Quando nasci, não veio um anjo torto, nem esbelto do meu lado. Nenhum desses que vivem na sombra ou tocam trombeta. Ninguém pronunciou meu nome, Liana. Notei logo cedo que os anjos apenas fariam parte da decoração do meu quarto e das histórias de minha mãe. E eram muitas contadas nas tardes após o almoço. Ela, nordestina, de uma cidade pequena, sobrava causos para contar para os quatro filhos, sentados na mesa de jantar. Mal sabia “mainha”, que ali, ela formava um pedaço meu. Se as histórias eram reais, nunca saberei, mas a verdade que colocava em suas palavras, deixava suas crias boquiabertas. Dona Luzia adorava trazer como tinha sido sua infância. Bebíamos dela como se estivéssemos vivenciando as brincadeiras. Cantava as cantigas de roda da época e suas traquinices. Lembro dela lavando a louça e cantando “Olê, mulher rendera, olê mulhé rendá, tu me ensina a fazer renda, eu te ensino a namorá”. Meus pais tinham um linguajar próprio. Um "pernambuquês" que qualquer gramático ou qualquer Bagno invejariam. Era zambeta, fuxiqueira e moringa. Fora abestalhado, afolosado, aperreado, avexado, chapoletada, oxente e as dores de veado que sentia. Cresci nesse meio colorido, com o imaginário a mil. Curiosa, sempre ficava ali, à espreita para ouvir as conversas dos adultos. Gostava de ouvir as novidades da família ou o rádio na AM com aquelas cartas que mais pareciam novelas. “Liana (com aquele sotaque carregado), não pode, essas coisas não são para sua idade”. Dava com os ombros e no dia seguinte continuava com minhas manias. Minha infância tem cheiro de terra molhada, principalmente de Pirassununga, na casa da tia Socorro. Ahhhh, saudades daquele quintal! Ali, saíamos da loucura da cidade de São Paulo, do confinamento do apartamento para brincarmos na rua, ouvirmos Kid Abelha e Michael Jackson. Foi lá meu primeiro contato com Vinicius de Morais, no bolachão da Arca de Noé. Sentia naquela cidade a...
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Quando nasci, não veio um anjo torto, nem esbelto do meu lado. Nenhum desses que vivem na sombra ou tocam trombeta. Ninguém pronunciou meu nome, Liana. Notei logo cedo que os anjos apenas fariam parte da decoração do meu quarto e das histórias de minha mãe. E eram muitas contadas nas tardes após o almoço. Ela, nordestina, de uma cidade pequena, sobrava causos para contar para os quatro filhos, sentados na mesa de jantar. Mal sabia “mainha”, que ali, ela formava um pedaço meu. Se as histórias eram reais, nunca saberei, mas a verdade que colocava em suas palavras, deixava suas crias boquiabertas. Dona Luzia adorava trazer como tinha sido sua infância. Bebíamos dela como se estivéssemos vivenciando as brincadeiras. Cantava as cantigas de roda da época e suas traquinices. Lembro dela lavando a louça e cantando “Olê, mulher rendera, olê mulhé rendá, tu me ensina a fazer renda, eu te ensino a namorá”. Meus pais tinham um linguajar próprio. Um "pernambuquês" que qualquer gramático ou qualquer Bagno invejariam. Era zambeta, fuxiqueira e moringa. Fora abestalhado, afolosado, aperreado, avexado, chapoletada, oxente e as dores de veado que sentia. Cresci nesse meio colorido, com o imaginário a mil. Curiosa, sempre ficava ali, à espreita para ouvir as conversas dos adultos. Gostava de ouvir as novidades da família ou o rádio na AM com aquelas cartas que mais pareciam novelas. “Liana (com aquele sotaque carregado), não pode, essas coisas não são para sua idade”. Dava com os ombros e no dia seguinte continuava com minhas manias. Minha infância tem cheiro de terra molhada, principalmente de Pirassununga, na casa da tia Socorro. Ahhhh, saudades daquele quintal! Ali, saíamos da loucura da cidade de São Paulo, do confinamento do apartamento para brincarmos na rua, ouvirmos Kid Abelha e Michael Jackson. Foi lá meu primeiro contato com Vinicius de Morais, no bolachão da Arca de Noé. Sentia naquela cidade a liberdade das brincadeiras contadas pela minha mãe. Me sentia criança! Era muito moleca. Gostava de bola, de corda, queimada e rouba-bandeira. De brincar de casinha, de fazer cabana no beliche. As brincadeiras de mão e bolinhas de gude. Dos rodopios do peão. Mas, quando lembro de tudo que aprontava quando era criança, a primeira memória que bate na porta é do velório da árvore. Morávamos em um condomínio com algumas árvores e plantas. Todas as vezes que descíamos para brincar (coisa muito rara), íamos brincar de fazer comidinha com as folhas e de pega-pega, com pique no tronco da árvore. Um belo dia o nosso pique amanhece cortado e jogado no estacionamento. Ficamos muito tristes! E para isso, pensamos em organizar o velório da árvore. Colhemos flores, colocamos ao lado dela, enfeitamos o tronco e fui ser a oradora, com meus irmãos e amiga ajoelhados rezando pela alma dela, naquela inocência de criança, na nossa maneira de encarar e trazer o luto através do brincar. Se há uma palavra que resuma esse ser e estar criança, essa é música. Sempre fui rodeada com os vinis do meu pai, tocando desde Roberto Carlos à Bezerra da Silva, Elba à Bete Carvalho, Leci Brandão à Agepê. E os pagodes dos anos 90. Vou confessar que meu sonho de menina era ser cantora. E, olhando para toda minha trajetória, as artes sempre estiveram muito presentes. Foi assim, nesse processo de amor à arte que me construí educadora. Hoje, a educadora que sou olha para a criança que fui. Vou entendendo que meu ser “arteira” dialoga com tudo que venho pesquisando na educação. Trago um pedaço enorme da minha mãe nesse processo. E percebo que a Liana pequena está viva! Que assim como Milton Nascimento “ Há um menino, há um moleque Orando sempre no meu coração Toda vez que o adulto balança Ele vem pra me dar a mão Há um passado no meu presente O sol bem quente lá no meu quintal Toda vez que a bruxa me assombra O menino me dá a mão Ele fala de coisas bonitas que Eu acredito que não deixarão de existir Amizade, palavra, respeito Caráter, bondade, alegria e amor Pois não posso, não devo Não quero viver como toda essa gente insiste em viver Não posso aceitar sossegado Qualquer sacanagem ser coisa normal Bola de meia, bola de gude O solidário não quer solidão Toda vez que a tristeza me Alcança o menino me dá a mão.
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