SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Maria Cecília Wey de Brito
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
São Paulo, 23/02/2005
Realização Museu da Pessoa
Código SOS_HV042
Transcrito por Ingrid Robyn
Revisado por Ana Calderaro
P/1 – Boa tarde, Ciça, obrigado por você ter vindo.
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SOS
Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Maria Cecília Wey de Brito
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
São Paulo, 23/02/2005
Realização Museu da Pessoa
Código SOS_HV042
Transcrito por Ingrid Robyn
Revisado por Ana Calderaro
P/1 – Boa tarde, Ciça, obrigado por você ter vindo.
R – Obrigada a vocês.
P/1 – Gostaria de começar a entrevista com você falando seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Maria Cecília Wey de Brito, eu nasci em São Paulo, no dia 28 de janeiro de 1962.
P/1 – E você nasceu onde em São Paulo?
R – Sabe que outro dia eu esqueci onde é? Mas acho que é na Maternidade São Paulo, todo mundo nasceu nesse pedaço.
P/1 – E seus pais eram de São Paulo?
R – São de São Paulo.
P/1 – E vocês moravam onde quando você nasceu?
R – Quando eu nasci, nós morávamos perto da Faculdade Paulista de Medicina. Depois, logo depois, nós mudamos para onde a gente mais ou menos continuou morando, nas cercanias ali, que é Alto de Pinheiros, Vila Ida — que é um bairro um pouquinho encravado no Alto de Pinheiros — e, mais adiante, meus pais mudaram-se para o Butantã. Eu morei fora do Brasil já, um pouquinho, e agora eu moro no município de Osasco.
P/1 – E quando você era criança, que vocês moravam em Pinheiros, como era essa região?
R – Era, obviamente, muito menos asfaltada. A gente praticamente morou toda a nossa vida em rua de terra. Em alguns casos a rua chegou a ser asfaltada enquanto a gente morava, em outros nunca chegou a ser asfaltada, só muito depois. Eram ruas que, em alguns momentos, você tinha cavalo pastando. Hoje você não vai imaginar que isso era possível, claro, mas tinha isso. Tinha aqueles padeiros de motocicletinha com caixinha atrás de pão e tinha muito mato ainda. Especificamente em uma das casas que a gente morou, tinha muito terreno vazio ainda e a gente gostava de fazer todas as coisas que criança naquela ocasião fazia que eram fazer cabana, brincar de qualquer coisa. E também umas árvores, que tinham uns eucaliptos lá, caídos. A gente também fazia um monte de coisas, de brincadeiras nesse tipo de assunto. Jogava muito futebol na rua de terra. Eu jogava, naquela ocasião, quando meninas não jogavam futebol, era sempre um trauma. E, depois, quando asfaltaram, tinham aquelas coisas de carrinho de rolimã. Então eram ruas sempre muito sossegadas onde a gente morou.
P/1 – E a sua família era grande ou era uma família pequena?
R – Não, a minha família era bem pequena porque os meus pais são filhos únicos, ambos, então nós só tivemos tios-avós. No caso, tivemos vários tios-avós, porque meus avós, tanto por parte da minha mãe, quanto por parte do meu pai, tiveram vários irmãos. O pai do meu pai a gente nunca conheceu, mas a mãe do meu pai e os sei lá quantos, nove irmãos, talvez, a gente conheceu muito bem. Depois os meus avós maternos... Minha avó também tinha algo em torno de nove irmãos, meu avô, seis, sete irmãos. Então a nossa família era grande nesse pedaço mas, depois, propriamente a nuclear, era bem pequenininha por causa dessa história de eles serem filhos únicos.
P/1 – E você tinha irmãos?
R – Tenho dois irmãos, um mais velho e um mais novo. Um mora em Brasília, atualmente, e o outro mora em Curitiba.
P/1 – Eles são homens, não é? Quando vocês eram pequenos brincavam vocês três? Como era?
R – Não, as coisas mais de moleque, assim, de fazer cabana, de soltar pipa, atirar de estilingue e essas coisas, eu fazia com o meu irmão mais velho. E com o meu irmão mais novo a gente brincava mais de coisas dessas de Forte Apache, que tinha na ocasião. Sei lá... Coisas mais caseiras, assim, mais de detalhes e tal, eu fazia mais com o meu irmão mais novo. E com o meu irmão mais velho, jogava futebol, fazia todas essas outras coisas mais de rua, vamos dizer assim, resumidamente.
P/1 – E vocês estudavam perto de casa ou era uma coisa muito distante?
R – Bom, hoje é mais perto, vamos dizer assim, mas era relativamente longe, não dava para ir a pé. Eu, em particular, sempre viajei muito para fazer as coisas que eu faço até hoje. Quando morávamos nessa Vila Ida, nós estudávamos num grupo escolar no Alto da Lapa, então tinha uma perua que nos buscava de manhã, nos levava para a escola e depois trazia de volta. Quando eu fui para o ginásio, colegial, eu já fui para um lugar bem mais longe, que era um colégio de freiras canadenses, americanas, que fica em Socorro, mais perto aqui do Morumbi. Também pegava a marginal e voltava. E depois fui morar em Piracicaba para fazer faculdade. Aí morei lá mesmo, que já era tão longe. Então eu sempre fiquei meio longe de casa para estudar. E depois meus irmãos foram para o Santa Cruz, ficaram pertinho, porque a gente morava mais ou menos perto do Santa Cruz.
P/1 – E quando você foi estudar no colégio de freiras canadenses, que é em Socorro, bem distante, como foi isso? Por que houve essa escolha?
R – Esse grupo escolar em que a gente estudava, ele inicialmente era um grupo escolar, que hoje mudou tudo, mas era da primeira à quarta série. Aí ao longo dos anos, ele passou a ter ginásio também. E o primário desse grupo, naquela ocasião e de outras também, era muito forte, era muito bom. Só que o ginásio começou já a entrar num esquema que hoje é mais comum para as escolas públicas, que é de professor faltar, os alunos ficarem sem aula. Meus pais, obviamente, começaram a ficar muito preocupados com isso. E minha mãe e meu pai já tinham conhecido o Santa Maria, que foi esse colégio onde eu fui estudar, e achavam lindo, achavam um monte de coisas e já tinham, segundo eles, planejado: se tivessem uma filha, colocá-la no Santa Maria. Isso porque o Santa Maria era só de mulheres e o Santa Cruz era só de homens. É a mesma congregação, só que são colégios, não eram mistos na ocasião. Então, assim que houve uma condição para os meus pais me mudarem para o Santa Maria, que foi inicialmente na quinta série... Daí, minha mãe sofreu um acidente de carro e como precisava dirigir, me levar pra escola, eu acabei indo para um outro colégio perto de casa, de freiras, que era o Rainha da Paz. Mas eu fiquei seis meses, não gostei, voltei para o grupo escolar e saí de novo na sétima série. Aí fui para o Santa Maria e fiquei lá até o final do colegial.
P/1 – E seus pais faziam o quê?
R – A minha mãe é professora primária, ela deu mais de trinta anos de aula. O último colégio, onde ela ficou vinte anos dando aula, foi o Porto Seguro. Meu pai é engenheiro, engenheiro mecânico, e ele trabalhou muitos anos na Cobrasa, que é uma empresa — nem sei se existe ainda mas creio que sim — que ficava sediada em Osasco também. O último emprego dele foi no Jóquei, mas sempre nessa área de indústria ou coisas grandes, assim, esses grandes prédios, essas grandes coisas.
P/1 – E vocês quando eram pequenos, a família saía para viajar, vocês viajavam nas férias?
R – Saía. É, então, isso também é uma coisa que eu acho que tem a ver com o que eu faço hoje. De início, creio, também não tenho essa memória tão clara, nós íamos bastante a praias, tipo Praia Grande, Guarujá, esses lugares mais próximos onde o acesso era fácil. Quando a gente cresceu um pouquinho, eu devia ter uns cinco, meu irmão mais novo uns três anos, só daí a gente começou a ir para o interior. Porque meu pai sempre gostou muito de ir para fazendas, nós nunca tivemos uma, mas tinha umas relações e isso permitia que nós fôssemos fazer essas visitas. Então a gente começou a ir para Lins, uma fazenda muita bonita de gado que havia lá, de um amigo dele. E quando a gente cresceu um pouquinho mais, mas não muito, nós começamos a visitar todo ano o Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. Meu pai conhecia porque uma tia dele tinha se casado com uma pessoa de lá e essa pessoa, como mais ou menos todo mundo, era dona de fazenda. E essa tia dele não tinha nenhuma relação com fazenda, ela era pianista de orquestra e acabou se mudando para lá, indo morar na fazenda, que até recentemente, conosco mesmo, não tinha luz, não tinha nenhuma facilidade da cidade. Então ela, naquela ocasião, já há muitos anos, ela não conseguiu ficar lá muito tempo, o marido dela também não era uma pessoa que tinha muita relação com criação e tal, então eles saíram e venderam a fazenda para uma família muito maior do que a deles também, que era de fazendeiros. E meu pai passou a ir desde menino para essa fazenda da tia e posteriormente para a fazenda da tia já na posse dessa outra família, que tem o sobrenome Lata. E essa família tinha também um monte de filhos, mais ou menos todos na idade do meu pai, então meu pai passou a frequentar mais essa família até do que a própria dele. E, depois, quando ele foi fazer o CPOR [Centro de Preparação de Oficiais da Reserva], ele pediu para fazer em Três Lagoas, que era a cidade próxima dessas fazendas. Aí ele foi para lá, depois, quando ele casou-se com a minha mãe. Passados uns anos ele começou a nos levar todos para essa fazenda, que já não era mais então da nossa família, mas era dessa outra família com quem a gente acabou estabelecendo laços de família por convivência. E essas fazendas eram no cerrado — quer dizer, são ainda no cerrado —, áreas muito grandes, muito grandes e com muito pouco desenvolvimento, como eu disse, sem luz. Os próprios donos eram as pessoas que trabalhavam na fazenda. Então nós, quando íamos e óbvio que sendo da cidade, fazíamos tudo um pouco mal feito. A gente participava de todas as atividades, marcava o gado, subia na cerca, ia buscar água na bica, fazia canoinha para jogar no córrego, de buriti com espetinho de laranjeira. Então nós tivemos uma vida, vamos dizer assim, muito rural no que dizia respeito aos nossos períodos de férias. E durante a vida cotidiana normal a gente acabava tendo um pouco desse rural, não tão obviamente definido quando a gente estava em casa, porque a nossa casa, como eu disse, era em lugares mais ou menos ermos ainda naquela ocasião. Então a gente podia brincar na rua, essas coisas de mexer com terra, para a gente sempre esteve muito ligado.
P/1 – E quando você estava no colegial, que você já estava pensando na faculdade, o que você estava pensando em fazer? Como é que foi essa escolha?
R – Então, é sempre aquela coisa meio chutada. Mas eu gostava muito de biologia, talvez porque o cara que deu aula para nós, o Gilberto — ele inclusive tem vários livros que são utilizados até hoje nas escolas —, ele é muito bom professor. Eu me dei super bem com essa matéria, então achei que biologia era o caminho que eu deveria seguir. Só que naquele momento, aparentemente, para mim pelo menos, a profissão de biólogo era uma profissão meio... Não tinha muito onde ser praticada. Basicamente você dava aula ou você dava aula, não tinha muita alternativa. E aí eu pensei: “Bom, então eu acho que não vai [ser] muito bom.” Porque eu não estava a fim de dar aula, não era o meu barato. E aí eu falei assim: “Bom, então eu vou pegar uma coisa de biologia que tenha a ver com alguma coisa de que eu gosto.” Eu falei: “Ah, vou fazer agronomia.” Por causa das fazendas em que a gente ia, não sei quê, não sei o quê mais. Aí como eu também não queria ficar presa a um exame só, para não errar muito o tiro, eu pensei: “Bom, então agronomia, biologia, talvez uma outra coisa assim, super próxima, fonoaudiologia.” Aí também prestei fono, no caso, na PUC, e agronomia na ESALQ [Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz"], na USP. Aí acabei entrando na ESALQ. Acabei entrando na PUC, tranquei a PUC e fui fazer agronomia, que nesse momento era e é ainda em Piracicaba. Que também era um pouco mais longe do que é hoje porque as estradas eram um pouco diferentes, um pouco piores e tal. E aí morei lá quatro anos, depois voltei para São Paulo para trabalhar.
P/1 – E aí, você começando o curso, como é que foi essa fase? Você vem de São Paulo, foi para Piracicaba...
R – É, foi muito estranho de início porque, assim, eu, para falar a verdade, eu prestei o vestibular meio tipo assim: “Ah, seja o que Deus quiser.” Prestei vestibular. Nem sabia onde ficava Piracicaba, acho que nem nunca tinha ido para lá. E a faculdade de Piracicaba, a ESALQ, ela é muito tradicional. Então você chegava lá, já tinha as repúblicas, não sei o quê, você passava na frente das casas, aquelas casas todas caindo aos pedaços e aquelas pessoas com aqueles ares super malignos. Assim, porque você sai da casa da sua mãe, então de início eu fiquei meio assim. E, por acaso, junto comigo entraram mais duas meninas que vinham do Dante e uma menina que estudou no meu colégio, mas era um ano mais velha do que eu no colégio. E aí nós combinamos de morar um tempo num hotel até achar uma casa mais legal, depois a gente mudou e montou uma república com todo mundo no primeiro ano. O normal não era isso até aquele momento. Era você entrar numa república de pessoas de todos os anos. E o que acontecia e acontece até hoje, é que você fica tomando ralo o tempo todo, porque você é o bicho. E a gente não estava muito afim, então a gente fez um esquema alternativo. Mas foi muito difícil no início porque Piracicaba tinha, não sei se hoje ainda é assim, uma fama muito ruim nessa coisa com calouro, de gente que morreu, de gente que desistiu da faculdade, porque essa história de trote era muito pesada. Então, obviamente, você fica apavorado, não conhece ninguém, tem uma classe de duzentos alunos que você nunca viu antes, lá, sozinha numa cidade que você não conhece, então é um pouco estranho. Por outro lado, os meus amigos de São Paulo estavam no auge da “baladarice”, todo mundo ia para as baladas, todo mundo ia para as festas, e eu lá em Piracicaba: “O que eu estou fazendo aqui?”. Então eu voltava todos os fins de semana, assim como muitos outros, também, de São Paulo. Mas quando foi no fim do ano eu falei: “Ah, eu não vou mais ficar aqui, eu vou para São Paulo porque esse negócio aqui não está legal.” Aí abri minha matrícula na PUC, nem consultei meus pais e fui fazer. Eu entrei muito cedo na faculdade, é importante um pouquinho lembrar disso. Como eu faço aniversário em janeiro, eu entrei na faculdade com dezessete e saí com vinte. Então eu tinha dezessete, não tinha carta, tudo era um pouquinho mais complicado para eu me virar. Quando eu fui então para a PUC, eu abri minha matrícula sem falar com eles, eles nem gostaram muito da história. Eu também fiquei lá um mês ou dois na PUC, achei tudo muito estranho porque Piracicaba é lindo, é um campus — não sei se vocês conhecem — maravilhoso, os prédios chocantes, não sei o quê. E a PUC é a PUC, aquela coisa horrível, cheia de concreto. E a profissão de fono, naquela ocasião, ainda nem era regulamentada. Eu falei: “Ah, eu não vou me meter nessa roubada.” Voltei para Piracicaba. E aí continuei normal, não perdi ano, nada, em função disso. Mas teve essa fase meio difícil no início. Depois, como eu sempre fiz muito esporte, eu jogava handebol, jogava basquete, jogava tudo, então também aí já comecei a criar outra dinâmica que ia um pouco além das aulas propriamente ditas.
P/2 – Tinha muitas mulheres fazendo o curso de agronomia? Como era?
R – Não, naquela ocasião era mais ou menos um quarto da turma de mulheres, o resto era de homens. Era um pouco estranho, efetivamente, você no meio daqueles caras. E, como eu disse, como ela é uma faculdade muito tradicional, tem muita gente do interior de São Paulo que faz Piracicaba. Aqueles caras que são donos de fazenda, ou são filhos de pessoas que lidam com fazenda. Então eles tinham uma vivência — muitas das pessoas com quem eu estudei — bem diferente da minha. Tinha a turma de São Paulo, mais urbanóides e tinha a turma dos “agricolões”, que a gente chamava, que andavam de canivete, bota e tal, que era já o pessoal mais, vamos dizer, talvez, afeto à atividade propriamente dita do que nós, paulistanos, lá, invadindo o território.
P/2 – E qual era o foco do curso? Em Agronomia, qual era o objetivo da ESALQ?
R – Então, a ESALQ começou... Inclusive, o nome dela nem é uma Escola de Agronomia, é Escola de Agricultura Luís de Queiroz. E, na ocasião, quando eu fiz o curso, no fim do curso, mais ou menos, o que estava muito presente na atividade agrícola do país era o começo do Pró-Álcool, então a cana-de-açúcar era, assim, tudo o que você tinha que conhecer e estudar. Um pouco citricultura estava aparecendo, mas era muito cana. Então a agronomia, basicamente, ela trabalha com produção agrícola, agrosilvopastoril, vamos dizer assim. Então você trabalha desde plantas, qualquer uma que você queira chamar — café, feijão, milho, cana, arroz, banana, uva —, qualquer coisa que você coma ou use para um fim, sei lá, de tecelagem, algodão. A parte pastoril seria qualquer criação, então boi, carneiro, cabrito, galinha. Tudo isso eram matérias que a gente tinha obrigatórias na faculdade. E ainda uma partezinha de florestas que, antes de eu entrar já tinha surgida a Escola de Florestas, propriamente dita. Então no campus da ESALQ você tinha três cursos, quando eu fiz eram Agronomia, Engenharia Florestal e Economia Doméstica, que é um curso que sumiu depois. Mas, de todo modo, a gente tinha o primeiro ano juntos, todos nós, depois você podia fazer matérias optativas. Então você ia um pouco direcionando a sua vida em função do que você queria fazer. Mas basicamente a gente tinha aula de matemática, que nem engenheiro, porque a gente é engenheiro florestal ou engenheiro agrônomo. Então cálculo e todas essas matérias que se faz em outras escolas de engenharia, topografia. Matérias propriamente de conservação do que quer que seja, alimentos ou animais, porque é produto. De plantas mesmo, então forrageiras, que é, no caso, para você trabalhar com gado, que capim que você usa, quando e como você trata o capim. A questão de fisiologia animal, como é que é um boi, como é que é uma vaca, como é que é um isso, como é que é aquilo. Avicultura, como é que você cria galinha. Tinha umas matérias de sociologia, alguma coisa assim, não muito forte naquela ocasião. Muito pouco, quase nada de conservação do ambiente natural. Praticamente a gente não tinha nada que tocasse nesse assunto, isso foi surgir bem adiante na ESALQ, eu não tive nenhuma matéria relacionada a isso. Bioquímica, genética, essas eram as matérias assim, falando bem amplamente, que a gente tinha que trabalhar. Muito trabalho de campo, então em topografia você tinha que medir um negócio, em algumas aulas você tinha que plantar os troços para saber como é que crescia, tinha aula de mecânica de motores, dirigir trator. É um curso que para mim foi legal porque ele te abre muita coisa, você pode fazer quase de tudo. E tem uma base biológica — que foi o que me levou de início — bastante forte, então qualquer conceito de biologia mais básico, todos nós temos. Então a gente consegue conversar bem com biólogos ou ecólogos, consegue conversar bem com o pessoal de produção, ou com o pessoal de sociologia, em função dessas coisas de questões agrárias e tudo mais.
P/2 – E quando você se formou, no final da década 1970, início de 1980?
R – Eu entrei em 1979, saí em 1982.
P/2 – Você voltou para São Paulo?
R – Eu voltei para São Paulo procurando emprego.
P/2 – E como foi esse seu retorno?
R – Foi também bem difícil porque, particularmente, em 1982, 1983, a questão do desemprego estava muito forte. Mais ou menos como tinha estado até a entrada do Lula, um pouco semelhante. Uma coisa que não é contratado por fazendeiros é agrônomo. Porque normalmente os fazendeiros são pessoas que já sabem tudo e dificilmente elas aceitam que alguém mais novo, sem experiência, vai saber mais do que elas. É uma classe complicada de se trabalhar. Então naquela ocasião você tinha empregos em banco por conta de crédito rural. Era obrigado os bancos terem agrônomos para negociar crédito rural e meio que era esse o lugar em que você podia achar trabalho naquela ocasião, a não ser que você tivesse a sua própria fazenda ou fosse trabalhar em algum instituto de pesquisas, que tinha já, como tem, o botânico florestal, geológico, que são institutos do estado. Então era meio por aí que a coisa rolava. E eu tentei entrar em alguns bancos, que era o caminho que parecia mais óbvio naquele momento e acabei indo trabalhar inicialmente de graça no IPT [Instituto de Pesquisas Tecnológicas]. Porque como eu morava já no Butantã e a USP, onde fica o IPT, era bem pertinho de casa, eu fiquei garimpando trampo junto com alguns amigos e fui parar no IPT com um amigo meu. E os caras lá, como hoje também é o caso, não tinham funcionário para fazer nada, todo mundo dependendo de mil pessoas que nunca iriam chegar, então eu falei: “Eu trabalho de graça, não tem problema. Eu só não quero ficar em casa sem fazer nada.” Então eu passei uns seis meses trabalhando de graça, fazendo como se fosse um estágio e depois, por intermédio do pessoal do IPT naquela ocasião, eu fui trabalhar, também de graça, mas só fui saber depois, num outro lugar que já era um órgão do estado, na ocasião.
P/2 – E o seu contato mais íntimo com a questão ambiental? Foi nesse período que se deu?
R – Não, ainda não. No IPT a gente estava trabalhando com projetos de irrigação do semiárido nordestino. Então tinha alguns projetos que o IPT estava desenvolvendo lá e eu tinha que ficar fazendo cálculo de ração, quanto de palma ia, quanto disso, quanto daquilo, para os caras que iam receber esses lotes irrigados. Daí o que aconteceu foi que havia no governo de São Paulo uma superintendência chamada Sudelpa, talvez alguns dos outros já falaram desse lugar, que era Superintendência de Desenvolvimento do Litoral Paulista, que consta, foi criada na época da ditadura para cassar lá uns políticos que eram considerados terroristas, não sei o quê. A Sudelpa tinha acabado de estabelecer no seu quadro um grupo chamado de “Resolução de Conflitos de Terra” e esse grupo tinha um projeto de regularização fundiária em áreas de conflito fundiário — área de briga, de tiro, de morte — no estado de São Paulo. Mas eu quando eu fui para a Sudelpa, eu fui ainda trabalhar num outro espaço que não era esse projeto. E aí o que aconteceu, foi o que eu mencionei de passagem, o cara que me contratou, não me contratou, ele falou: “Olha, eu vou pagar você em diárias, porque a gente não tem como te contratar, então você fica trabalhando em diárias.” E eu fiquei ralando lá trabalhando com diárias e não sei quê. Um dia o cara foi mandado embora, aí ele falou: “Olha, fui mandado embora, não vou poder te pagar, então vou te pagar metade.” Aí eu falei: “Bom, acho melhor eu pegar metade.” Aí recebi a metade, encontrei com ele uns dias depois, meses, não sei, e ele falou: “Ah, sabe aquele dinheiro lá que eu te dei? Acho que eu estou precisando dele de volta, porque eu estou abrindo uma academia, não sei quê...” E falei: “Ah, meu amigo, o salário já dançou.” Bom, mas aí eu conhecia esse pessoal desse “Grupo da Terra”, que era o nome encurtado, e o pessoal me contratou, porque qual que era a ideia: você entender os conflitos de terra. Verificar quem tinha que pedaço de terra, quer dizer, posseiros ocupando áreas ou do estado, ou de particulares, mas com direitos a receber, títulos em face da lei existente na ocasião. Tinha então a questão fundiária propriamente dita, jurídica e tinha a questão de assistência técnica. Eu meio que estava nessa de assistência técnica. Só que com o passar do tempo, o que a gente percebeu, eu e os demais, é que não tinha assistência técnica possível ali porque o cara não tinha um centavo nem para comprar enxada, entendeu? Então você ia falar: “Não, o senhor adube, o senhor pegue um trator, o senhor faça...” Não tinha assistência técnica possível para alguém que não tem um centavo, nem a terra em que ele trabalha é dele. Então, quer dizer, a coisa mudou um pouco. E o que acabou acontecendo é que essas pessoas, esses conflitos, de alguma forma, estavam geograficamente relacionados a áreas com vegetação natural, na maioria dos casos. Havia muitos conflitos no Vale do Ribeira, muitos conflitos no litoral e poucos fora, creio que vi um caso só que a gente, me recordo, atendeu, que era fora dessa área mais verde do estado de São Paulo. Bom, então começou a ficar clara essa relação entre essas duas situações. É meio o que está acontecendo agora em Anapu, você tem uma confusão fundiária, gente se aproveitando disso e gente lá tentando sobreviver. Então era nesses lugares que a gente trabalhava. E eu me lembro que, a certa altura, eu falei pro cara que era meu chefe na ocasião e até fiz trabalho que depois apresentei para umas pessoas, eu falei: “Olha, tudo o que for questão de meio ambiente, eu queria que você passasse para mim.” Escrevi lá um texto, “Questão Ambiental não sei o quê”. Mas isso, naquela ocasião, era uma coisa meio marginal. Isso devia ser em 1983 ou 1984, por aí. Aí passados mais alguns anos, mudou o governo Montoro, que era esse no qual a gente estava e entrou o Quércia. E nessa transição se criaram duas secretarias novas, que eram a Secretaria de Assuntos Fundiários e a Secretaria de Meio Ambiente, em 1987. E aí a nossa equipe ficou meio dividida entre “queremos ir para o meio ambiente”, “queremos ir para assuntos fundiários”, tanto que houve uma cisão. Uma parte foi para assuntos fundiários, uma parte foi para meio ambiente e eu, inclusive, para a área de meio ambiente. E algumas das áreas em que nós trabalhávamos o conflito já eram Unidades de Conservação, no caso da Picinguaba, que era uma área no litoral norte, era Parque Estadual, no caso do PETAR [Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira] e outras áreas, eram áreas já bem já conservadas. Então, naturalmente, a gente já estava trabalhando com áreas de conservação, só que observando um foco diferente daquele de quem trabalhava nas unidades fazia. Então nós fomos para a Secretaria de Meio Ambiente e formamos lá uma célula meio informal, por assim dizer, que adiante, eu não me lembro mais quando exatamente, foi incorporada pelo Instituto Florestal, que era quem no estado cuidava de todas essas unidades de conservação. Então eu comecei a trabalhar propriamente com a questão fundiária e aí sim tive contato com essa questão de Mata Atlântica, de vegetação, senão em estado muito bom de regeneração, em estados muito próximos desses. E fui estudando, fui me interessando, então foi indo por aí.
P/1 – E nessa época que você estava na Secretaria de Meio Ambiente, quem eram as pessoas que trabalhavam com você?
R – Desse grupo que era da Sudelpa e que foi para a Secretaria de Meio Ambiente, trabalhavam comigo, eram os nossos chefes, na ocasião, o Clayton, o Fausto Pires de Campos, a Adriana Matoso, a Lucila Viana, a Elaine Santos, a Magali — irmã dela—, a Lica — irmã das duas —, a outra Eliane Penna Firme, a Neréia, Arlete. Tinham várias pessoas, algumas ainda estão na secretaria e algumas estão no hoje chamado ITESP, que é o Instituto de Terras de São Paulo. Eram essas pessoas com quem a gente trabalhava mais frequentemente neste âmbito.
P/1 – E, nesse período, você se lembra de algum fato que tenha sido interessante, que te marcou?
R – Ah, teve vários. Nesse início da minha carreira profissional, pelo menos, essa coisa de meio ambiente estava surgindo. Então todas essas pessoas que hoje são muito, em alguns casos, bem famosas, tipo o “Capô” [Capobianco], era biólogo, que dava aula de biologia e aproveitava, ia para a Juréia de vez em quando para dar aula lá. Então a gente conhecia essas pessoas nesse estado da vida delas. O Fábio mesmo, ele trabalhava numa ONG, que não era nem tão famosa, mas depois até ficou um pouco mais, a OIKOS. E tinham aquelas pessoas que eram já consideradas importantes nesse metiê, então a Nanuza Menezes, que era uma mulher que na ocasião tinha uma certa importância, a Maria Tereza Jorge Pádua já era um nome conhecido, o Doutor Paulo Nogueira Neto. Então tinha um grupo de pessoas assim, tipo, duas mãos, que se conheciam e se falavam nessa questão de meio ambiente. E os outros, todos nós, e algumas pessoas que hoje, como eu disse, são expoentes, eram todos moleques chegando ao assunto naquela hora. Por exemplo, o Mário, o Mário Mantovani, nem trabalhava em ONG, trabalhava no governo, tinha outra função. A Márcia, da SOS, por exemplo, só vim conhecer muitos anos depois porque quando a SOS foi criada, nenhum deles trabalhava lá. Tinham algumas pessoas que também saíram depois da SOS e nunca mais voltaram. Então mais ou menos era assim que a coisa rolava. Agora, tiveram alguns fatos importantes nesse período que particularmente foram esses. Acho que um, em particular, foi a questão da Juréia que teve uma mobilização muito importante onde muitas pessoas se envolveram. E nós tínhamos uma relação muito interessante na ocasião que, embora nós fossemos o governo, nós éramos os provedores, de alguma forma, de informações para quem estava fora do governo poder bater no governo, para fazer as coisas andarem. Então [era um] certo jogo de bastidores, mas que foi importante naquela ocasião. Claro, as pessoas também tinham suas outras fontes e suas próprias formas de pesquisa, não eu propriamente, mas as pessoas que eram minhas lideranças na ocasião tinham esse contato bem forte, fazendo essa ponte e buscando soluções porque a gente achava importante ir batendo pelo lado de fora. Hoje isso se faz bem menos, é diferente. Então essa coisa da Juréia foi muito importante. Aí eu fui morar no Canadá, que também foi um fato muito importante na minha vida. Eu me inscrevi numa bolsa de estudos e o que aconteceu foi que eu estava com vinte e quatro anos, me inscrevi, passei numa primeira seleção e fui fazer uma seleção mais definitiva na Colômbia. Fui com mais um bonde de gente lá e tinha, além de mim, mais dois brasileiros concorrendo e vários outros latinoamericanos. Essa bolsa só podia ser oferecida para pessoas a partir dos vinte e cinco até não sei que idade e eu estava com vinte e quatro, mas a bolsa ia ser para o ano que vem, então dava para fazer vinte e cinco. Aí fiz lá a minha entrevista e o que me fez passar depois no crivo, que foi de quatro pessoas, foi que na hora da entrevista final com todos os bam-bam-bams, os caras que julgavam, eu fiz aquela coisa assim. Os caras perguntaram, perguntaram, perguntaram, eu respondi. Daí eles falaram: “Você tem uma pergunta?” Aí, sabe quando você já está até com preguiça? Você fala “Ah, não.” Mas aí eu falei: “Ah não, eu tenho.” E a minha pergunta mais ou menos foi definidora da minha seleção e não era nenhuma coisa maravilhosa, mas era uma coisa do tipo assim: “Olha, vocês são financiadores. Eu trabalho com meio ambiente. Então como é que vocês vão fazer? Vocês vão me financiar trabalhando com meio ambiente e vocês vão financiar o fulano ali do lado que trabalha com construção de usina hidrelétrica. São duas coisas que são incompatíveis, de certa forma.” Daí ninguém respondeu e aí soube mais tarde que eu tinha passado. E aí eu fui morar no Canadá, fiquei um ano lá e era um programa muito interessante, porque fazia você estudar nove meses, coisas que na ocasião não existiam aqui. Então, por exemplo, computador não tinha, então eu fiquei aprendendo Lotus, aqueles programas WordStar, umas coisas velhas já, mas que eram uma ferramenta que já existia no primeiro mundo e no terceiro mundo, os manés não tinham. Então eram essas coisas que a gente aprendia, uns trabalhos mais específicos na área de economia, então eram matérias que eram dadas para nós por professores das universidades que havia em Otawa na ocasião, que eram a Universidade de Otawa e a Universidade Carleton, as duas mais importantes. Então a gente fazia aulas o tempo todo, trabalho, que nem aluno normal. Macroeconomia, microeconomia, essas coisas todas. E ao final dos nove meses a gente optava por trabalhar propriamente numa agência canadense que se relacionasse tematicamente, com a nossa de origem. Então fui trabalhar no sistema de parques canadenses por três meses. Fiz uns trabalhos, participei de uma série de atividades lá e depois voltei pro Brasil. Voltei para o meu trabalho de novo naquele mesmo grupo, com aquelas pessoas e tal. Daí logo que eu cheguei, que é um outro fato marcante para mim também, um pouco depois eu fui chamada para ser diretora de uma Unidade de Conservação, de um núcleo, na realidade de uma unidade, que era Picinguaba. E foi uma fase um pouco complicada porque tinha uma briga histórica acontecendo e Picinguaba era um caso muito emblemático. Aí eu fui parar lá e o cara que tinha me antecedido era um cara que ficou pouco tempo e não tinha nada a ver muito com a questão, era um cara de cinema, não sei nem por que puseram o cara lá. Aí eu fui atrás dele para saber o que eu precisava fazer, o que ele tinha feito, onde estavam os materiais, as coisas e tal, daí ele me deu uma pastinha com elástico, sabe essas pastinhas com elástico, assim? “Ah, está aqui.” E eu falei: “Ah, é tudo isso?” “É, tudo isso.” Daí, tipo, não tinha nada lá, não tinha informação nenhuma. Aí eu fui, e essas coisas de governo... Quer dizer, o cara falava: “Vai lá.” Ninguém te fala nem onde é, você chega, vai sozinha, não tinha. Imagina, cheguei lá, eu tinha vinte e cinco, então aquele bando de homem, vigia e braçal, que eram só os meus funcionários, fica olhando para você, aquelas caras, assim, a sua também, tipo: “Ó, eu vou mandar aqui, vou ser chefe de vocês.” Os caras só faltam dar risada. Então eu fiquei dois anos na Picinguaba e foi muito difícil para mim naquela ocasião, porque eu não tinha dinheiro, não tinha apoio, vamos dizer, político propriamente. É bem essa coisa, larga você lá e você que se vire. E eu não sabia lidar muito com essa cobrança de funcionário: “Meu salário é ruim, blá, blá, blá.” Então, ao invés de eu falar: “Ah amigo, desculpa aí, eu também não tenho.” Eu ficava super preocupada, não conseguia resolver, então foi muito torturante para mim esse período na Picinguaba. Teve, obviamente, uma experiência maravilhosa, teve coisas muito legais e tal, mas eu, a hora em que pudesse sair, eu estava saindo. E aí, quando eu saí da Picinguaba, ganhei uma outra bolsa, fui para o Japão, fiquei um mês, voltei e aí já comecei a trabalhar meio que genericamente para todas as outras unidades, não exclusivamente na Picinguaba. E aí teve outras coisas.
P/1 – Eu só queria que você falasse um pouquinho como você vê esse período de 1980. Porque a gente está falando da década de 1980, que aconteceram essas coisas. Como a questão ambiental era tratada aqui? E como que você viu ela lá fora?
R – Bom, tentando lembrar um pouco, tem fatos nacionalmente relevantes. Então teve a história da anistia mais ou menos nesse período. Depois teve a história da eleição de presidente, Diretas já. A minha sensação, não sei se porque a minha idade naquela ocasião, era essa de que havia uma mobilização social por mudanças muito presente o tempo todo. Não só essa questão ambiental era muito marginal face às demais, principalmente essas políticas, mais importantes, mas estava surgindo. E como era um assunto novo, ele atraía muita gente. Vamos dizer, é politicamente correto, bacana, legal e moderninho se você estivesse nessa luta e nessa frente. Então muita gente se aglutinou nesse movimento. Os conhecimentos para isso eram ridículos do meu ponto de vista. Claro, sempre tinham pesquisadores que tinham uma base científica um pouco melhorada mas, mesmo assim, a lógica e como a sociedade era tão crua nesse sentido, qualquer argumento que você usasse com poucas informações era suficiente para você convencer as pessoas de que a coisa não ia bem. Hoje, certamente, aqueles argumentos não iriam servir para nada. Era sempre essa coisa da denúncia, de mostrar fatos muito chocantes do tipo “ó, não tem mais mato aqui, não tem mais água limpa lá, não sei quantos bichos mortos num incêndio não sei onde”, aquelas fotos sempre meio trágicas e tal. E essa coisa meio hippie das pessoas, minha mesmo, de ir para o mato, ficar dormindo em qualquer lugar, tomar banho de cachoeira, fazer uma série de atividades que você só faz nesses lugares. Então era um pouco nessa direção que eu via, ou que eu vejo, hoje, a forma como funcionava. Não tinha essa coisa de ONG, não existia, existia uma ou outra super antigas, ou já um pouco mais novas. Então você sabia que tinha a FBCN [Fundação Brasileira para Conservação da Natureza], que era uma coisa até que meio estratosférica, ninguém muito sabia quem estava lá, ou eu pelo menos, não sabia, que era a única mais conhecida, o resto não existia. Então era meio a moçada que vai fazer alguma coisa. “O mundo vai melhorar, nós vamos conseguir fazer tudo novo, diferente.” Então fomos, achamos que dava e fomos por aí.
P/1 – E como você viu essa questão quando você estava no Canadá e depois, quando você foi pro Japão?
R – No Canadá eu acabei, era completamente diferente porque os caras já estavam pensando em algumas coisas que a gente estava longe de ter conseguido. Então certas legislações lá já existiam e no Brasil estavam longe de poderem ser criadas. O Canadá era um país super organizado, então você tem, vamos dizer, efetivamente a possibilidade de qualquer pessoa ter acesso a tudo, desde pessoas com problemas físicos, até pessoas com menos grana, qualquer tipo de pessoa podia ter acesso às coisas legais. Era tudo muito mais socializado do que é no Brasil. Isso também ficou super claro. Mas o que me batia muito era aquela coisa de: “Não, o desafio é voltar para o Brasil, fazer as coisas acontecerem lá.” Então era aquele barato assim: “Ah, aqui não tem nada pra fazer, aqui no Canadá. Já está tudo meio feito, já está tudo arrumadinho. Agora o legal vai ser fazer lá.” Eu já até tenho dúvida se eu devia ter tomado essa decisão, mas foi a que eu tomei, na ocasião, porque daria para ter ficado mais um tempo, fazer o mestrado lá. E aí eu falei: “Ah, não. O Brasil, os amigos, a minha terra.” Aquela coisa meio ufanista. Então eu voltei. Mas a visão das pessoas do Brasil era um pouco também ainda esse deslumbramento: “Amazônia, óh, Amazônia, os índios, óh, os índios...” Sabe? “Os índios bonzinhos, a Amazônia maravilhosa.” Então era muito essa coisa de descobrir o Brasil por esse viés ambiental. Você tinha muito pouco conhecimento, havia muito poucos cientistas, ainda com alguma inserção mais forte no metiê que falavam do Brasil. Então era aquela coisa meio aventureira, que as pessoas vinham para cá, saíam todas encantadas. Teve aquele absurdo, que eu me lembro que eu tive que ouvir muito tempo, do acidente do Césio-137, lá em Goiânia, que tinha sido no Brasil. Então as manchetes eram: “Bizarro acidente nuclear brasileiro.” E eu tinha que ficar ouvindo aquilo. Mas a leitura do Brasil era muito aquela bem superficial, como ainda deve ser, imagino, mas na área de meio ambiente era bem aquilo assim: “Legal, floresta tropical, vamos lá.” Era isso daí, não tinha muita coisa, não.
P/2 – E a Mata Atlântica nesse período? Sequer era falada, então, lá fora?
R – Ah, nesse período e hoje. Na verdade a Mata Atlântica conseguiu também não ser muito foco de atenção internacional até hoje, porque sobrou tão pouco que as pessoas acham que não tem muito que fazer. Mas, de fato, o que chamava a atenção sempre era a Amazônia e mais nada. Ou Pantanal um pouquinho, também, muito menos falado do que já se viu mais recentemente. A Mata Atlântica tinha aqueles defensores que são os que hoje continuam sendo os mesmos: o Gustavo Fonseca, pela Conservação Internacional, que hoje mora fora do Brasil; o próprio Capobianco; o próprio Fausto; o Fábio; algumas pessoas de outros estados, muito menos numerosas, mas batalhadoras, também, que conseguiam chamar um pouco a atenção para a Mata Atlântica. Mas obviamente não tinha o mesmo interesse e inserção que a Amazônia sempre trouxe pela extensão, pela mitologia do mundo selvagem e tudo o que traz junto com isso. Então a Mata Atlântica nunca, pelo menos do meu ponto de vista, foi tratada dessa forma.
P/2 – E desse período de que a gente está falando, meados da década de 1980 para cá, para a década de 1990, meados de 1990, o quê mudou na questão ambiental como um todo? Quais foram às melhoras do que acontecia, em sua opinião?
R – Em minha opinião a gente conseguiu fazer uma coisa que é complexa e as pessoas às vezes esquecem de lembrar como eram sem isso, que é a base legal. Eu acho que o ponto crucial de avanço nosso, não que ele consiga resolver todas as coisas. Mas você ter uma base legal que te diga: “Não pode, está aqui escrito que não pode.” É muito diferente de você não ter nada, que era o que a gente tinha até os anos 1980 e 1990 em muitas circunstâncias. Então eu acho que o grande ponto que marca a diferença entre uma fase e outra é você ter uma base legal que deu margens para a gente poder trabalhar melhor com esse assunto. Concomitantemente a isso, você teve esse florescimento de ONGs que, como hoje, eu acredito, ainda tem aquela coisa de meio, o cara abre, fecha, o outro abre, fecha, então tem um número muito grande, mas que não se repete com os mesmo protagonistas ao longo dos anos. O número pode continuar grande, mas os protagonistas vão mudando, porque aquela ONG não foi adiante, fechou, aí alguém abriu uma outra, um foi dissidente do outro, abriu uma terceira. E inicialmente ainda era muito essa coisa de ONGs com pouquíssimas pessoas, muitas pessoas envolvidas pelo amor à causa e mais para frente um pouco, já nos anos 1990, creio, um pouquinho antes, 1989, 1990 é que começam a ser possíveis alguns contratos e pessoas profissionalmente trabalharem para as ONGs. O que continua sendo muito difícil até hoje, [era] mais [difícil] naquele período em que começou. Também eu não tenho dados tão claros e corretos mas, de todo modo, na minha memória, mais ou menos foi assim que as coisas se deram. E a parte de governo também não havia, como não há em muitos lugares ainda um órgão específico para tratar do caso. A secretaria em São Paulo surgiu em 1987 com três gatos pingados, que eram o secretário, a secretária do secretário e um motorista, e o resto foi sendo agregado de outras instituições, como é até hoje a secretaria de meio ambiente de São Paulo. E assim como nos diversos outros estados, particularmente no Rio, comparativamente a São Paulo, você tinha aquelas agências que saíram um pouco na frente, que eram a CETESB [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo], no caso de São Paulo, e tinha uma no Rio que agora eu não vou lembrar, que eram agências dessa natureza mais de poluição. Acho que o foco também que a questão ambiental tomou fortemente no início foi essa coisa da poluição das cidades, a poluição do ar, esgoto. Então essas agências bem técnicas, relacionadas a esses assuntos, eram agências meio chave no início dessas ações ambientais. Só mais adiante, no caso de São Paulo, por exemplo, com a história do Japi, a história que eles queriam fazer o aeroporto. Mais para frente um pouco, a história da Juréia com as usinas nucleares. Quer dizer, aí que começam a entrar um pouco na pauta questões que vão além das preocupações mais urbanas de poluição, propriamente.
P/2 – Você tocou num aspecto que foi a base legal, que você disse que foi uma diferença bastante grande na defesa ambiental. Muito se diz que a legislação ambiental brasileira é uma das mais avançadas, uma das mais bem elaboradas do mundo. Você concorda com isso?
R – Eu não conheço a legislação do mundo, então não saberia dizer se é a melhor ou se é a mais avançada. Eu diria até que a legislação anterior a essa desses anos 1980, a exemplo do Código Florestal, são coisas impressionantes. Porque o Código Florestal que está vigente até hoje, embora tendo mudado recentemente devido a uma medida provisória, inicialmente foi desenhado em 1934, junto com vários códigos que foram desenhados na época do Getúlio. Então você tem Código de Águas, Código Florestal, Código Civil, Código “Não Sei Quê”. As pessoas que trabalharam no código em 1934, claro, elas erraram em vários pontos importantes, mas o grosso do código, que depois foi revisto em 1965, manteve-se até agora. Quer dizer, os caras tiveram uma visão bastante clara das coisas e muito esperta. A diferença, claro, como toda lei, a lei deve ou não ser cumprida. Então o fato de a lei ser boa ou não em muito depende de ela poder ou não ser cumprida de fato ou não. Agora, se a nossa legislação é melhor ou pior, eu não saberia dizer com certeza. Eu sei que hoje você tem bastantes instrumentos jurídicos para poder negociar com as forças, vamos dizer assim, contrárias a uma conservação mais estrita, e isso é importante.
P/2 – E Ciça, você acompanhou boa parte dessa história ambiental da década de 1980, a partir da década de 1980. No período em que a SOS foi criada, você tinha já vinculação, você estava já vinculada a ela a partir do seu início?
R – Não, eu fui ao lançamento da SOS, assinei o livro lá na ocasião, conheci as pessoas que estavam lá, o Capô, o Eduardo Brondizio, a Inês, que inclusive tinha feito agronomia na mesma escola que eu, a gente jogava basquete. Então eu conheci as pessoas e acompanhava um pouco os trabalhos, até por causa disso mesmo que a gente falou. Todo mundo era um pouco amigo, então quando era festa de aniversário, iam essas pessoas na casa das pessoas. Tinha uma relação muito, vamos dizer entre aspas, íntima, que um pouco extrapolava o fato de você ser governo ou não ser governo. Isso depois mudou, mas naquele momento tinha esse contato com as pessoas, algumas mais, outras menos, até menos profissional do que essa coisa de: “Ah, vamos lá na Juréia ver não sei o quê”, entendeu? E coisas parecidas com isso. Então o meu contato com a SOS é desde o início, mas eu só fui participar de algumas coisas mais expressivas lá na SOS quando eu fui trabalhar propriamente lá.
P/2 – E qual foi o panorama ambiental de quando a SOS foi criada? Foi em 1987. O que estava acontecendo na mídia, qual foi a importância que deram a esse fato?
R – Eu acho que ele foi bem. Porque junto com a SOS se criou a Secretaria de Meio Ambiente, que dava o salto governamental nessa direção. E tinha a história da Juréia, que também foi criada em 1987. Então, quer dizer, a Juréia serviu de bandeira aglutinadora desse movimento bastante bem por tudo que também se discutia na ocasião. Era uma área muito preservada, com pessoas que moravam lá que eram tradicionais, com um risco que não era pequeno, que era a construção de usinas nucleares. E as usinas nucleares já tinham demonstrado certos problemas, não tanto quanto demonstraram logo depois, mas já era uma coisa de que ninguém gostava a princípio. Não se via também resultados, como se vê muito pouco ainda das usinas brasileiras. Tinha toda uma especulação imobiliária envolvida com a questão da Juréia. Aquela história da Juréia era uma coisa muito presente no dia-a-dia de todo mundo e foi no mesmo momento que a Juréia foi criada. Então foi uma vitória do movimento ambientalista tida por todos como tal. A criação da secretaria, uma. Aí entra a SOS no mesmo momento. Então era assim: “Viramos gente grande. Tudo o que a gente quer, a gente está conseguindo.” É um pouco a impressão que me dá desse momento. Depois, obviamente, a gente caiu um pouco na real, mas nessa hora acho que foi um pouco por aí.
P/2 – E você esteve na Ilha do Cardoso ou foi na daqui de São Paulo?
R – Não, eu fui à daqui de São Paulo, na Ilha do Cardoso eu não estava.
P/2 – E você sabe dizer quais foram os principais focos da Fundação SOS Mata Atlântica nesse início de atuação?
R – Eu posso dizer não tanto pela minha lembrança da vivência do momento, mas por depois ter lido coisas e participado de outras coisas. Basicamente, a SOS lembrou o Brasil que a gente tinha Mata Atlântica. Eu acho que foi o primeiro foco que ela tentou passar para todos nós, brasileiros e estrangeiros. Era de que ali existe um ecossistema importante que está quase sumido mas que não sumiu, que tem importância de várias ordens, mas ele existe. “Isso é Mata Atlântica”. E por um bom período de tempo a batalha da SOS e aí com vários outros atores, foi provar que existia uma coisa chamada Mata Atlântica, que era além da face atlântica da floresta que havia naquela região. E isso é uma briga que ainda hoje, vamos dizer assim, não é superada 100%, 90%. Mas foi uma briga muito difícil. E depois era saber exatamente o que tem nesse troço que sobrou. Então eu acho que os primeiros focos foram: existe Mata Atlântica, ela é importante, ela é rica, mas cadê a Mata Atlântica? Onde tem, como é que está indo? Daí, eu acho que o passo seguinte ou meio concomitante da SOS foi mapear esse raio desse troço chamado Mata Atlântica que ninguém muito sabia do que se tratava. E só em 1992 é que se consegue fazer uma legislação protetora da Mata Atlântica especificamente. Que é uma resolução, um decreto, que nunca conseguiu virar lei, não conseguiu até hoje virar lei, que dá as normas gerais para usos e não-usos da Mata Atlântica. Teve umas iniciativas anteriores com o próprio Itamar Franco, que não podia cortar nada, mas daquelas soluções tão radicais que não são passíveis de aplicação e acabam fazendo o serviço contrário. Então acho que a SOS apontou nesse caminho inicialmente e ficou por um tempo batendo firme nessa direção.
P/2 – E a sua ligação formal com a SOS se deu em que ano?
R – A formal mesmo se deu quando eu fui trabalhar lá. Claro que eu já conhecia as pessoas, já tinha estado em eventos em que a SOS também tinha estado. Enfim, já conhecia alguns trabalhos, mas nunca havia tido uma relação muito intensa com a SOS. Eu trabalhava no governo, tinha meus assuntos lá para cuidar e não tinha muito contato. Daí o que aconteceu foi que, com a mudança do governo Covas fase um para fase dois, entrou um secretário que, enfim, adotou umas políticas com as quais eu não estava a fim de compactuar. Então surgiu a oportunidade de fazer a coordenação de um programa novo que a SOS estava fazendo em aliança com a Conservation International, antes assim chamada, agora Conservação Internacional, que eles cunharam aí de aliança. E precisavam de um coordenador que tocasse aí projetos comuns dessas duas entidades que poderia ficar em São Paulo, ou poderia ir para Belo Horizonte, onde é a sede do CI. Aí, eu me inscrevi, concorri lá com outras pessoas e acabei entrando, assumi esse cargo lá com eles. E aí comecei a trabalhar, fisicamente, propriamente na SOS e fiquei lá até 2003.
P/2 – E o que você fazia lá? Quais eram as suas funções?
R – Essa ideia da aliança é uma ideia que de início eu achei muito legal, porque as duas entidades são muito diferentes nos seus trabalhos e inserção também. A SOS, vamos dizer assim, tem uma marca conhecida no Brasil e a Conservação Internacional, não. Mas a Conservação Internacional tem trabalhos científicos bastante conceituados fora e no Brasil, que a SOS não tem, então os corpos de funcionários são totalmente diferentes. Se você conseguisse juntar essas duas capacidades certamente se potencializaria as duas entidades de forma diferente. A Conservation tinha e tem uma fonte de recursos muito forte, mas basicamente americana, e a SOS tinha uma fonte de recursos forte brasileira. Então também aí era um casamento interessante de se fazer. Havia alguns projetos definidos de início para que essa aliança tocasse, uma vez produzidos, produtos da aliança e, portanto, das duas instituições. A aliança nunca foi e nunca se pretendeu que fosse uma instituição à parte, tanto é que da aliança só era eu. Eu contava — em tese, porque as coisas não [eram] bem assim — com as duas equipes. Mas às vezes a prioridade da equipe é uma que não cabe na sua, então esses arranjos são naturais, mas também ocorriam. Tinham alguns programas específicos que a gente começou a tocar e eu então ficava fazendo essa ponte entre as duas entidades, mas não uma ponte no sentido de eu levar e eu contava, não era isso. Era, basicamente.... A gente se reunia sempre em três: a Márcia na SOS; o Luís Paulo, que é coordenador de programa Mata Atlântica da CI; e eu pela aliança. Até acho e conversei com eles um pouco antes de sair que, um pouco em função talvez das características institucionais de ambas ONGs e também da personalidade de ambos os coordenadores, a figura de um terceiro coordenador ficou um pouco mal colocada. Porque quando eu fui, eu tinha a expectativa de conhecer bem as duas instituições e conseguir fazer propostas que coubessem numa aliança. E, na verdade, isso não deu muito certo porque ora Luís Paulo achava que não era o momento, ora a Márcia achava que não era o momento e eu dependia de autorização dupla. Muitas vezes não ficou muito clara essa relação que foi, talvez, um dos motivos também que me levou a sair, porque eu achei que naquela posição talvez eles precisassem de uma pessoa muito menos experiente, sei lá, diferente de mim. Não precisaria ter algumas condições que eles exigiram quando eu entrei, podia ser uma pessoa mais tocadora, talvez. Enfim, a gente conversou lá um pouco antes de eu sair mas, de todo modo, a ideia da aliança foi um pouco nessa direção de potencializar as duas entidades.
P/1 –Você ficou quantos anos antes de ir para a SOS no governo?
R – De 1983 a 1999, com esse ano em que eu saí para morar fora. Depois teve uma passagem que eu não posso esquecer aqui senão eu vou ser morta. Em 1992, mais ou menos, acho que um pouco antes de 1992. Em 1990 eu já tinha ido com mais um pessoal que antigamente era o grupo da terra, que tinha ido para a Secretaria do Meio Ambiente trabalhar no Instituto Florestal. Eu fiquei trabalhando um tempo lá e o diretor geral da ocasião, Timoni, me chamou para fazer parte da assessoria dele. Aí eu fiquei um pouco na assessoria do Timoni e eu não estava muito satisfeita. E na ocasião o Fábio, que estava acho que no segundo mandato e tinha uma coisa assim. Os nossos chefes, até então, a Adriana e o Fausto, eram a ponte com o Fábio. E então tudo o que a gente conversava, quem conversava com o Fabio eram os dois. Aí um dia eu saí com uma amiga minha, a Lucila, e a gente falou: “Oh, Lu, por que esses caras ficam falando em nosso nome? Vamos nós falar com o Fábio.” Aí fomos lá as duas falar com o Fábio, e falamos: “Ah, Fábio, a gente isso, a gente aquilo, começamos a achar um monte de coisas, a gente está a fim de trabalhar aqui.” Foi meio assim que eu acho que foi que aconteceu. E o Fábio, obviamente, como sempre, todo mundo quando você tem uma coisa, podendo as pessoas virem trabalhar para você e, se possível, sem que você gaste um centavo, é uma boa. Aí então acabei indo trabalhar com o Fábio e fiquei trabalhando com ele até 1995. Então de 1990, mais ou menos, acho que foi até depois também em 1995. Mas então eu saí da secretaria nesse período de 1990 a 1995 fiquei trabalhando na assessoria do Fábio. Aí eu comecei a trabalhar com umas coisas em que o Fábio se metia na ocasião: projetos de lei, representação, uma porção de coisas em São Paulo, sempre. Eram coisas muitas no Vale do Ribeira, a Usina de Tijuco Alto, que é uma coisa que ainda hoje está em pauta e milhões de outros assuntos de todas as ordens. E aí quando o Fábio então foi convidado a ser secretário, ele foi para a secretaria e nos levou com ele. Então eu fiquei de 1983 a 1990, aproximadamente, na secretaria. Sete anos. Depois de 1995 a 1999, mais quatro, então onze anos. Fiquei esses três anos com o Fabio, depois em ONG e morar no Canadá nesse período aí.
P/1 – E quando você estava no governo, como que era essa conversa do governo com as ONGs? Como ocorria?
R – Não existia um canal explícito, vamos dizer assim: “Ó, temos que ouvir as ONGs.” Existia, como eu te falei, uma ação meio terrorista, vamos dizer assim, da nossa parte junto às ONGs de subsidiá-las com muitas coisas que para nós eram importantes. Não quer dizer que era só nisso que eles trabalhavam, eles tinham outras agendas, mas um pouco das agendas a gente fornecia buscando que as coisas andassem mais rápido ou andassem, então teve muitas. Por exemplo, eu me lembro, acho que o Montoro recebeu de presente na ocasião uma motosserra porque não tinha resolvido algumas coisas. Então tinha umas manifestações contrárias ao governo bem fortes mas meio nessa linha, meio tiração de sarro e reclamando, claro, sempre de alguma coisa. Mas eram mais relações de caráter pessoal, não havia uma relação tão institucional como se dá hoje. O Consema [Conselho Estadual do Meio Ambiente] mesmo, que foi o embrião da Secretaria, eu não lembro qual era a conformação dele então, mas não era tão institucional como é hoje. As participações também eram outras, claro, outras pessoas. As relações eram um pouco diferentes, eram mais, entre aspas, amistosas, ao mesmo tempo em que menos formais.
P/1 –O governo trocava muita informação com ONGs de fora?
R – Não.
P/1 – Era coisa de governo, governo mesmo?
R – Não. Até onde eu me lembro não trocava informação nenhuma. A não ser em situações daquelas padrão, tipo, tem um convênio com a universidade tal, ou um programa bilateral de investimento, mas uma coisa mais de fortalecimento institucional, de capacitação. Esse troço nunca foi muito presente, na minha lembrança.
P/1 – Você falou uma coisa que nós não sabíamos, que foi trabalhar com o Fábio. Como foi essa fase, esse trabalho?
R – Tem uma situação que é muito peculiar minha, da minha pessoa, que é um pouco, talvez para outras pessoas nem seja, assim, mas basicamente eu tento fazer aquele caminho mais difícil. “Quem que é o cara mais difícil para a gente trabalhar?” “Ah, é o Fábio.” “Então vamos lá.” E assim eu lido com a minha vida um pouco de modo geral. Então o Fábio para mim, naquele momento, era uma pessoa que tinha uma inserção grande já na política e nas questões ambientais. Era uma pessoa séria que não se colocava em situações, vamos dizer, iguais às de outros políticos e que era um cara exigente que ficava lá pressionando. Eu falei: “Se eu for trabalhar com alguém, vou trabalhar com alguém que produza, que faça. Não quero ficar nessa leseira em que eu estou aqui no IF.” Como eu estava naquele momento. Então fui trabalhar com o Fábio, me inseri lá na equipe e fiquei tocando algumas coisas que ele mandava tocar. Mas era um pouco, não chegava a ser aleatório, propriamente, o trabalho do escritório, mas com o tempo, as pessoas foram um pouco se identificando com algumas áreas. Então a Laura tocava um pouco mais as coisas urbanas, eu tocava um pouco mais essas coisas de Unidades de Conservação florestais e aí tinha outras pessoas que eram mais jurídicas, da questão legal. Então tinha certa divisão de tarefas, mas não era uma divisão muito clara para todo mundo. E era um escritório pequeno, era uma coisa muito familiar, porque ainda que as pessoas não tivessem relações fora do próprio escritório, acabavam criando, como qualquer relação de trabalho, uma coisa meio familiar. E o Fábio ficava indo e voltando para Brasília, então a gente também não tinha contato com ele 100% do tempo. Mas era isso.
P/2 – E esse período foi exatamente a época da ECO-92.
R – Isso.
P/2 – Então você deve ter acompanhado os bastidores de perto. Fala um pouquinho desse período para a gente.
R – Alguma coisa, porque houve muitas reuniões preparatórias para a ECO-92, mas nós, eu em particular, nunca participei de nenhuma. Então a gente não sabia muito a dinâmica daquilo como é que era. Os temas principais, um ou outro, a gente mais ou menos acompanhava. O Fábio participava, mas a equipe ficava um pouco distante, até porque isso se deu, creio eu, não me lembro exatamente, muito mais no âmbito de Brasília do que São Paulo. Além de nós, em São Paulo, o Fábio tinha umas pessoas que trabalhavam com ele em Brasília. Eram mais operacionais do que técnicas, me recordo, com exceção de uma ou outra pessoa, mas elas eram mais articuladas com as coisas que estavam acontecendo lá em Brasília, na minha memória. Nós fomos como escritório para a ECO-92, o Fábio arrumou, acho que alugou uma casa para as pessoas. Eu acabei não ficando lá, mas nosso grupo foi para acompanhar o que estava acontecendo. Mas é aquela coisa, você faz uma imagem que você acha que a pessoa precisa de você e a pessoa na verdade não precisa. Eu me lembro que no começo, quando estava trabalhando com o Fábio, eu achava que eu tinha que municiá-lo de informações, passar alguns dados, fazer umas coisas, então quando ele fosse falar eu podia ler aquele troço. Mas era ridículo porque, imagina, ele não dava nem bola para aquele troço, falava lá o que ele achava e tudo bem. Mas era o estilão lá e depois você vai se acostumando com ele. Então a minha participação, propriamente, na ECO-92, foi de alguém que estava lá como várias outras pessoas vivenciando aquele momento. Eu não era, naquele momento, vamos dizer assim, uma pessoa que era ouvida para decisões, opiniões até, que fossem mais ou menos importantes. A gente fazia parte lá da massa festiva, mas não estava na decisão de nada. O Fábio é outra coisa.
P/1 – Qual a importância que teve a ECO-92?
R – Eu acho que foi super importante porque, primeiro, alguns assuntos que hoje ainda estão na pauta foram efetivamente lançados com alguma eficácia no sentido de as pessoas pararem para pensar sobre eles na ECO-92. Notadamente a questão de clima e a questão de biodiversidade. Até mais a de clima tem estado constantemente na mídia do que a de biodiversidade, mas ambas foram alçadas a um público muito mais generalizado, no meu ponto de vista, a partir da ECO-92. Para o Brasil foi importante porque alguns atos, algumas decisões foram tomadas necessariamente porque a coisa aconteceu no Brasil. O cara não pode pensar duas vezes, você está sediando um evento de meio ambiente, o primeiro documento que vai sair você vai falar: “Ah, não sei se eu vou assinar, se não vou assinar.” Você tem que assinar, não dá muito para enrolar. Então eu acho que para o Brasil foi muito importante, trouxe à tona alguns assuntos importantes da ocasião, mais uma vez essa coisa focada um pouco na Amazônia. Se vocês lembram, teve aquele caso lá do Paiakan, que meio deu aquela esfriada no entusiasmo, mas eu acho que alavancou uma série de coisas para o Brasil muito importantes. Claro, muito menos do que se imaginou que poderia, se você for verificar os resultados que a gente mesmo fez na secretaria, com o Fabio, do que ia ser a Rio+5, que era em 1997, portanto, depois Rio+10, que também foi feito, deu um pouco aquela noção mais clara de “bom, estávamos muito otimistas em 1992, façam o que conseguirmos de hoje em diante”. Mas teve coisas importantíssimas: a criação do GEF [Global Environment Facility], que é o fundo que o Banco Mundial administra, mas que tem recursos de vários lugares para as questões de meio ambiente. Não se teve a colaboração que se imaginou ter, percentual, de alguns países. Para a questão ambiental diminuíram até ao invés de aumentar mas, de todo modo, isso passou a ser inclusive mensurável. Antes você falava: “Quanto o cara põe?” “Ah, sei lá.” “E quanto ele devia?” “Ah, não sei.” Então teve certa linha corte ali dizendo: “Deveriam tantos por tanto.” Aí se o cara não colocou ele já tem ponto negativo, vamos dizer assim, até lá não tinha muito essa abordagem. E depois todas as reuniões que se seguiram das próprias convenções que foram levadas a público naquele momento, mais uma vez — sobre clima e biodiversidade particularmente — que foram gerando, cada uma a seu tempo e com as suas dificuldades, alguns produtos que hoje a gente tem, a exemplo do Protocolo de Kyoto: tarde, atrasado, não sei o quê, mas saiu.
P/1 – Pensando que a ECO-92 foi no começo da década de 1990 e você vem da década de 1980 já com um trabalho na área: você acha que foi importante também para a população? A população ficou mais próxima da questão ambiental, começou a dar um pouco mais de atenção ou não?
R – Não sei dizer se melhorou. Muita gente inclusive já fez várias avaliações nesse sentido e algumas usando a imprensa como medidor. O que se verificou é que, de fato, naquele período, um pouco antes, um pouco depois, o foco, o tempo que a imprensa dava para as questões ambientais era especialmente grande. E isso diminuiu sensivelmente, hoje talvez a gente esteja num processo reverso forte. Muitos jornais, não por esse motivo mas por falta talvez de recursos, têm diminuído o pessoal, e a área de meio ambiente, por exemplo, foi uma área que foi muito afetada, creio, e outras também, mas especialmente essa foi muito afetada. Então eu acho que para o grande público a questão ambiental chegou mas um pouco sem formato. Assim: “Ah, meio ambiente.” É aquela coisa daqueles discursos de que você às vezes dá risada. “Ai, a ecologia está piorando.” “Não, espera aí, ecologia é uma ciência. Você está falando da ciência que está piorando?” “Não.” “Ah, então é o meio ambiente que está piorando?” Quer dizer, essas palavras são mais utilizadas e os conceitos são muito confusos ainda acerca delas. Então eu acho que entrou na cabeça de todo mundo um pouquinho, mas muito pouco pelo que nós, que trabalhamos com isso mais diretamente, gostaríamos. Mas, claro, eu acho que fez uma diferença. Agora, tem aquelas coisas que são engraçadas e que são o reverso também. Na própria ECO-92 eu me lembro que havia muitas na área que não eram oficiais, no fórum — que eu já esqueci — que era no Aterro do Flamengo. Tinha inúmeras barracas de ONGs de tudo quanto era coisa esotérica, não sei quê, todo mundo lá meio vendendo o seu produto — no sentido, da ideia ou do produto propriamente ou do que fosse. Aí vinham escolas com vários alunos pequenos mesmo e a molecada ficava pegando aquele monte de papel, porque tinha tanto folhetinho... Daí a gente falava: “Não é para ficar pegando tanto papel.” “Não, papel é reciclável.” Tipo, pode jogar fora que vai ter outro. Então teve essas inversões de valores completamente indesejáveis. Claro, esse foi um exemplo, pode ser que tenha sido só esse mas, de todo modo, também gerou um pouco essa coisa do que é certo e do que não é certo, o que é desperdiçável e o que não é. Acho que mudou um pouquinho para o bem e nem sempre para o bem também.
P/2 – E aí você teve essa sua fase em que você trabalhou junto com o Fábio, voltou para o governo e em 1999 para a Aliança. Na Aliança você permaneceu até que ano?
R – Até 2003.
P/2 – E em 2003 você foi para onde?
R – Quando eu voltei para a Secretaria, voltei para a assessoria do Fábio e fiquei um ano trabalhando propriamente em assuntos gerais com ele. Aí eu assumi um programa de conservação da biodiversidade que tinha sido criado por ele na Secretaria e fiquei trabalhando como coordenadora desse programa. Depois que o Fábio saiu para se candidatar eu continuei na coordenação desse programa. Como eu disse, eu não estava afim de ficar naquele governo, saí fora, fui trabalhar na Aliança. Em 2003 foi o ano em que mais choveu na minha horta. Eu estava na aliança e poderia ter ficado, mas aí o pessoal da Secretaria do Meio Ambiente me convidou para trabalhar lá, o pessoal do Ibama me convidou para trabalhar lá e o pessoal do Ministério do Meio Ambiente me convidou para trabalhar lá. Claro, porque as circunstâncias eram favoráveis, estava mudando o governo, o governo Lula estava entrando. Os quadros não são muito já na área de meio ambiente e, naquele momento, o PT também estava certamente caçando gente, porque também não tem quadros, ou tem menos quadros. Mas algumas pessoas, todo mundo lá, [estavam] caçando todo mundo, e eu entrei na lista de várias pessoas. Acabei ficando em São Paulo. Daí teve mais uma coisa que é um pouco parecida com o próprio Fábio. Muito embora o Capô também tenha sido igual, porque uma das propostas foi do próprio Capô — que eu também acho que é um cara super inteligente, super articulado e difícil de trabalhar, então seria um ótimo desafio para mim. Mas acabou que outros motivos me fizeram ficar em São Paulo, e o secretário de meio ambiente, que é o Goldemberg, também é aquele cara assim, meio figurão, então também acho que dá para me desafiar legal com ele. Ele havia me convidado, então, para trabalhar na assessoria dele nas áreas verdes, ajudá-lo a tocar a parte verde, vamos dizer assim, da Secretaria. E eu fui. Aí, no começo do meu processo lá, houve um problema institucional no Instituto Florestal, o diretor teve que sair e eu tive que entrar. Foi assim: “Vai você.” Eu falei: “Bom, na verdade acho melhor eu não ir.” “Não, vai você.” “Não, então...” Aí fui e estou lá. Porque o quadro era bem diferente de como está agora, era bem mais complicado. Eu recebi muitos parabéns e pêsames simultâneos de todo mundo que eu encontrava. E estou lá no Florestal agora.
P/1 – Você pode falar um pouquinho como trabalha o Instituto Florestal?
R – O Instituto Florestal foi criado em 1886, já passaram dois séculos, então ele é uma instituição que traz essa história que é muito legal e, por outro lado, é muito pesada. E quando o Instituto foi criado, obviamente, a imagem do que se deveria fazer naquele momento histórico era completamente diferente do que é hoje. Mas algumas pessoas, também naquela ocasião, já tinham certa visão de futuro interessante. Então havia uma tendência bastante forte de fazer estudos com espécies exóticas aqui no Brasil, fazer hortos, estudá-las para fins diversos. E, particularmente, também começou a se mostrar uma necessidade cada vez mais presente de se ter madeira à disposição das atividades econômicas que ainda eram suportadas pela madeira, particularmente a indústria ferroviária. Então a história do Florestal, por um período, esteve relativamente ligada à própria história do despovoamento florestal do estado, mas também às atividades econômicas que causavam esse despovoamento. Não que o Florestal participasse delas, mas ele tinha que achar uma solução para essa atividade econômica não ser perdida. Então ele teve um momento de experimentação mais claro, e depois ele teve um momento de experimentação bastante claro, também, mas com espécies exóticas, pinos e eucaliptos. Foi o Florestal que praticamente introduziu essas duas espécies no Brasil. Aí teve uma série de eventos que dependeram dos governos mas que fizeram com que essas pesquisas fossem feitas pelo estado em áreas consideradas marginais para a agricultura. Então, aquela coisa assim: “Ah, o latossolo roxo que é a terra mais fértil, lá vai se plantar o que dá dinheiro, café, cana.” O que fosse naquela época rentável no mercado. E as florestas de pinos e eucaliptos iriam ser plantadas naquelas areias, naqueles solos mais pobres. Então se você olhar a história do Florestal, você vai ver que boas dessas áreas que ainda são do Instituto são áreas que estão, vamos dizer assim, no limite ou dentro de áreas de Cerrado do estado de São Paulo. O estado de São Paulo tem dois grandes biomas, por assim dizer, que são o Cerrado e a Mata Atlântica. A Mata Atlântica predominantemente mais do que o Cerrado. Mas o Cerrado é uma vegetação que é advinda, entre outros motivos, de solos pobres, então naturalmente você teria a instalação dessas unidades nesses solos, portanto, em cima do Cerrado. E em climas e posições geográficas diferentes, que é como você faz a pesquisa agronômica ou florestal. Então você pega uma espécie, planta ela aqui e ali. Se o solo lá for melhor do aqui ela vai crescer mais lá do que aqui, então você vai vendo que variedade daquela espécie se adapta melhor àquelas condições específicas de solo. O Florestal se desenvolveu muito buscando essas informações e passando essas informações para o mercado consumidor, inclusive para as indústrias. Talvez não com esse nome, mas que hoje são as de papel e celulose, e que têm um desenvolvimento tecnológico na área ao que a gente não chegou nem perto e nem pretende chegar, não estamos competindo nessa área. Na área de pinos nós somos melhores um pouco por algumas coisas, e temos florestas plantadas de pinos e eucaliptos, mais pinos do que eucaliptos. Isso dá uns 27.000 hectares no estado. Então o Florestal por um tempo teve essas áreas e algumas áreas de vegetação nativa, Campos do Jordão. Mas lá também se plantou pinos um pouco, a própria Cantareira, o próprio Parque do Jaraguá. Algumas unidades que eu não lembro de cabeça, algumas reservas que eram então chamadas assim porque eram áreas que você ainda não sabia bem o que faria delas. Então elas tinham um estado meio de limbo, depois se ia tomar uma atitude em relação. Várias no Parque da Serra do Mar eram reservas. E aí o Florestal foi, de certa forma, depois dos anos 1970, mais ou menos 1980... No meu ponto de vista ele começou a agregar para si, particularmente, quando ele vai para a Secretaria de Meio Ambiente em 1987, mas antes já, a agregar florestas nativas. Então ele tinha esses 27.000 hectares de florestas plantadas com áreas compradas pelo governo. O governo foi lá, desapropriou, plantou etc, e começou a incorporar áreas de floresta nativa além daquelas que ele já possuía. Então o Morro do Diabo — lá no Pontal do Paranapanema —, o próprio Parque da Serra do Mar — que foi criado nos anos 1970
— e várias outras unidades que a gente tem. A gente tem hoje 92 unidades, são aproximadamente 850.000 hectares compostos por áreas com vegetação nativa, que é a maioria, e algumas áreas — esses 27.000 hectares — com vegetação plantada. Então o Florestal faz essa conservação in situ, que a gente chama. A árvore fica onde ela nasceu, no local de origem, está lá, ficou lá e vai ficar o resto da vida. E se faz essa conservação ex situ, que são essas variedades de pinos e eucaliptos que são de outros países, mas que estão conservados aqui por nós. Inclusive, em alguns países, não existem mais essas espécies que nós temos aqui em São Paulo. Então a gente trabalha com essas duas vertentes da conservação e uma série de pesquisas associadas a isso. É um instituto de pesquisa. A formação dele, histórica, é de pesquisadores, caras que prestaram concurso no estado para trabalhar com silvicultura, densidade de madeira, com fungo, tudo relacionado à produção florestal mas na área de pesquisa, que é um modelo complicado porque você tem o cara que faz a pesquisa, mas você tem que ter o cara que administra e sempre deu mais valor, pelas questões formais, para quem pesquisava e não para quem administrava. Mas se você não tem a administração você não tem a pesquisa. Então muitas pessoas, eu creio, pesquisadores, sentiram e tiveram até problemas na sua carreira de pesquisador porque permaneceram na administração e não conseguiram ter trabalhos científicos que os pontuassem no futuro deles porque não dava tempo. O cara lá na administração não tem tempo. Bom, então o Florestal tem essas duas grandes áreas diferentes e que estão hoje, de certa maneira, em duas divisões nossas: uma é de florestas e a outra é de reservas e parques. Depois tem uma divisão de pesquisa que apóia, em certa medida, essas duas outras, uma divisão administrativa e uma parte de serviços de comunicação. Hoje talvez o estado, certamente, dentre os institutos, nós somos o que mais tem terras. Talvez, de todos os órgãos do estado, quem tenha mais terras ou quem tem que administrar mais território, somos nós. Existe uma lei, na verdade uma resolução federal, que diz que ao longo do perímetro dessas unidades, até que os estudos sejam melhor resolvidos, você tem que se manifestar sobre empreendimentos que estejam num raio de dez quilômetros daquela cerca sua. Dez quilômetros, você faz um raio e tem que se manifestar quando algumas coisas acontecem nessas áreas. Se você somar essas áreas de entorno, que nós chamamos, mais as áreas do IF [Instituto Florestal] e fizer um pacotão só, você pula de 850.000 hectares para quatro milhões de hectares. O estado de São Paulo tem 25 milhões e 500.000 hectares, então você está falando de uma porção bem significativa do estado. O que significa toda sorte de problemas porque você tem vizinhos indesejáveis, prefeitos, sem-terra invadindo suas terras, índio entrando na suas áreas, gente querendo mudar o seu diretor porque não gostou do jeito que foi tratado, visitante que gosta, visitante que odeia. Então, assim, é quase uma prefeitura de tamanho gigante espalhada pelo estado inteiro. E o problema é que o Florestal, de início, tinha um apoio do Tesouro do Estado, creio eu que até os anos 1970, 1980, relativamente bom para as suas necessidades. Só que o IF cresceu em termos de área e diminuiu em termos de recurso e de pessoal, por várias razões, desde políticas propriamente governamentais até morte de funcionário. O cara ficou velho, aposentou, não sei o quê, e essas reposições nunca foram feitas na medida em que as pessoas saíam. E num certo período histórico do Instituto eles tiveram a grande ideia — que se transformou depois numa grande desilusão e problemas sérios — que foi a seguinte: o Instituto é da administração chamada direta, é a coisa mais amarrada que tem no estado, é aquela coisa bem do estado, então ele tem que seguir certas normas. Cada uma tem seus motivos, mas que engessam bem você a fazer as coisas. E o Instituto sempre pôde vender produtos: camiseta, boné, semente, árvore, resina e outras coisas mais. Basicamente árvore, resina e semente dão o maior dinheirão, então o Florestal vendia essas coisas desde sempre. Porém, com o seu engessamento natural, ele tinha dificuldade em vender e gastar o dinheiro. Então qual foi a grande ideia? “Vamos criar uma fundação, porque a fundação tem uma maleabilidade legal muito melhor que a nossa.” Me parece que quando pensaram nisso, também nos anos 1985, 1986, eles queriam um grande setor de compras que eles mandassem: “Agora você compra aí tal coisa.” Os caras iam lá, compravam e devolviam para eles e você dava o dinheiro. E assim se fez. Criou-se então a Fundação Florestal. Só que, como outras fundações e outros lugares, a Fundação, com o passar do tempo, começou a se interessar por coisas que ela gostaria de fazer. Só que, assim como o IF, a Fundação recebe do tesouro muito pouco dinheiro. Só que o IF tinha madeira para ser cortada e a Fundação fazia esse corte da madeira. Então o que acabou acontecendo, ao meu ponto de vista: a Fundação começou a cobrar taxas administrativas muito altas, portanto ficava com o dinheiro do IF; e o IF, além de perder uma parcela do dinheiro, nem sempre via as compras que ele queria fazer com aquele dinheiro, porque não bastava apenas a burocracia do IF para prestar contas, mas também a que a Fundação começou a criar para ela se assegurar de tudo o que estava ocorrendo. Então, no fim das contas, você comprou a terra, plantou, cuidou para o bicho não comer, cortou, aí eu dou para você vender, você fica com seis e eu fico com quatro. “Bom, esse negócio não está bom, acho que tem algum erro aí.” E que acabou, ao invés do Florestal conseguir demonstrar isso e falar: “Olha, não está bom.” Ficou por anos numa discussão. “Ah, o Florestal tem que se juntar com a Fundação, a Fundação tem que se juntar com o Florestal...” Ficou um melê de discussão em que nunca se avançou muito. E o Florestal fez o quê? Ao invés de ele ir lá brigar, ele falou: “Ah, não, então eu vou esconder minha madeira.” Então ele começou a se suicidar financeiramente para não dar dinheiro para a Fundação, o que é uma lógica completamente absurda. Se você pegar os últimos anos, o passivo que você encontra hoje no Florestal de falta de equipamento, falta de treinamento, falta de manutenção, é imenso, é uma coisa que você não pode imaginar como é que alguém conseguiu administrar esse troço desse jeito. Bom, e eu entrei lá nessas condições, por isso que todo mundo me dava pêsames, porque, de fato, era um problema. Não tinha dinheiro para coisa nenhuma, você tem que administrar essas áreas. É super difícil você, no estado, lidar com essa situação de áreas longe porque você não consegue, muitas vezes você tem que comprar gasolina, não tem posto na cidade, quando tem posto o cara não vende gasolina, só vende diesel. Enfim, tem uma infinidade de questões que não vem ao caso descrever em detalhes. Mas não é fácil administrar 92 fazendas, vamos dizer assim, com pouco dinheiro. E com um monte de gente dando palpite, porque se elas fossem suas, você falava: “Não quero saber, ninguém entra aqui e não fala com ninguém.” Mas como elas são do povo, aí complica muito. Aí, em algum momento, com alguns argumentos que eu consegui ter dos próprios funcionários do IF — na verdade, eles que me alertaram para uma série de coisas —, conversando com o secretário a gente viu o seguinte: “Olha, eu tenho uma divisão administrativa que pode vender as coisas para mim, legalmente eu posso vender. E a Fundação tem uma divisão administrativa que vende para mim. Então eu tenho duas divisões para fazer a mesma coisa, e essa divisão que eu estou usando me cobra muito mais caro que esta que eu poderia estar usando, ou seja: “Que tal se eu vender a minha própria madeira e puser o dinheiro na minha própria conta?” Aí o secretário topou. Só que aí a Fundação, que já estava vivendo nesse processo de usar o dinheiro do Instituto Florestal, ficou a pé, porque do dia para a noite falou: “Olha, meu amigo, agora acabou a jugular, se vira.” Aí criou-se uma crise, tudo aquilo, mas o Florestal falou: “Maravilha, então agora vamos vender nossa madeira de verdade.” Porque até então os caras estavam escondendo a madeira, como eu falei. Então a gente montou um programa de manejo dessas florestas, que é de corte de mil hectares por ano e reposição subsequente. Pinos, para ele estar em ponto de venda, ele mais ou menos leva 25 anos. Então quer dizer que em 25 anos eu vou ter os 27.000 hectares manejados, com várias idades de crescimento e vou ter para sempre mil hectares para serem vendidos por ano, pelo menos. E fora isso o pinos é uma árvore que dá resina que tem um valor de mercado altíssimo, porque a resina se desdobra em dois subprodutos, que são: o breu, que faz uma série de coisas, entre o pneu, e o chiclete; e a terebentina, que faz coisas mais caras que são remédios, cosméticos e outras coisas, é química fina. Hoje o valor da resina é muito alto, então a gente consegue explorar a floresta enquanto ela está crescendo ao longo dos vinte e cinco anos e depois vende a madeira, que também tem em falta no mercado porque o plantio de exóticas é menor do que o consumo. Então a gente tem conseguido alcançar valores super bons de vendas desses produtos. De um orçamento que a gente tinha até 2003, de aproximadamente seis milhões entre o Tesouro e o que a gente conseguia produzir vendendo madeira pela Fundação, a gente passou para esse ano para 25 milhões só do IF e mais quatro do Tesouro. Então o IF, hoje, pode se dizer autossustentado. A gente até fez um evento recentemente, compramos lá treze tratores cheios de coisas de que a gente precisava e o que eu disse para o governador foi: “Olha, governador, estes tratores foram comprados com dinheiro que o estado produziu, não a imposto.” O que é muito legal se você pensar que o estado brasileiro é sempre um usurpador do próprio cidadão. Quer dizer, se a gente computar salários nisso, vai diminuir essa fatia. Mas, de todo modo, ainda que eu pagasse os salários dos meus funcionários, eu teria grana suficiente para poder manter o instituto funcionando sozinho.
P/1 – E, Ciça, pegando o que você falou do Instituto Florestal. Na verdade, vamos chutar assim, 95% da população não tem a mínima noção do que o Instituto Florestal faz. Aí eu vou fazer um gancho, um paralelo. Tanto o Instituto quanto todas as outras questões de que a gente está sempre falando, a questão ambiental... Toda essa importância, as pessoas não têm a fundo, não têm essa informação. Como você vê isso? O que falta para que as pessoas…?
R – Eu acho que, no caso do IF em especial, tem uma falha muito grande de anos também, que é você não ter dado atenção para essa área. Por exemplo, nós não temos nenhum jornalista, nosso site é ridículo porque ele é feito por pessoas que não têm a menor noção do que deveria ter num site, então os caras colocam um texto lá que você não vai ler nem a primeira linha. A gente não tem o costume de fazer esse tipo de divulgação. Mas quando estávamos no PROBIO [Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica Brasileira], que era esse programa de biodiversidade na secretaria, nós buscamos fazer isso diferente. Então falamos: “Não vamos usar a assessoria de comunicação da secretaria, vamos usar uma assessoria de comunicação contratada.” E a gente tinha feito um trabalho super grande com o Cerrado, tinha uns resultados muito legais, então a gente contratou um pessoal, uma assessoria de imprensa, para divulgar os resultados. Foi o maior inferno, porque você chegava à redação de um jornal e o repórter falava assim: “Ai, já estou cobrindo meio ambiente, porque eu estou cobrindo rodízio.” Aí você fala: “Mas meio ambiente é um pouco mais amplo que rodízio, entendeu?” “Ah, não, mas eu já estou cobrindo meio ambiente, não vou cobrir mais.” Então tem, acho, que uma reticência muito grande dos jornais por notícias que venham do governo, a não ser que sejam desastres ou catástrofes. Por meio ambiente, porque você tem que saber lidar muito bem com a matéria para não ser uma coisa que não interesse. e dos próprios jornalistas, em muitos casos, há um completo desconhecimento total. O cara te faz umas perguntas que você tem vontade de chorar, falar: “Meu, vai estudar primeiro antes de vir falar comigo.” Porque é muito... Então eu acho que existe essa reticência com as boas notícias e fica sempre meio parecendo aquela coisa: “Ah, o governo está querendo fazer campanha. Ah, o Alckmin vai sair para presidente, por isso que ele está fazendo isso.” Entendeu? Isso serve para o Alckmin, para qualquer outro. Então eu acho difícil o estado conseguir espaço no jornal. Estado digo poder público, quando não for coisa do tipo falcatrua ali, roubo lá, falta de atenção aqui, não sei o quê mais. Acho que essa linha editorial brasileira prima um pouco por isso. E aí tem essas coisas de desconhecimento mesmo. Saiu na Veja de quinze dias atrás, se não me engano, a Veja São Paulo, falando de Ilhabela. A capa é “Ilhabela”, não sei se vocês viram. Tem umas cinco páginas de matéria e nenhuma cita que existe um parque na Ilhabela. O parque da Ilhabela ocupa 80% do território da ilha. Então a menina fala: “Ah, porque Ilhabela tem uma Mata Atlântica maravilhosa...” Aí você fala: “Será que ela não conseguiu se lembrar de perguntar: por que será que a Ilhabela tem uma Mata Atlântica maravilhosa?” Não lembrou, então não pôs nada. E não teve nenhum editor que depois da matéria dela pensou nisso, enfim. Então também é um pouco de despreparo da população. Claro, a gente, como eu falei, não tem uma assessoria de imprensa legal, no IF menos ainda que na Secretaria, a gente não está acostumado a fazer esse tipo de trabalho. E é muito difícil, porque é aquela coisa. Eu tenho que apagar tanto incêndio que eu não vou ficar fazendo release para tentar ver se alguém quer pôr no jornal, ou quer fazer uma matéria, coisa parecida. Nós somos muito usados para fazer coisas, toda hora alguém ou quer fazer ou uma novela na Picinguaba, que é o único lugar mais vegetado que você tem na costa. O cara vai fazer uma novela de ocasião. Agora tem uma aí acontecendo, como aconteceu naquela “A muralha”, na Picinguaba. O cara vai fazer uma imagem de mato, então ele vai aos parques, mas isso obviamente não é a veiculação do parque e das coisas que a gente faz, é muito mais do assunto que o fulano lá está querendo veicular. Mas, por exemplo, vocês vão para o litoral, todos vocês algum dia foram. Qualquer caminho que você pegue para ir para o litoral, Imigrantes, Taubaté, Tamoios, Cunha-Paraty — Cunha-Parati já sai fora de São Paulo —, qualquer outra, Anchieta... Todas passam dentro do Parque da Serra do Mar. Então todos vocês já passaram dentro do parque da Serra do Mar e nunca nem sequer perceberam porque, primeiro, você está numa autoestrada em que você está preocupado com outra coisa, segundo, a sinalização para isso é muito pouca e, terceiro, muitas vezes aquilo não diz nada para o cara. É uma confusão conceitual que é causada pelos próprios cientistas, pelos próprios técnicos, que é um monte de nome que ninguém sabe qual a diferença. Então todo mundo chama tudo pela mesma coisa, acha que tudo é a mesma coisa. Falta da parte institucional um pouco mais de cuidado com isso, sempre faltou.
P/2 – E, Ciça, em sua opinião quais são as perspectivas para a Mata Atlântica daqui por diante?
R – O que a gente usa dizer é que se o desenvolvimento dos estados onde existe Mata Atlântica ocupou 93% do território original da Mata Atlântica, se eles precisarem desses 7% que faltam serem destruídos para se viabilizar, a gente está roubado. Porque se com 93% eles não deram conta não vai ser sete que vai resolver. Ao mesmo tempo, em São Paulo — embora isso possa ser discutível — a gente percebeu nos últimos anos, uma estagnação do desflorestamento e até um acréscimo de florestamento. Só que você vai falar: “Ah, mas onde? Por quê? Como?” Primeiro que você não consegue enxergar, nós não vamos sair: “Ah, ali, aquele capão nasceu e não estava.” São parcelas de áreas que eventualmente foram largadas da atividade agrícola que faziam e estão regenerando-se, mas isso você não percebe muito claramente. Ao mesmo tempo, você tem uma questão metodológica associada, então antes os equipamentos permitiam certas coisas e hoje eles permitem coisas melhores. Você começa a aferir melhor os seus dados e, eventualmente, o acréscimo era apenas resultante da aferição da metodologia e não tanto de um crescimento real. Então também tem essas coisas a serem ainda discutidas. Mas a nossa perspectiva pelo menos enquanto Instituto Florestal e Secretaria é fazermos uma atividade imperialista, acrescer a Mata Atlântica a alguns pontos onde ela não está mais. E, para isso, a gente tem alguns estudos que vão apontar onde isso se dará com mais efetividade. Tipo: “Precisamos ligar aquele capão com aquele lá, então vamos fazer um corredor aqui porque isso é importante, porque os macacos que estão lá não conseguem encontrar com os macacos que estão aqui e, portanto, eles vão sucumbir necessariamente porque vai haver uma contaminação genética, a população vai desaparecer. Então se eles puderem se encontrar numa situação favorável, isso muda tudo.” Tem linhas de pesquisa nessa direção. Algumas empresas ou empreendimentos grandes, para conseguirem obter as licenças que são exigidas, estão tendo que, em contraposição, fazer coisas que os proprietários anteriores das áreas onde eles se instalaram não fizeram. Por exemplo, o oeste de São Paulo hoje é um foco prioritário para as indústrias de cana porque, mais uma vez, tem toda essa questão do álcool e tudo isso. Então elas estão se deslocando, muitas delas, para o oeste, sobre áreas de pastagem. Esses caras da pastagem, não só, mas eles também, não cumpriram aquele tal Código Florestal lá de 1934, que eu mencionei, que era por exemplo deixar as áreas ao longo dos rios vegetadas. Então, o que acontece? Agora, quando a indústria se instala lá, você fala: “Ah, é? Está bom, você quer se instalar? Você precisa da licença. Então você vai ter que recompor esse troço aqui e mais aquilo ali e mais aquilo lá.” Então, naturalmente, até por você alterar a atividade e em alguns casos, fazer com que a atividade deixe de ser ilegal para ser legal, você consegue exigir certos aspectos da legislação que passaram lisos em outros momentos. Então eu creio que isso para São Paulo, mais outros estados, vai permitir que a gente consiga melhorar um pouco a cobertura florestal da Mata Atlântica em áreas muito particulares, específicas ainda. Ninguém é louco de imaginar que, sei lá, em Ribeirão Preto você vai deixar de ter a cidade para ter... Não é isso. Mas alguma coisa vai ser possível de ser feita. Mesmo algumas interpretações legais eram muito restritivas e hoje já se demonstra: “Olha, melhor você deixar o cara fazer desse jeito, que não é o ideal para chegar no ideal, do que você querer que ele faça e ele não vai fazer nunca, como nunca fez.” Então algumas alterações, até de conceitos das pessoas, estão acho que ajudando que a Mata Atlântica consiga manter-se no que está, mas acrescer um pouco territorialmente também. Uma coisa legal que eu acho que está acontecendo e é uma coisa meio constante não só na Mata Atlântica, é que muitas pesquisas continuam sendo feitas nessas áreas e descobertas novas têm acontecido de coisas absolutamente inusitadas. Por exemplo, o diretor que me substituiu lá no Instituto Florestal, o João Baitello, descobriu uma árvore nova na Mata Atlântica. Quer dizer, não é que ele descobriu um fungo que nasce na orelha do camundongo que só aparece de noite. Não! É uma árvore que está lá o dia inteiro, mede cinco metros de altura e que era classificada como uma outra coisa diferente ou que nem era classificada. Ainda existem exemplos na Mata Atlântica que demonstram que, primeiro, as pesquisam têm tido resultados e, segundo, que a gente não conhece nada. Então continua sendo importante se buscar compreender a Mata Atlântica apesar do estado fragilizado em que ela se encontra.
P/2 – Voltando agora um pouquinho para a SOS, durante esses dezoito anos ela desenvolveu n campanhas. Você como parte também tem conhecimento disso. Eu queria que você contasse para a gente se teve alguma que te marcou de maneira especial, que tenha despertado a sua atenção de uma maneira mais forte.
R – É difícil dizer porque tem muitas coisas. Eu me lembro particularmente de duas mais recentes, talvez até porque eu já estivesse na SOS. Eu não lembro nem exatamente do que se tratavam as campanhas, eu me lembro do ato em si. Porque normalmente o que tem acontecido, no meu ponto de vista, no caso da SOS... Porque algumas coisas não andam, algumas campanhas são as mesmas. Então, aprovação da Lei da Mata Atlântica, faz doze, catorze anos, que se discute a mesma coisa. Então toda vez que você tem onze de junho — que é Dia do Meio Ambiente —, eleição para prefeito, vereador, eleição para deputado estadual, deputado federal, presidente. Nessas ocasiões você vai lá com a mesma bandeira: “Olha, faz a Lei da Mata Atlântica.” Então não é propriamente um ato, mas é muito mais o tema. A Lei da Mata Atlântica proporcionou inúmeras campanhas buscando ser alcançada e, na verdade, em certa medida, não atingindo sucesso pleno, porque não se aprovou a Lei. Se fez uma parte da aprovação mas não se efetivou o conjunto. Recentemente a gente fez também uma campanha, que eu estava já na SOS, no Minhocão. Foi uma coisa interessante mas era também buscando chamar a atenção das pessoas para o voto consciente na área de meio ambiente. Mas é aquela coisa... É difícil você trabalhar numa cidade com esse tamanho e dizer que você teve um sucesso. Você tem que ser muito grande, tem que ser uma rede de televisão para alcançar as pessoas. Quem dirá, então, nos outros estados. A SOS, eu acho que hoje ainda, consegue ter uma inserção muito legal na memória das pessoas mais por campanhas do início da sua história do que das campanhas atuais. Até porque ela hoje disputa isso um pouco mais com ou outras campanhas de cidadania, de outra natureza, ou de até outras ONGs, eventualmente. Então eu acho que ela foi muito mais efetiva nisso no começo da sua existência, buscando aquilo lá que eu acho que foi o foco inicial, que era: “Mata Atlântica existe, ela está assim e aqui.” Hoje em dia não sei, propriamente, qual foi a campanha mais marcante para mim.
P/2 – E fazendo um balanço da Fundação desses dezoito anos de atuação: primeiro, na sua opinião, qual é o saldo disso tudo? E, segundo, existem pontos que na sua opinião necessitam de um reformulação daqui para frente?
R – Eu acho que houve um salto enorme. A SOS é uma das protagonistas, não é única, mas é muito importante, que foi dizer que existem vozes fora do governo e que têm algo a dizer, que devem ser ouvidas, criar esse espaço até um pouco forçadamente em muitas ocasiões, e garantir que o espaço seja mantido. Nesse sentido eu acho que o saldo da SOS é muito positivo e que, por sua vez, traz um troço que eu acho que é também muito do brasileiro. Não sei se de outros países, mas que é aquela coisa assim. “Ah, eu não estou preocupada com a questão do meio ambiente porque tem aqueles caras lá da SOS que cuidam.” Ou do Greenpeace, ou sei lá. Eu acho que as pessoas funcionam um pouco assim, sabe? “Ah, eu já fiz minha parte, porque eu joguei minhas latinhas pet no lixo pet.” Mas, quando for para brigar por uma causa x ou y, tem aqueles caras lá,que gostam de fazer bagunça, que vão lá, se atiram do navio, que vão lá, pintam a cara de verde, sei lá o quê. Então eu acho que também existe, e talvez exista para qualquer movimento social no Brasil, não só na área de meio ambiente, um pouco essa posição meio confortável da sociedade mais geral. Que o fato da SOS e outras terem sido relativamente efetivas, ou totalmente, para algumas situações, agravou, porque aí o cara fala: “Ah, não estou nem aí, alguém cuida disso aí.” Por outro lado, eu acho que a SOS não achou o foco agora, ultimamente. Depois disso que eu conversei, que foi no início da SOS, ela perdeu um pouco o foco. Ela inventou muitas coisas muito interessantes, mas todas, talvez, competindo entre si e não com uma inserção tão forte quanto ela conseguiu ter no momento anterior. Então você vê, por exemplo, tem o trabalho lá de Clickarvore. Uma ideia legal para caramba, as pessoas hoje ligadas na internet, é fácil, não sei quê. Mas quantas pessoas hoje sabem dessa campanha da SOS? E de outras campanhas parecidas com essa - que eu mesma não saberia muito mencionar, até porque eu já saí de lá, perdi um pouco o pé? Eu acho que a SOS precisava refocar mesmo, sabe?Uma coisa que eu sempre acho, nos últimos anos, acerca das ONGs, é que, o que no meu ponto de vista aconteceu foi que as ONGs que conseguiram sobreviver nesses anos todos, acharam um nicho de atuação e um nicho de financiamento. Então eu estou aqui com o meu financiador, não largo ele por nada e não vou me meter no nicho do outro cara lá. E assim foi. Então eu acho que acabou de alguma forma, ficou segmentada a ação dos ambientalistas, particularmente das ONGs. E não se tem um fórum onde uma discussão sobre o movimento ambientalista aconteça, não existe um espaço, ou uma liderança hoje que diga: “Vamos discutir. O que a gente está fazendo aqui? Por que não existem mais pessoas de dezoito, vinte anos interessadas em trabalhar conosco do que houve há tempos atrás? Será que é um problema de abordagem? Será que é um problema do quê?” Essas discussões eu não vejo serem feitas, e nas grandes associações de ONGs, ABONG [Associação Brasileira de Organizações não Governamentais] e outros metiês que eu particularmente nem frequento, porque eu nunca estive próxima deles, eu também não vejo isso acontecer. E aí você vai nesses, tipo, fórum mundial, quer dizer, é um pout-pourri de assuntos, que não tem nenhum que você lembre: “O que era mais importante, hein?” “Hum, sei lá, tinha tanta coisa.” E acho que a SOS está passando um pouco por essa fase, sabe, de tanta coisa... Então tem a coisa do Tietê, que também foi uma campanha em que a SOS mobilizou muita coisa, que o Mário sempre menciona, repete e tal. Mas aí o negócio ficou um pouco assim, sabe: “Ah, conseguimos uma vitória, conseguimos conservar a praça do bairro tal.” Tudo bem, legal. Mas será que é isso que a gente quer fazer? Será que a SOS não tinha que ter um papel mais articulador, mais norteador de outras ONGs, de apoio institucional à algumas ONGs? Tudo bem, a coisa da grana é difícil, às vezes as ONGs também não existem, às vezes você não consegue confiar nos caras das ONGs. Enfim, tem toda a sorte de coisas. Eu acho que o problema hoje, que eu apontaria, de dificuldade para a SOS continuar mantendo uma liderança, um nome, uma marca no mercado bem posicionada, pensando numa linha mais marquetológica, é dizer: “Olha, é por aqui que a gente vai e no máximo a gente escapa um pouquinho para a esquerda, um pouquinho para a direita.” Eu acho que está muito pulverizado.
P/2 – E, levando isso em conta, o que você disse até agora, onde você gostaria de ver a SOS daqui a dez anos, por exemplo?
R – Eu acho que, por exemplo, a SOS deu um passo fundamental para a Mata Atlântica que foi a elaboração do Atlas da Mata Atlântica, que ainda é um carro chefe da SOS. Só que, assim, tudo bem, a tecnologia muda, às vezes não tão rápido, ou às vezes muito rápido, você não consegue acompanhar, mas eu acho que mesmo em relação ao Atlas, a SOS deveria ter dado alguns passos além. Ou mudando a escala, ou tratando de pontos, sei lá, mudar de um para cem mil, de um para cinquenta mil, depois de um para cinquenta mil, e de um para 25, que você consegue ver outras coisas acontecendo. Ou como eu te falei: “Vou dar todo o ferramental para o cara lá da Paraíba porque eu não vou conseguir fazer o mapa, mas se eu der o ferramental ele vai fazer, e a gente vai fazer esse mosaico no qual eu dou 50%, 80% e os outros vão dar o que for suficiente para o resto.” Essa coisa da articulação da SOS com as demais ONGs da Mata Atlântica, principalmente, ela se perdeu um pouco. A rede de ONGs da Mata Atlântica, que foi uma proposta que buscava um pouco isso — porque é uma rede e portanto não é da SOS —, às vezes funciona melhor porque a pessoa que assume nem sempre é a pessoa que consegue dar um gás e tal. Então eu acho que SOS tinha que ter uma força mais presente nessa articulação dessas outras ONGs sem ser com isso, a mandante da história, tipo: “Eu acho que é assim, vocês tem que fazer do jeito que eu quero.” É um pouco aquela coisa de “vamos tentar focar as nossas ações e fazer com que o nosso dinheiro e os nossos esforços rendam mais”. Então eu acho que essa coisa de visão geral seria uma coisa que a SOS teria que manter um pouco mais do que ela tem feito, no meu ponto de vista. Com todas as dificuldades que eu sei que existem, que não é fácil, mas aí seria exatamente investir nisso. Esses projetos menores, demonstrativos, que alguns deles a SOS tenta fazer, eu tenho dúvidas da eficácia desse troço, porque é tão pontual. Tudo bem, você pode treinar aquilo lá: “Treinamos fazer esse tipo de atividade com a comunidade X.” Então está bom, então fizemos? Tem que dar continuidade e tem que espalhar essa capacitação para as outras áreas. Mas a sensação que eu tenho é de que às vezes acontece um projeto porque você teve um oportunidade, aí você faz bem, pior ou melhor. Acabou o projeto, isso não gera, vamos dizer assim, um capital para a SOS usar lá na frente depois. Porque as pessoas se perdem, às vezes você tem uma pessoa contratada pelo projeto, o cara vai embora, leva a memória da história, não tem o registro tão bom quanto se gostaria de ter — o que talvez seja impossível, também, porque é difícil isso —, mas... Eu acho que a SOS aglutina coisas, mas ela mesma pulveriza depois. Então não vai. Eu acho que o papel dela seria muito mais voltar a ter esse papel articulador porque a SOS não vai aumentar os seus quadros, me parece. Essa é uma política que já tem alguns anos lá. Então ela tem que ser aquele cara que fica sacando o que está acontecendo nas políticas públicas nacionais, fica cutucando aqui, cutucando ali, e ajudando os caras que podem ajudar a melar, querer alguma coisa acontecer. Porque se ela for fazer tudo, ela não vai fazer. E esse negócio dos projetos pequenos, de menor quantidade de dinheiro ou área de abrangência, eu acho que as ONGs menores seriam mais adequadas para fazer porque, inclusive, estão nos locais muitas vezes e você não está, você está na cidade.
P/1 – Na verdade está no fim do depoimento. Você não falou alguma coisa que você acha que é importante, alguma coisa que a gente não perguntou, à que você gostaria de voltar, de falar?
R – Não. Acho que, de modo geral, as minhas impressões que me afligem mais, positivamente ou negativamente, deu para dar um alô. Com relação à SOS em particular mas com relação à questão ambiental também. Não acho que teria muito mais coisa, não.
P/1 – Você queria deixar um recado para a SOS por esses dezoito anos? Alguma coisa que ela deva fazer, ou que ela não deva? Parabéns pelo que fez?
R – A SOS manteve uma coisa que eu acho que talvez nenhuma outra ONG tenha mantido de forma tão interessante. Primeiro eu gostaria de fazer menção a uma coisa que acontece na SOS, ainda que diminuta, muito resistente e importante, que é a questão do voluntariado. O trabalho do Belo lá, eu acho que ele é fundamental para uma coisa que a SOS oferece para as outras pessoas de outras ONGs, ou do estado, ou de amigos, que é você ter um espaço para onde você sempre pode voltar. Então se você olhar a SOS, no meu ponto de vista, hoje: para mim é muito fácil ir lá e ficar lá o dia inteiro conversando com todas as pessoas que estão lá, as novas ou as velhas, porque é meio minha casa. E, assim como eu me sinto, eu creio que outras pessoas também se sentem. Então a SOS conseguiu manter ao longo desses anos, talvez, porque a casa seja a mesma, porque muitas pessoas estão lá há muito tempo, por outras razões. Por exemplo, essa coisa de voluntariado e outras coisas. Uma relação com as pessoas, ainda aquelas que, claro, algumas nunca mais tenham voltado, por mil razões, ela consegue aglutinar as pessoas no seu entorno por vários meios. Eu acho isso muito legal, diferente das outras ONGs. As outras ONGs eu acho que são muito mais circunspectas nesse sentido, muito mais herméticas. A SOS é um pouco, no bom sentido, a “casa da mãe Joana”, no sentido de que você vai lá, toma café, fala com a Erundina, vai lá, dá um tapa na orelha do Mário, fala com a Márcia. Então você consegue ter certa intimidade constante e renovada. Eu acho que isso é bem legal, porque nessas horas é que você consegue criar algumas coisas boas, também.
P/1 – Bom, Ciça, se você não tiver mais nada para falar… (risos)
R – Adeus.
P/1 – (risos) A gente te agradece por você ter vindo, por você ter dado o seu depoimento.
P/2 – Obrigada.
R – Legal, foi gostoso.Recolher