Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Lucília Francisca de Souza
Entrevistada por Cláudia Leonor e Tiago Majolo
Serra do Cipó, 07/07/2007
Realização: Museu da Pessoa
MB_HV018
Transcrito por Lúcia Nascimento
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
P1 – Então, vamos começar Lucília? Eu queria que a senhora dissesse para a câmera e para a gente o seu nome completo.
R – Meu nome é Lucília Francisca de Souza.
P1 – E onde nasceu?
R – Nasci em São Sebastião de Águas Claras.
P1 – E quando?
R – 12 de agosto de 42.
P1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai chamava Antônio Francisco de Assis. Minha mãe, Miriam Francisca Miranda.
P1 – O que faziam?
R – Meu pai era lavrador, mexia com carvão. E a minha mãe era doméstica, do lar.
P1 – Sabe a história deles, como se conheceram?
R – Não, deles, eu não sei. Porque eu sou a filha mais nova deles. Então eu nunca tive essa curiosidade de aprofundar como foi a vida deles. Eu só sei que nós morávamos no mato mesmo, em uma roça mesmo. Meu pai mexia com carvão, a minha mãe fazia doce, mas tudo lá na roça. Morei com eles até os sete anos, a gente morou na roça. Depois dos sete anos, eles mudaram lá para São Sebastião de Águas Claras. A gente tinha uma casinha por lá e já estava na época também de eu ir para a escola. Então mudamos para lá, eu tinha sete anos. E lá começou a vidinha da gente. Eu brincava de roda, morava pertinho do grupo. Tinha hora de aula. Ajudava a mamãe a fazer doce. Terminava os doces a gente ia brincar, só que não brincava até tarde, porque não tinha luz, era tudo escuro. Brincava até ali umas oito horas e ia para casa, ia dormir. A gente brincava, tinha a vidinha da gente. Quando a gente não estava brincando, a gente ia para o córrego lavar uma roupa, ia para o mato buscar uma lenha. Era pequena mas já fazia os afazeres da casa. Mamãe punha a gente para torrar café, fazer comida e tinha que dar conta. Aquele que não desse conta, punha num banquinho, subia em um banquinho para mexer a panela lá no fogão. E assim foi a vida da gente. Ir para aula, brincar, ajudar no serviço da casa, até que a gente foi crescendo, saiu da escola. Saí da escola, eu estava com 11 anos. Fiz só até a terceira série, porque não tinha também mais grade de estudo. Era só a terceira série só, era a última, e ia sair e pronto, ia ficar à toa. Então para ficar muito à toa a gente arrumava uns (carrolé?), fazia uns bordados, ajudava na casa, aprendia a bordar. Ninguém nunca me ensinou, aprendi com minha espontânea vontade. Olhava o que os outros faziam, passava a mão na agulha e ia fazer também. E assim foi a vida, até que a gente foi crescendo, veio a mocidade. Aos 19 anos, eu casei. Não freqüentava baile porque papai não deixava. Papai nunca deixou a gente dançar. Eu gostava, adorava dançar, (risos) mas ele não deixava, não. Nós nunca freqüentamos um baile. Então, a gente casou muito nova, 19 anos. Eu fui morar perto deles mesmo. Continuou a vidinha de casada, ajudando eles. Era um ___, eles também me ajudando, porque logo de início eu tive o primeiro filho, ele sofria de paralisia infantil. Foi a minha luta. Ia em Belo Horizonte, faziam massagem nele, voltava para casa de pé, andava nove quilômetros a pé, indo e voltando todo dia. Depois eu fui ficando cansada. Ia segunda-feira, o médico proibiu de fazer as viagens, porque ela, quando uma menina nasceu na estrada, numa cidade que a gente fazia a pé, aí eu parei com as massagens no menino. Continuei em casa. E nunca mais fiz as viagens porque eles foram crescendo. Veio o terceiro filho. É intervalo de dois em dois anos, mas sempre tinha o mais novo que eu tinha que carregar. Então, eu carregava três meninos. Era um no braço, o outro no outro braço, e a menininha agarrada na saia, que eu não usava calça, eu usava saia. Eu cheguei a usar calça esporte quando eu tinha acho que uns 17 anos. Nunca tinha usado uma calça esporte. “Ah, vou vestir e quase morri de vergonha de sair na rua de calça esporte”. Vestido justo, vocês sabem o que é vestido justo. Também foi a mesma coisa. O primeiro vestido justo meu, eu cheguei na porta, olhei assim e falei: “Ah, não! Não vou sair na rua não”. Voltei e tirei meu vestido. “Não tira, não. Está bonito”. “Não, está feio”. Vou vestir meu vestido rodado mesmo. Era os mesmos moldes que a gente usou quando era mocinha. Eu até tirei as três saias, as duas saias, teve só a rodinha. Então, nessa época em diante que eu comecei a usar a calça esporte, tinha uns 17 anos. E não gostava muito, não, sabe? A gente brincava muito. A minha vida de criança foi muito divertida, porque meu pai não impedia a gente de brincar, não. Brincando, deixava a gente a vontade. Quando já era tarde, era umas cinco horas, seis horas podia brincar, porque durante o dia também não tinha liberdade para brincar, também não. Nós brincávamos de roda, essas coisas. Nós cantávamos assim: “E o professor, a professora ensinou eu. E o professor, nós queremos aprender. Minha mãe me pôs na escola para aprender o be-a-bá, e a mestra me ensinou na janela namorar. E o professor, a professora ensinou eu, ai, professora nós queremos aprender. Alecrim verde arrancado chora a terra que nasceu. Eu também, eu estou chorando por um amor que já foi meu. Ai, professora, a professora ensinou eu, ai professora, nós queremos aprender”. A outra: “A dança da carranquinha é uma dança estrinbelada. Quem tem o joelho em terra só não pode ficar palmada. Maria balança a saia, Maria levanta os braços, Maria coça a cabeça, Maria me dá um abraço”. (risos) Esta é a outra: “Nesta rua, nesta rua mora um bosque, que se chama, que se chama solidão. Dentro dele, dentro dele mora um anjo, que roubou, que roubou meu coração. Se eu roubei, se eu roubei teu coração, tu roubaste, tu roubaste o meu também. Se eu roubei, se eu roubei teu coração é porque, é porque te quero bem”. (risos) Essas eram as músicas que a gente cantava. Tem mais, tem as modinhas antigas, que a gente cantou lá no Carés. Essa história está escrita, porque a gente escreve, porque senão fica cantando as coisas repetidas. Então cantou, a gente pode esquecer e não cantar. Então escrevi e deixei no caderno as músicas que já foram cantadas. E tem uma que eu cantei lá na roda de viola. Ele é dos Griôs. Foi na praça da Igreja. Nós já fizemos duas rodas de viola na praça da Igreja. É todas as últimas quarta-feiras do mês. Então lá cada um canta uma coisa, o que quer. Então dos Griôs, tem lá duas ou três mulheres, só duas que cantaram. Eu e a outra colega, a terceira não quis cantar, disse que não sabe cantar, não lembra mais. É mais nova do que eu, mas diz que não lembra. Então eu cantei uma lá assim: “Já foi meu o amanhecer do dia quando eu vi com alegria dois camelos a bodiar. Quando em cauda de ternura, eu casei, trocava a ___, de tanto a gente se amar. De repente badalada onde a luta vai provar a _____ do amor. Surge um gado e é “marvado” passando no Corcovado e a canarinha levou. O canarinho coitado, “avoou” desesperado, perseguindo o malfeitor. Depois mais veio voltando, muito triste, soluçando, num gorjear cheio de dor. Dos olhos do canarinho, eu vi molhado os cantinhos de chorar pelo seu bem. Uma dor foi me apertando, e meus olhos foi piscando, sem querer chorei também”.
P2 – Quem que ensinava essas músicas para vocês, quando vocês eram crianças?
R – Ah, eu tinha um cunhado que era violeiro. Ele morava perto da casa do meu pai. Então ele ia para lá e cantava para a gente. A gente escutava outras pessoas cantarem. A memória estava boa e a gente aprendia também. Só que se eu ouvir uma música, eu não consigo decorar ela. Eu posso até cantar, mas se for com ela escrita em um papel. Se for para eu gravar ela toda, eu não consigo. Então, se eu quero aprender, eu tenho que escrever. A gente aprendeu a cantar várias dessas, e essa mesmo nós cantamos lá na roda dos Griôs. E depois nós cantamos uma outra também. Pode cantar?
P2 – Pode.
R – Estou pensando como que ela começa. “Na ida de 12 anos, José e Maria se amavam mais. O velho, pai da moça, com isso não concordava. As cartas que ela escrevia com tristeza ela contava. É melhor nós dois fugir que outro jeito não se achava. Combinaram de encontrar na mata do Trombador. Maria saiu de casa, mas só te acompanhou. Bem na volta do caminho uma onça lhe pegou. E o seu chalinho branco bem naquele lugar ficou. José conheceu o chalé. Pela mata foi entrando, trançado seus cabelos na picada foi achando. Chegou na beira do rio, do outro lado foi nadando. Naquela gruta de pedra, a onça estava esperando. José viu Maria morta e dentro da gruta pulou. Arrancou do seu revólver, nesta hora ele negou. Arrancou do seu punhal, com a fera ele lutou. Ali os três corpos sem vida, dentro da gruta ficou. Foi chegando os caçadores, José ainda podia falar. Mandou avisar sua família, que não podia a voltar. Maria morreu por mim, por ela devo findar. Não casamos aqui na terra, mas no céu nós vamos morar”.
P2 – Que lindo! É sempre de mão dada em roda que canta?
R – Nós cantamos na roda. Nós estamos sentadas lá na praça, cantamos. Outra hora, quando é música de roda nós damos a mão, pra brincar. Igual essa última roda que nós fizemos lá do Griô, lá da última quarta-feira do mês. Foi agora, acho que dia 26 de junho. Nós fizemos a roda, tomamos conta lá do lado da Igreja. Um monte de gente estranha compareceu, deram as mãos. Todo mundo cantou, todo mundo participou. Nós cantamos “Galinho da Laranja”. Então fizemos a roda e foi virando todo mundo, até que tornou de girar todo mundo. Nós brincamos mais assim, de roda. Agora tem hora que nós cantamos sentados. Está sentado, está cantando. Um canta, outro canta. Tenho uma cunhada também que toca violão, ela é da minha idade, então ela vai, leva o violão. Tem mais um outro moço que participa conosco. Uma hora na praça, outra hora lá no Cairós. Aí ele participa também conosco lá e fala: “São minha meninas”. Então nós cantamos, ele canta com nós, nós cantamos com ele. Porque tem música que nós cantamos e ele não sabe, e tem música que ele canta e nós também não sabemos. Então mistura tudo e um acompanha o outro. Então a gente gosta é disso. Eu pelo menos, eu gosto de estar cantando. Ainda outro dia eu cantei, a minha netinha falou comigo assim: “Vovó, eu nunca vi você cantar, você hoje está cantando”. Eu falei com ela: “Minha filha, mas é porque a vovó tem hora que fica sem graça de cantar, não está com vontade de cantar”. Tem o meu menino também, esse Marcelo, que é deficiente, gosta de falar comigo: “Mãe, você gostava tanto de cantar, agora a senhora quase não canta”. Porque ele adora cantar também, sabe? “A senhora quase não canta”. Falei: “Ah, está perdendo a graça de ficar cantado”. Fico mais é calada. Ele fala: “Não, mãe, mas não pode ser assim, não”. Agora, outro dia, nessa praça que nós cantamos lá com os Griôs, meu menino mais, o terceiro filho, tinha vindo de Salinas e estava lá em casa, passando uma semana lá comigo. Eu convidei ele, porque nós íamos lá para a roda, se ele queria ir com nós, ir lá ver, participar. Ele foi, adorou, chegou lá em casa e me abraçou, me beijou, me deu os parabéns. “Mãe, a senhora cantou muito bonito. Só a senhora que soltou a voz, as companheiras da senhora não cantaram nada”. Eu falei: “Não, meu filho, eu não estando gripada, eu gosto de cantar. Agora tem hora que a gente está gripada, a tosse vem, perturba a gente. Então eu estando bem, eu gosto de cantar”. E o meu marido também, disse que depois que eu passei a participar lá do Cairós, que ele está satisfeito porque eu estou muito mais calma. Tem hora que ele acha que eu sou muito nervosa. “Ih, você está nervosa”. Mas depois que eu estou participando que eu tenho sempre estado mais calma. E, logo agora surgiu esse encontro aqui, eu fui uma das escolhidas. Eu cheguei perto dele e falei: “Eu fui uma das escolhidas dos Griôs, para nós participarmos desse encontro lá na Serra do Cipó. E, como é que faz, eu vou ou não vou?”. “Não, você pode ir, é bom para você. Pode ir”. Agora, ontem, eu liguei para ele e falei com ele: “Olha, uma parte nós já fizemos, agora falta amanhã e domingo”. Ele: “Como é que você está?”. Eu falei: “Graças a Deus eu estou bem, só estou cansada”. Porque ontem, quando nós fomos lá para cima, eu cansei, sabe? Lá eu não agüentei dançar, não. A perna estava queimando muito, eu não quis dançar. Sentei e fiquei participando, mas sentada. É essa perna aqui, queima muito. Ele falou: “Então está bom, se você está satisfeita e não está acontecendo nada com você, está bom. Eu também estou satisfeito aqui, está tudo bem aqui”. Então me despedi dele. Então não é... Ele está satisfeito que eu estou participando dessas coisas. Lá no Cairós eu participo do remédio, ajudo a fazer o remédio das ervas também. Só que nós não estamos fazendo os remédios dentro do Cairós. Uma colega minha que está aí arrumou um quarto lá da casa dela para nós fazermos os remédios, porque lá tem uma cozinha mais bem ajeitada. No Cairós, a cozinha é lá da cantineira, então pra fazer as coisas lá do Cairós. Não dá para nós mexermos. Então nós fazemos os remédios todas as terças-feiras. Eu sou voluntária lá para ajudar a fazer os remédios. Fiz o curso das ervas também, até foi oito meses de curso. Participei o curso todo, durante o curso eu falhei duas vezes só. E agora das ervas eu também vou continuar. É difícil eu falhar. Só no caso de, porque eu tenho uma consulta marcada, eu vou lá e aviso que eu não posso ir, pois eu estou com consulta marcada dentro daquele horário. Mas não sendo assim, eu às vezes vou lá e venho correndo, faço almoço e saio. Mas tem hora que o horário não coincide. Então eu tenho gostado muito do que eu tenho participado, das coisas que eu sei passar para as pessoas, as minhas lições que eu faço. Eu não sou espírita, eu sou católica, mas faço as minhas lições em nome de Deus. Tenho sido muito elogiada, porque as minhas lições têm sido muito boas. E um chega, pede para benzer, outro chega, pede. Eu posso estar ocupada, às vezes até com uma panela no fogo, fazendo almoço. Eu vou lá e desligo e venho benzer aquela pessoa primeiro. Outros vão lá me pegam de cá, saem comigo, “Ah, estou com Fulano lá assim, tem que ir lá benzer”. “Ah, nós vamos agora”. Vou, procuro servir todo mundo, falo: “Vocês precisando, eu estou aqui às ordens. Eu tenho vontade que vocês aprende, porque ninguém passa isso para frente”. Porque se está sendo bom a gente tem que procurar passar para frente, para outros aprender, porque senão a gente morre aquilo acaba. Eu pelo menos aprendi com minha vizinha. Ela me benzeu muitas vezes, benzeu meus filhos, era muito bom. Então ela falou: “Eu vou passar a benzeção para você, porque eu já vi que você gosta, tem muita fé. Então eu vou passar para você”. Então o que eu pude aprender com ela eu aprendi. Não aprendi todas, mas várias eu aprendi com ela. Então eu gosto de fazer minhas coisas. Não gosto de ficar parada, gosto de estar sempre fazendo alguma coisa, sabe? Não sou uma pessoa de ficar parada, não. Se eu estou na minha casa, eu estou mexendo com uma coisa, eu estou mexendo com outra. Se eu não tenho nada para fazer, eu passo a mão no tricô e vou fazer, passo a mão no bordado e vou fazer. Se não tem pano, eu vou na loja e compro um pedaço de pano e vou bordar, mas não gosto de ficar parada. Parada só a hora que estou dormindo, assim mesmo é só à noite, de dia não. De dia eu não sou de dormir também não. Então as minhas coisas que eu tenho para contar para vocês é isso.
P1 – Lucília, quantos irmãos vocês eram?
R - Hein?
P1 – Quantos irmãos vocês eram?
R – Irmãos?
P1 – É.
R – Nós éramos 13.
P1 – E dos 13 quantos cantam? Quantos benzem? Quantos fazem isso?
R – Ah, acho que lá de casa quem canta e quem gosta disso é só eu. Três já faleceram. Três não, já faleceram cinco. Cinco irmãos. Resta um irmão, porque mamãe teve treze. Morreram quatro pequenos, ficaram nove. Depois nós perdemos um, agora eu perdi mais um outro, perdi mais três agora há pouco tempo. Um perdi em janeiro, que era um pouco mais velho que eu, só dois anos. Faleceu. Então agora só resta as três mulheres e o mais velho. Porque o mais velho também não anda, não. Ele amputou a perna dele, por causa da circulação. Então nós somos três mulheres. Das três mulheres que gosta de cantar, fazer essas coisas é só eu. A que mora perto de mim não gosta de fazer nada.
P1 – Porque será que só a senhora gosta?
R – Não sei. Porque mamãe gostava muito de cantar. Papai, não. Nunca vi papai cantar. Então você vê, papai morreu com 93 anos, nunca vi meu pai cantar. Eu nunca vi meu pai cantar, eu nunca vi meu pai dar um beijo na minha mãe, eu nunca vi meu pai andar de mão dada com minha mãe, e viviam felizes os dois, maravilhosamente. Viviam a vida maravilhosa deles. Mas a gente foi criado assim, com aquele respeito neles. E o namoro da gente também era muito severo, porque ele trazia a gente também assim. E não tinha o negócio de ficar andando de mão dada com o namorado, ele não deixava, não. Se ele visse isso aí, cuidado com o couro. Porque ele nunca me bateu, mas a gente tinha respeito, tinha medo de apanhar. Então a gente foi criada com muito respeito dele, da mamãe. Agora mamãe gostava muito de cantar. Agora eu toda vida gostei de cantar, porque se tinha uma novena em Santo Antônio, lá ia eu fazer a novena na casa. Às vezes o pessoal fazia a promessa de fazer a festa, eu tinha que ir para rezar. Ah, não, o certo é você vir rezar. Ali tinha que rezar, tinha que cantar, a mãe rezava para a gente ver. Então a gente foi aprendendo aquilo tudo. Agora essa que mora perto de mim não gosta, porque ela nunca foi de rezar. Ela não gosta de rezar e eu toda vida eu gostei de participar. Tinha um presépio, a gente acompanhava as rezas do presépio tudo. Inclusive eu tenho um presépio. Chega no Natal eu ponho ele lá na minha sala, abro a meia noite com os filhos que estiver, porque às vezes não coincide de estar todos, mas teve um ano até que foi surpresa. Nesse natal agora meu menino veio de Salinas, não falou nada comigo, chegou com a família de tardinha, já escurecendo. Eu falei: “Ah, não acredito!”. Foi aquele Natal muito feliz, todo mundo junto ali na sala. Todo mundo rezou, eu cantei. Esse filho mais velho que eu tenho gosta muito de cantar. Ele vai e reza junto com a gente, canta que ele tem um vozeirão para cantar. Gosta de cantar. Então ele mesmo faz a reza, ali ele tira o cântico, nós todos acompanhamos. Eu sempre gosto dessas coisas. Eu vou na igreja, gosto de cantar. Só que na Igreja eu não faço parte do coral, não. Mas se eu estou ali durante a missa e estão cantando, eu estou cantando também. Eu gosto, sabe? Gosto de ver as pessoas cantarem. Se eu puder acompanhar, eu acompanho, se eu não puder, eu fico ali olhando. Mas que eu gosto, eu gosto.
P1 – E qual importância para a senhora dessas cantigas, desse conhecimento que traz as cantigas? Qual a importância disso para a gente, hoje em dia? Traz mensagens? Traz o quê?
R – Ah, eu acho que a importância para mim é porque, quando eu estou cantando, eu estou feliz. E acho que quem está ouvindo também fica feliz de ouvir, gosta, quer aprender. Então, só de eu saber que uma pessoa está interessada em saber o que eu sei, eu já fico feliz. Eu acho que é muito importante, eu acho que seria muito importante.
P1 – As letras das cantigas, elas tratam de que mais, de amor, do quê?
R – Como assim?
P1 – Do que elas falam?
R – Ah, umas falam de amor, outras falam dos pássaros. Igual aquela que eu cantei primeiro, fala dos pássaros. Assim como é com os pássaros, você vê igual aquela do canarinho, pode acontecer com a gente também a mesma coisa. Eu acho que aquilo é... A gente sente aquilo no coração. A gente fica, às vezes, emocionado, dependendo da letra que a música tem, a gente fica emocionado. Então essa música é muito importante para mim, porque ela me faz lembrar de certos momentos da vida da gente. Eu acho que é isso.
P1 – E como que ensina cantiga? Cantando só?
R – Cantando. Pode escrever. Por exemplo, escreveu, se a pessoa pegar o tom da música, ele vai embora. Agora, se não pegou, o tom fica difícil, porque você cantar uma música sem saber o tom dela é difícil.
P1 – Além dos seus filhos, a quem mais você ensina?
R – Ah, ensina lá nas reuniões do Griô, da terceira idade.
P1 – Conta um pouco dessas reuniões para a gente.
R – Nas reuniões da terceira idade, nós éramos 30. Trinta ou mais de 30, agora acho que não estão indo os 30, não. Umas tiveram problemas, tiveram que sair, outros com problemas de saúde, outros problemas com os pais que, às vezes, tem que cuidar dos pais que não pode, então teve que afastar. Mas o tanto de gente que nós reunimos, ali nós cantamos, nós fazemos ginástica. Tem as pessoas que ajudam a gente. Fazem ginástica, contam casos. Ajudamos a enfeitar o lugar que a gente faz as reuniões, que é era um lugar fechado. Agora eles fizeram um lugar aberto, então a gente põe as cadeiras ali. E ali nós fazemos várias coisas, aprender a fazer tricô. Há pouco tempo nós fizemos as casas, cada um teve que desenhar a sua casa em um papel. Do papel cortar no pano, colar o pano, cortar outra casa de pano, com aquele papel você recorta, e cada pedaço que você recorta da sua casa você vai colando no outro pano. Aquelas beiradinhas assim, a gente arruma essas fitas viés e vai costurando. Então fizeram uns painéis grandes para fazer a rua e pregar as casas de um lado e do outro, igual é nosso arraial. Então nós fizemos a casa, as casinhas de pano, e cada um teve que pregar. Eu mesmo preguei a minha no painel, e ainda preguei a de vários colegas que não estavam conseguindo pregar. Como eu já costurei muito, eu sei costurar ainda, eu gosto de passar a mão na agulha e estar ali, costurando. Estava eu e uma colega minha pregando. Elas vão marcando onde e nós costuramos elas no painel. Já até puseram eles lá na Igreja, os dois painéis de pano com as casinhas pregadas. Fizemos também uns quadrados de pano, e cada quadrado tinha uma moça lá que desenhava uma coisa e aquilo você tinha que bordar. Depois que todos bordaram os quadros, nós pregamos num pano do tamanho de uma colcha. Ficou a colcha pronta com cada um bordado e com o seu nome. Eu bordei, pus o meu nome. A outra bordou, pôs o nome dela. Então na colcha tem o nome de todas as pessoas da terceira idade. Quando nós vamos fazer um passeio, nós levamos a toalha, chega lá cada um leva uma coisa para comer, nós forramos a toalha no gramado. Põe ali o suco, as garrafas de refrigerante, as coisas de comer, ali que é a nossa mesa, ali que todo mundo senta, todo mundo come. Terminou nós juntamos tudo, dobramos a colcha e levamos embora. Quer dizer que ela ficou igual a uma toalha de mesa. Então lá a gente vai aprendendo uma coisinha ou outra e aquilo ali também é feito junto com as crianças. Para as crianças também ir pegando o ritmo da gente. Sempre que nós vamos fazer tem as crianças lá do grupo, que vai para o Cairós, que vai nos ajudar. Então eles nos ajudam, nós ajudamos eles. Sempre nós temos um trabalhinho para fazer lá no Cairós.
P1 – Explica para a gente o que é o Cairós.
R – O Cairós é um Instituto. Lá tem o lugar dos meninos brincarem, aprenderem a fazer casinha de barro, casas de pau a pique. Que se for pra eu fazer, eu sei. Então outro dia eu fui lá, vi os meninos fazendo, achei muito interessante. Falei com eles: “Eu já morei em uma casa dessa”. Expliquei para eles que já morei em uma casa de pau a pique, era forrada de sapê. O telhado era de sapê. “Até os sete anos, por isso que vocês estão fazendo agora e eu sei ensinar vocês a fazer isso. Só que vocês têm que fazer uma coisa mais segura”. Então ali tem tudo, ali tem de tudo. Tem brinquedo, tem ensino para os meninos atividades para eles, tem aula de computação que, lá tem vinte computadores. Vários meninos fazem, têm os menores, os maiores. Eu mesmo tenho um neto que tem 15 anos, está fazendo um curso lá. Já fez a primeira etapa. A segunda etapa. Agora em agosto vai começar a terceira etapa. Tem os horários para eles irem e fazer o curso. Alguns são segunda, quarta e sexta. Outros são terça e quinta. Dois, três horários. Porque ficar um horário só... Eles dividem em vários horários. Então lá tem muita atividade. Lá tem música, tem ginástica. É um instituto mesmo, um clube. Ali tem várias atividades, não só para nós, como para as crianças. As crianças ainda têm mais ainda do que nós, porque nós reunimos é de quinze em quinze dias. Mas diz que agora a nossa participação está sendo a mais importante para puxar as crianças, porque as crianças precisam aprender. Então ali você passa o que você sabe, é uma música, é um brinquedo de roda. Todos eles estão ali para ajudar. Igual nesse último encontro que nós fizemos, eu não participei, não, porque eu tinha médico, mas no penúltimo eu fui. Os meninos fizeram ginástica para nós, fizeram, dançaram um pouco de quadrilha, porque disse que era despedida. Nós ficamos só sentadas assistindo. Fizeram um pouco do circo, da atividade lá do circo. Tudo eles aprendem lá. Então cada um, uma turminha fez uma coisa para nos ajudar. Eu ajudei, eu ajudei a enfeitar, fiz 25 balões. Cheguei lá, falei: “Vocês não pediram que era para trazer alguma coisa? O que eu pude trazer foi os balões. Vamos soprar e vamos pendurar”. Nós, as companheiras, ajudamos a pendurar os balões, e as bandeirinhas os meninos já tinham colocado. Eu acho que o Cairós é isso. É uma coisa de muita importância para nós. Muito útil. Tem sido muito útil. Só mesmo quem não quer freqüentar, porque quem quer, igual eu freqüento sempre, eu acho que é uma coisa muito boa, muito importante para nós. Porque é um lugar que tem as atividades que o pessoal precisa.
P1 – A senhora consegue identificar uma criança que tenha mais talento para cantar, ou para fazer alguma atividade dessa, e a outra que tem menos talento? Tem essa diferença ou todo mundo pode fazer?
R – Não, todo mundo pode. Mas tem umas que tem mais vocação para uma coisa. Outro é mais inteligente para outra coisa. Então ali, conversando com eles é que a gente percebe qual que é mais puxado. Por exemplo, um quer água, outro já não quer água, quer o suco, então a mesma coisa é com os trabalhos. Igual quando nós fomos fazer lá os sabonetes para piolho. Nós fizemos lá, onde nós mexe com os remédios. E depois, nós fizemos uma receita lá no Cairós. para as crianças. Se interessar, elas podem ajudar a gente também a fabricar. Mas tem umas que não se interessam, elas chegam ali, elas olham... Agora tem umas que já são mais apegadas naquilo. Outras já são apegadas em outro tipo de brinquedo. E você vê ela brincando, você vê o desenvolvimento dela, então ela é mais desenvolvida para aquela atividade. Outro é mais inteligente, às vezes, para fazer outra atividade. Tem lá uns meninos que fizeram uns desenhos. Desenharam vários desenhos da Igreja, da nossa Igreja. Tiveram uns que fizeram o desenho da Igreja perfeito. Mas perfeito mesmo. Eu falei: “Esse menino tem talento, porque olha o desenho que ele fez, que perfeição”. Agora aquele que já fez um desenho mais bagunçado, ele já não tem tanta dedicação àquilo. Quando nós fizemos as casas, uns tem dedicação para fazer a casa bonitinha, com aquele carinho, igual a casa mesmo. Por exemplo, a minha casa não tinha grade, mas eles disseram que eu tinha que fazer ela igual à grade. Eu tive que arrumar um paninho xadrez e colocar de frente para a janela e pregar um “coisinho” em roda da grade. Porque, já que era para desenhar a minha casa, eu tinha que fazer mais ou menos igual ela era. Mas eu falei com a moça: “Eu não desenho. Eu não sou boa. Para cortar eu sou, para colorir eu sou, para bordar eu sou. Agora para desenhar, eu não sou. Outro dia ela passou lá em casa e ela falou assim: “Dona Lucília, eu quero o desenho da sua casa, mas igual ela é”. Eu falei: “Então eu vou pedir ao Reginaldo para fazer, porque ele é projetista. Ele vai desenhar a casa igual vocês querem, porque igual vocês querem eu não sei. Vocês são artistas. Vocês mesmos podem desenhar, eu autorizo”. Mas ela não quis, não. Quer que o Reginaldo desenha para ela a casa. Até falei com ele, ele falou: “Não, mãe, pode deixar que eu vou desenhar a casa para a senhora”. Então eu estou esperando ele desenhar a casa. E, é igual lá em casa, esse menino meu que é deficiente, o que ele quer aprender ele aprende, ele não caminha com as pernas, com as próprias pernas dele, porque ele anda de aparelho. Sem aparelho ele não anda. Então eu falo: “Deus tirou suas pernas, mas abriu sua memória”. Porque ele faz tudo. Tudo que ele quer aprender, ele faz. Os outros já não são iguais a ele, já não tem o talento que ele tem, sabe? E fez tudo. Tudo que ele quer fazer, se ele olhar você fazendo, ele faz. Ele pega aquilo logo. Os outros já não são iguais ele. Ele é deficiente mas tem outra personalidade. A inteligência dele é forte. Aprende, faz tudo. Ele sabe fazer tudo. Ele aprendeu a datilografar em casa. Comprei a máquina para ele, ele aprendeu. Depois ele fez a computação. Ele entrou na aula de mecanografia, saiu. Depois fez administração de empresas pelo Instituto Universal Brasileiro. É puxado porque não tem professor, mas ele só ganhou nota boa. Fez desenho arquitetônico. Fez o de projeto. Projetista. Então ele trabalha de projetista. Ele começou com desenho, mas aí o moço mudou ele, passou ele para projetista. Trabalha de projetista na Arquitetura Oscar Ferreira. Então tudo sem ter um professor acompanhando ele, sabe? E as notas dele eram máximas nos livros, que vai lá com exercício e volta. A gente vê que ele é inteligente por isso. Agora os outros já não são igual ele. São inteligentes também, graças a Deus, mas não é igual a ele. Igual as minhas meninas. A minha mais nova não é igual a minha mais velha. Ela não tem vocação para uma costura, para um bordado, para um crochê. Ela não tem. A mais velha já sabe fazer tudo isso. Ela não tem vocação para isso, não. Eu falo mesmo, porque não tem. A Renilda gosta de costurar, Renilda gosta de fazer tricô, gosta de fazer crochê. Bordar também ela não é muito chegada não, mas crochê e tricô ela gosta. Então cada um tem um desenvolvimento. A costura a Renilda gosta, a Luciele não gosta. A costurar puxou, a Renilda puxou a mãe. Eu só não sei fazer crochê, mas bordar e tricô e costurar, eu sei. Só que eu não costuro mais, não. Às vezes, se eu estou muito cansada, para costurar eu tenho que ficar lá de óculos, aquilo me cansa. Então a hora que o óculos começa a suar eu fico nervosa, tiro ele, jogo para lá e saio. “Ah, não. Não vou ficar mexendo com isso, não, isso está me agitando”. Mas gosto de estar sempre participando. Falo que aprender nunca é demais. Igual nessas reuniões, a gente só aprende. Um vem conversa uma coisa, outro vem conversa outra. Um ensina uma coisa, outro ensina outra. A gente está sempre aprendendo, nunca que é demais. A gente nunca pára de aprender.
P1 – E este ofício de benzedeira tem meninas ou meninos que querem seguir?
R – Não, por enquanto não. Outro dia eu fui em uma reunião lá da escola, do lado de baixo da minha casa. Foi eu e o engenheiro. Ele foi levando umas pedras lá para explicar para os meninos. Então nós começamos, eu cheguei e falei para ele assim: “Olha, Zé Mário, eu vim para falar com os meninos das plantas. Para que serve esta planta, para que serve aquela planta, para que serve o chá”. “Mas não tem planta aqui”. Eu falei: “A planta que tem aqui é capuccina, é manjericão e babosa”. Fui lá e quebrei uma folha da babosa e comecei a explicar para que serve a planta da babosa. Os meninos largaram o engenheiro sozinho. Rodearam tudo assim, em roda de mim, e “a senhora tem que falar para quê serve isso”. Eu falei: “Isso aqui serve para fazer chá para isso, isso”, e comecei a explicar. Mas virou uma menininha e disse: “Mas eu tenho bronquite, o chá é bom?”. Eu falei: “Pois é, isso é um belo remédio para você que tem bronquite”. “Mas como que faz?”. Eu falei: “Eu vou te ensinar, mas você não vai saber fazer. Isso aqui tem que ser explicado para sua mãe. Para sua mãe fazer o chazinho para você. E tem muitas outras plantas boas para você”. Agora das minhas lições, eu ainda não fiz as minhas lições junto com os meninos. E os meus meninos ligam, não sei se vocês conhecem ou sabem onde fica Salinas. Salinas é bem longe daqui, a 620 acho, ou 660 quilômetros. E os meninos ligam de lá para benzer eles. Outro dia minha nora ligou de lá: “Dona Lucília, me benze porque eu estou aqui louca de dor de cabeça, não tem nada que melhora”. Eu falei: “Agora!”. Larguei o que eu estava fazendo, fui lá e benzi ela. Outro dia ligou para mim e falou que estava boa.
P2 – Pelo telefone?
R – É, pelo telefone. Ligou para mim, que estava beleza. Então as pessoas querem, até tem uma moça que pediu um terço agora, quer que eu benze ela. Eu falei: “Eu não sei se eu tenho aqui folha para te benzer”. Porque lá em casa eu benzo com arruda, já tem uns pés de arruda para tirar as folhas para benzer. Aqui eu não vou encontrar isso. Eu falei: “Só se eu benzer você com outra folha, mas tem que ser arruda”. Então eu benzo, e todo mundo que eu benzo se sente bem. Lá perto de casa tinha uma comadre que machucou o dedo. Tratou, tratou do dedo, e o dedo ficou doente. Quando foi outro dia nós conversamos, eu falei: “Comadre, você á benzeu esse dedo?”. Ela disse: “Não”. “Então vamos benzer”. Benzi o dedo dela três vezes, sarou. Ela machucou o dedo. Então dependendo do que tem, tem que benzer, tem que cozer. Uns cozem, outros benzem, outros... Outro dia foi uma dona lá em casa com um negócio aqui no pé, pegou e falou comigo assim: “Dona Lucília, eu venho aqui para a senhora me benzer o pé, porque eu estou passando muito mal do pé”. Tirou o tênis, tirou a meia, me mostrou. “Será que isso é cobreiro?”. Eu falei: “Olha, o cobreiro existe, mas eu não sei se você acredita. Agora de que é o cobreiro eu não sei, não. E eu não sei benzer de cobreiro, não. Mas a minha cunhada benze, ela também é Griô. Ela também benze. Então você vai e fala com ela. Isso aí eu não benzo, porque eu não sei. Porque a benzeção é ela que sabe, então que é para ela benzer, que ela também é Griô”. Ela disse: “Mas eu já estou cansada de pelejar com esse pé”. Então foi lá a minha cunhada, falou com ela que não era cobreiro, mas que ela ia benzer. O pé da mulher sarou. Sarou. Ela estava assim com aquele cascão e em volta com aquelas bolinhas, sabe? Eu falei: “Você pisou em alguma coisa, em alguma coisa suja e, às vezes, tinha até o cobreiro do sapo ali e aquilo pegou no seu pé”. Agora passou lá em casa, acho que foi antes de ontem, falou comigo que passou o pé, sarou. Meu menino estava lá em Salinas, com a perna ruim. Ligou para mim: “Mamãe, eu estou com a minha perna assim, assim, explicou”. Eu falei: “Meu filho, você está com erisipela, você já deve ter ouvido falar nisso. Você está com erisipela na perna”. “Mãe, será que é isso?”. Eu falei: “É, pelo que você está me informando é erisipela que você está na perna”. Ele disse: “Como que eu vou fazer?”. Eu falei assim: “Olha, meu filho, a erisipela eu não sei benzer. Tem a minha amiga que benze, mas não sei se ela benze de longe”. Eu falei: “Melhor você procurar aí, se tem alguma benzedeira aí que benze, e pedir para benzer para você”. Ele falou: “Mãe, o médico queria até me internar”. Eu falei: “Pois isso aí não tem internação, não, você tem é que cuidar”. Ele procurou a dona, achou a dona. Pediu a dona para benzer. A dona falou: “Meu filho, pode jogar esses remédios tudo fora. Sua mãe está certa. Sua mãe falou que você está com erisipela e é erisipela mesmo”. Benzeu ele,sarou. Agora outro dia ele esteve aí, estava me mostrando, não tem nada na perna. Então, tem umas coisas que tem que ser benzeção. O remédio, às vezes você fica tomando remédio mas não vale nada. Então benzeu, sarou. E eu que falei para ele, por telefone, que podia mandar benzer que era isso. E era mesmo. Até quero aprender o benzer da erisipela. Eu benzo de olhado, olho gordo, vição, espinhela caída, cozi, igual estou te falando, o dedo, por exemplo você machucou, às vezes, o nervo não está bem, então tem que benzer, cozer, a gente coze. Então a gente coze para que os nervos cheguem no lugar. Aí sara.
P1 – E não tem ninguém que queira aprender essas...?
R – É isso que eu estou te falando, que ainda não apareceu ninguém que queira. A minha nora começou a aprender, mas ela só benze de olhado, as outras coisas ela ainda não sabe ainda. Ainda falei para ela: “Está na hora de passar esse resto para frente aí”. Porque tem hora que eles vão lá e eu, às vezes, nem estou. Se é olhado, olho gordo, ela benze. Só que quando uma pessoa está muito carregada de olhado e olho gordo a gente benze, se a gente não estiver preparada, passa para a gente, porque às vezes está muito forte passa para a gente. Se eu estou lá em casa, eu falo: “Vizinho Fulano, Fulano estava muito carregado e eu estou ruim, me benze aí”. Eu falo para ela: “Você me benze, se você ficar ruim porque passou para você. Eu vou te benzer de novo, aí acaba”. Ela me benze e acho que já está mais fraco e não passa para ela não. A mesma coisa quando ela precisa também. Ela benze, às vezes eu não estou. Se ela fica assim, meio apitinbada, tem que benzer. Então a gente está preparada para fazer a benzeção. Quem me ensinou foi minha vizinha. Ah, tem de hemorragia também. De hemorragia também ela me ensinou a benzer. Ela ensina a gente a benzer e tomar o chá. Inclusive, no meu segundo filho, eu dei hemorragia e quase que eu fui. Ela fez o chá, foi lá, me benzeu e fez o chá, levou para mim. Quando o meu marido chegou com o remédio, não gastou remédio mais. Eu já tinha levantado e já estava melhor. O sangue saía igual água. Ela foi lá, me benzeu e levou o chá. Quando o meu marido chegou de Belo Horizonte com o comprimido que o médico mandou para eu tomar, não precisou mais, não. Então é coisa que a gente vê que a benzeção não falha. Eu tenho fé, meus meninos todos têm fé com a benzeção, sabe? Meu marido tem, todo mundo lá tem fé com a benzeção. E lá quem está tendo de ultimamente para benzer, quase que só eu, porque as três velhas que benziam já faleceram. Uma era minha tia, outra era tia do meu marido, outra era minha vizinha, que era a mais velha de todas. Todas as três já faleceram. Quer dizer, que se a gente não pega, a gente precisa, vai procurar quem? Então eu acho que a gente tem que passar para frente.
P1 – Existe segredo para benzer, para ser uma benzedeira? É um conhecimento, qualquer um pode aprender ou tem...?
R – Qualquer um pode aprender. Desde que ele goste, ele pode aprender. E não existe segredo nenhum. Não, não existe segredo, não. Benzo em voz alta se a pessoa quiser, se a pessoa não quiser, eu não benzo. Mando falar as palavras que tem que falar, agora se ele quer ouvir tudo, eu benzo em voz alta. Teve um senhor lá que começou a aprender comigo, mas não voltou mais, não. Ele tem muita fé também, eu acho que ele aprendeu, porque ele escreveu. “A senhora vai falando e eu vou escrevendo”. Escreveu, e depois que eu acabei de benzer ele, ele escreveu. “Dona Lucília, eu vou aprender a fazer essas benzeções da senhora”. Mas eu quase não vejo ele, uma hora eu quero ver ele para eu perguntar se ele pôs em prática. Porque ele gostava de benzer, gostava de levar o filho para benzer. Às vezes, ele pôs em prática eu não estou sabendo. E também foi só esse senhor e minha nora que gostavam. Minha nora é danada, passa a mão lá na arruda e vai benzer. E não precisa de benzer só as pessoas, não. Por exemplo, você notou que essa planta está com problema, que alguém olhou ela e ela está dando para trás, benze ela também. Pode benzer as plantas também. Criação. Tem um moço lá perto de casa que dá mais pedir para mim para benzer às criações dele. Leva lá o nome da criação e benzo para mim. Eu benzo. Daí a pouco está lá o telefone tocando, que melhorou. Então é a fé. Não existe segredo, não. Você quer que eu falo uma para vocês ouvirem?
P1 – Se você quiser.
R – Pode?
P1 – Pode.
R – Vou falar. Vou falar de olhado. A de olhado é assim, primeiro você reza o credo, você sabe o que que é o credo?
P2 – Sim.
R – É o creio em Deus-Pai. Não precisa deu rezar ele, porque vocês já sabem. Rezou o credo, você fala assim, por exemplo, como que é seu nome?
P2 – Cláudia.
R – Cláudia, com dois puseram, com três é que sai, é em cruz que reza. Com dois puseram, com três é que sai, se o corpo está doente, seja vento, seja quebrante, seja vição, seja olhado. Saia do corpo da Cláudia vai-te para zona do mato sagrado, onde não canta galo e nem galinha. Com os poderes de Deus-Pai, Deus-Filho, Deus-Espírito Santo, três vezes. O creio em Deus-Pai reza só a primeira vez, que é para preparar você e preparar a gente, para não passar para gente. Fala essas palavras três vezes. Então você pega a arruda e queima.
P2 – Queima arruda?
R – Queima arruda, é para queimar os olhados. Parece que ela puxa, sabe? E se benzer e colocar a arruda no fogo, tem hora que ela estoura igual uma pipoca. Se você não tiver nada a arruda não estoura.
P2 – Pipocou?
R – É, ela pula assim no fogo quando a pessoa está carregada. Se não tiver nada, se não tiver brasa para queimar, queima no fogão de gás, mas o importante é que está queimando. Porque minha tia falava que era para queimar os olhos gordos daquela pessoa. Então a gente põe no fogo. Terminou de benzer, pega as duas, são três galhos de arruda, você cruza aqui e joga para trás. Então põe no fogo para queimar. Essa é a benzeção do olhado. Inclusive se você está com uma dor de cabeça, que seu tio olhou, não olhou muito bem, não gostou muito, vem a dor de cabeça. Agora de cozer os nervos é assim, você pega o rolo, o rolo tem uma agulha. Agulha tem uma linha dobrada no meio, ela tem que estar sempre dobrada no meio. Junta as duas pontinhas da linha, igual, puxa a agulha para ficar bem certinha. Na hora que você acabou de rezar o creio em Deus-Pai, reza em cruz também o creio em Deus-Pai, você pega o rolo e põe no lugar onde você quer que coze, onde está doente. Você reza, põe o rolo em cima, rezou o creio em Deus-Pai, em cruz, põe o rolo em cima e começa com a agulha. Que cozo? Você responde, que cozo? Carne quebrada, eu vou falando você vai respondendo. Carne quebrada, osso rangido, nervo torcido, osso desconjuntado, assim mesmo eu cozo. Você reza Ave Maria, Santa Maria, Ave Maria, Santa Maria, Ave Maria, Santa Maria, e torna a rezar. Você torna a falar de novo a mesma palavra, torna a falar Ave Maria, Santa Maria, Ave Maria, Santa Maria, Ave Maria, Santa Maria, três vezes. Ali acabou a agulha, vai ficar enfiada no rolo. Ela não pode sair daquele rolo. O rolo é só para isso. A agulha fica ali. Você pega aquele pedaço da linha, cruza ela na agulha, até a linha acabar. Acabou, fica ali. Só tira dali para cozer outra pessoa. Então, enquanto não coze outra pessoa, se ficar um ano sem cozer ninguém, um ano ela vai ficar ali naquele rolo. Não pode tirar, a agulha é só para aquilo. Agora a espinhela caída já é na porta. Você põe os braços na porta, junta os pés, estica os braços para cima. Você fala assim, rezo o creio em Deus-Pai em cruz, nas costas da pessoa. Você fica na porta virado para fora. Pode ser na porta da sala, ou na porta da cozinha virado para fora. Eu fico nas suas costas, rezo o creio em Deus-Pai, depois eu começo. Eu vou falando você vai falando também. Barquinho de Santa Maria navega no mar sem desembarcar, arca minha espinhela, chega no seu lugar, com os poderes de Deus-Pai, Deus-Filho, Deus-Espírito Santo, três vezes. Na hora que eu terminar uma palavra, essa palavra que eu falei, eu vou rezar Ave Maria cheia de graça, e você vai rezar junto comigo. Eu rezo e você reza. Terminou, nós começamos de novo, barquinho de Santa Maria navega no mar sem desembarcar, arca minha espinhela, chega no seu lugar, torna a rezar. Terminou as três vezes, oferece a benzeção no seu nome. Ofereço essa benzeção no nome da Cláudia, que a Nossa Senhora do Desterro chegue os nervos da espinhela dela no lugar, com os poderes de Deus-Pai, Deus-Filho, Deus-Espírito Santo. Você está oferecendo a benzeção, eu estou oferecendo no seu nome, para que ela abençoe para que os nervos cheguem no lugar. Então você faz, essa benzeção ela é feita, você reza três vezes e são três vezes que você tem que ser benzida. Quer dizer que ao todo vai dar nove vezes. Você reza três hoje, três amanhã, três depois. Igual a de cozer também, é a mesma coisa. São três dias que a gente coze. Por exemplo, se você chega lá em casa, quer que coze o seu pé, seu tornozelo, eu tenho que cozer. Se você não pode ficar os três dias, eu cozo, dou um tempinho, você dá uma voltinha, nós coze de novo para completar as três. Porque às vezes a pessoa mora longe, não pode voltar, então tem que fazer isso. Ainda outro dia eu fui benzer um moço, coitado do moço. Ele não agüentava nem sair da cama. Eu fiquei com dó dele. Pediu para benzer de espinhela, ele não conseguiu ficar com os braços assim. Ele ficou um assim e o outro meio assim, meio torto. “Mas eu vou benzer assim mesmo. O senhor não agüenta, mas quer que benza, eu vou benzer assim mesmo. O senhor está torto, mas vamos benzer assim mesmo”. Benzi. Até não sei se ele melhorou porque não peguei o telefone dele para ligar para saber se melhorou. Porque foi uma amiga que foi lá em casa me buscar para levar para benzer ele. Me buscou de carro. Então é isso aí que eu sei. Então eu pretendo passar para frente. Quem quiser aprender, eu pretendo passar para frente.
P2 – Mas é uma missão de quem é benzedeira? É como se fosse uma missão na Terra?
R – Não. Eu acho que não. Não é uma missão, não. Eu acho que é a gente gostar. E aquela vocação para quem vai benzer. É a mesma coisa, às vezes, eu tenho vocação para costurar, você já tem vocação para bordar. Então a benzeção também é a mesma coisa. Eu tenho vocação para benzer.
P2 – Deixa eu só trocar a fita. Só um minutinho.
P1 – É, a senhora se sente assim, reconhecida, importante por ser benzedeira, alguém vai te procurar muito, você se sentiu importante por isso?
R – Não.
P1 – Não?
R – Não. Muito pelo contrário. Eu sou a mesma pessoa. Se você chegar na minha casa e pedir para eu te benzer, eu sou a mesma pessoa que tiver, que esteja conversando com você sem saber que você quer que eu benza. Eu sou a mesma pessoa. Ali da varanda, eu pergunto: “O que que você quer?”. “Ah, eu vim aqui para benzer”. “Então espera um pouquinho, vou buscar as folhas”. Venho, benzo, se der para nós batermos um papo ali, nós batemos, se não der também pois está com pressa, eu vou embora e tchau, tchau. A mesma coisa. Não sinto assim grande por eu saber, não. Em nada. Nada que eu sei, eu me sinto uma pessoa engrandecida por saber aquilo não, sabe? Eu faço quitanda, eles vão lá, e filmam eu fazendo as quitandas no forno. Eu não me sinto engrandecida daquilo. Dá até para contar isso, que eu estou com uma foto lá, com um pano amarrado na cabeça, nós tirando os tabuleiros do forno. Meu menino foi, bateu a foto. Saiu os tabuleiros com os biscoitos. Tão bonito na foto. Pegou, levou um bocado para Salinas e mandou uma para mim, que ele revelou lá. Fiz aqui, revelou lá. Ele falou para mim: “Mãe, eu vou mandar um bocado das fotos para a senhora mostrar para o pessoal aí”. Ele chega, nós buscamos lenha para fazer biscoito. Então nós armamos o forno. Ainda hoje a menina falou, a Cris, você viu ela aí conosco. Mas ele estava falando que tem que ir lá me filmar fazendo um doce, tem que filmar eu fazendo biscoito, que elas também querem ir para participar. Ela tem que filmar eu passando roupa com o ferro de brasa, porque eu não gosto de passar roupa com o ferro elétrico. É, gosto de passar com o ferro em brasa.
P2 – Por quê?
R – Eu acho melhor, ele é mais pesado, mais quente para passar a roupa. Se eu passo a roupa com o ferro de brasa e vai enteando ela, quando é no outro dia você tira a roupa, a roupa está quente. Passa com o ferro elétrico, daqui umas duas horas você pode enfiar a mão no meio da roupa que a roupa está fria. Então eu gosto de passar com o ferro de brasa. Acendo o fogo, ponho a lenha boa no fogo, tiro as brasas e ponho no ferro para passar a minha roupa. As meninas não gostam. Gostam de passar com o ferro elétrico. Eu não gosto, eu gosto de passar com o ferro de brasa. E enquanto também eu estou ali passando, estou atiçando o fogo, o meu fogão não tem serpentina, então eu fico lá. É uma coisa ou outra e lá vai eu, na minha vidinha lá.
P1 – A senhora consegue reconhecer alguém que precisa de uma benzeção sem a pessoa falar?
R – Dependendo da pessoa, a gente conhece. Dependendo da pessoa. Porque, às vezes, a pessoa não está muito ruim. Meu menino, esse aí que é deficiente, quando ele está com problema, eu lá de casa sei. Ele começou lá, eu falei: “Ah, meu filho. Pode benzer que você está mal”. A mulher dele já sabe, ela mesmo passa na rua e eu benzo. Vem e fala: “É, bem que a senhora falou hein, dona Lucília”. Falo: “Pois é, vocês não conhecem, mas eu já conheço quando a pessoa está assim”. Outro dia meu neto também estava. Ele não é de adoecer, o menino estava doente, todo pitimbado. Ele pegou e falou: “Vó, a senhora já me benzeu?”. Eu falei: “Não, eu não te benzi, não, mas eu acho que você está precisando. Eu vou te benzer”. O menino sarou. Ficou beleza. Ele está com 15 anos. E ficou beleza, maravilhoso, acabou os problemas, tudo. Quer dizer que ele estava precisando e eu cochilando lá no ponto com ele.
P1 – Como que a senhora vê, hoje em dia, a profissão de benzedeira no mundo atual, tão cheio de remédios, de coisas industrializadas? Tem muita benzedeira ainda?
R – Tem. Tem bastante. Mas ela vai acabando muito, vai acabando muito. Eu tiro a conclusão por lá, onde eu moro, o tanto que tinha e, hoje, praticamente é só eu e minha cunhada. Assim mesmo ela benze umas coisas que eu não benzo e eu benzo umas coisas que ela não benze. É igual a criança. A criança... A benzeção de espinhela caída para criança é totalmente diferente da de adulto. A de adulto é aquela que eu falei que tem os braços na porta, daí junta os pés. A de criança é benzida no colo. Benze no colo a criança. A gente põe ela no colo, reza o creio em Deus-Pai em cruz nos braços, nas perninhas dela, depois você reza aqui, nela. Já é, até a oração é diferente, porque a minha tia ensinou assim. A minha vizinha me ensinou assim. Porque a minha tia benzia e a minha vizinha benzia. Então elas me ensinaram assim. Então eu benzo dessa maneira, igual elas me ensinaram. Eu aprendi e benzo igual a elas. Então, tem pessoas que você nota que ela estão passando mal. Às vezes você está com uma dor de cabeça que você não está aguentando. Você olha assim para a pessoa, você nota a pessoa assim, triste. “Fulano, você está precisando de benzeção”. Outra hora a pessoa sente pesada, sente aquele peso aqui assim, nos ombros. Você chega perto de mim e fala: “Fulano, hoje estou me sentindo pesado. Estou com meus ombros pesados, parece que tem uma pessoa me ‘carcando’ para baixo, você podia me benzer?”. Eu benzo. Você já vai embora falando que está melhor. Então eu não me sinto engrandecida de saber, nem de ensinar, sabe? Eu acho que o que a gente sabe, a gente deve de passar para frente. É igual costura. Eu já costurei muito, já dei muita aula de costura, tenho até os diplomas lá de ter dado aula de costura. Quando terminou, o pessoal da Emater levou os diplomas das meninas. Mandou fazer os diplomas e levou para mim uma cartilha e um jogo de costura, como eu era a professora delas. Fiz isso em muitos anos, com as meninas, mocinhas. Até eles têm vontade que eu dê esse curso lá para as meninas lá na escola. Porque a escola é pertinho da minha casa. Eu moro aqui, a escola é ali, do lado de lá. Então eles têm vontade que eu dê esse curso de costura para as meninas. Eu falei: “Eu posso até dar, porque o departamento de cultura acompanha muito isso. Mas tem que ter as alunas direitinho, tem que ter a máquina de costura lá na escola”. Porque o prefeito deu uma máquina de costura para mim quando eu estava dando a aula de costura e a máquina ficou na escola. Eu disse que deixaram carregar ela para outro lugar. Então não tem a máquina. Então para fazer isso tem que pedir a máquina para o prefeito. Eu já ensinei isso tudo para os meninos. E todos que eu ensinei, só de eu dar aula, eu sabia qual que ia ser uma boa aluna.
P2 – É?
R – É. Só dela riscar o molde já sabia. “Você tem, você vai ser uma boa costureira”. Mas aquela que riscava errado, eu falava: “Você não vai ser uma boa costureira, não. Você risca tudo torto, vai costurar, está costurando torto”. Muitas não gostam que você manda desmanchar. Porque errou tem que desmanchar. Aquelas que não gostam de desmanchar, eu falava para elas: “Vocês não servem para ser costureira, porque a costureira tem que saber desmanchar”. Errou, tem que desmanchar. Outras já têm um ponto de vista maravilhoso, costurando certinho. “Ah, você vai ser boa. Você é das minhas, não vai gastar e ficar desmanchando. Vai fazer direito”. Acho que eu dei um curso de aula para umas 30 alunas, de costura. É, dei acho que umas 15, depois dei para outra turma. Era sempre na parte da tarde. E todas elas ficaram muito satisfeitas no fim do curso, porque cada um teve que fazer a roupa para vestir na formatura. Então elas ficaram muito satisfeitas. Por exemplo, você queria uma saia, fazia uma saia. Ele queria uma camisa, você fazia uma camisa. O outro queria uma calça, você fazia uma calça, porque eu tinha alunos homens também. Então um dia eu peguei um aluno, ele tinha um problema de, como que fala, gente? Esse problema que dá nas mãos, que a pessoa vai, não, aquela que vai...
P2 – Lepra?
R – Lepra. Só que a dele já era paralisada, coitado. Eu ficava com uma dó dele. Ele era inteligente. Fez calça, fez camisa. Tinha dia do lanche, ele levava um refrigerante. Ficava com dó porque ninguém aceitava o refrigerante dele, só porque ele pegou no litro. Eu falava: “Gente, pode tomar, a doença dele já está paralisada, já não tem mais nada, não. É só isso aí”. Mas tinha umas alunas que bebiam, mas tinha umas que não bebiam de jeito nenhum. Eu ficava com dó, porque é complexo da pessoa. Mas o que que eu podia fazer? Eu não podia botar aquilo na cabeça, eu falava com elas, mas elas não aceitavam. Então eu falava: “Não fica com raiva disso não. Não liga, não”. E o danado era inteligente. Inteligente. Você marcava a costura para ele, ele cortava e trazia prontinha. A mãe dele tinha máquina. Você vê, era um menino inteligente. E tinha umas alunas também muito inteligentes. Agora tinha umas que me davam trabalho, mas eu dava conta do recado. Chegava no fim do curso, cada um tinha que fazer. Você falava: “Eu vou fazer uma camisa para me apresentar”. Outro falava: “Eu vou fazer um vestido”. Tinha que mostrar qual era o modelo que ela queria, ajudar ela a cortar, para ela costurar, para apresentar no dia. Então no dia, apresentava cada um uma roupa, que foi feita durante o curso. Não só aquela roupa, faziam várias, mas era aquela que você escolheu para vestir naquele dia. Ali nós fazíamos a festinha e todos com a roupa que foi feita na... Eu tinha uma, essa minha nora que está aprendendo, ela estava grávida. Ela fez um vestido de latex, de alcinha. De latex, daqui para cima ela já estava bem gordinha, então ela ficou toda redondoca no vestido, sabe? Mas ficou bonitinho mesmo o vestido dela. Então cada uma fez um modelo. Eu acho que o que a gente puder passar para frente a gente tem que passar. Seja costura, seja bordado, seja benzeção, seja qualquer coisa que a gente faz, eu acho. Fazer uma quitanda, fazer um doce. Meu marido diz que eu sou muito doceira, sou muito quitandeira. Sou mesmo. Gosto mesmo. Ainda outro dia fui na aula do remédio. Meu horário é de sete e meia às dez e meia, porque eu tenho que descer para fazer almoço para ele. Eu tenho que andar mais de meia hora para eu chegar em casa, pois para ir eu vou de carro, mas para voltar as colegas ficam e eu venho embora. Então quando eu perguntei as horas, diz que já eram onze e dez, e eu tinha que dar almoço meia dia. Ah, eu vim que vinha voando, caminho a fora. Quando cheguei lá em casa, faltavam dez para o meio dia. Eu cheguei, ele já estava na minha frente. Cheguei, ele já estava lá mexendo com as panelas, falei para ele assim: “Hoje eu atrasei, estou atrasada, estou chegando agora”. Minha nora estava lá arrumando o almoço, eu falei: “Não, pode deixar que agora eu acabo de tomar conta, você pode ir embora”. Deixei ela ir embora. Fui terminar o almoço para ele. Então, esse dia que eu fui mexer com os remédios, teve uma dona que falou comigo assim: “Ah, porque eu queria um xarope, eu queria isso, eu queria aquilo”. Eu falei: “Minha filha, sinto muito, mas isso eu não posso fazer”. Eu falei: “O remédio é dado pelo médico. Você vai lá no posto, faz a consulta com o médico e ele te dá o remédio. Você vê qual remédio que você precisa e ele te dá, porque eu não posso fazer isso. Eu apenas ajudo fazer. Se eu te dou um remédio e se ele te faz mal, você vai falar que foi nós que demos. Então nós não podemos fazer isso, não. Mas lá no posto tem bastante, então vai lá no posto que o médico te dá”. Ela falou: “Ah, então tem que ser no posto?”. “É, tem que ser no posto. Como é que eu vou te dar um remédio sem saber o que você tem.” E então, a gente tem hora que a gente fala, mas elas ficam achando que a gente é ruim. Mas não é. Eu falei: “Se você quiser fazer um chá, nós te ensinamos. Você faz lá na sua casa e toma, porque tirar o remédio daqui para dar nós não podemos, não. Nós não somos autorizados”. Eles, às vezes, até não gostam, não, sabe? Ficam com raiva da gente, mas o que a gente pode fazer? Se fosse uma coisa que tivesse nas minhas mãos, aí eu ajudaria. Igual lá no Cairós, o que a gente precisa, a nutricionista ensina para a gente. Você quer fazer um bolo diferente e ela sabe, na mesma hora ela passa a mão no lápis, escreve e dá para a gente. Porque no dia da terceira idade, na hora do nosso lanche, é ela que faz tudo. Ela pergunta: “Olha, vocês gostaram das coisas que eu fiz?”. A gente fala: “Gostamos”. Que que a gente gostou mais, nós temos que falar. Ela fala: “Se vocês quiserem a receita, está aqui”. A gente já pega a receita com ela. Porque as minhas receitas são totalmente diferentes das dela, porque as minhas receitas são do tempo da minha mãe. Eu aprendi a fazer quitanda com minha mãe. Minha mãe fazia era masseiras grandes assim de quitanda.
P2 – O que é quitanda?
R – Quitanda é... É porque fala quitanda. Hoje São as coisas que tem na padaria, um pão, um bolo, só que são bem diferentes. É uma coisa assim, mais bem feita, mais saudável, mais bem preparada, com mais capricho, mais tempero. Por exemplo, eu faço um bolo em casa que ele leva ameixa, ele leva passas, ele leva nozes, ele leva figo, esse figo verde picadinho, leva noz moscada, leva canela, leva conhaque, leva bastante ovos, leva erva-doce, canela em pó. Tudo leva nele. Então quando você faz, que aquilo está assando, aquilo cheira. É muito diferente. É igual a queca. A queca, você compra uma rosca na padaria é diferente. Faz uma queca, é tipo da rosca. Mas a queca é feita só com ovo, ela é amassada só com ovo.
P2 – Só com ovo?
R – Só com ovo. Só com farinha, ovo, fermento e açúcar. Mas se você botar a massa no ponto é feita só com ovos. Até ficar no ponto de você pegar ela e pôr na forma. Ali vai crescer, vai assar, na hora que ela está crescendo você pega o doce, pica o doce, o sidrão, ou o doce de laranja. Pica os pedaços compridos assim, e põe. Ela vai crescendo, os doces vão descendo. Quando você põe no forno, aquele doce já afundou. Quando você tira ela da forma, aquele doce está no fundo. Então você corta o doce, põe ele no meio, se chama queca. Até essa menina, essa nutricionista lá do Cairós, ela quer essa receita, sabe? Porque ela faz, mas não é igual a nossa, é um quilo de farinha e uma dúzia de ovos. Se fazer cinco quilos são cinco dúzias de ovos, e para bater aquilo? Que é batido nos braços, sabe? Tem que bater e tem hora que quando você termina, você está suando, porque a massa fica muito pesada. Dependendo da quantidade pesa. Força muito os braços da gente. Então isso tudo foi ensinado pela minha mãe. Tem um biscoito que eu faço, lá no Cairós não fazem, não, de vez em quando as donas estão lá assim: “Dona Lucília, cadê os biscoitos? Cadê a broa de fubá que a senhora faz? A senhora precisa de fazer umas broas de fubá”. Esse último dia que eu fui o engenheiro perguntou assim, o agrônomo: “A senhora não trouxe aquela broa gostosa para nós!” Eu falei: “Até que eu queria fazer”. Porque eu faço, eu levo, cada hora levo uma coisa. Para fazer um lanchezinho ali, porque ficar ali de sete horas até onze horas, eu sei que tem dia que ficam ali até duas horas. Eu vou embora, mas elas ficam, então cada um leva uma coisinha para comer. Chega lá a Taís faz um chá. Outra hora nos manda fazer. Nós tomamos aquilo com chá, então ele perguntou porque que eu não levei a broa. Eu falei com ele: “Não, eu não trouxe a broa, porque ontem eu não tive tempo de fazer a broa. Essa semana para mim está muito corrida”. Eu falei: “Ontem eu lavei roupa, passei roupa, fiz tudo para eu poder, hoje, estar aqui. Então eu não tive tempo. Até que tem lá, tem o fubá, tem a coalhada, tem todo o preparo, mas não deu para eu fazer. Eu gostaria de fazer, mas não deu”. “Dona Lucília, a senhora aprontou com nós, hein! Porque a senhora não trouxe a broinha hoje”. Eu falei: “Não, no próximo dia que eu vier eu vou trazer a broinha para vocês”. Outro dia eu fiz um pão de ló, levei. Ah, eles adoraram. Levei broa e levei pão de ló. Eles adoraram. Ponho em uma vasilinha, cortadinha e levo. E lá faz o chá, porque tem o fogão, então lá nós fazemos o chá.
P2 – Dona Lucília, mas tem uma diferença entre a broa e a broinha?
R – Tem.
P2 – Qual que é?
R – Você fala broinha de fubá de canjica?
P2 – A broinha que vai erva-doce, com um oquinho dentro, fica meio úmida.
R – Ah, é a de fubá de canjica.
P2 – É?
R – É. De fubá de canjica.
P2 – É, de fubá de canjica e erva-doce?
R – E erva-doce. Pode pôr erva-doce, pode fazer ela só com o sal. Pode fazer com o sal e o açúcar, que aí mistura. E pode fazer também só com um pouquinho de açúcar. Tem as medidas certas do açúcar que pode pôr. Ela fica ocadinha dentro. E tem esse que eu estou te falando que...
P2 – Broa?
R – É. Mas pode fazer ela também broinha.
P2 – Mas a broa é o quê? Como se fosse um bolo?
R – É. Como se fosse um bolo, só que nós assamos ela no tabuleiro. E no tabuleiro quadrado, cortando ou então enrolado na tigela, mas a minha menina gosta que faça enrolado na tigela.
P2 – Enrolado como?
R – Você pega uma tigelinha e, em casa tem umas tigelinhas assim, molha ela, passa na farinha de trigo para a farinha agarrar nela. Você pega uma colherada daquela massa e põe ali dentro da tigelinha. Dá uma balançada e vira. Ela é a mesma broa. E aquela outra é diferente, aquela também...
P2 – Fubá de canjica?
R – É, fubá de canjica. Aquela gasta muito ovo.
P2 – É?
R – É. Ela é feita com bastante ovo. Porque é quase que só ovo que a gente põe na massa. Põe quase leite, esses trem a gente põe muito pouquinho, mais é ovo mesmo. Agora a outra não, para um quilo de fubá você põe quase dois litros de coalhada. Ali você põe erva-doce, põe açúcar, põe canela em pó. Quando ela assa fica aquele cheirinho de erva-doce e canela. Então é essa que o engenheiro estava me cobrando. Que eu fiz picadinho e levei. Então a gente faz vários tipos de quitanda. É igual biscoito de vento. O biscoito de vento, ele fica ocado igual a broa.
P2 – É?
R – É. E chama biscoito de vento. Porque a gente fala biscoito de vento? Porque fica ocado. A broinha também fica. Pois é, ele também fica. Então fala biscoito de vento. Mamãe me ensinou falar biscoito de vento. Esse é feito também com angu. Você tem que pôr um tanto de água, um tanto de gordura na panela. E ponha um tanto de farinha. Mexe aquele angu, põe em uma gamelinha, deixa ele esfriar. Depois você vem com canela, erva-doce, põe ali. Vai deixando a massa esfriar. A hora que a massa estiver fria você começa a ir quebrando os ovos. Quando aquele angu fica duro, você vai quebrando os ovos e amassando. De acordo com o que você viu que a massa ficou no jeito de enrolar, você enrola os biscoitos e põe no tabuleiro. Lá nós enrolamos. É grande. Não gosto de fazer nada pequenininho, assim não, sabe? Não gosto, não. Mamãe me ensinou a fazer grande, então eu gosto de fazer maior. Então enrola ele e põe ele em cima do tabuleiro. E não pode ficar com as pontas finas, porque se ele ficar com as pontas finas, na hora que ele está assando ele queima as pontas. Ele tem que ficar enrolado igual. Quando assa, você vai comer e está ocado dentro. Esse é feito com farinha de trigo, porque tem o papa ovo, mas o papa ovo é feito com polvilho. E o biscoito de vento é feito com a farinha de trigo. E a broinha é feita com o fubá de canjica. Tem lá em casa também o fubá de canjica. Comprei o fubá de canjica, comprei o fubá de __, está tudo lá. A hora que eu chegar lá é que eu vou fazer.
P1 – Quando que a senhora virou mestre Griô?
R – Ah, tem pouco tempo. Deve de ter uns seis meses.
P1 – E qual foi a sensação quando convidaram?
R – Não tive sensação nenhuma. Até não acreditava. Nós não acreditávamos. Eu e o Moisés não acreditávamos. Moisés é quem mora perto de mim. Passava: “Lucília, você está acreditando que vai sair esse negócio?” Eu falava assim: “Ah, Moisés, não sei. Vamos esperar para nós vermos o que vai dar”. Porque fizeram a reunião e nos chamaram, para falar com nós. Chamou eu, ele e mais três. Falou que nós tínhamos sido sorteados, e que nós íamos ser mestre Griôs. Depois é que fizeram, antes de fazer a filmagem na casa de cada um, eles começaram a falar conosco o que era, o que nós íamos ter que fazer, e escreveram lá no papel. Ela disse assim: “Roda de viola, tantas horas”. Aí é que a gente começou já entrosar e ver que ia sair, esse negócio. Mas nós não sabíamos nem que nós íamos ganhar nada. Depois foi que eles falaram conosco, que nós íamos ganhar quase um salário, que eles iam depositar para nós. Para nós levarmos o CPF, identidade, um comprovante de residência para poder fazer inscrição na Caixa Econômica. Nós fomos. Mandaram o carro lá do Cairós nos levar. Nós fomos lá em Novalina e fizemos a inscrição. Depois, fizemos a inscrição mas não ligamos para aqui também, não. Ficou lá. Depois que a Rosana falou conosco, que tinha dinheiro lá para nós, que era para nós ir receber, que tinha um dinheirinho lá para nós. A outra que mora perto de mim, coitada, nem sabe sair sozinha, ela foi lá em casa: “Você foi lá ver se tem dinheiro?”. Eu falei: “Não fui, não!”. “Se você for, você me leva?”. Eu falei: “Ah, perfeitamente. Te levo. Só que eu não vou de carro, não”. Porque quando eu posso meu marido me leva de carro, quando ele pode. Porque a folga dele é quarta, sábado e domingo, mas tem dia de quarta que, às vezes, eu estou ocupada e ele não pode me levar. Eu falei com ele: “Ah, nós vamos de ônibus”. Eu fui de ônibus mais ela, levei ela lá. Ela também colocou a senha, porque nós estávamos com o cartão, mas não tinha senha. Ela pôs a senha, a letra, recebeu. Cheguei no BHShopping perguntei para ela: “Você quer comprar alguma coisa? Porque aqui tem dois supermercados enormes”. “Ah, não. Não quero comprar nada, não”. Eu falei: “Se quiser está na hora. Aproveita que nós estamos aqui”. Ela pegou e falou: “Não, não quero comprar nada, não. Quero ir embora”. Eu falei: “Então vamos esperar o ônibus e vamos embora”. Nós foi embora, entreguei ela lá na casa dela. Ela mora sozinha. Eu falei: “Agora que chegou na sua casa, você pode ir”. Desceu, agradeceu. Agora esse mês não sei se ela já foi. Agora ela já tem a senha, tem tudo, ela pode mandar até o irmão dela receber para ela. E eu também tive que sair para cá, não pude levar ela, mas se ela quiser ir a hora que eu chegar eu levo ela lá, também não tem problema, não.
P1 – O que a senhora acha da ação Griô?
R – Acho ótima.
P1 – Qual a importância dela?
R – A importância dela é que eu achei que a gente está participando de alguma coisa diferente. Porque a gente não fazia uma coisa diferente. Então agora a gente já está fazendo alguma coisa diferente, conhecendo gente nova, conhecendo mais as colegas. Porque quando nós estávamos na roda de viola sempre tem mais gente estranha. Ainda outro dia lá, nessa roda de viola, tinha um senhor me dando a mão e eu não sabia quem era o senhor. Nossa, brinca de roda, na hora que falava assim: “Fulano, me dá um abraço”, ele vinha me abraçava naquela maior alegria. Quando chegou meu menino em casa: “Mãe, quem estava te abraçando era meu patrão”. Eu falei: “Ah, não acredito que seu patrão estava brincando de roda conosco”. “Não, mãe, pois é, era ele”. Quando foi um dia desses, terça-feira ele foi lá em casa levar um freezer. Ele falou comigo assim, eu falei com ela assim: “Luciene, esse moço que estava lá na roda”. Ela disse: “Então, era ele”. Ele virou e falou assim: “Ah, mas sua mãe cantou muito bonito”. Nossa, abraçou. “Mas sua mãe é alegre demais”. Eu falei: “Pois é, eu falei com ela que achava que era você, mas que não tinha certeza, que eu não te conhecia”. Era a primeira vez que eu tinha visto ele lá na roda. “Achei estranho você lá no meio da roda, brincando conosco”. Ele falou assim: “Ah, eu gosto. Comigo não tem disso, não”. Uma pessoa assim, simples. Eu admirei quando ela falou que era ele. Admirei porque ele é uma pessoa milionária... Ficar no meio de nós pobres lá, cantando. Estava ali brincando de roda. E chegou uma outra lá, com os meninos também e entrou tudo na roda. Eu fiquei, a gente fica feliz, a gente está conhecendo gente nova, igual aqui a gente está conhecendo os outros, também de outros estados. Então a gente fica feliz, porque eu nunca participei de uma coisa assim, não.
P1 – Primeiro encontro da senhora é esse?
R – É, primeiro é esse. Na camisa está marcando que é o segundo. Pois é, o primeiro para nós é esse. Então eu nunca participei de encontro nenhum, nunca fui. Meu menino é que participou de um encontro aí, há tempos. Está mais novo, esse que é deficiente. E eu nunca tinha participado. Sozinha eu saio assim, com o marido, vai em algum lugar, mas volta rápido. Mas participar assim, no meio de gente estranha, nunca participei, não. É a primeira vez. Então fico muito satisfeita, muito satisfeita mesmo. Só de conhecer as pessoas novas, a gente já fica satisfeita. Porque a gente não só conhece mas faz amizade. Quando tiver um outro encontro esse que nós já vimos, já é uma amizade que a gente tem, que um fica conhecendo, igual vocês aqui, estou conhecendo vocês. Se nós encontramos em qualquer lugar já é uma amizade nova que nós vamos ter. Então, eu fico muito feliz de ter as amizades novas. Igual essa Taís. Essa Taís para mim é amizade nova, é uma pessoa maravilhosa. Maravilhosa, tem um cuidado imenso com a gente. Uma porção de gente já perguntou se ela é minha filha. Ela falou: “Não, ela não é minha mãe, não. Nós somos amigas”. “Não, mas vocês parecem”. Ela é uma pessoa maravilhosa. E lá eles perguntaram para ela lá no Cairós, como que ela fez para me pescar. Porque tem umas outras colegas lá que me chamaram para fazer o curso no remédio, inclusive eu não estava gostando, então eu preferia sair. Porque já tinha feito esse outro que eu já falei, então eu preferi sair. Eu falei: “Não, eu não estou gostando. Eu não vou ficar”. Ela pega e fala com meu marido que precisava de mim, que era para ajudar nos remédios. Eu fui ajudar nos remédios, nisso ele perguntou como ela fez para pescar, “Porque a Taís fez para pescar a senhora, que a senhora não quis ficar com nós no curso, e agora a senhora está ajudando nos remédios?” Eu falei: “Não, ajudando nos remédios eu estou muito satisfeita. É um prazer imenso ajudar as pessoas”. Gosto muito. Adoro ajudar. Se chegar na minha casa e falar assim: “Eu estou precisando da senhora para me ajudar”, se eu não puder, eu fico triste. Fico triste de eu não poder ajudar, sabe? Então eu gosto muito de ajudar as pessoas, seja para o que for. Seja na alegria, na tristeza, precisou de mim, eu estou à disposição. Se eu não puder, eu fico triste. Porque nem sempre a gente pode. Tem hora que a gente não pode. A gente tem que fazer o impossível, tem hora, para poder ajudar. Então, gosto muito. Gosto de ajudar mesmo. “Ah, vamos ali. Vamos me ajudar”. Lá vai eu.
P1 – Só para encerrar sua entrevista, eu queria saber o que a senhora achou de ter dado essa entrevista para a gente?
R – Achei ótimo. Estou feliz, muito feliz de poder estar aqui, falando um pouco da minha vida para vocês. É o que eu posso fazer é isso. Se eu tivesse mais coisas para contar, eu contaria. Às vezes fica alguma coisa que a gente esquece, não é porque a gente não quer falar, não. Porque minha vida é um livro aberto, certo? Não tenho nada a esconder de ninguém. Nem da minha família, nem de vocês, nem de ninguém. Se precisar de mim eu estarei a disposição.
P1 – Obrigado, então, pela entrevista.
R – De nada. Se vocês forem lá onde eu moro, se um dia vocês forem lá, vocês aparecem na minha casa, já tem meu endereço. Eu moro na rua Dona Maria da Glória, 609. Vocês passam lá para vocês tomarem meu café.
P2 – Com certeza.
R – Se não tiver bolo, nós fazemos. Doce, eu tenho certeza que vocês acham. Eu gosto muito de fazer doce, sabe? Eu conheço um médico ali na Savassi, já tem, meu menino está com 42, tem mais de 30 anos que eu conheço ele. Então, eu tenho sempre que fazer um docinho para levar para ele, porque ele é apaixonado pelos doces e os bolos. Sabe o que ele falou comigo a última vez que ele teve lá em casa? Eu tinha feito um bolo assim, em uma forma redonda, forma grandona. Ele comeu do bolo. “Dona Lucília, a senhora tem que fazer desses bolos para vender”. Eu falei: “Não, doutor, para vender não. Faço para nós comermos. Igual o senhor está comendo”. “Mas esse bolo está uma delícia”. Eu falei: “Então leva para o senhor”. Ele falou: “Mas e a forma, como é que a senhora vai fazer?”. Eu falei: “Não vou tirar da forma, não. Leva com a forma. Você trazendo a forma para mim, o bolo você pode levar”. Ah, levou o bolo. Sentou na mesa, tomou café, comeu bastante doce e foi embora. Ele mora ali na Savassi, na rua dos Inconfidentes. Então, de vez em quando, tenho que passar lá e deixar um doce para ele. Gosta de doce. Eu falei: “Doutor, o senhor parece formiga, hein?” Nós brincamos muito. “O senhor parece formiga”. Mas também é assim, é um médico que se eu precisar dele, o que ele puder me ajudar ele me ajuda. Me leva lá para casa dele, às vezes fala: “Vamos lá em casa, vamos almoçar”. Eu falo: “Não, não quero almoço, não. Estou com pressa”. Então ele vai lá em casa, come o doce, eu levo doce para ele, levo quitanda para ele, levo fruta para ele. Tem um pé de beribá lá em casa, não sei até se vocês conhecem essa fruta. Ela parece pinha, mas ela não é a pinha, ela é diferente. Eu ponho aquela porção, quando é época dela, e encho uma sacola e levo para ele. Disse: “Ih, hoje eu vou deitar e rolar. Vou comer essas frutas”. Essa menina conhece, a Cris. O dia em que ela foi filmar lá em casa o pé ainda tinha muita. Eu apanhei para ela, para a Taís, elas todas foram levando essa fruta. Então tudo que tem lá em casa eu gosto que leva para ele, sabe? E eu levo. Só se eu não puder ir lá. Estava pensando em dar umas frutas para ela, e não podia levar para ele. Eu passei lá um dia, entreguei para a secretária dele. “Toma, entregue para ele aí, que eu estou com pressa, não posso demorar”. Ela: “Não, pode deixar que eu entrego para ele”. Então qualquer hora que eu chegar lá, se tenho consulta marcada, ele dispensa a pessoa que tiver assim, no meu horário que eu chegar, ele: “Espera um pouquinho que eu vou atender Dona Lucília primeiro”. E passa na frente. Não marco consulta com ele, não. Ele é uma pessoa maravilhosa, mas adora doce, fruta. E chega na casa da gente não gosta de bebida também, não. Nem refrigerante, nem cerveja, ele gosta é de café. Se você chegar lá: “Doutor, eu estou fazendo uma broa”. “Então eu vou esperar”. Senta lá e fica esperando a broa assar. Enquanto a broa assa, eu faço café. Toma café, come bastante broa e vai embora. Então eu não gosto de fazer nada pouco, nada pequenininho. As meninas falaram no Cairós, lá na festa dos remédios, na formatura dos remédios, que eu tinha que fazer uns biscoitinhos, mas pequenos. “Gente, eu não gosto de fazer pequeno”. Eu fiz mais de 400 biscoitinhos. Porque eu estou acostumada a fazer grande. Eu fiquei horas inteiras enrolando biscoitinho. Até falei com minha nora: “Ah, não vou enrolar mais, não. Já estou cansada de tanto enrolar biscoitinho”. Enchi uma vasilha assim, levei. Chegou lá eles comeram, levaram, sabe? “A senhora fez biscoito demais”. Eu falei: “Vocês falaram que queria três quilos de farinha de biscoit. Eu fiz, está tudo aí. Vocês comem, vocês levam, fiquem à vontade”. Teve gente que levou, adorou. Então eu não gosto de fazer nada pouco. Doce, você pensa que eu gosto de pôr doce na mesa? Eu digo que não. Eu ponho lá a vasilha grande, você serve o que você quiser. O que você gostou ali você leva. Ainda outro dia chegou um moço lá do ponto de ônibus, lá em casa e falou comigo, chamando. Eu olhei para ele assim. “A senhora não está me conhecendo, não é, dona Lucília?”. Quando ele começou, eu falei: “Ah, o senhor é seu Jorge”. “É, sou eu mesmo”. Eu falei: “E onde o senhor está agora?”. “Agora eu estou lá no shopping do Eldorado”. “Ih, o senhor mudou para muito longe. Vamos entrar para o senhor tomar um café”. “Ah, dona Lucília, não, café não”. Eu falei para ele: “Então vamos entrar para você tomar um refrigerante, uma água, um doce”. “Tem doce?”. Eu falei: “Tem”. Sentou lá na mesa, eu fui lá busquei a vasilha de doce, coloquei lá. Comeu doce, levou doce, foi embora feliz da vida. Diz que adora meu doce. Comeu, ainda foi levando duas vasilhas de doce. Então não gosto de fazer nada pouco, não. Gosto de fazer é que chega, dá para os filhos, dou para as pessoas que eu gosto, sabe? Às vezes eu nem como aquilo, mas gosto de fazer. Igual doce de laranja. Doce de laranja é o doce mais trabalhoso que tem. Tem que sentar, cascar, tirar miolo, cozinhar, curtir, trocar a água duas vezes por dia até sair o amargo, depois é que você vai pôr na calda para fazer o doce, para poder pôr na vasilha e enlatar. E é um doce que você não pode tomar o ponto dele no mesmo dia. Você fez hoje, deixa ele em uma vasilha, amanhã você torna a pôr no fogo, você tira o ponto, pode pôr na vasilha e guardar. Mas que ele é trabalhoso porque você tem que ficar trocando a água dele duas vezes por dia. E você pensa que eu faço doce com uma dúzia de laranja? Não. A menor quantidade que eu faço é 60 laranjas. Ano passado sabe com quantas laranjas eu fiz o doce? Mais de 300. É, eu fiz a primeira vez, voltei lá, apanhei mais, depois voltei lá para fazer o resto, na casa da patroa do meu marido. Então eu fiz questão de contar. Eu fiz com mais de 300, peguei o resto e dei para minha prima. Falei: “Faz aí o resto, porque eu não quero mais não. Já fiz doce demais. Estou com a minha mão doendo de cascar”.
P2 – Obrigada, então, Lucília.
R – De nada.
(FIM DA PRIMEIRA ENTREVISTA)
(SEGUNDA ENTREVISTA - Zé do Pife)
Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Zé do Pife
Entrevistada por Cláudia Leonor e Tiago Majolo
Serra do Cipó, 07/07/2007
Realização: Museu da Pessoa
MB_HV018_Lucília Francisca de Souza-Zé do Pife
Transcrito por Lúcia Nascimento
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
TOCANDO FLAUTA
“Tenho saudade da minha infância. O meu pai que já morreu. Vou fazer um verso de gado. Claudinha está aqui, mais eu. E você não me conhece, quem dá no pique sou eu. Gado hei. E na Serra do Cipó tem coisa da natureza. E as águas cristalinas descendo na ribanceira. Vou-me embora com saudades do povo da redondeza. Gado hei”.
R2 – Tem outro, mas eu me esqueci. Eu vou começar agora com você agora.
P2 – Ô, meu Deus.
“Ô cabra, tu és bonita quero crescer a teu lado. Domingo eu sonhei contigo nos campos verdes bordados. Na palma da sua mão nasceu um pé de saudades. Gado hei. Como você é bonita, eu te pergunto, por quê? Tu tem a voz carinhosa, chega a gente ter prazer. Fala aí mulher bonita, você tem que aparecer. Gado hei. Você tem os olhos pretos, sobrancelhas de veludo. Eu estava no botequim fumando um Hollywood. Se o teu pai não tem dinheiro, mas teus olhos valem tudo. Gado hei. O Cláudia me dá um beijo, só não quero no pescoço. Quero no bico do peito, em um lugar que não tem osso. Que é para quando ficar velho, me lembrar que já fui moço. Gado hei. Hei. Gado manso. Hei, hei , hei. Bonito gado. Hei, gado. Hei. Hei. Hei”. Obrigado.
P2 – Obrigado o senhor. Estou quase chorando.
R2 – Está quase chorando? Pois é. Faltou uma outra aqui, mas que eu esqueci. Deixa eu ver.
P2 – Seu Zé, você fez uma poesia para o seu pai?
R2 – Poesia para o meu pai.
P2 – Isso. O senhor conta a história dele?
R2 – Você escutou?
P2 – Não. Eu queria que o senhor contasse para a gente.
R2 – Sim. É da morte do meu pai.
P2 – O senhor pode contar para a gente? Cantar e contar?
R2 – É. Isso é um poema que eu fiz. Eu não escrevo. Eu vou fazendo de pouquinho em pouquinho e vou montando, depois que eu decoro é que eu vou cantar, ou que vou ler, como quem eu estou lendo. Que é o seguinte: meu pai morreu em 14 de agosto do ano de 2002. E eu vim a saber em 13 de setembro, faltando um dia para um mês. Eu não sei o que foi que aconteceu. Tudo eu coloquei no meu poema. A minha mãe morreu no dia 19 de janeiro do ano de 2006. Fiz poema dela também. Que isso aí eu vou fazer tudinho, para modo de ir para imprensa e então fazer tipo um livrinho de literatura de cordel.
P2 – Legal!
R2 – Então eu u fiz assim: “A 14 de agosto meu pai chegou a morrer. Aí, meu Deus, o que que eu faço? Nada pude fazer. E a 13 de setembro foi quando eu vim saber. Foi a 14 de agosto, do ano de 2002. Meu pai plantava feijão para comer baião de dois. Fez uma lotada feita, feita de talhas de arroz. Meu pai é paraibano, de Conceição de Pinhocó. Conheceu ___ com ___. Dos açores do estado, Boqueirão é o maior. Meu pai me contava história, história de lampião, Zé Pereira, ___, os cangaceiros do sertão. No final ele falava, no final do João Durão. Meu pai um dia me chamou, vamos lá no Roçadinho, eu andando ao lado dele e vendo ele rezando. Pelo silêncio da noite nós vendo os grilos cantando. No início desse poema é da mesma mãe querida, eu lembro que ela dizia: “O que é isso, meu Deus? Meu filho tudo espalhado. O que podia estar aqui, mais eu”. A minha mamãe querida, ausente dos filhos seus, ela ainda mora em São Paulo, podendo estar aqui mais eu. Dos nove filhos que teve o mais romântico sou eu. Minha mãe se levantava, se sentava na cozinha, para fazer louça de barro, frigideira e panelinha, cuzcuzeira e pé de pote e caco de torrar farinha. A minha mãe levantava, pegava a sua enxada e ia lá para Gruta funda. No caminho ela parava para selar covas de milho. E os sapos cantando as lágrimas, cachoeiras do rio. Eu era pequenininho, ia para os terreros brincar. Ia para os pés de caju tirar castanha para jogar. Eu conheci Zé Virgulino e sua filha Guiomar. A casa velha de mãe foi meu pai que trabalhou. Eu comprei um rádio velho, sim, da marca vencedor. Esse rádio eu comprei a Inácio de João Loiô. A casa velha de mãe era rodeada de flor, imitando as ___, perfume das beija-flor. E a casa de seu Jesus era rancho dos cantador. Trabalhei muito na roça ____. Ela fazia o almoço e ia levar no roçado. Para almoçar xerém com leite e ver Jorge animado. A casa velha de pai é a de Taipas, sim senhor. O barreiro do meu pai tanto suor derramou. E o velho ___marco, de tão velho se acabou. Da casa do meu avô vê o roçado e ___. As areias tão branquinhas, formigueiro para todo lado. Pé de ___ caiu pelo vento derrubado. Lá na Serra Picote, tem ____ e baraúna, e tem grandes formigueiros formando torres de chuva. É de lá que a gente via a casa de seu Chico Souza. Também tem o gimbuzeiro, com as galhas dependuradas, as rochas prendendo as nuvens, enquanto as águas desabava. Trovão abalava a serra e as nuvens branca ficava. A minha mãe se levantava depois das chuvas paradas, para ver as águas do rio mas ___. Só via o branco das águas quando o relâmpago clariava. Quando era meia noite minha mamãe levantava”. A gente perde um pouquinho, que isso aí eu faço essas coisas assim de pezinho, em pezinho, vou decorando até. E em um momento eu esqueci, porque a gente fica um pouco meio nervoso.
P2 – Mas é muito lindo, seu Zé.
R2 – Mas esse poema ainda vai longe.
P2 – É a história toda sua?
R2 – É a história toda. Eu tenho que mandar escrever para ficar tudo certinho. Porque senão eu termino esquecendo.
P2 – Não. Mas o senhor já deu uma amostra fantástica.
R2 – Pois é. Muito bem. Agora eu vou citar outros poemas lá de Brasília, da ponte alta do Gama, que me pediram, uma mulher de uma fazenda lá. Amador que é o dono de uma chácara e ____, com três metros e sessenta de tronco. Isso é tudo poema que eu faço. Dona Ide fez uma festa lá na fazenda dela, a casa dela é de primeiro andar. Muito linda a casa dela. A casa estava lotada de gente, assim. Ela pediu para eu ir tocar lá um pouquinho, falar sobre a fazenda dela, o nome dela e tudo. O povo estava tudo presente. Eu olhei para o pessoal e falei: “Senhores, me deem licença que agora eu vou cantar. Essa casa é muito linda, casa de primeiro andar. Que a fazenda mais bonita é a Leão de Judá. E na chácara Bom Sucesso mora um casal de valor. Eu confio muito neles na sala e no corredor. Dona Silvia mais seu Zé, caseiros do Amador. Meu amigo a Assunção ___, praia de Boa Viagem, como é lindo o oceano. Além de ser meu amigo, ele é pernambucano. Encontrei um pé de anjico, ventando forte, ele agüenta. Só de tronco eu medi foram três metros e sessenta. Tem mais 300 anos e mais 1000 de potência”. Tem mais coisa, mas eu vou parar por aqui.
P2 – Obrigada, seu Zé.
R2 – De nada. De nada.
P2 – Depois a gente vai mandar fazer cópia da entrevista, desse trechinho que o senhor recitou para a gente e a gente vai mandar para o senhor com umas fotos também.
R2 – Com isso que saiu agora?
P2 – Isso.
R2 – Meu Deus do céu.
P2 – E eu queria dar um abraço no senhor, obrigado pelo poema. Fiquei muito emocionada.
R2 – Eu que fiquei. Eu que te agradeço, e todo mundo que gosta de mim e do meu trabalho.
P2 – É o primeiro poema que eu tenho com meu nome. Obrigada.
R2 – É, com seu nome.
P2 – Obrigada.
R2 – Meu Deus do céu. Está vendo essas duas figuras que estão aí.
P2 – Ah, eles são...
R2 – Eu presenteei eles, cada qual com uma ____. E você ____. Eu não sou culpado se não aprenderem, mas guarda lá no fundo do guarda-roupa, para você se lembrarem que foi seu Zé que lhe deu. E se, vocês não deem queda nele, não botar no sol, para ele não baixar, ele fica para filhos e netos, tataranetos, e escanchanetos.
P2 – Obrigada.
R2 – Meu Deus do céu. Vocês não sabem como eu tenho prazer e como gosto do meu trabalho. Não só aqui, não. Vocês não veem nada. Lá em Brasília o povo corre atrás de mim. Gente se encontra comigo as lágrimas descendo nos olhos.
P2 – É, eu estou segurando.
R2 – Porque acha bonito. Tem gente que vem com aquela mágoa, não sei o quê, sentindo uma coisa triste dentro e quando vê eu tocando diz: “Seu Zé, o senhor me alegrou. Eu vinha triste, eu vi o tom do seu pífalo e me alegrou. Fiquei alegre, porque o senhor alegra todo mundo”. O povo lá em Brasília gosta tanto de mim, graças a Deus. Tão boa hora eu falo, que um dia eu ia lá no sudoeste, andando. Que eu só ando nas ruas de Brasília andando, eu não tenho pressa. Minha andada é assim bem devagarinho. Não tenho pressa para andar. Ia tocando assim, como quem ia descer para parar do ônibus, um senhor estava lá __, segundo que eu não sei, eu sei que ele mora em um apartamento, ele não me falou. E ele escutou o tom do meu pífalo lá em baixo, não sei que altura ele estava. E ele ouviu aquilo, acho que ele foi lá buscar a roupa, não sei onde é que estava, ele pegou a malinha e desceu. Quando ele desceu para me acompanhar eu já estava um pouquinho longe, mas eu sempre ia a tocar, ele foi, foi, eu já estava na parada do ônibus. Era até para ter perguntado o nome dele, decorar o nome dele e o endereço dele, mas eu fiquei tão alegre que eu até esqueci disso aí. Mas um dia eu vou encontrar com ele, que eu vou continuar passando lá e eu sei que ele vai vim conversar comigo. Quando ele chegou, ele com aquela malinha preta na mão, assim, era um sonho que tinha de eu comprar com meu dinheiro, mas não comprava porque ela é cara. Ela é de R$1800,00 a R$2000,00. Uma flauta transversal, profissional. Ele disse: “Oi, psiu, vem cá”. Eu vi ele com aquela malinha na mão, eu digo: “Alguma novidade?”. Cheguei perto dele, ele disse: “Olha, eu lhe chamei porque eu estava lá no meu apartamento e eu vi o senhor tocando com o seu instrumento, achei muito bonito. Eu fui pegar esse instrumento aqui, rapidamente desci e vim te encontrar aqui”. “Aí o que que é? O senhor vai me comprar um pífalo, o que quê é?”. Ele disse: “Não, eu vim, porque eu comprei isso aqui na loja, e eu não aprendi a tocar, e eu vi que o senhor toca instrumento transversal e eu vim te fazer esse presente, essa flauta”. Sem nunca ter me visto, sabe? Primeira vez que ele me viu. Eu fiquei alegre demais, eu agradeci ele demais. E ele disse: “E dá para o senhor me dar um pífalo desse de presente, que ainda que eu não aprenda a tocar, mas pelo menos eu fico com ele de presente para eu saber que foi do senhor. Eu digo: “Eu te dou até a sacola toda se o senhor quiser”. Ele escolheu. Eu fui e falei com ele: “Olha, não é que eu não queira dar para o senhor, não, você escolhe o tamanho que você quiser, grande, média, pequena, você escolhe aí. Ele disse: “Não, me dê um tamanho bom aí, para ver se eu aprendo”. Peguei uma média e dei a ele. Não sei se ele vai aprender. Pois é. Só para você ver que é, por onde eu ando todo mundo gosta de mim. Eu sou um cabra feio, (risos) que olha, eu sou um cabra feio, mas o povo gosta do que eu faço. É dentro de ônibus, só não dentro de avião que pode complicar o piloto lá, disse que faz barulho. Então eu já assisti pela televisão que está sendo proibido negócio de batuque lá dentro do avião. Mas aí eu nem perguntar eu não pergunto, porque eu sei que isso é uma verdade. Mas por onde eu ando, eu ando com meu instrumento. E onde eu estou eu toco, faço alegria para o povo, pergunto aos meninos que foi. Ah, você estava lá, essa noite lá no forró, não foi? Pois é. Você não estava, não. Você também não? Pois é, eu toquei no forró lá, comecei lá perto do som, depois eu saí para o meio do povo, e os meninos na zabumba, no triângulo fazendo cobrinha pelo meio dos cavalheiros, tudo dançando lá. Foi aquela alegria toda. Teve até uma menina que pegou o número do meu telefone, disse que eu vou vir tocar aí. É em outubro. Só que em outubro eu tenho uma viagem para fazer também, para Bahia, para Lençóis, e eu não vou saber qual é a data. Ela disse que vai me ligar depois. O Chico é quem sabe desse negócio aí. O Chico Simões.
P2 – Ah é? Mas vai dar certo.
R2 – E fora isso rapaz, tire essa coisa preta para o meu lado, porque senão, olha, eu vou sair na televisão e eu não gosto disso. (risos)
Recolher