P/1 – Oi, Liliane. Primeiro eu queria agradecer a presença da senhora pra dar sua história de vida pra gente e contar um pouquinho da sua trajetória, e por ter se deslocado mais uma vez até aqui. E pra gente começar eu queria que a senhora falasse seu nome completo, data e local de nascimento...Continuar leitura
P/1 – Oi, Liliane. Primeiro eu queria agradecer a presença da senhora pra dar sua história de vida pra gente e contar um pouquinho da sua trajetória, e por ter se deslocado mais uma vez até aqui. E pra gente começar eu queria que a senhora falasse seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Liliane Gnocchi da Costa Reis. Nasci no Rio [Rio de Janeiro] em 14 de março de 1956.
P/1 – Qual é o nome dos seus pais?
R – Meu pai, Jader Gomes Manso Monteiro da Costa Reis e da mãe, Iara Gnocchi da Costa Reis.
P/1 – Dos avós?
R – Tudo isso? (risos) Então vamos lá: Heitor Manso Monteiro da Costa Reis, Francisca Henedina Gomes D’Ávila Monteiro da Costa Reis e pelo lado da mãe Michael Gnocchi e Glória Gnocchi.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente a história dessa família.
R – Pela parte do meu pai é uma família de Minas, uma família antiga no Brasil. Os primeiros parentes vieram ainda no século 18, em 1700, e se instalaram em Minas, já na época da mineração. Era uma família muito grande e foi se espalhando aos poucos por Minas e foi chegando ao Estado do Rio de Janeiro. Grande parte deles eram plantadores de café depois no século 19 e também uma grande parte foi se tornando profissional liberal, médico, advogado, essa trajetória assim, que é mais ou menos comum nessas famílias. Meu pai, que morava então em Minas, veio estudar medicina aqui no Rio, se formou, conheceu minha mãe, que é carioca.
Meus dois avós, tanto o pai dela quanto a mãe eram cariocas também. Ele, filho de um italiano e de uma espanhola e minha avó filha de portugueses que chegaram ao Brasil eu acredito que no início do século 20, porque minha avó já nasceu no Brasil, mas nasceu no início do século.
Meus bisavós devem ter chegado aqui em 1900, um pouquinho antes. Com a família dos meus avós em Portugal a gente nunca teve nenhum contato, era só a família brasileira mesmo que a gente conheceu. Bom, eu sou casada, tenho mais três irmãs, todas nós somos casadas, todo mundo tem filhos, eu tenho três filhos, por enquanto a família está desse tamanho.
P/1 – Quando seu pai veio estudar Medicina aqui no Rio você sabe como ele conheceu a sua mãe? Sabe a história?
R – Eu acho que, até onde eu me lembro, por uma proximidade de vizinhança. Ele não tinha família no Rio e na época era uma coisa comum você vir morar numa pensão.
Ele veio morar numa pensão no bairro onde minha mãe morava que era ali pelo Andaraí, por ali. Eu não sei exatamente as circunstâncias do primeiro encontro, quem apresentou, se foi num clube, se foi num baile. Esses detalhes é bom eu perguntar pra minha mãe como é que foi (risos), mas eu não me lembro dela já ter comentado.
Ele até tinha um tio que morava aqui no Rio, mas já eram outros arranjos para morar junto, era meio complicado, então nem sempre era a melhor coisa e ele foi morar mesmo numa pensão.
P/1 – Conta um pouquinho da sua infância pra gente, da casa da sua infância.
R – Quando eu nasci meus pais foram morar no apartamento onde a gente morou a vida inteira. Primeiro moravam na casa da minha avó por parte de mãe aqui no Rio. Mas, aí, ele comprou esse apartamento. A gente foi morar é na Tijuca, numa rua bem pequenininha, num prédio que tinha, assim como eles, outros casais com as mesmas características, todos com filhos pequenos. Então, era aquela turma de crianças que subia e descia as escadas e fazia todas as brincadeiras, todos os jogos, todos os finais de semana, todas as festas, tinha festa de São João, fazia muita coisa, todo mundo junto, ensaiava quadrilha. Era uma coisa bem desse prédio. Era um dos poucos prédios na rua porque era uma rua majoritariamente de casas. A gente circulava pouco pela rua, conhecia quem morava nas casas, mas a vida era meio que voltada para dentro do prédio. Eu estudava numa escola pública, próxima, que dava para ir a pé, era uma coisa bem do bairro também. Que mais? Meu pai gostava muito de viajar para ir ver a família que morava em Minas, meus avós, minha tia que morava em Leopoldina. A gente ia todas as férias, tinha aquela caravana, botava as quatro crianças no carro e aquele monte de mala e íamos nós para Leopoldina, Cataguases, Juiz de Fora, Muriaé e ia fazendo o percurso da família, ia chegando aquele monte de criança nas casas das pessoas para se hospedar (risos). Era muito divertido. Tinha uma parte da família também que morava em Campos. Tinha um primo em Campos que tinha cinco filhos, quando juntávamos todos era assim, um jardim de infância completo, uma bagunça danada. A família ainda tinha uma fazenda aí nessa área de Leopoldina e também de vez em quando a gente ia passar um tempinho lá. Depois dessa fase ele resolveu comprar uma casa em São Lourenço e nós tivemos essa casa durante muito tempo e então já não tinha mais essa peregrinação pela casa dos parentes todos. Passávamos as férias e os feriados grandes nessa casa em São. Lourenço. De infância não tem muita coisa diferente do que é a infância de um menino de classe média, aquela coisa de estudar, as atividades a maior parte do tempo com a família, muito em torno dessa família que era bem grande.
P/1 – Você sentia falta da praia?
R – Não necessariamente porque nós íamos à praia somente nos finais de semana. Meu pai não gostava muito de praia, quem gostava era minha mãe. Ele ia meio amarrado enquanto a gente era pequeno porque tinha que ir pra Barra da Tijuca. Morava na Tijuca, então a praia mais próxima era a Barra da Tijuca. E ia de carro era isso. Mas a gente ia bem cedo porque ele era muito branquinho e até mesmo debaixo da barraca se queimava todo, depois se despelava todo. Coitado, um suplício.
Depois que a gente é maior a gente entende a chateação para ele, pois ele não gostava muito não. Mas era um programa feito com certa frequência, a gente ia cedo pra praia e não era nada de ficar o dia inteiro, não era nada disso.
E a praia naquela época na Barra da Tijuca não tinha nada. Era um areal imenso de um lado e de outro daquela pista que havia, aquele mar batendo. E nós ficávamos perto de um postinho que havia ali, um posto de salvamento e [onde] um dos primos era o guarda vidas. Era uma coisa, assim, bem familiar.
A única coisa que tinha na praia é que passava o sorveteiro da Kibon. Só. Não tinha nada. Então tinha que levar tudo. Imagina só com quatro crianças; água, fruta, tinha que levar um caminhão de coisas para se deslocar para a praia (risos), não era uma coisa muito simples.
P/1 – E do que você gostava de brincar?
R – Ah, você imagina. Quatro meninas, a gente dividia o quarto, a gente brincava de boneca, muito. Além de nós, tinha várias outras meninas agregadas, uma que era mais minha amiga, outra que era mais amiga da mais velha, cada uma tinha uma assim mais amiga que ia lá pra casa, que era o lugar onde todo mundo ia brincar. Praticamente todo dia tinha gente pra lanchar. A gente meio que desarrumava tudo. Pegava, por exemplo, a colcha pra virar a capa que todo mundo era rainha, princesa, amarrava aquilo, pegava coisas da minha mãe, sapatos, coisas pra botar na cabeça, a casa estava sempre de pernas pro ar (risos), mas minha mãe falava, “deixa que fique assim, não tem jeito mesmo, tá bom”.
P/1 – E você tem recordações de comemorações, festas, sua família tinha hábito de comemorar festas de aniversário, de Natal?
R – Como a família é muito grande, mas da parte do meu pai e aqui no Rio tinha muito pouca gente da parte da família de minha mãe e minha mãe era filha única e também a família dela pequena, nunca teve muita gente junta reunida aqui no Rio. Natal era na casa da minha avó. A gente ia pra lá e tinha aquela coisa de meu avô ir com a gente botar os sapatinhos na varanda que era para esperar Papai Noel botar os presentes. Aí uma certa hora dizia “agora todo mundo vai dormir”. Fazia uma coisa de um jantar todos juntos e íamos dormir para esperar Papai Noel e no dia seguinte estavam lá os presentes nos sapatos. O Natal era isso. Os aniversários e essas coisas, Dia dos Pais, Dia das Mães. Não somos uma família, assim festeira, assim animadíssima, cair no samba, nada disso. É tudo muito comedido.
P/1 – E quais são as suas lembranças da Tijuca?
R – Ah, da Tijuca, muita coisa, nossa!
A gente morava num lugar da Tijuca que é a Muda, que é um lugar bem recolhido da Tijuca, como se fosse um pequeno bairro dentro da Tijuca. Não é nem a Usina que é mais lá pra cima e não é a Praça Saens Peña que é um movimento maior. Era um bairro muito familiar. A gente fazia tudo, depois [quando] já tava naquela idade de 11, 12 anos, você já começa a andar sozinho. A gente ia pra escola de ônibus, ia pro curso de Inglês de ônibus, ia pro curso de Francês de ônibus. A gente tinha uma liberdade grande de andar já com 11, 12 anos. A gente fazia tudo de ônibus, pra lá pra cá. Já sabia como é que eram os roteiros, onde é que pegava o ônibus, onde saltava e assim vai reconhecendo um pouco mais o bairro. Tinha uma circulação grande. Agora pra outras coisas a gente tinha que vir pra cidade porque também o comércio era muito pequeno. Pra comprar roupas, comprar sapatos, você tinha que vir pra cidade. Vir pra cidade também era outro momento... Pega aquele ônibus, demora um tempão pra chegar, anda muito, muito cansativo. A grande compensação era depois ir lanchar, ou na Colombo [Confeitaria] ou na KV. Aí todo mundo gostava de vir à cidade fazer compras porque depois tinha uma coisa boa, super legal, todo mundo gostava.
P/1 – Liliane, a senhora lembra quais são suas primeiras lembranças escolares, o primeiro dia de aula?
R – Pra mim a escola foi assim... Não existia Jardim de Infância. Só a minha irmã mais nova, que já é a quarta, é que foi começar em Jardim de Infância. Antes disso não era comum, não era simples, não tinha. O que meu pai fez com a gente foi que tinha próximo ali de onde a gente morava uma senhora que tinha na casa dela como se fosse uma pequena escola. Um espaço do tamanho aqui desta sala, com várias mesas pequenas e havia pessoas de todas as idades. A gente ia pra lá de tarde, não me lembro quanto tempo eu ficava, mas era isso. Ali eu aprendi a ler, escrever... Quando com sete anos eu fui pra entrar na escola, meu pai tinha falado: “Olha ela já sabe assim umas coisas básicas, não sei que”, “então faz uma prova”...
Eu me lembro de ter feito alguma coisa e fui pro segundo ano. Entrei com sete no segundo e a partir disso eu sempre fui das mais novas de todas as turmas que eu frequentei, até a universidade. Para essa parte tinha certas horas que era meio complicado. Todo mundo achava que eu já devia ser mais madura do que eu realmente era e então tinha umas coisas que eu tinha que meio que acordar. Acorda porque não posso ficar pra trás (risos). Essa escola eu frequentei o Primário todo, que era o que tinha, o Primário. Era uma escola pequena, não muito grande e com as características de escola de antigamente. O grosso dos alunos era de classe média, poucos alunos de classe baixa. Tinha dois ou três ou quatro meninas e meninos negros na turma, por exemplo, era pouca gente. A gente sabia que moravam ali por perto, já nos morros que já havia ali na Tijuca, mas era pouca a frequência. As professoras eram com um perfil muito parecido com o da mãe da gente. Eu tive duas professoras nesses quatro anos de Primário. Era a tia não sei quem e a tia não sei quem. Também moravam próximo, todo mundo meio que conhecido das famílias, era meio que a segunda casa, você tava muito em casa. A escola era um ambiente... E foi até engraçado porque eu fui voltar a essa escola quando eu fui votar pela primeira vez e levei um susto com o tamanho do pátio, que eu achava que era uma imensidão. A minha memória era de um espaço imenso e quando eu vi você dava dez passos e acabou o espaço (risos). É muito legal de ver essa coisa da memória infantil, é muito engraçado.
P/1 – E Liliane, teve alguma dessas professoras que tenha te marcado, que você lembre com mais carinho?
R – É tem essa segunda professora, que já foi não, vamos dizer, do primeiro ano, mas já do terceiro e do quarto ano, que era a tia Lulu que era assim mais enérgica, com uma voz mais poderosa, uma presença também mais poderosa, mas muito carinhosa e muito segura. Marca porque também não tive muitas nesse período do Primário. Depois eu fui fazer... Antigamente pra você entrar no Ginásio você tinha que fazer uma prova de Admissão. Você fazia um ano de cursinho de pré-Admissão. Era um cursinho onde você tinha vários professores, era já outra característica, professor de Português, professor de Matemática e assim por diante. Também num curso próximo de casa e com um perfil muito semelhante, as pessoas que você já conhece, que moram por ali também, as famílias e o pessoal que frequentava também era quem frequentava o mesmo clube, essas coisas. Tudo muito perto. Depois você vai encontrar vários desses alunos no Ginásio pra onde você foi, pra onde seus irmãos foram e continuava todo mundo muito próximo. Aí namora um, namora outro, essas coisas, e vão se formando laços por aí também.
P/1 – Liliane o que você mais gostou da escola?
R – Da escola, eu não tenho assim nessa fase da infância (pausa). Não tinha nada de muito especial não. Escola era aquela coisa; você tem que ir, também não é nada desagradável, nem marca por uma característica assim “ai, eu adorava aquilo ou aquilo outro” ou “ai, eu detestava”. Não tinha nada de especial não. Tinha aquela coisa legal de começo de ano, monte de caderno novo, encapar os cadernos, botar etiqueta com seu nomezinho, e aquela preparação, a pasta, aquelas coisas assim, pasta de couro super bonita, aquele cheiro bom (risos) umas coisas meio bobas assim (risos).
P/1 –
E
pequena quando crescesse, tinha algum sonho, o que queria ser?
R – Ah, tinha, isso sim. Quando eu crescer eu quero ser bailarina. Briguei muito com meu pai porque ele não deixou. Porque ele achava que não, que bailarina não, vai morrer de fome, não tem espaço, não existe isso no Brasil, imagina, onde é que vai fazer curso disso, não, tire isso da cabeça, nada a ver. Mas eu dançava em casa. Ele gostava muito de música clássica, estava sempre tocando em casa alguma coisa. Eu ficava dançando pra ver se ele se empolgava com a minha ideia, mas não vingou não. Depois teve uma época que eu achava que eu ia ser Diplomata. Eu achava uma coisa meio encantada viajar, ir pra outros lugares, aquela coisa bem idealizada. Mas, depois, mais velha um pouquinho, com 16, 17 anos eu já tinha uma noção que eu ia gostar dessa área social.
P/1 – Deixa eu só te perguntar, a senhora disse que fez curso de Inglês, de Francês, como foi essa coisa de estudar línguas? Foi uma coisa que veio de casa ou da senhora mesmo?
R – Ah, foi meu pai, meu pai que era assim, o básico era isso. Todo mundo tem que saber Inglês e Francês, senão não vai conseguir fazer nada na vida. Ponto. Você entrava no Ginásio e você não tinha muita coisa para ocupar o tempo. Estudar desesperadamente no Ginásio, não é o caso. Daí você fica em casa na parte da tarde e não tem nada para fazer. Ocupava o tempo a semana inteira, então, era segunda, quarta e sexta no Inglês e terça e quinta no Francês. Tinha que organizar o horário porque tinha que dar tempo de fazer o dever de casa, estudar e o horário já ficava mais restrito. Não tinha que escolher não. Era todo mundo tipo (risos), forma era essa (riso). Todo mundo tinha que fazer. Todo mundo fez o IBEU [Instituto Brasil-Estados Unidos] o curso inteiro, depois a Aliança Francesa o curso inteiro e depois eu, por minha conta, depois que eu voltei dos Estados Unidos, eu não fui participante do AFS eu fui participante pelo YFU [Youth for Understanding], depois eu voltei dos Estados Unidos eu quis fazer o que o IBEU tinha que era o TTC [Teacher’s Training Course] porque eu queria continuar a prática com o Inglês. Então não tinha mais nada, além disso, no IBEU. Aí, eu falei, “ah, eu vou fazer, eu não quero ser professora, mas tudo bem, eu aproveito, fico estudando”. E aí fiz mais três anos. Então Inglês eu estudei muito, estudei bastante.
P/1 – E como que aconteceu essa ideia de fazer intercâmbio, de onde que ela veio?
R – Ah, essa ideia foi assim; uma amiga. Eu era bandeirante, a gente foi bandeirante. Era outra coisa que era assim meio forma. Não... tem esse negócio aqui de bandeirante... então vai ser bandeirante. Tinha no clube e era no sábado. É isso, a gente tem que ocupar a criança, tem que botar a criança pra fazer coisa (risos). Era assim. Acho que ele nem conhecia muito qual era o espírito da coisa, mas era bom, tinha gente com uma coisa orientada, era bacaninha, então vai. Pronto. Aí, uma amiga, eu devia ter uns 14, 15 anos, que já era um pouquinho mais velha, estava indo por esse programa de seis meses. Enquanto ela foi escreveu, passou por diversas dificuldades, reclamava, achava tudo horrível, mas eu achando aquilo o máximo e falei: “Eu quero ir nesse negócio”. Aí, um dia eu falei pro meu pai, “eu quero fazer esse negócio”. Ele olhou e disse “mas nem por um decreto” (risos). “Mas pai, eu quero”, e mostrei as cartas, contei que ela estava estudando, morando com uma família, tem isso, tem aquilo, não sei que. Eu passei a falar disso todo dia: “Quando eu for pros Estados Unidos, porque a única coisa que eu conhecia era essa, Estados Unidos, quando eu for pros Estados Unidos, num sei o que, num sei o que” todo dia, no almoço, no jantar, no almoço e no jantar. Quando eu fiz 16 anos ele disse: “Está bem, você vai” (risos).
P/2 – Venceu pelo cansaço.
R – Eu acho que fiquei uns dois anos assim falando disso, até ele se convencer. “Então está bom. Onde é esse negócio? Vamos lá pra ver como é que é”.
P/1 – Eu vou te perguntar do intercâmbio, mas antes eu queria que a senhora contasse um pouquinho pra gente da juventude aqui do Rio, porque a gente conversou da infância, mas o que era legal fazer na época, quais eram os passeios, os programas?
R – Humm. Como a gente morava na Tijuca não tinha muita mobilidade, não era muito simples ficar circulando pela cidade assim de noite. Não tinha muito quem levasse, quem buscasse. Meu pai como era médico, tinha um plantão, eu acho que ele fez de propósito, que era no sábado, 24 horas. Ele ia no sábado de manhã, voltava no domingo de manhã, então sem chance de levar você pra qualquer festa no sábado à noite (risos). A minha mãe não dirigia e assim, “não contem com isso”, ou a gente arrumava carona pra ir com alguém ou não ia. Tinha muita coisa no clube que era na Tijuca, tinha coisa no sábado, coisa no domingo, não sei que. A gente ia muito ao cinema. Cinema era um programa super. Ali na Praça Saens Peña tinha muito cinema, uns cinemas antigos, grandes. Ainda tem os prédios, mas foram todos transformados em outras coisas, tinha uma certa variedade. É... que mais? Tinha isso de como a gente era bandeirante, eu fui bandeirante dos 8 aos 15, e até os 15 eu tive ainda muita atividade com esse grupo. Tinha muito passeio, tinha acampamento, a gente ia pra muito lugar acampar, tinha muita coisa que a gente fazia, por exemplo, ir pra Floresta da Tijuca e passar a tarde caminhando na Floresta da Tijuca, fazia isso. Tinha coisas, por exemplo, teve uma época que houve uma chuva muito arrasadora no Rio, acho que foi em 68 [1968], se não estou enganada. Foi uma dessas que desceu tudo que era morro do Rio de Janeiro, arriou. Uma catástrofe. Morreu gente, as pessoas sem casa, abrigado em escola, foi uma desgraceira total. Isso eu me lembro bem, eu com 12 anos, em 68 [1968] e a gente foi convocado, tudo que era escoteiro, bandeirante, foi convocado para ajudar, trabalhar nesses lugares. A gente morava ali na Muda, o morro ali perto era o Borel. O Borel ficou arrasado. As pessoas ficaram nas escolas, que foi em janeiro, as escolas estavam em férias, e eram famílias e famílias e famílias, com criança, com gente idosa, uma coisa. Tinha que fazer comida, tinha que ajudar cuidar das crianças, tinha que separar roupa pra poder distribuir. Roupas que vinham daquelas campanhas de alimento, de roupa, de colchão, de sapato. A gente ajudava com isso tudo e se envolvia um pouco com essas coisas. Como a minha família não era nada de Igreja, a gente não tinha nenhuma frequência com nada de igreja. Tinha contatos só nesses momentos esporádicos. Como, por exemplo, nessa situação, a igreja estava muito presente, eles organizaram muita coisa. Depois já um pouco mais velha, na universidade, já era outra realidade, já era um mundo diferente, passa a ser outra coisa. Você passa a se envolver com outras coisas, ter outro tipo de amizade, você começa a frequentar outros lugares, já passa pra uma coisa diferente.
P/1 – Depois a gente vai falar um pouquinho do período de faculdade, mas eu queria perguntar agora do intercâmbio. Como é que foi esse processo de ir, conta pra gente o preparatório.
R – Tá. Nesse programa do YFU não havia muita coisa preparatória. Você ia lá, se inscrevia, preenchia, não me lembro exatamente o que foi o formulário que a gente preencheu, pagava o que tinha que pagar e aguardava. Veio depois um formulário com os dados da família, uma foto da família dizendo pra onde você ia e pronto. Daí, dava tempo de você escrever uma carta porque demorava, pra ir e voltar a correspondência, num sei o que, pra eles se corresponderem um pouquinho antes. Como preparação eu recebi da minha mãe uma carta explicando o que eu devia levar porque eu ia estudar numa escola particular e tinha um uniforme. Eu tinha que levar uma saia azul e [para] as blusas [falava]
“você não se preocupe”, e sapatos, tem que ser assim e num sei que e também tinha que levar uma coisa já apropriada pra isso. Em termos de preparação não tinha assim um “pré”. Um pouco só de expectativa da hora de ir, que era janeiro, que era verão aqui, que era inverno lá. Era só isso que eu sabia. Como eu fui pra Phoenix, no Arizona, então também não era um lugar de temperaturas baixíssimas no inverno. Menos mal. De preparação não teve nada de muito especial. Quando eu cheguei o que eu acho que facilitou muito é que eu já tinha feito o curso do IBEU durante seis anos. Eu entendia bastante de Inglês. Falar era difícil, eu não tinha fluência nenhuma, mas entender eu entendia tudo. Quando a gente chegou, as instruções das pessoas no desembarque, “vamos pra ali porque vamos ficar por dois ou três dias numa coisa de orientação” e eu via que o resto do povo que estava junto comigo não entendia da missa nem a metade. Ficava eu traduzindo pra um certo grupo lá que estava meio perdido no meio do tiroteio o que eram as orientações. E dali a gente foi distribuída, cada um pegou o seu voo e eu fui pra Phoenix e a minha família me pegou no aeroporto. Tinha lá um representante que estava junto com eles pra me receber que era um voluntário também. Me deu um cartão com um telefone, “se você precisar de alguma coisa eu sou a pessoa de contato do YFU” e boa sorte e adeus. Pronto, era isso, não tinha preparação (risos). A minha família já tinha recebido outros participantes antes e já tinha uma certa experiência, o que foi muito legal porque facilitou muito, pois já sabia quais eram as dificuldades iniciais, provavelmente o que eu estava sentindo em cada momento, isso ajudou bastante. E a minha mãe era professora, tinha aquele jeito bem professora, manda em tudo, ajeita tudo, organiza tudo, a casa, não sei o quê, também facilitou. Então, antes, foi mais ou menos isso. Durante, como eu frequentei uma escola particular, eu tive uma experiência que não me deu muita opção, muita oportunidade de conhecer uma coisa mais ampla da sociedade ali. Eu fiquei convivendo com meninos e meninas de famílias mais ricas. Quem vai pra escola particular nos Estados Unidos é só o pessoal mais rico. Eu não tive essa experiência de escola de High School pública que tem de tudo, que rola de tudo, que tem milhares de problemas, que tem dificuldades, não sei que. Não, ali era uma coisa muito organizadinha, todo mundo nos conformes. No máximo que tinha era uns meninos que iam lá pra trás pra fumar um negocinho de vez em quando, mas isso era tãaao... Passava super despercebido. Não tinha nada de muito grandioso não. Mas era simpático, as pessoas foram simpáticas. É... foi engraçado porque a minha mãe falou pra levar a tal da saia azul e eu levei uma saia azul que era aqui, tinha dois palmos de saia (risos). Depois você chega na escola você começa a ver, meu Deus do céu (risos) “Sabe o quê? é assim que é a minha saia. Se alguém disser alguma coisa eu vejo como é que faz e se ninguém disser nada fica por isso mesmo”. Mas todo mundo olhava. E eu cheguei em janeiro preta de praia, preta. As pessoas olhavam (risos), de onde vem esta coisa? “Você é de onde, você é do México?” Porque no máximo que eles podiam imaginar é que eu era mexicana, que é uma coisa diferente, morena de praia, uma cara completamente diferente, eu era a mexicana. “Não, não sou mexicana não, sou brasileira”, aquelas coisas assim bem comuns de antigamente, de não saber nada de outro país, não conhecer coisa nenhuma. Mas também não era muita curiosidade não. Um ou outro que chegava pra perguntar alguma coisa, mas também um ambiente muito cada um na sua, aquele jeito bem... Mas eu fiz lá uma meia dúzia de amigos e amigas que me levavam pra cima e pra baixo, vamos pro cinema, vamos pro shopping, vamos jantar, vamos passear no final de semana. Também não tinha muita coisa pra fazer não. Uma vida bem de família e eu também não era nada acostumada com muita coisa de muito movimento... Mas a vida da família mesmo, a gente fez umas viagens. Eles me levaram pra conhecer alguns lugares ali por perto, foi simpático. E depois, na hora de voltar, eu tinha um primo que estava morando em San Diego e o voo saia de Los Angeles. A gente combinou que eu ia passar uns dias com esse primo, que era casado e o casal estava morando lá em San Diego. “Você passa uma semana aqui com a gente, uns cinco dias, pra gente passear um pouco, conhecer San Diego”. A gente foi de carro de Phoenix até San Diego, uma viagem lindíssima, passa no meio do deserto, super, super, muito bonito. Foi uma viagem muito legal com eles no final e me deixaram lá com meu primo, aí, foi bom, assim. San Diego é outro tipo de cidade, é uma cidade bem maior. Phoenix é uma cidade grande, um centro grande, mas claro que San Diego era uma coisa maior, tinha mais coisas. A gente foi passear, fui à Disneylândia também, aproveitamos. Ah, essas coisas que tinham.
P/1 – E como que foi esse retorno e o que mudou em você quando você voltou?
R – Ah, eu acho que o que muda é um pouco você conseguir enxergar a sua realidade de um outro ponto de vista, para o bem e para o mal. Nem é tão ruim quanto você pensava e nem é a maravilha que em algum momento você achou que era também. Tem muitas comparações que você é capaz de fazer. Por exemplo, com o sistema escolar, com a escola. Tem umas coisas interessantes. Numa High School, você tinha a oferta de possibilidades diferentes. Eu tinha, por exemplo, uma aula que era de Leitura. Eu achava aquilo super legal. Eu sentava ali, era uma coisa com a bibliotecária da escola, na biblioteca. Ela perguntava o que você gostava de ler, te orientava um pouco ali, tem isso, tem aquilo, tem isso aqui que é novo, tem isto com esta característica. Te dava a chance. Eu li muito enquanto eu estava lá.
Os seis meses que eu passei eu li muito. Aproveitei também para conhecer um pouco mais da Literatura Americana. Você comparando com o sistema daqui, que era aquela coisa da leitura obrigatória, você tem que ler aquele livro pra fazer uma prova, e essa disciplina não tinha nada. Não era nem uma matéria, uma coisa, com um espaço pra você ler. Tinha outros amigos que eu via que tinha lá um espaço de cooking, aprendia a fazer comida, culinária, tinha outros que faziam lá umas cerâmicas, umas outras coisas. A aula de Espanhol, por exemplo, eu fiz um período. Uma das aulas que eu escolhi foi uma classe de Espanhol porque eu pensei “vou aproveitar, porque eu nunca estudei Espanhol e acho que eu nunca vou sentar pra estudar Espanhol formalmente, então vou aproveitar”. Eram poucos alunos, aí a professora saia com a gente, ah, vamos a um restaurante, um restaurante mexicano pra gente ir praticando, a gente vai pedir tudo em espanhol. Vamos treinar como vai ser, ou vamos fazer uma visita, acho que foi a um museu ou a um centro cultural. Então, também tinha essas coisas diferentes da escola que eram interessantes. Agora, o que eu acho que muda mais é que você, como fica sozinho, embora você esteja numa família, acolhida, bem cuidada e numa escola com amigos, você na verdade está sozinho. É o momento que você amadurece. “Eu estou aqui sozinha eu tenho que resolver sozinha”. Diante de situações que são situações do dia a dia, que não é nada muito fora do comum depois que passa. Mas tem horas que você está com saudade, tem horas que você tá meio de saco cheio daquilo ali, tem horas que a sua irmã já te enche o saco, é aquela coisa a cara que ela faz de manhã, você já... entendeu? Tem horas que você quer desabafar com alguém e você não tem muito como. Tem horas que a outra língua te cansa, no início é muito cansativo. Depois que você engrena pronto, engrenou. Mas esse primeiro momento é muito cansativo. Tinha hora que eu tava exausta. Na aula eu já não queria conversa com ninguém, eu já queria ficar quieta, queria ir pra casa dormir. Tem momentos que você sente falta, dos meus amigos, da minha família, do teu espaço conhecido. Eu acho que o que muda é um pouco isso. Você se acostumar numa outra situação tendo que resolver essas coisas dessa situação. Mas tem também que eu fiquei só seis meses. Nesse pouco tempo dá pra você ter a sacada de que “não é que eu consigo fazer esse negócio aqui sozinha? Não é que eu consigo viver sozinha? Não é que eu consigo viver sem a coisa da família o tempo todo? Olha que coisa legal”. Você se dá conta de que você tá no mundo e essa parte é muito boa porque quando você saca isso você diz “agora eu vou, agora não tem mais que ficar perguntando muita coisa pra ninguém”. Quando eu voltei na minha cabeça já estava tudo resolvido. O que eu vou estudar, assim que eu voltar eu quero trabalhar, quero fazer minhas coisas daqui a pouco. Eu fui fazendo essas coisas no ano seguinte que eu voltei, eu fui em 1973 em janeiro, voltei no meio do ano, no meio do ano quando eu cheguei, entrei num desses cursinhos pré-vestibular e voltei para o curso que eu fazia de Ensino Médio, de segundo grau. Entrei num desses cursinhos pré-vestibular porque tinha matérias que eu ainda não tinha visto e que ia precisar para o vestibular, muito nessa área de Matemática, Geometria, Trigonometria. Eu nunca tinha aprendido isso porque eu fiz Normal, dois anos, e curso de Secretariado da Fundação Getúlio Vargas. Foi uma misturada danada meu segundo grau, uma coisa meio maluca e quando eu voltei, eu voltei só pro Secretariado, não voltei para o Normal, abandonei, e fazia esse cursinho pré-vestibular de noite. Chegou no final do ano eu fiz vestibular, aí, passei. Em 1974 entrei pra universidade e em 1975 eu comecei a trabalhar no começo do ano. Eu comecei a ajudar a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Eles estavam fazendo a compilação de toda a literatura infantil e juvenil já publicada no Brasil até então. Eu ia pra faculdade de manhã e de tarde eu ia pro escritório deles, onde eu batia à máquina, que era isso que eles estavam fazendo. Foi o meu primeiro trabalho, não era de carteira assinada, mas era esse primeiro trabalho. E no meio do ano, julho ou agosto se não estou enganada, apareceu uma vaga aqui no escritório do AFS. Uma outra amiga já da universidade que já tinha sido participante do AFS e era casada com, na época acho que ela ainda era namorada, uma pessoa que trabalhava na secretaria e que falou “vê lá se tem alguém interessado porque tem uma vaga de assistente no escritório que está saindo uma pessoa e a gente vai abrir uma vaga de assistente”. Ela falou pra mim “você não queria trabalhar, então? Tem esse negócio lá que é só de tarde, é de uma e meia às seis e meia, dá pra você fazer a faculdade e é isso. Só precisa bater a máquina e saber inglês.” Pronto. Eu vim, fiz a entrevista, entrei, tá bom e comecei. Eu já queria trabalhar e então era essa a ideia.
Mas não tinha a ideia de como era. Pra mim ia ser um trabalho tipo enquanto eu estava na universidade. Porque também você não fica com muita certeza do que que você vai fazer depois com um curso de Ciências Sociais. O que eu vou fazer depois? Não tem muita ideia.
P/1 – E por que Ciências Sociais?
R – Ah, porque quando eu voltei do intercâmbio eu já tinha bem noção de quais eram as minhas preocupações. Também deu tempo de entender um pouco melhor o que que me interessava. Não tinha nada muito claro do que era, até porque eu não conhecia. Não tem como hoje em dia que você entra na Internet, vê os conteúdos das disciplinas, as ementas, pra escolher. Não tinha muita orientação com relação ao que era, mas tinha uma certa intuição de que é por aqui que eu vou. Podia ter sido História, podia ter sido Filosofia, mas eu achei que esse negócio de Ciências Sociais tinha a ver (risos) porque também do pouco que dava para se informar, tinha um pouco de tudo. Você aprende Filosofia, você aprende Ciência Política, você aprende Sociologia, você aprende Antropologia, você aprende umas tantas coisas interessantes. Foi isso.
P/1 – Conte pra gente como foi esse comecinho de AFS na tua vida, os primeiros dias, você lembra?
R – Ah, lembro. Lembro que era na casa da Lagoa, não sei se alguém já falou. Era uma casa ali na Rua General Tasso Fragoso que é uma transversal da Jardim Botânico, ali na altura do Parque Lage. Uma casa dessas de dois andares antiga, tudo pequenininho, uns cômodos pequenos. Era ali o escritório. Era uma, duas, três, umas seis, sete pessoas no escritório. Eu lembro que na época, havia no escritório a divisão regional e como assistente eu tinha um conjunto de comitês com os quais eu tinha que manter contato a respeito tanto do programa de envio quanto do programa de recebimento. Essa pessoa que saiu... A minha primeira tarefa era agora me apresentar e você tinha que fazer uma carta se apresentando. E você fazia isso na máquina elétrica e com cópia. Você tinha que fazer aquela cópia com papel carbono e a cópia você guardava num arquivo que ficava numa pasta e você ia guardando, pra cada comitê, toda a sua correspondência e depois o que você recebia, também você guardava as cartas ali. No final de um tempo você tinha ali um dossiê do que tinha sido a correspondência com cada um daqueles comitês. Eu me lembro que no início, nos primeiros dias, eu não tinha muito que fazer, porque era escrever essa carta, esperar receber qualquer carta e era tudo muito na correspondência. Porque telefone, olha, era pra usar só em emergência, porque era caríssimo e só mesmo em casos muito especiais que mereciam telefonar. No mais, você recebia uma carta de um comitê dizendo que aquele estudante tal, tal, estava tendo tal, tal problema de adaptação, aí você escrevia uma carta de volta dizendo: “olha, então você faz isso, faz aquilo, tenta isso, tenta por aqui, tenta por ali” (risos). É aquela coisa que eu fico imaginando aquela pessoa lá do outro lado esperando, “o que que eu faço com esta criatura que está aqui com algum tipo de problema?”. Mas era assim que funcionava. E eu fui lendo. Tinha muito material do AFS internacional, no caso. Eu fui pegando dentro dos armários. Eu sempre fui muito curiosa, “que é isso aqui?” então eu vou buscar. Eu fui abrindo armário, abrindo caixa, perguntando o que mais que tinha pra conhecer. E daí você vai tendo os encontros, as pessoas que vinham também no escritório, chega o primeiro grupo de estudantes que você vai receber, começa o ritmo do ciclo do programa, engrena.
P/2 – Mas e essas cartas quando a senhora se deparava com alguma dificuldade, era mais um aconselhamento, algo de dar uma opinião com base às vezes até mesmo na sua experiência?
R – Desse tipo.
P/1 – ...ou era uma proposta pedagógica, algo ligado à educação?
R – Tinha uma coisa muito intuitiva. É claro que quando chegava uma coisa dessa eu de primeira não fazia nada sozinha. Perguntava pro coordenador, “aqui, com isso aqui, o que é que se faz?”. Não tinha nenhuma coisa escrita em lugar nenhum. Era uma coisa muito de bom senso e muito também da experiência que as pessoas iam acumulando. Eles já estavam ali há algum tempo, já tinham visto algumas dessas dificuldades aparecerem e mais ou menos já tinham uma noção do que era o padrão. Tem até um certo padrão que é conhecido, que é o ciclo da
própria experiência que a pessoa passa durante o período do intercâmbio.
Você olha praquilo e diz “é... está mais ou menos no momento mesmo de dar esse tipo de problema”. O que precisa é ter paciência, a família, o que precisa é o comitê ter também um pouco de paciência, fazer um pouco de mediação entre um e outro pra coisa não acirrar. Tentar botar um pouco de pano quente, “não, não é tão assim, calma, daqui a pouco ela melhora”, “mas ela não toma banho, a gente já insistiu, já falamos quinhentas vezes, parece que não escuta”, “não, é que ela não está acostumada”. Tem coisas muito simples, às vezes, mas que irritam muito na convivência. É muito sutil, convivência é uma coisa muito difícil, ainda mais uma pessoa que chega com 15, 16 anos, você fica achando “Como, é uma criança? Já falei quinze vezes, ela é grande, ela já tinha que ter entendido, mas demora”.
Até todo mundo entender que não é, até você pegar outro hábito de tomar banho todo dia, essa coisa da roupa, o que faz com a roupa, que não usa roupa repetida, tem coisa que a gente passa batido? E quando você vai pra um outro lugar é que você vê qual é a diferença que faz e como isso gera, são coisas miudinhas, milhares de atritos.
P/2 – Mas eram problemas mais de questão de formação educacional, tipo a pessoa era mimada, quem fazia tudo eram os pais ou a empregada ou coisa do tipo, ou era uma questão cultural?
R – Você diz assim, no geral?
P/1 – Sim, no geral. Quais eram os problemas mais comuns, eram de fundo cultural, era choque de culturas ou era problema de formação?
R – É porque tem os dois. Não tem como separar. Porque cada pessoa traz o caldo da sua cultura e é aquela pessoa, individualmente, naquela família. Eu sou de uma família que é de um certo jeito, pra lidar comigo é preciso entender essa família. Agora isso está dentro de um caldo que faz parte, que tem coisas comuns a muitas outras famílias. Mas não tem muito como você separar. Mas a maior parte dos problemas que a gente via era mesmo porque tem uma dificuldade de entender de onde vem esse outro, você nunca para pra pensar num relacionamento do dia a dia, você com seus amigos, a não ser na relação muito próxima de irmãos, pai e mãe, coisa muito próxima, porque aí você sabe: “A essa minha irmã ela é assim e eu sei porque ela é assim, porque ela tem esse gênio, ela tem esse jeito”. Você tem uma trajetória, você tem um passado, que você já entende. Agora, uma pessoa nova que tem um tipo de atitude, você nunca pensa que, de repente, essa atitude dela não é que ela está querendo me confrontar, eventualmente, por exemplo. É porque é o jeito dela! Eu tenho que relativizar um pouco isso. Você nunca faz isso, isso não é o comum, a gente não faz isso no dia a dia. E isso eu acho que pra mim, pelo menos, foi o que eu aprendi a fazer. Eu acho que foi assim o meu melhor resultado. Eu comecei a olhar pras outras pessoas e entender que elas vêm de uma trajetória. Então assim, “ah fulano é muito chato, ou fulano é muito isso, fulano é...” Pra mim nunca tem “fulano é muito isso ou muito aquilo”. Pra mim “ah fulano é mal humorado, é agressivo, é não sei que”, eu não tenho a menor dificuldade porque eu olho praquilo e aquilo não é comigo. É uma pessoa agressiva, então eu vou saber lidar com uma pessoa que é mais agressiva. Eu vou lidar com uma pessoa que é muito tímida, muito retraída, eu vou lidar com essa pessoa. Cada um é de um jeito. Não tomo nada do que é esse outro como algo que venha contra mim. Eu tenho essa, eu gosto dessa ideia, de olhar esse outro. Isso é uma coisa que eu aprendi antes de fazer a universidade, antes de estudar Antropologia, por exemplo. Porque o antropólogo tem que desenvolver um pouco isso. Não posso olhar pra essa pessoa com critérios já pré-estabelecidos. Tem que entender de onde vem essa pessoa, quais são as relações que formaram essa pessoa, o que que é característico ou dessa cidade ou dessa família ou desse país de onde ela vem, pra eu poder entender como é que ela é. Agora isso não é o usual. Isso é um pouco do que a gente tentava ir trabalhando, tanto com as famílias que recebiam os estudantes aqui quanto com os próprios comitês. Porque os próprios voluntários tinham momentos que eles queriam se livrar daquele menino, daquela menina, porque aquilo era um problema, claro, uma chateação. Uma pessoa que não está se adaptando e te requer tempo e você está trabalhando, está estudando, está fazendo outras coisas, não tem todo tempo do mundo. Chega uma hora que você diz assim “Olha vou mandar pra aí. Manda pro Rio. Manda pro escritório que vocês dão um jeito”. Havia situações que não tinha mais jeito mesmo de você deixar lá, mas quando o menino ou a menina chegava aqui e a gente conversava, e a gente trabalhava e a gente tinha a escuta, tinha a paciência, não tinha tanta trava com relação a ele ou a ela, como estavam sendo as coisas, não estava tão envolvido na situação, dava pra resolver, pra ajeitar. Tem que encontrar outra família que tenha uma característica mais assim ou mais assim, a gente já entendeu que ele é assim ou ela é assim. Acho que a dificuldade grande é essa. Você desarmar um pouco essas coisas do que você já tem dos conceitos. Eu me lembro muito de uns casos emblemáticos. Eu trabalhei aqui muito tempo, tenho uma coleção de casos (risos). Teve um menino que foi o primeiro da Groenlândia que a gente recebeu. Ele menino esquimó, olhe que máximo. E foi morar em Assis. É claro que com 15 minutos de jogo na família o menino já era um mal educado, porque ele não sabia usar os talheres. Foi assim. São outros hábitos, e às vezes, o que acontecia é que o comitê por mais boa vontade que tivesse, por mais que tentasse mediar essas coisas com a família, também não conseguia muito convencer, porque também não estava muito convencido. Tem essa coisa. E o negócio chegava pra gente por telefone. A família irada lá do outro lado, “não porque o menino isso, o menino aquilo”, e aí você tinha que ter toda a paciência do mundo. “Mas dona fulana, pensa bem, ele vem lá dessa terra da Groenlândia. A senhora já ouviu falar da Groenlândia, como é a Groenlândia? A senhora tem ideia de onde é que ele mora, como é que a família dele come? Porque isso é muito diferente, são um povo muito diferente. Vocês estão tendo a oportunidade de conviver com uma pessoa diferentíssima, ninguém mais no Brasil conhece ninguém da Groenlândia. Olha que maravilha!” (risos). Maior problema, mas uma maravilha. Daí você levava meia hora conversando com aquela pessoa com toda a calma do mundo. “É minha filha, eu vou pensar nisso que você falou, a gente não tinha pensado desse jeito...”. Às vezes a gente conseguia convencer um pouco, por aí. “A senhora faz o seguinte, pensa o seguinte, é como se ele fosse uma criança nova chegando. Ele tem 15, 16, já é grande, mas é como se fosse uma criança. A senhora lembra dos seus filhos que a senhora tinha que falar toda vez a mesma coisa? Tem que lavar a mão antes de almoçar, tem que escovar o dente? Todo dia a senhora falava isso?”, “É minha filha”, “É um pouco assim, entendeu? Daqui a pouco ele pega o pique (riso), mas às vezes demora um pouquinho; a senhora tem que ter a paciência, a mesma paciência, pensa isso, que é como se ele fosse bem novinho e que a senhora tivesse que ensinar tudo”. “Ah então tá bom, eu vou fazer isso, não sei o que”. Às vezes funcionava. Às vezes eram coisas mais complicadas que não dava pra contornar. Mas a maior parte dos problemas era desse tipo.
P/1 – E Liliane, deixa eu te perguntar. O que foi te encantando mais no AFS no decorrer desses primeiros anos, pegando essa cultura AFS que todo mundo fala com tanta paixão, o DNA que os meninos falam. O que você foi absorvendo que te fez ficar tantos anos? Se você pudesse falar um pouquinho pra gente.
R – Eu nunca fui voluntária e nunca fui participante do programa. Eu sempre achei muito interessante e eu só posso falar de observar. Eu sempre observei que havia um vínculo muito forte no programa. Acredito, primeiro, pelo tempo que você passa, é um ano; segundo, pelo tipo de proximidade com os voluntários durante o período que você passa. Eu não tive nenhuma conexão com aquele voluntário que era, digamos, o meu encarregado. Eu o vi no começo e o vi no final. Como eu não tive nenhum problema de adaptação com a minha família não precisei recorrer a ele. Foi a minha vida com a minha família. Só. Com o AFS eu vi que tem umas coisas diferentes. Tinha os encontros, tinha às vezes viagens, tinha a carta que a gente mandava, tinha uma certa cultura de formação de vínculo. Eu acho que isso favorece, desse ponto de vista, você ficar atrelado a essa marca. E depois na volta, na volta pro país de origem, tem essa tradição de acolher os que retornam pra que eles se tornem voluntários. Você tem também um período de preparação. Antes de ir você tem essa convivência grande com os voluntários, porque tem as orientações, tem várias atividades para as quais você é solicitado a participar, tem uma vida de organização. Faz diferença. Os outros programas de intercâmbio que eu conheci na época, não tinham. Embora até o YFU funcionasse com voluntários, mas não tinha essa vida de organização mais estruturada de uma forma contínua. Não era essa a característica. Acho que isso faz diferença sim da organização. A outra coisa é que tem a vida da própria organização voluntária, com os encontros e você ter uma representação. Faz diferença. A estrutura da organização foi mudando ao longo do tempo para também acolher essas demandas diferentes. Eu acho que isso meio que faz diferença sim na vida de quem participa.
P/1 – E como se deu o desenrolar de sua carreira aqui dentro, conta pra gente?
R –
Eu entrei em 1975 como Assistente de Programa. Eu não vou saber dizer os anos e o que que foi acontecendo. Não teria como guardar. Tem na Carteira de Trabalho (risos). Vai mudando o nome do cargo. Eu virei Coordenadora de Programas, depois eu virei Diretora de Programas, eu acho que eram esses os nomes dos cargos no escritório. Como Diretora de Programas você já tem a supervisão da coisa geral, a responsabilidade já é maior. Mas isso também numa equipe que sempre foi muito boa. A gente sempre teve profissionais muito bons trabalhando no escritório, pessoas muito boas. Um ambiente de trabalho que é muito interessante, primeiro porque não tinha pessoas que ficasse muito tempo. Acho que quem ficou mais tempo no escritório fui eu. Acho que não tem ninguém nessa trajetória que tenha ficado 19 anos trabalhando no escritório. Era uma coisa de transição mesmo. Você trabalhava aqui enquanto você era universitário porque dava pra combinar os horários de trabalho. Quando você terminava você já ia pra sua profissão. Se formou em jornalista, se formou em Letras vai ser professor, se formou em Direito vai advogar e por aí vai. Como eu olhei pra isto aqui como um espaço muito interessante, primeiro porque eu gostava muito da ideia de uma organização voluntária, que não era uma coisa trivial no Brasil, você não ouvia falar de voluntário. Todo mundo que eu falava que eu trabalhava numa organização voluntária era um estranhamento total. “Como assim você trabalha numa organização voluntária?” Tinha que explicar como é que era a organização, como é que funcionava, mas que eu era profissional. Isso eu já achava uma coisa super legal. A outra coisa, de ser uma organização que estava muito espalhada no Brasil, com um número muito grande de voluntários. Variou na época em que eu estive aqui entre 80 e 90 comitês no Brasil. Não sei quantos são hoje, mas já era bastante coisa e a coisa do número muito grande de países também. Você ouvir e um pouco conviver, porque é um pouco por meio dos estudantes e também dos escritórios, porque você ouvir e um pouco conviver, porque era uma coisa do escritórios, você conviver com tantas culturas ao mesmo tempo, você tem que entender o cara da Islândia na hora que você manda o relatório e na hora que você recebe o relatório dele, e o dinamarquês, e o francês que tem outra cabeça e o tailandês.
Isso era uma coisa muito interessante. Eu meio que olhei e falei: “Eu em princípio vou ficando por aqui”. Todas as minhas amigas que estudaram na faculdade foi todo mundo fazer Museu Nacional, antropologia, não sei que, ser antropóloga, trabalhar com índio ou então trabalhar com populações urbanas que era meio que o tradicional. Eu falei: “Eu não tenho paciência pra nada dessas coisas. Trabalhar com índio? Mas nem por um decreto!”. E todo mundo já foi logo fazer mestrado porque esse que era o caminho. “Ah, não, eu não quero fazer mestrado tão cedo, nada disso”. E ao mesmo tempo que a gente tinha aqui, vamos dizer, uma certa rotina administrativa de como é que a coisa do programa operava, você tinha também muito espaço para criar coisas, para inventar coisas. E quando eu tinha tempo, por exemplo, eu descia tudo que tinha dentro do armário e dizia “vou ler esse negócio todo que tem aqui”. Coisa antiga, a história das ambulâncias, a história dos primeiros motoristas, as enfermeiras, como é que eram, onde é que estiveram. Tinha muito material, não sei se vocês tiveram acesso a esse material antigão que tinha aí nas caixas. A gente foi tentando preservar porque nas faxinas que a gente ia fazendo a gente ia descartando muita coisa. Mas eu fiz muita questão de preservar o que tinha de documento mais histórico da organização. Tinha muita coisa interessante. E você também ia acompanhando, vamos dizer, essas dificuldades, de quem vai e de quem vem, das famílias e a gente também ia criando coisas, inventando coisas. Teve uma época que o AFS Internacional investiu um pouco mais nessa questão da orientação. Havia uma crença durante muito tempo de que você preparava alguém antes de ir pra experiência. Mas dava muito problema porque preparou, preparou, preparou, chega lá e dá problema. Então tava furado esse pressuposto de que a preparação daria conta. Não é possível. Alguém algum dia parou e falou: “Pera aí, acho que a gente tem que fazer orientação durante o período que a pessoa está porque ali é que ela precisa de apoio, ali é que ela precisa entender o que está acontecendo”. Aí muda. A gente não investe tanto na preparação anterior e investe numa preparação maior durante, quer dizer numa orientação maior durante a estada. Isso significa que a gente tem que capacitar um pouco melhor os comitês e voluntários para que eles deem esse apoio e pra que eles estejam também amparados com um pouco mais de referência, porque antes era tudo muito intuitivo. Era muito da sua própria experiência. Muito do que eu usei pra fazer aconselhamento, pra fazer coisas com os voluntários, era da minha experiência, que eu consegui elaborar da minha experiência. Não tinha manual de nada. Tinha coisas muito, muito, básicas e a gente começou a criar umas coisas, um material de orientação. Tem que ter leituras para os voluntários fazerem para eles irem elaborando isso também, poder fazer isso com a família, diferente do que fazer com o estudante. A família que está enviando um estudante é diferente da família que recebe um estudante. Ao longo do tempo a gente foi desenvolvendo algumas coisas nesse sentido e organizando a própria formação dos voluntários em torno de alguns desses temas. Eram coisas interessantes porque nos momentos que a gente tinha de encontros, reuniões regionais, era um pouco de fazer essas formações. Para quem estudou Ciências Sociais, era tudo de bom inventar essas coisas. Eu achava que era bem interessante. E quando você vai ficando mais à vontade dentro da organização, você perde um pouco das amarras e você cria umas coisas que ninguém nunca tinha pensado. Tinha uma história antiga no AFS que a gente era a segunda organização no mundo em número de voluntários, que a maior deveria ser a Cruz Vermelha Internacional, parece, e que a gente seria a segunda. Numa reunião internacional uma vez eu virei lá não me lembro pra quem, acho que era a Mary Ann Zarena e perguntei, “Mary Ann, como é que a gente sabe quantos voluntários a gente tem hoje no mundo?” (risos). Ela olhou pra mim e falou:(risos) “Good question! (risos) Não sabemos”. Falei, por que que a gente não bola um material que a gente poderia fazer o seguinte. Cada país preencheria uma folha com os dados principais: desde quando opera, onde fica o escritório, quantos funcionários tem, quantos comitês tem, cada país pode fazer uma certa contagem de voluntários, porque de um modo geral você tem uma mailing list qualquer com os nomes pra quem você manda uma certa correspondência ou você sabe pelos encontros, você sempre tem uma maneira de saber, quantos estudantes você recebe, quantos estudantes você envia, ou seja, dados muito básicos. A gente poderia botar isso tudo junto, fazer um caderninho e atualizava a cada ano. Foi aquelas coisas tipo “ovo de Colombo”. Como que a gente não tinha pensado nisso antes? (risos). A coisa mais simples do mundo. Ficamos sabendo quantos voluntários a gente tinha. Não era nada estrondoso, mas era bastante significativo. Eu não sei as outras organizações se elas vão ter esses números, a gente agora pelo menos sabe o nosso. Eu não sei se continua sendo a segunda, se é ou se não é, mas enfim, a gente sabe quantos a gente tem e sabe dizer algumas coisas sobre eles minimamente pra não ficar sempre no “achismo”. Acho que ao longo do tempo a organização foi tomando um pouco desse rumo de aprimorar um pouco mais o que sabia dizer a respeito dessas relações, a respeito do que acontece com o estudante durante o período que está no intercâmbio, quais são as dificuldades pra uma família e ter, digamos, materiais mais adequados pra trabalhar durante esse período. Eu gostei muito de trabalhar porque era isso, porque você inventava treinamento pra voluntário. Do nada. Porque não tinha nada pré-pronto. Cada país fazia o seu e também pela dificuldade de comunicação não havia essa coisa de intercâmbio do que você faz aí na Argentina, do que que eu faço aqui na Bolívia, do que que eu faço aqui na Tailândia em relação à formação de voluntários. Imagino que hoje isso seja um pouco mais compartilhado. Mas naquela época era cada um muito isoladinho. Havia reuniões, tinha um congresso mundial, mas normalmente quem ia ao congresso era o chefe do escritório com o representante dos voluntários. Eram só duas pessoas por país e você não ficava sabendo assim muito e também durante as reuniões não dava tempo de você saber muito do que se fazia em cada país. Imagino que hoje seja muito mais fácil para compartilhar esse tipo de aprendizado, de experiência, mas era cada um meio que no seu mundo mesmo. Às vezes quando você se encontrava com as pessoas é que você descobria umas certas coisas. “Ih, essa ideia aqui é boa, vou anotar, de repente vou tentar fazer lá também”. Era um pouco assim. O AFS Internacional fazia, claro, muita formação com a gente, mas era muito ligado mais às questões de finanças e digamos, da gestão da organização em si.
P/1 – Liliane, durante o workshop a senhora mencionou a questão da abertura pra mais programas, pra mais destinos. Eu queria saber, aqui dentro do escritório, como é que foi processar isso, como é que foi absorver essa abertura, conta pra gente um pouquinho desse processo.
R – Já era um pouco da expectativa porque todo mundo que vinha se inscrever, a partir de um determinado momento, falava “mas só tem Estados Unidos, não tem mais nada?”, “Não, só tem Estados Unidos”. Ficava aquela coisa, só tem Estados Unidos. Demorou um tempo até se chegar a uma conclusão que financeiramente seria viável ter as trocas entre os diversos países. Eu não sei detalhes de como é que isso foi feito, porque isso ainda na década de 70 e eu era bem recente no escritório e não tinha muita noção como essas coisas funcionavam internamente nessa esfera. Mas foi uma super alegria porque “noooossa” agora tem vaga pra Bélgica, agora tem vaga pra França... Eram poucos países no começo e poucas vagas. Era aquele super, super felizardo, vamos dizer assim, que conseguia uma vaga dessas, era uma coisa exultante, a família fazia comemorações. Era uma coisa assim... E era uma seleção muito difícil porque era muito candidato e muito poucas vagas. Era um outro mundo.
P/2 – Como que era o processo seletivo?
R – Tinha uma prova, que era uma prova escrita, que era a única maneira que a gente tinha de eliminar. Como é que você vai fazer, num comitê que recebe 150 candidatos? Você vai passar o resto da vida entrevistando. Não tem como. Com o tempo restrito que os voluntários têm para fazer esse tipo de coisa, a maneira que a gente tinha era isso. Era uma prova de múltipla escolha que a gente elaborava aqui no escritório, enviava pra cada comitê, era feita no mesmo dia, na mesma hora, no Brasil inteiro. Sei que tinha todo um ritual, lacrava o envelope, quebrava o lacre na frente de todo mundo...Era uma prova que não tinha nada de mais. Era uma prova de conhecimentos gerais, “quem é que ganhou o grande prêmio de Fórmula 1? quem foi o campeão?”. Podia ser isso, como podia ser, quem foi, sei lá, um líder africano, pouco conhecido, ou o que que aconteceu no país tal. Antigamente também as notícias internacionais não eram muitas. A gente tinha uma certa dificuldade em acessar esse tipo de informação. Uma pessoa que lesse jornal, que minimamente se informasse, não fosse completamente fora do mundo, fazia aquela prova. Não tinha muita dificuldade não. Autores de literatura, coisas assim. Tentava ser um pouco mais sofisticado do que só generalidades muito simplórias. A pessoa tinha que ter um pouquinho mais de olho pra prestar um pouco mais de atenção em algumas coisas. Mas era isso. Dessa prova cada comitê escolhia qual era o corte, cada comitê com o seu problemão, né? Se eu tenho 150 e eu só vou conseguir ter vaga pra sete, pra seis ou pra cinco, eu vou cortar pras entrevistas, tipo, 20. Como é que eu faço pra cortar 130? Eu tenho que botar a nota mínima lá em cima. Cada comitê decidia isso. Isso não era uma coisa que a gente determinasse. Cada um sabia do seu problema. Com isso fazia-se esse conjunto de entrevistas. Essas entrevistas tinham um roteiro e a gente mais ou menos orientava o que devia constar nelas. Também fazia parte do processo de seleção os candidatos participarem de algumas atividades do comitê. Isso gerava um certo problema porque havia comitês que às vezes faziam exigências demais de participação e isso às vezes era confuso pras famílias: por que tem que ir a tanto encontro, por que que tem que estar em tanta coisa, por que tem que passar o fim de semana fora? Tinha comitês que tinham certas exigências e a gente tinha que ir também contornando isso com os comitês. E depois tinha também uma coisa de avaliar o histórico escolar, pra também não serem pessoas que tivessem dificuldades muito grandes na escola, porque ia ter que fazer uma adaptação numa escola diferente e se você também tem um aluno que não é muito chegado a estudar... Meio que tinha isso, não pode fazer feio na escola pra onde vai. Você tem que demonstrar um certo empenho e uma certa categoria, minimamente. Senão pro programa ficava ruim, depois você conseguir vaga de novo naquela escola. Tinha que ter uma pessoa interessada. Não precisava ser tudo nota dez não, mas ser uma pessoa que se dedicasse e que pelo menos não fizesse feio e não fosse só também a média da média. Bom, realmente, os participantes durante muito tempo, como se fazia essa seleção toda, isso tudo vai te dando um extrato social. Caracteriza um certo padrão, mais alto. Tem um pouco dessa conformação ao longo do tempo. Mas o programa também sempre teve uma vontade, que é de longa data, desde quando eu entrei que já existia isso, que é uma preocupação, e não era só do Brasil, de outros países, de não haver só participante de classe média e classe média alta. De incorporar de alguma maneira estudantes de outra extração social. Mas isso era uma coisa que também cada país fazia do seu jeito e cada comitê fazia do seu jeito quando podia, quando dava. Ao longo do tempo a gente foi trabalhando um pouco essa ideia, muito nessa perspectiva. A gente está num país que tem uma desigualdade muito grande, a gente tem que pelo menos contemplar, de alguma maneira, outros extratos sociais para esse tipo de experiência, que é uma experiência válida pra vida, que a gente valoriza, que a gente acha que é importante. Como é que a gente faz pra proporcionar isso? Foram sendo pensadas várias estratégias para isso. Uma, era das empresas pagarem para filhos de funcionários participarem. Dentro desse número de vagas que você tinha a gente separava umas tantas vagas, dependendo dos acordos que você já tivesse feito com empresas a esse respeito. Aqui a gente começou, veio um contato, se não me engano do próprio AFS Internacional, que era da Quaker. A Quaker Oats nos Estados Unidos tinha lá esse tipo de patrocínio para certo número de estudantes e aqui eles começaram a fazer também. A gente organizou isso e foi fazendo. Depois a gente foi ampliando essa coisa com empresas e teve uma aceitação até legal durante um tempo com empresas. Depois a gente até teve uma iniciativa que foi do AFS do Japão. Havia um programa no Japão entre cidades irmãs. Eles escolhiam lá em cada país uma que chamavam de cidade irmã pra fazer uma série de acordos culturais, econômicos, educacionais. No Brasil era o Estado de São Paulo, mais especificamente, a Prefeitura de Tóquio com o Estado de São Paulo. Aí, a gente fez. Eles garantiram lá, acho que umas cinco vagas, pra ir os estudantes pro Japão. A gente fez uma seleção específica em escolas públicas, pra estudantes que quisessem ir pro Japão. Foi muito legal. Uma coisa muito interessante. Essa negociação com o Japão, entre nós e o AFS do Japão, levou dois anos. A gente preenchendo formulários, respondendo perguntas e questões e não sei que. Eu fui pra São Paulo me encontrar não me lembro se com o Cônsul, o que era, e explica como é que funciona e não sei que e finalmente, veio uma pessoa de lá do governo de Tóquio pra visitar o escritório aqui e ver como é que era. Veio com o tradutor, uma entourage, aquela coisa toda. Pra ele foi uma situação muito constrangedora porque eu era mulher e eu que era a chefe do escritório. Tinha o diretor de programa na época que no dia botou gravata, aquela coisa toda, pra receber o japonês e ele só se dirigia (risos) ao outro funcionário (risos). Mas tá bom, não tem problema. Trouxe presente, depois levou a gente pra jantar, tinha uma coisa bem interessante de você vendo essas outras coisas.
Mas a seleção, a gente começou falando da seleção, a seleção era um pouco isso. Depois que havia essa seleção no comitê esses formulários vinham pro escritório e a gente lia. Tinha duas leituras no escritório e tinha duas categorias classificatórias: uma que era o estudante que estava garantido e o outro que era o finalista. Garantido estava dentro dessas vagas. Finalista porque às vezes havia mais famílias, a gente conseguia encaixar mais gente, mas num estava garantido que fosse. Tinha gente que ficava como finalista até o finalzinho e não conseguia ir. Nessa leitura, que era feita por duas pessoas diferentes, se houvesse divergência na análise que a gente fazia tinha uma terceira leitura. Ainda passava por mais um filtro. A gente analisava não só esse formulário de cada candidato. Tinha ainda uma referência da escola, tinha o formulário de saúde, tinha o formulário financeiro, tinha a família falando do filho, tinha o próprio postulante falando a respeito de si, tinha uma infinidade de papéis que precisavam ser preenchidos. Era uma coisa que era uma canseira, a gente botar tudo aquilo em inglês, era uma trabalheira pras pessoas, tinha que fazer em não sei quantas vias, com carbono, você imagina. Era, uma complicação. Aí gente conseguiu dar um salto enorme quando entrou em vigor o formulário que já era aquele papel carbonado. Ô, meu Deus, que maravilha! Só aquilo já foi um alívio na vida de todo mundo. E uma das vezes que eu estava lá em Nova York com a pessoa que era lá do escritório que era responsável por esse calhamaço todo, eu falei pra ela “vamos ver se a gente simplifica isso, porque não tem mais sentido se fazer tanta coisa”. Pra quê?
Que quê se faz?
A gente não faz nada com essa informação toda que a gente pede. Vamos fazer uma coisa melhor e menos trabalhosa, pra todo mundo, pros voluntários, pros próprios participantes. A gente deu uma enxugada assim geral, no que que era a papelada toda pra preencher e foi um grande alívio. E também outro “ovo de Colombo”: por que quê a gente não pensou nisso antes? Fazer menos perguntas, coisas mais objetivas que a gente use realmente. Porque o objetivo era encontrar uma outra família. Porque a gente tentava fazer uma coisa que não era encaixar numa mesma situação. Um pouco era isso mesmo, de propósito, você provocar um estranhamento. Você nunca ficava procurando uma família igualzinha as características que ele tinha aqui. Mas se tentava compatibilizar algumas coisas, do tipo, um menino ou uma menina muito acostumada a morar, digamos, no Rio de Janeiro, com uma certa liberdade de movimento, que já tem seus amigos, que já anda pela cidade, se você puser numa cidade muito pequenininha com tudo muito restrito, ele vai sofrer. Tem que achar um meio termo porque também é isso, não é em todo lugar que você vai encontrar 60 famílias em São Francisco, em Nova York, em Los Angeles, em Chicago, não tinha em Paris. As famílias não estão em Paris, estão no interior da França, estão no interior da Bélgica, estão no interior da Alemanha, não estão nas grandes capitais. A dificuldade era essa. Essa papelada tinha que servir pra isso, pra você encontrar minimamente o que poderia dar samba. É isso.
P/1 – Liliane, na verdade o nosso tempo já deu. Queria te pedir para a gente passar um pouquinho só pra fazer pelo menos um bloco de encerramento.
R – Muita coisa.
P/1 – Tem que escolher uma coisa ou outra pra gente te falar. Eu queria que você falasse um pouquinho desse teu período como diretora, o que mais marcou, que mais ficou com você forte desse período?
R – Focalizando mais na parte que eu fui a superintende do escritório, foram os anos finais, seis anos, eu acho, que eu fiquei como superintendente. Foi muito um período de transição em que a organização internacional passou pra um outro modo, digamos, de organizar, inclusive financeiramente, as trocas entre os países. E desse momento em que as organizações voluntárias foram chamadas a ter um papel mais presente e mais determinante nas decisões. Foi um momento de virada muito grande na organização. Foi muito interessante. A gente aqui tinha tido bastante dificuldade com certas diretorias voluntárias, um pouco pela inexperiência de parte a parte. Tanto quem estava no escritório, também, era jovem, também não tinha um grande amadurecimento em relação a esse tipo de embate e os voluntários mais jovens ainda, num período também em que todo mundo estava querendo um pouco mais de espaço pra falar. A democracia ainda era uma coisa muito nova, e o AFS sempre funcionou meio como um espaço de liberdade pras pessoas. Acolhia muito, você ser voluntário, porque não tinha muito critério pra ser voluntário. Todo mundo achava um espaço aqui dentro. Tinha espaço pra tudo, pra todo tipo de visão de mundo, pra todo tipo de cabeça, tinha um pouco de tudo. Os momentos pra mim que foram mais decisivos foram esses nessa transição porque os voluntários que foram passando pelas composições da diretoria com quem eu convivi, tiveram que amadurecer muito, tiveram que passar a tomar decisões. Imagino que pessoalmente pra eles, isso deve ter sido uma coisa muito boa também, muito interessante, de muito aprendizado, de parte a parte, e pra mim, enquanto profissional já de muito tempo eu tinha essa ideia de que se isso é uma organização voluntária são eles que têm que comandar. A gente precisa levar isso ao pé da letra, nesse sentido. A gente tem que confiar que essas pessoas serão capazes de dar essa condução, de dar diretrizes, de pensar o futuro, de ver o que pode ser bom, ou seja, de pensar estrategicamente o que é a organização. Nem sempre eu vejo que isso, vamos dizer, foi bem trabalhado, ao longo do tempo. Eu acho que a gente ainda carece de uma condução um pouco mais madura do ponto de vista político pra organização, ainda é uma coisa, eu acho que a gente ainda está ouvindo... Naquele dia que a gente esteve aqui... Isso eu acho ainda muito incipiente do ponto de vista político pra organização. De certa forma isso é ruim porque também não dá pra organização um papel mais de relevo social, no contexto aqui da gente. Por outro lado também não cria grandes dificuldades. É meio que tocar isso que já está, com algumas adaptações aqui e ali, fazer umas coisinhas diferentes, mas eu não vejo um movimento para tornar a organização com características um pouco mais pujantes. Mas eu adorei o tempo que eu trabalhei aqui. Nossa! É muito legal. É uma organização muito rica. É muito interessante, tem muita coisa que dá pra fazer. Com esse significado, tão legal pros voluntários, pras pessoas que se mantêm ativas. Eu acho super bonito, sempre achei. Pra mim continua um ponto de interrogação, “por que a pessoa vira voluntária do AFS e fica?”. Isso pra mim ainda continua me intrigando, eu acho o máximo. Por que uma família recebe um estudante,?
P/1 – Liliane, por que você saiu?
R – Aí, a saída já foi uma conjunção da vida pessoal e também um pouco de intuição. Eu nunca fui muito de planejar a coisa profissional, eu nunca tive isso. Tem gente que já é mais desse tipo. Eu nunca fui muito disso. Tem um certo momento que você esbarra no teto. E eu esbarrei no teto. Eu comecei como assistente, fui coordenadora, fui diretora de programas, fui superintendente, eu fiz a carreira toda. Ficar aqui mais do que isso significaria pra mim barrar a organização, impedir que ela fosse adiante, porque eu ia me tornar a dona. Tinha uma coisa assim. “O que que é pra fazer?”, “pergunte pra Liliane”, os voluntários, não sei que “pergunte pra Liliane” , a Liliane falou num sei que “então a gente vai junto”. Era assim de muita confiança. Isso é muito bom, agora, eu não queria isso. Eu não queria ficar nesse lugar. Eu brincava “antes que vocês ponham uma plaquinha em mim eu vou sair” (risos). Foi uma decisão que não foi muito planejada não. Teve uma coisa meio “ah gente, chegou a hora, acho que agora deu.” Tem uma coisa também que até pelas próprias características da organização, você chega num momento, você olha, “tudo que eu podia mudar, eu mudei; tudo que eu podia propor, eu propus e vi o que eu consegui fazer; a partir daqui tem coisas que eu já vi que não vão mudar”. Eu não vou ficar insistindo numa coisa que não é da natureza dessa organização. Antes que isso vire um desgaste está na hora de eu ir fazer outra coisa.
Agora EU quero fazer outra coisa, eu PRECISO fazer outra coisa.
P/1 – Liliane, dá um panorama da sua família pra gente.
R – Eu casei a primeira vez em 80, 1980. Fiquei casada com essa pessoa sete anos. Foi com quem eu tive os três filhos. Quando o mais novo tinha um ano e meio eu também já achei que deu, não ia melhorar, digamos, o que tava, que não tava muito bom. Eu conheci outra pessoa, que é no caso o Ricardo que é historiador. A gente começou a namorar, eu me separei, ele também era casado se separou e a gente ficou desde então. Pronto. Primeiro cada um morando na sua casa durante muito tempo. A gente era um casal, mas cada um com a sua casa. Agora mais recentemente que a gente começou a morar junto. (risos) Outra fase, assim, outro período. É isso.
P/1 – Me fala um pouquinho dos seus filhos.
R – São três. Tem a Amanda que está com 33 anos. Formada em Jornalismo, fez mestrado e doutorado na área de Ciências Sociais e já está dando aula em faculdade pra curso de Comunicação, mas ela dá aula de Sociologia pra Comunicação. É o que ela queria fazer. A Larissa, tem 31. É formada em Administração, trabalha na Transpetro. Super festeira, amigas, amigos, finais de semana, toda badalada, está em todas, conhece todo mundo, esse estilo assim, bem fresca na vida. Igor, que é o mais novo, tem 29. É formado em Relações Internacionais, trabalha na GE, tudo mais planejado na vida, sabe o que quer, estuda pra fazer num sei que, faz isso, faz aquilo, tudo organizadinho, quando é que vai casar, namorada, isso, aquilo. Cada um de um estilo diferente. (risos)
P/1 – E agora deixa eu te fazer umas perguntinhas mais avaliativas desse final. No que o AFS mudou a sua vida, o que você carrega deste seu tempo aqui para o resto da vida?
R – Acho que a convivência com muitas pessoas diferentes. Isso foi muito interessante. Sempre gostei muito. O AFS me deu muito essa possibilidade. Ao mesmo tempo eu estive no AFS num momento da vida que entrei com 19 anos e saí com 39. É um período em que acontece muita coisa. Um período que eu ainda estava na faculdade. Depois saí, depois casei, quer dizer, antes disso até participei de uma porção de coisas, de movimentos sociais, casei, tive filhos, separei, comecei uma outra relação com outra pessoa e outras coisas que eu fui fazendo na vida, em outras áreas. Ocupou um período da minha vida que foi muito da minha transição. De 19 anos você tem uma certa característica, com 39 você já é uma outra pessoa, Esse foi um período muito interessante de ter vivido isto aqui e muito disso que eu vivi foi em função desse trabalho, de trabalhar com voluntários, de trabalhar com essas questões que as pessoas trazem, os dilemas todos, que é muito legal. Você trabalhar numa coisa como o AFS é você ver o mundo inteiro passar na sua frente. Tudo que você puder imaginar, acontece. Desde uma coisa pequena, como um estudante ter uma febre, precisar ir pro médico, ir alguém acompanhar, até você encarar um estudante que morreu (choro), que é a situação mais difícil que tem. Pra todo mundo. Quando você passa por todas essas coisas, te dá uma medida do que é a vida. Isso é muito legal. E acho que é muito difícil em alguma outra organização, você ter essa oportunidade dessa convivência com pessoas que são pessoas muito interessantes, os profissionais todos com quem eu convivi de todos os países, do AFS Internacional, os que passaram por aqui, pessoas muito interessantes e os próprios voluntários que também são pessoas muito incríveis. É um micro-mundo que você aprende e que é muito deslumbrante, muito legal. Não é tanto... Talvez eu não tenha o que muita gente tem, que é essa coisa do apego, do vínculo, não sei que, esse amor, essa paixão, mas eu tenho, vamos dizer, aprecio muito isso que a organização aprendeu a fazer. Eu acho que é muito valioso e acho que é pouco utilizado. Tem muito potencial ainda não usado. Isso que eu fico, um pouco com pena. Olhando tantos anos depois, já tem mais de 20 anos que eu saí daqui, você olhar e ver assim “ai está meio que do mesmo tamanho”, isso me dá um pouco de incômodo até. Mas é meio assim que é. Não tem muita receita de bolo pra isso. Mas é uma organização que eu respeito muito, aprecio muito, acho muito significativa e fez parte da minha vida e então tá comigo.
P/1 – Liliane, o que você acha do AFS estar fazendo esse projeto dos 60 anos agora, gravando as histórias de vida das pessoas que fizeram parte dessa história?
R – Ah, eu acho isso muito interessante, essa ideia de ter esse registro. Isso tudo vai embora. As pessoas vão passando e de repente a gente até pode fazer parte de uma coisa mais cotidiana da organização porque hoje em dia não é tão complicado você fazer isso, você ir guardando um pouco dessas histórias. Como fiz o Chico Buarque um dia o escafandrista vai chegar e ver as suas cartas. A gente pode deixar umas cartas em vídeo, para os que vierem depois saberem como é que foi. Muito bom.
P/1 – E como é que foi contar a sua história pra gente?
R – Ai, adorei! (risos). Obrigada. Muito simpático.
P/1 – Então a gente agradece de novo. Muito obrigada.
R – Obrigada vocês.Recolher