceleração, eu tive que ir para o desafio porque eles não viram uma outra pessoa com o meu perfil, então eu não saí porque eu quis. E fez uma diferença enorme no programa, dito por todos.
P/1 – Quando você saiu da sala…
R – Não, quando eu saí da gerência-geral, que já estava consolidada, que já era respeitada e que eu já tinha pego todas as pancadas e porradas com todo mundo… Eu tive que sair, porque eu já estava há dezoito anos, porque tinha que implantar um outro desafio no Acre e eu não me adaptei a esse trabalho, a forma como foi conduzido o trabalho, eu não comunguei o modo de fazer. Eu pensava que seria diferente, que teria que ser de participação mesmo, de ouvir, de… E de construção por nós acreanos, não é? E aí, acabei pedindo para sair, mas não saí querendo sair. Dezoito anos fazendo a mesma coisa, quer dizer, a mesma coisa não, professora, supervisora, mas eu fui muito rapidamente promovida a gerente-geral, não é? E fiquei dezoito anos fazendo a mesma coisa. “Você não cansa?”, o Secretário me dizia. Eu digo: “Não, eu não esgotei. Todo ano a gente recria, as pessoas não são as mesmas e nem nós somos os mesmos, nem o senhor mesmo e nem nós fazemos a mesma coisa”. E eu não queria. É isso. Acho que veio um filme, não é? Eu acho que poderia ter contribuído mais, acho que eu tinha mais… Hoje eu tenho muito mais para dizer, porque eu também saí, aí veio a pesquisadora, fui conhecer outras coisas, talvez fosse importante. Mas é isso. Saudades, talvez.
P/1 – Parabéns, parabéns mesmo, foi um privilégio a gente te ouvir. Obrigada.
R – O privilégio foi meu que tive a oportunidade de falar de mim. Eu acho que eu nunca imaginei de ter essa oportunidade. Nunca! Nem nos melhores sonhos, maiores… Como é isso, não é? É o alcance daquilo que a Educação faz pelas pessoas, eu acho que ela fez muito. O Telecurso fez muito para mim, não é? Você provocar uma menina do interior para ser pesquisadora numa área que não é muito investigada, porque no Acre o meu objeto de discussão, sem nenhuma modéstia, eu sou a referência aqui no estado, não é? E para outras pessoas também. Então, isso para mim é muito. Saindo de onde eu saí, para mim é muito.
P/1 – Com certeza! Contribuiu muito para a Educação. Parabéns.
R – Isso para mim é importante. Gente, obrigada.
FINAL DA ENTREVISTARecolher