Projeto: BNDES-Rio
Entrevista de Durval José Soledade dos Santos
Entrevistado por Cláudia Leonor e Heloísa Gesteira
Rio de Janeiro, 24/04/2002.
Realização Museu da Pessoa
Código da Entrevista BND_HV002
Transcrito por: Samir Pérez Mortada
Revisado por: Gustavo Kazuo
P/1 - Para começar a entr...Continuar leitura
Projeto: BNDES-Rio
Entrevista de Durval José Soledade dos Santos
Entrevistado por Cláudia Leonor e Heloísa Gesteira
Rio de Janeiro, 24/04/2002.
Realização Museu da Pessoa
Código da Entrevista BND_HV002
Transcrito por: Samir Pérez Mortada
Revisado por: Gustavo Kazuo
P/1 - Para começar a entrevista, vou pedir para o senhor falar de novo o nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Durval José Soledade dos Santos, nasci em 3 de dezembro de 1948, aqui no Rio de Janeiro.
P/1 - E o nome dos seus pais?
R - Rafael Trindade dos Santos e Maria Mercedes Soledade dos Santos.
P/1 - A gente estava conversando um pouco da origem deles, né?
R - Isso.
P/1 - Como...
R - Minha mãe é baiana, de origem espanhola, e meu pai é do estado do Rio, do antigo estado do Rio. Da Região dos Lagos, de São Pedro da Ladeia. E a origem é alemã, pelo menos de parte da família.
P/1 - E como eles se conheceram?
R - O Rio era capital, e era muito comum as pessoas virem para o Rio para emprego. E eles se conheceram trabalhando juntos no Instituto de Registros Estrangeiros, que era um Instituto que havia ainda na década de 40, que usava todos os estrangeiros que entravam, entravam e eram registrados lá. Isso ainda existe hoje, é um departamento da Polícia Federal. É a parte de imigração mesmo, registro de imigração.
P/1 - E o nome dos seus avós?
R - Os quatro?
P/1 - É.
R - Por parte de pai, Agenor Santos e Ismênia Trindade dos Santos. Meu avô era Durval, Durval Soledade, e minha mãe era Maria da Glória Brandão Soledade.
P/1 - E dentro dessa mistura, espanhola e alemã, o senhor reconhece alguma coisa...
R - Eu acho que mais do espanhol. A gente até tem tipo mais do espanhol. Eu acho que o espanhol é mais presente, até o gosto musical é mais dessa linha, do espanhol, da cultura. Então eu acho que se eu tivesse que optar, eu optaria pelo lado espanhol, Ainda que já, por ter nascido e morado no Rio de Janeiro, o Rio de Janeiro, por si só, faz com que todo mundo seja indivíduo do Rio. O carioca é antes de tudo um entusiasmado pelo Rio. Então essa questão presente de quem é carioca é ser carioca. As influências não são tão importantes quanto esse fato.
P/1 - E seus irmãos?
R - São três irmãos. Eu sou mais velho e tenho mais três irmãos, todos nascidos no Rio. Todos moramos no Rio, continuamos morando no Rio. Você quer o quê? O nome deles, alguma coisa?
P/1 - Pode ser.
R - Por ordem, Luís, Gustavo e Márcio. E todos nós temos dois nomes: Durval José, Luís Emanuel, Rafael Gustavo e Márcio Antônio. Minha mãe tinha mania de botar dois nomes e de chamá-los quando a gente fazia alguma coisa errada. Quando vinham os dois nomes, pode ter certeza que... Não que você tinha feito errado, porque você estava sempre fazendo, mas que você foi descoberto, o que era pior.
P/1 – (Riso)
R - Então, se viesse os dois nomes era encrenca na certa.
P/1 - Eram quatro homens?
R - Somos quatro homens.
P/1 - E como era a convivência? Em que bairro vocês moravam?
R - Eu nasci em Ipanema, depois meus pais moraram na Tijuca durante um tempo. Depois, quando eu tinha doze anos, fomos morar na lagoa. E moramos na Lagoa a vida inteira. Minha mãe continua morando na Lagoa, e meus irmãos moram na Lagoa também. Eu moro em São Conrado. Meu pai mora em Petrópolis.
P/1 - Com era a convivência dos quatro ali?
R - Olha...
P/1 - A casa, o bairro...
R - Era ótimo, porque a gente morava na Lagoa, e essa era a parte mais importante. A Lagoa, nessa época, era paradisíaca. Eu morava numa rua sem saída, que dá diretamente na Epitácio Pessoa. E era tão interessante que na minha rua tinha um terreno baldio. Você imagina um terreno baldio na Lagoa. E durante uma parte grande de tempo não tinha sequer o túnel Rebouças, então a gente jogava pelada na Epitácio Pessoa, porque o movimento era muito pequeno. A gente nadava e mergulhava na Lagoa, a Lagoa era absolutamente limpa, fantástica, apesar de terem junto da Lagoa duas favelas. A favela Praia do Pinto, que era do outro lado, onde é hoje a Cruzada São Sebastião, e a Favela da Catacumba, que é hoje o Parque da Catacumba. É bem aí no Corte de Cantagalo. Essas favelas foram extintas no tempo do Lacerda como governador, foram reurbanizadas. Mas era um lugar de absoluta convivência, você andava a pé, você ficava de madrugada na rua... Não tinha ônibus nessa época, tinha lotação. Os lotações foram substituídos pelos troles, que eram os trens elétricos. E só depois que vieram os ônibus. Então a Lagoa era magnífica. E a gente ficava o tempo todo na Lagoa, íamos para a praia a pé, vivíamos o verão todo na praia. E nós temos muita diferença de idade. Meu irmão depois de mim é cinco anos mais novo, o outro é onze e o outro é doze anos mais novo que eu. Então a minha convivência maior era com os meus primos; eu tenho dois primos que moravam na mesma rua, que tem um ano para cima, e o outro um ano para baixo. E tinha o pessoal da rua, que são meus amigos até hoje. A gente manteve a amizade, exatamente porque tinha essa possibilidade de ligação. Eu jogava pelada nesse campo de futebol que era no terreno baldio, a gente ia jogar contra os outros times numa parte da Epitácio Pessoa, numa parte mais perto do túnel. Naquela parte mais perto do túnel não passava carro, dava para jogar pelada. E porque nesse tempo a Lagoa não tinha sequer edifício. A beira da Lagoa mesmo era toda de casas. Os edifícios, como o que eu morava, ficavam em pequenas ruas, todas sem saída, que dão desse lado da Lagoa, que é o lado da Epitácio Pessoa. Do outro lado não, porque o outro lado já tem ligação com o Jardim Botânico, então já tinha uma dinâmica diferente. E depois do Corte de Cantagalo, pela proximidade com Ipanema, já tinha uma outra dinâmica diferente. Quer dizer, na verdade tinham três lagoas dentro da Lagoa. Esse lado, que era o lado da Epitácio Pessoa, que ficava entre a chamada Curva do Calombo, e a Rua Humaitá; o outro lado que se ligava pelo Jardim Botânico, e o outro lado que se ligava com Ipanema e uma partezinha pequena do Leblon. Então era extremamente interessante. É inimaginável hoje, você olhando a Lagoa, que já tivesse isso... Nós estamos falando de 62, 63, 64... Nós estamos falando de quarenta anos, menos de quarenta anos. O túnel Rebouças foi inaugurado em 65, se eu não me engano. E aí mudou tudo.
P/1 - Depois do túnel.
R - É. Aí mudou toda a dinâmica... Não das pequenas ruas. E aí as casas foram sendo destruídas, foram sendo substituídas por edifícios. Mesmo nas ruas pequenas. O terreno baldio acabou, o nosso campo de pelada acabou. E agora tem um movimento inclusive de começarem... As casas que restavam... Tem um decreto sobre isso. Mas as casas que restavam também estão caindo para dar lugar a prédios. Ainda que pequenos, porque as ruas não sustentam muito.
P/1 - E com essa turma que traquinagem que vocês aprontavam?
R - Olha, se eu for contar tudo vamos demorar aqui um tempo enorme, porque a gente fazia tudo... A gente andava por cima do telhado do prédio; eu, meus irmãos e meus primos quebramos todos os ossos do corpo. Minha mãe só descobria o que nós tínhamos feito quando a gente estava engessado ou com ponto. (riso) Eu tenho irmão que quebrou a coluna, que não tem uma vértebra. Tem casos fantásticos de um primo meu que se jogou de um muro em cima de um outro primo, e os dois quebraram a perna na mesma hora. (riso) Os dois irmãos com as pernas quebradas no mesmo momento. Então as brincadeiras eram brincar na Lagoa... Obviamente, a gente ficava no meio da rua, não tinha o que fazer. A gente ficava parando os taxis, por exemplo, e perguntava: “você está livre?”, “estou”, “então viva a liberdade!” (riso) Tinha uma lotação que ia para o Castelo, e a gente parava: “vai para o castelo?”, “vai”, “então dá lembranças ao rei.” (riso) E depois com o trole era mais emocionante, porque o negócio era tirar o chifre do trole, parava o trole. Os motoristas... E tinha uma brincadeira que a gente gostava muito de fazer, muito pouco agradável, que era jogar água para dentro dos troles. Então quando o trole saía da Curva do Calombo, o motorista sugeria que se levantasse os vidros, porque poderia vir de qualquer lado água, tal. Tinha briga de turma... Era um outro mundo mesmo. Essas brincadeiras, ninguém imagina hoje um garoto fazendo uma besteira dessas, segurar o ônibus para perguntar: “vai para o castelo? Dá lembranças ao rei”. Primeiro porque o motorista vai sair de lá para brigar com o cara. Nenhum motorista vai tratar isso de uma maneira civilizada. Tinha outra coisa, que no lotação só iam pessoas sentadas, você não podia andar a pé. Então, quando você estava lá, um fazia sinal e os outros ficavam escondidos atrás de carro e tal. Quando parava, entrava todo mundo no lotação e não tinha mais como tirar. E aí o sujeito tinha que levar e tal. Era extremamente divertido. E muito praia. A gente era rato de praia, tomava o jacaré. Nesse tempo ninguém tomava surfe. A gente ia para o Arpoador, ficava lá o dia inteiro, cozinhava no Arpoador... Praia sempre foi para a gente muito interessante, mas muito nas férias ou nos fins-de-semana. E durante um tempo eu fui para o Colégio Militar, tentaram me disciplinar, e o que aconteceu é que eu fui expulso no terceiro ano por indisciplina. Eles não conseguiram, eles foram mal sucedidos na tentativa de me disciplinar, e acharam por bem me mandar embora. Eu fui adorando ter sido mandado embora, porque imagina isso no colégio militar. Não funcionava. Depois, por não ter completado o Colégio Militar, fui obrigado a servir o Exército. Eu servi o Exército em 68. Na época da conflagração das passeatas e tudo eu estava servindo o Exército. Eu servi Exército no Leblon, e eu era motorista de caminhão, era motorista de carreta, que era também extremamente divertido. Mas fiquei um mês de prontidão no Exército, não podia sair. Eu peguei essa questão das passeatas, nesse momento de revolução. Revolução no mundo inteiro, com o Cohn-Bendit, com tudo isso. Eu peguei exatamente do lado da repressão. E culminou com o AI-5, que é no dia do aniversário. O AI-5 é de 3 de dezembro de 68. Quando eu estava fazendo 20 anos foi o dia em que foi decretado o AI-5. Não é um negócio que dignifica a minha biografia, mas eu não tenho nada com isso... Eu sou inocente quanto a isso. Depois recebi esse problema, quando eu fui para a faculdade, e fui do diretório; fui vice-presidente, depois presidente do diretório acadêmico. Na época do Médici. Eu fui presidente do diretório em 73, o que não era das coisas mais simpáticas nem mais tranquilas do mundo. Mas era muito interessante.
P/1 - Tá. Eu queria voltar um pouco nessa questão da escola, da sua infância mesmo.
R - A escola da minha infância mesmo foi na Tijuca. Nessa época eu morava na Tijuca, eu estudava numa escola que se chamava Francisco Cabrita, que é ali perto do Largo da Segunda-feira, no início da Tijuca, entre a rua da ____. Nesse tempo você entrava na escola e tinha o mesmo professor - no caso a mesma professora - do pré-primário até o final. Era dona Maria Lacerda que foi nossa professora. E desse tempo eu tenho um amigo meu, que é meu amigo até hoje, que nos vemos constantemente, que fez o pré-primário comigo e depois o primário. Então as pessoas estudavam em escola pública. E escola pública era ótima, e ao mesmo tempo era um centro de convivência muito interessante, porque era indistinto de classe. Quer dizer, como a escola pública era um ensino muito bom, iam para lá todas as pessoas... Eu morava perto da Rua Barão de Itapagipe. E tem um morro, que é hoje um morro extremamente complicado, mas não era na época. Então na escola pública vinha gente de todos os setores da sociedade e era fantástico. O ensino era excepcional, tanto é que, diferente do que é hoje, você acabava no quinto ano, o quinto ano era uma admissão que era quase o vestibular. Foi quando eu fiz a admissão, que era mais ou menos... Normal eu fiz Colégio Militar e Pedro II. Tendo passado pelos dois, minha mãe - não eu - optou pelo colégio militar, que certamente foi um desastre. (riso) Mas era na época, pelo que eu sei, um colégio extremamente bem conceituado. O ensino é muito bom, mas o padrão de disciplina é muito rígido, porque você começa já como militar. Aos onze anos, quando entra, você já é militar; você é tratado como militar, tem número, tem formatura, tem uniforme, normas muito rígidas... Então você começa sua carreira militar na verdade no primeiro ano do ginásio. Era o ginásio, depois tinha o científico. O segmento era um pouco diferente. Você fazia o pré-primário, depois o primário, depois você fazia o ginásio, e depois você optava ou pelo científico, se você fosse ter as chamadas carreiras científicas, ou pelo clássico, se você fosse para as carreiras de cunho social - Direito, Sociologia, essas coisas. E o pessoal da biomédicas se dividia um pouco mais, tendendo para o científico.
P/1 - E a opção pela faculdade?
R - Olha, a opção pela faculdade de Direito foi que eu fiquei... eu fiquei entre Direito, Sociologia... Era claramente o meu interesse pelas Ciências Sociais. E como eu falo muito e adoro uma polêmica, achei que o Direito estava reservado para mim. Fiz a opção e nunca me arrependi de tê-la feito. Ainda que depois tenha feito algumas pós-graduações diferentes, continuo achando que a minha opção profissional era... Hoje eu estou convencido que era a única que eu realmente ia gostar de fazer, como eu gosto muito. Então eu acertei. Não me arrependo. Pelo contrário, acho ótimo ter escolhido. Mas era muito nessa questão social. Eu sempre gostei muito de ler, a literatura sempre foi uma questão presente na minha vida, e a literatura de cunho social: Jorge Amado, Veríssimo, essas coisas. Eu acho que muito da minha opção... - Machado de Assis... - vem do que eu lia e do papel do advogado na sociedade. Como agente de liberdades... Então a escolha foi por aí.
P/1 - Tinha alguma carreira que os pais incentivavam?
R - Na verdade, na minha época... Foi uma coisa que veio vindo desde os tempos do Império. O substituto da aristocracia no Brasil eram três carreiras: médico, engenheiro ou advogado. Você dificilmente escapava de uma dessas. Essas carreiras mesmo, Sociologia, Psicologia, eram carreiras incipientes. As carreiras mesmo, a divisão que nos davam, o projeto de carreira que se dava ao pessoal da minha idade, da minha geração, eram essas três: engenheiro, advogado ou médico. O economista, por exemplo, era uma dessas carreiras que estavam ainda incipientes, se basicamente eram formadas ainda de egressos do Direito - como muitos dos economistas brasileiros são - ou da Engenharia, como o Simonsen e outras coisas. Quem vinha do Direito tinha uma visão mais de economia política. No Banco tinham vários. Quem vinha da Engenharia tinha uma questão mais macrométrica, mais de tecnicalidade da economia, do movimento da economia, enquanto o pessoal que vinha do Direito era claramente com a visão de economia política.
P/1 - Aonde foi o curso?
R - Meu curso foi na Universidade Federal Fluminense, em Niterói.
P/2 - Quais são as lembranças que o senhor tem da época da faculdade?
R - Olha, a primeira lembrança foi a opção. Já tinha o vestibular, o vestibular era muito duro, o vestibular era eliminatório. E o que me atraiu para a Universidade Federal Fluminense é que a UFF na época tinha um projeto inovador - que depois, aliás, não se mostrou; eu entrei e nunca consegui - que era você fazer a sua carreira básica e optar fazer carreiras opcionais nas outras faculdades, como Economia, História, Ciências Sociais... Você teria essa possibilidade, você teria um veio central na sua carreira, mas teria a opção de buscar matérias em outras escolas. Como eu gostava muito de História e tinha essa visão social, eu achava que ia fazer Direito e ia poder buscar essas outras cadeiras nas outras faculdades. Mas isso na verdade virou um projeto que efetivamente não vingou. Até hoje eu acho que não foi implementado efetivamente. Eu estudei primeiro de manhã, até começar a fazer estágio no terceiro ano. Aí passei para a noite. Já no segundo ano me envolvi com política universitária. Fiz carreira política, se assim pode se dizer, no diretório. Fui membro, depois fui diretor; fui vice-presidente, e no quarto ano da faculdade fui presidente do diretório. Isso em 73. Com eu tinha dito, uma época meio complicada para ser presidente de diretório. E fazia parte do conselho universitário também. As lembranças da faculdade são sempre muito boas; eu era muito bom aluno... Eu quando entrei na faculdade eu gostava mais até - o que é comum - das carreiras, da parte da carreira que era ligada às ciências sociais. Direito penal, essas coisas. Eu era ótimo aluno de direito penal. E era apenas bom aluno de direito comercial e suas variantes. Depois que entrei primeiro como estagiário do INPI [Instituto Nacional da Propriedade Industrial], e depois, quando entrei com estagiário do BNDES... Eu entrei como estagiário do BNDES no quarto ano da faculdade. No quarto ano da faculdade eu fazia meio tempo como estagiário do INPI, na parte de secretaria de marcas, e meio tempo no BNDES. Era possível, já que por uma coincidência o INPI era de sete à uma e o BNDES era de uma e meia às seis. E depois eu ia para a faculdade. Foi o ano em que eu também era presidente do diretório, o que dava um certo trabalho para conciliar essas coisas. Mas foi um ano fantástico. Eu entrei no Banco ainda como estagiário e fui para o departamento de Contencioso no BNDES. Fiquei um ano no departamento de Contencioso.
P/1 - Ainda dessa época da faculdade, quais os professores que foram marcantes?
R - O professor de direito penal era muito interessante. O professor de teoria do Estado era muito interessante, era o Marcos Almir Madeira, que é acadêmico. E a visão dele era extremamente interessante, porque era uma visão extremamente humanista, e ele é muito bem preparado. E tinha uma parte literária. E o professor de direito civil era uma professora muito complicada, chamada Regina Gondim, mas efetivamente ela puxava muito pelos alunos, ela dizia que reprovava coisa e tal, e de alguma maneira ela conseguia incentivar as pessoas a estudar. E à parte um professor, que era desembargador, que era de direito constitucional. O direito constitucional e o direito penal são os primeiros anos da faculdade que atraem você. Muito depois eu fui professor; já tinha algum tempo formado, fui ser professor de direito comercial, e entendia perfeitamente que as pessoas, por mais que eu me esforçasse, não era exatamente aquilo que empolgava alguém de vinte, vinte e poucos anos. Depois a pessoa na carreira vai achar que fez uma falta danada, mas aí tem que descobrir isso depois. E o professor de economia política, que é o que me despertou muito para a parte de economia. Quer dizer, a economia como o saber, a economia com muita... De muita importância para o Direito. As correlações são absolutamente visíveis nessa parte de direito, principalmente nessa parte de direito societário, de mercado, que é a parte que eu me especializei mais.
P/1 - Você lembra o nome dele?
R - Demian. Não, Demian, não. Demian é o lá do Herman Hess. Era Damian. E era um sujeito assim loquaz, tal, e provocava muito. E ele não era advogado, ele tinha vindo da faculdade de economia, e era um provocador. No bom sentido da palavra. Para a economia, da importância da economia. Ele era muito interessante.
P/1 - E como era essa coisa de conciliar os horários. A Lagoa... A Fluminense é em Niterói. Como era o trajeto até lá?
R - Era muito complicado, porque eu tinha que estar sete horas da manhã no INPI, que era na Praça Mauá, o que fazia que eu acordasse cinco e meia da manhã, para poder me vestir... E chegar no INPI à uma. Do INPI ao BNDES era pertinho, porque o INPI era na Praça Mauá, e o Banco, quando eu comecei a trabalhar, era na Rio Branco, esquina com a Visconde de Inhaúma, que é um prédio que hoje é da fundação. E o BNDES era todo ali, bem na esquina mesmo. Tem uns prédios e tinha um largo assim, e o BNDES ocupava um desses... Então dava para vir a pé. Tempo suficiente para passar, comer um sanduíche, estar no BNDES à uma e meia da tarde. Essa meia hora era suficiente para isso. Depois eu tinha que sair do Banco às seis e estar às sete em Niterói. E aí também ia andando. Você pegava... Dava para ir a pé... Nesse tempo você andava com grande prazer. Até porque era mais fácil ir a pé, não fazia muito sentido tomar um ônibus ali onde era o BNDES para saltar na Sete de Setembro para andar até as barcas. Não tinha ponte. Quando eu comecei a faculdade, a ponte Rio-Niterói não existia; a ponte Rio-Niterói foi inaugurada, eu já estava no terceiro ano da faculdade. Então o único meio de transporte eram as barcas mesmo. E as barcas eram muito interessantes, porque barca a essa hora é uma loucura. Tem show, tem mágica... As pessoas costumam lembrar muito que o Silvio Santos era camelô da barca Rio-Niterói. E você ia já encontrando os amigos... E depois eu tinha que pegar um outro ônibus, porque a faculdade de Direito era longe do terminal das barcas. Então você tinha que pegar ônibus para ir para a faculdade e chegar lá às sete. Tinha os cursos e aí, dez horas da noite, eu ia lá para o diretório, porque afinal de contas eu era o presidente do diretório. E saía do diretório 11 e meia, meia noite. Chegava em casa uma da manhã, aí dava para dormir bem até as quatro e meia, cinco horas, que era hora de começar tudo de novo. E o fim-de-semana tinha que ser dedicado para estudar, porque era a única hora que sobrava. Então 73, que foi esse ano que ocorreram essas coisas todas, foi um ano um pouco complicado. Em 74, que foi meu último ano de faculdade, já melhorou muito, porque eu tive que optar entre o BNDES e o INPI, e eu optei pelo BNDES. Tanto que aqui estou. E eu deixei de ser presidente do diretório. Então a minha vida em 74 melhorou incrivelmente. Dava para dormir, por exemplo. Quando acabava a faculdade, dez horas, já dava para ir para a casa, não precisava passar no diretório. Então o ano de 74 foi uma festa, eu tinha tempo para dormir, para conversar, para essas coisas todas. E aí eu fazia o contrário; eu saía de casa já mais tarde. Eu continuava entrando no Banco à uma e meia. Aí já dava para estudar de manhã, já sobrava o fim-de-semana... E nesse primeiro ano, também em 73, eu era do departamento de Contencioso do BNDES. Eu era estagiário, e, portanto, eu chegava no Banco, apanhava as fichas e ia para o foro a pé. Passava boa parte do dia lá no foro, um foro federal, que era no final da Avenida Rio Branco, e voltava para entregar as fichas, ver como estava o processo. No quarto ano, eu já tinha mudado para o departamento de tecnologia, que era o departamento que administrava o FUNTEC [Fundação Nacional para o Desenvolvimento da Educação Tecnológica]. E esse departamento é extremamente interessante, porque primeiro era tecnologia, aquela coisa toda que ensinavam para mim. Altamente instigador. Um gerente desse departamento era o José Goldenberg, que é um sujeito fantástico, uma pessoa fantástica, uma cabeça fantástica. E a gente começou... Quer dizer, e eu, pessoalmente, que vinha da carreira de advogado, portanto um pouco longe da tecnologia, comecei a aprender o que era tecnologia nesse departamento, principalmente com o Goldenberg. Eu fiquei mais uns dois anos nesse departamento, mas esse primeiro ano, que foi em 74, foi a abertura do mundo, uma visão do mundo como uma coisa absolutamente nova. Extremamente interessante. Durante minha carreira no Banco, volta e meia eu volto à tecnologia e tenho o maior prazer nisso, que é a questão da implantação da tecnologia nas empresas brasileiras. E o BNDES é muito importante. O FUNTEC é muito importante, a FINEP [Financiadora de Estudos e Projetos] advém do FUNTEC. O FUNTEC é absolutamente inovador. Quer dizer, quem começou, os programas de pós-graduação no Brasil vieram financiados pelo FUNTEC. Então o FUNTEC tinha gente da maior qualidade. Sempre teve gente da maior qualidade. E o José Pelúcio que tinha sido desse departamento foi para, saiu, não do Banco, mas foi mandado para o FINEP, depois... O embrião da FINEP saiu do BNDES. Assim como embrião da Eletrobrás, e outras coisas. Então o ano de 74 foi um ano profundamente modificador da minha vida por essas coisas todas.
P/2 - Eu gostaria que o senhor falasse um pouquinho de como o senhor vê a importância de um Banco de Desenvolvimento investir também nessa parte de ciência e tecnologia.
R - É até o contrário, né? Eu diria que um banco de desenvolvimento tem que investir em tecnologia. Só o banco de desenvolvimento é capaz de fazer essa passagem. A BNDESPAR [BNDES Participações S.A.]... Quando eu estive na BNDESPAR. Eu andei pelo Banco inteiro. Eu estive um tempo na BNDESPAR, saí, depois voltei à BNDESPAR. E quando voltei à BNDESPAR, em 93 eu fui para uma área, uma divisão, que cuidava exatamente do CONTEC [Condomínio de Capitalização de Empresas de Base Tecnológica], que é o programa de apoio à empresa tecnológica. E com o chamado venture capital, com o capital de risco. Depois a gente aperfeiçoou, depois eu fui ser diretor dessa área, na BNDESPAR. E a gente criou, na verdade, junto com o Tomás (Costa de Sá?), o Fundo de Empresas Emergentes. A raiz do Fundo de Empresas Emergentes é do CONTEC, que foi desenvolvido pelo Banco. Quer dizer, o Banco sempre teve muita preocupação com tecnologia. Não só o desenvolvimento da tecnologia até o chamado capital inicial, com a utilização da tecnologia em todos os programas. Quer dizer, o Banco sempre teve... Depois o FUNTEC acabou e foi absorvido por todo mundo, sendo que a tecnologia sempre teve um financiamento com prazos e tempos diferenciados do resto. O Banco sempre achou a tecnologia muito importante. Eu acho fundamental. O trabalho que o BNDES e a FINEP desenvolvem... A FINEP tem essa parte de agência de desenvolvimento também, com orçamentos e direcionamentos diferentes, mas... Eu acho fundamental; acho que o papel do Banco na tecnologia sempre foi e é muito importante. O Banco tem que ter essa preocupação o tempo todo. A questão tecnológica envolve muito risco, envolve muito dinheiro, e é fundamental para o desenvolvimento. Então um banco de desenvolvimento tem que ter uma preocupação com financiamento de tecnologia, e o Banco tem.
P/2 - Porque o FUNTEC também investiu muito na criação de pós-graduações, de...
R - Foi na verdade quem criou, né? Quem criou. Isso até anteriormente a eu ter ido para lá. Quando eu fui para lá já não era mais o Pelúcio, já era o Ferrari, que, aliás, escreveu um livro sobre o Pelúcio recentemente, um pouco antes do Pelúcio morrer. Mas quando eu fui para o DTEC, o BNDES já tinha passado essa parte de financiamento da pós-graduação, a criação de pós-graduação, para a FINEP. O que o banco fazia era financiar os programas de pesquisa das universidades. Já estava num segundo estágio, que era a utilização dessa mão-de-obra já especializada, pós-graduada, para projetos de pesquisa. Eu acompanhava o CTA, acompanhei a Embraer, o desenvolvimento da Embraer... Eram fantásticas as conversas: criogenia, xisto betuminoso... Radiação então... A gente que era estagiário ainda, discutindo... Obviamente que nós tínhamos a sorte de ter o Goldenberg lá para nos ajudar e nos dirigir, porque tinha umas coisas que a gente sequer entendia. (riso) O pessoal do DTEC na época era muito novo; éramos nós, que éramos estagiários. Eu entrei em 73. 74 houve um concurso. Tinham umas pessoas mais antigas, o França, umas pessoas que eram mais antigas, mas o corpo, a maior quantidade, era de gente que tinha chegado e entrado nesse último concurso, ou tinham vindo ser estagiários. Então era muito inovador e muito interessante. E o Ferrari e o Goldenberg tinham essa visão, e ajudavam muito o grupo, orientando e colocando, mostrando essa questão da importância da tecnologia. Então quando eu entrei o DTEC já não financiava em si as pós-graduações, e sim a utilização daquele pessoal que já fez pós-graduação em projetos que deveriam ser aproveitados pela indústria. E começaram os financiamentos aos centros de pesquisa. A gente financiou o centro de pesquisa da Cofap, da... A que era do Mindlin. Esqueci o nome.
P/2 - A Metal-Leve?
R - A Metal Leve. Eram dois centos de pesquisa padrão, e já era a ideia de financiar o centro de pesquisa das indústrias. Foi essa parte que eu peguei no DTEC, que foi extremamente interessante. Depois começamos a analisar projetos de empresas, que foi a (Xistal?), e outras coisas. Sem dúvida nenhuma, a implantação dos cursos de pós-graduação deu-se via BNDES. E sempre entendendo que ao desenvolvimento era imprescindível essa característica de ter tecnologia e de ter um financiamento diferenciado.
(pausa)
P/2 - Voltar um pouquinho para o período da faculdade, porque a gente avançou bastante. O senhor até já tocou pontualmente, mas quais eram as expectativas em relação à sua carreira?
R - Num primeiro momento, quando eu entrei na faculdade, a minha expectativa era muito mais da carreira de ministério público ou de juiz. O que se diz na faculdade de direito é que você entra com a expectativa de ser presidente da república. (riso) Às vezes acontecem alguns fatos no meio que fazem com que você não chegue lá. Afinal de contas, isso aqui é uma república dos bacharéis. Sempre foi. Então, quando você entra na faculdade, na verdade você está fazendo um tempinho para ser presidente da república. Então as carreiras públicas são as que você... Direito penal, direito constitucional, teoria geral do Estado, economia... São as carreiras que você privilegia. Mas como eu já no terceiro ano fui ser estagiário do INPI... Eu era da secretaria de marcas, da parte de marcas. E depois a entrada no BNDES. Quer dizer, o que alterou meu comportamento de estudante da faculdade foi ter entrado no BNDES já meio deslumbrado com o BNDES. O BNDES é uma escola fantástica; o pessoal... No meu tempo era o Rangel, o Juvenal... São todas pessoas guerreiras. Então tinham umas pessoas... O Juvenal e o Rangel então, sabidamente pessoas da maior importância na economia brasileira. Então essa provocação sobre o desenvolvimento, com a economia, fez com que, eu estando no quarto ano, redirigisse o meu estudo, que era para um campo, para esse campo de direito comercial, dessas questões, depois já me interessasse muito por direito societário... Mas claramente a expectativa que eu tinha ao entrar na faculdade foi modificada ao entrar no BNDES. Quer dizer, o direito com instrumental do projeto, como instrumental do desenvolvimento, mudou muito a minha direção dentro da faculdade. Eu diria que houve uma bifurcação, e eu claramente estava em um lado e passei para o outro. Então o BNDES foi um diferencial de carreira mesmo.
P/1 - Você lembra do seu primeiro dia no banco?
R - Lembro. Eu me lembro desde o... Na verdade, primeiro eu tive que fazer concurso. Tinha concurso de estagiário, nós fizemos o concurso. E a primeira vez que eu estive no BNDES foi para ser entrevistado. Tinham dois lugares para estagiário de direito, e entramos eu e a Imaculada, que também está no banco até hoje. Foi no dia 16 de abril de 73. Portanto, a semana passada. (riso) A semana passada com alguns 29 anos para trás, mas a semana passada. E o primeiro dia foi no Contencioso. O Contencioso era - como é até hoje - o local onde o banco tem as suas demandas, tanto como autor, que era muito mais comum, e agora como autor e como réu, principalmente em questões, nas questões como as de privatização e tal. E era diferente, só tinham pessoas mais velhas, porque o concurso que entrou mais gente foi o de 74, quando eu já tinha, já estava passando para o DTEC. Então eram oito ou nove advogados muito mais antigos, e que tinham uma visão de advogados de Contencioso mesmo, que é diferente dos advogados que fazem... Tanto é que hoje a gente faz concursos diferenciados. Concurso de advogado de contencioso é diferente de concurso para advogado que vai cuidar do resto, das demais operações do BNDES. Então hoje já é diferenciado, mas não era. Então eu encontrei, cheguei lá, eram senhores, todos sérios e sisudos, com a missão de defender o BNDES. E era meio assim, né? E o Contencioso era uma divisão do Departamento Jurídico. O Departamento Jurídico já com o pessoal parecerista, que me atraía mais, mas havia uma diferença bastante clara. Como uma boa parte do tempo eu ficava na rua, porque o trabalho do estagiário de contencioso em qualquer lugar exatamente é o fórum, então eu tinha pouco contato com o resto dos advogados. E tinha pouco contato com o resto do Banco nesse primeiro ano. Eu chegava, ia lá, pegava as fichas e saía. Comecei a ter mais contato porque no ano seguinte porque o banco tinha, em 74, um restaurante. Depois até no início do prédio novo também tinha. E como eu tinha mais tempo, às vezes eu saía de casa para almoçar no BNDES. E aí comecei a conviver, e aí logo depois passei para o DTEC. Meu primeiro dia foi meio de espanto; de eu chegar ali e dizer: “meu Deus, esse pessoal...” Que é um pessoal velhíssimo. Todos mais ou menos com a idade que eu tenho hoje. Mas era um negócio fantástico; pessoas de cinquenta e tantos anos, imagina. Algum deles podia até ser mais moço do que eu sou hoje, mas a impressão que eles passavam era de uma necessária sisudez. Então todo mundo que era do Contencioso era sisudo por definição. Então não só o primeiro dia como toda a primeira semana foi meio de espanto. Na primeira semana efetivamente teve uma semana de adaptação. Então você ficava um pouco lá no negócio e um pouco lá na semana de atuação, onde as pessoas mais velhas do Banco - coisa que a gente faz até hoje - iam lá contar um pouco o que o Banco fazia. E era muito interessante. Nesse mesmo ano houve um concurso, logo depois houve o concurso em que entraram poucas pessoas. Entrou o Lindelmar, entrou a Terezinha... Entraram algumas pessoas, mas eram poucos e divididos. Então a gente não conheceu muito, não. Não se conhecia muito. Então a primeira semana no Banco foi meio de espanto, depois eu fui me acostumando.
P/1 - E como se vestiam essas pessoas?
R - Ah, todas de terno azul-marinho, de terno escuro...
P/1 - E você tinha que trabalhar de terno?
R - Eu tinha que trabalhar de terno. Era um negócio esquisito, porque eu tinha um cabelo até aqui, assim, e eu tinha uma barba, então ficava meio esquisito. Depois eu fui ligeiramente... Eu era presidente de diretório, imagina. Não combinava com o Contencioso. Barba até aqui, assim... Eu até tenho essa fotografia. Eu tenho a fotografia na minha carteira, de como eu era quando eu entrei no banco. E era um espanto. E aí o Archibal Estellita que era o chefe da divisão - chamava divisão na época - um dia me chamou dizendo o seguinte: “olha, (riso) você tem que tirar essa barba e cortar esse cabelo, porque não vai dar para você representar o BNDES no foro.” E principalmente porque era o foro do Brasil inteiro. Eu viajava, tal: “no foro do Brasil inteiro com essa barba, com essa sua aparência.” (riso) A minha primeira viagem de avião inclusive foi por causa do Contencioso do BNDES. Eu fui mandado pelo chefe a Coxim. Coxim é no interior do Mato Grosso. Não tinha nem essa divisão. Era perto de Campo Grande, mas eu andei dez horas de carro para chegar a Coxim, para ir lá no foro de Coxim, por causa de uma falência que tinha lá. Minha primeira viagem de avião, a primeira viagem longa que eu fiz, devo ao... Que era um avião chamado Caravelle, um negócio assim. Tudo novo, fantástico e tal. (riso) Devo ao Contencioso do BNDES. Depois, o Banco viaja muito, e viagem passou a ser uma necessidade de serviço. Chega uma hora que a gente fica: “pô, tem que viajar, meu Deus do céu?” Mas era um deslumbramento, e ao longo da minha carreira no Banco eu acabei conhecendo o Brasil inteiro. Porque o Banco não só vai para as capitais do Brasil inteiro, como vai para o interior. Então o interior do Brasil eu conheci trabalhando no Banco. Agora a primeira viagem que eu fui, eu falei: “meu Deus, onde é que eu estou me metendo?” E era uma cidade assim, longe para burro. As pessoas andavam armadas na rua. O pessoal até dizia que se você andasse desarmado, alguém vinha perguntar se você estava achando que era mais homem do que qualquer um, porque estava desarmado. (riso) E eu estava desarmado! (riso) Não sei se o cara quis dizer isso para me alertar de alguma coisa, tipo “ponha-se daqui para fora”, ou que eu devia passar em uma loja e comprar uma arma para poder andar junto, para ficar no modo de vida local.
P/1 - (riso) Vamos dar uma paradinha e tomar uma água?
R - Vamos.
(fim do CD 1)
P/1 - Vou retomar nossa entrevista nesse foco das primeiras viagens, para contar um pouco sobre o Brasil, esses lugares tão diferentes.
R - Essa parte do interior, o Banco, por ter essa penetração nacional, ir no interior do Brasil inteiro, ele propicia - não só propicia como exige - que os técnicos estejam sempre dispostos a viajar, e às vezes em situações bastante interessantes. Uma das viagens, um lado gozado, estávamos num grupo de pessoas do Banco. Eu, o Marco Antônio, a Terezinha e mais uma contadora. Estávamos em Campina Grande, numa região do interior. E tinha um jogo do Brasil. O jogo era Brasil e Uruguai, que ia passar de noite. Então de noite nós fomos no hotel, era aquele hotel mais de viajante. Eu e Marco Antônio subimos até o último andar, onde tinha a sala de bilhar, e tinha... Era a única televisão; nos quartos não tinha televisão. E estava lá todo mundo, vendedor, caixeiros viajantes, motoristas de caminhão... E nós lá, vendo futebol. E nesse dia foi um dia que o Rivelino fez uma falta num jogador do Uruguai, e o jogador do Uruguai acabou saindo correndo atrás dele; ele se jogou por dentro do túnel, houve uma confusão, uma conflagração assim, que era comum em jogo do Brasil com o Uruguai, e aquela confusão se instalou, tal. E aí, o pessoal nordestino, cabra macho, começou a dizer: “esse Rivelino é um covarde, é um medroso...” E o Marco Antônio - a gente tinha bebido umas cervejas antes - resolveu dizer para o cara: “isso é porque não é você, porque se eu sair correndo atrás de você, você corre também.” Ah, meu Deus. Quando eu olhei, o pessoal estava segurando bola de bilhar, taco de bilhar... E só tinha uma porta. Quer dizer, entre nós e a porta havia uma muralha de pessoas, várias camadas. Falei: “meu Deus do céu.” Eu olhava para o Marco Antônio, e o Marco Antônio não se mancou! Continuou: “não, porque...” Meu Deus do Céu. Por sorte, tinha um senhor que devia ser o decano ali dos vendedores, e disse: “não, os rapaz estão brincando...” Chegou perto de mim, que não estava tão excitado quanto o Marco Antônio, e falou: “olha, acho melhor vocês irem embora; eu vou levando vocês até a porta e vocês vêm junto comigo.” Eu segurei o Marco Antônio e fui carregando o Marco Antônio. Quer dizer, ele, eu, e o Marco Antônio, até a porta, onde prometemos não subir mais ali até irmos embora. (riso) Aí fomos embora, conseguimos sair ilesos, mas o risco foi absoluto. E tem uma outra viagem, com esse mesmo grupo, que a líder do grupo era a Terezinha. E nós fomos lá para Caxias do Sul, em plena Serra Gaúcha. Nós íamos analisar a Marco Polo. E chegamos lá nós quatro, nós dois e duas mulheres, e mais um estagiário, e fomos recebidos pelos diretores e donos da Marco Polo. Umas senhoras lá; fizeram até um acontecimento. E a Terezinha era feminista assim, arraigada. Aí, no meio do jantar, a mulher do dono da Marco Polo virou para ela e falou: “vocês podem ficar tranquilos, porque amanhã, quando os homens forem trabalhar, nós vamos fazer compras.” (riso) A Terezinha queria matar! Falou: “eu vim aqui para trabalhar também!” Começou a fazer um discurso lá, ninguém entendeu nada; obviamente não estavam acostumados. Eu disse: “olha, e tem mais: a chefe é ela.” (riso) E os grupos são indistintamente de mulheres, homens, tal. Isso faz com que as viagens sejam sempre muito interessantes; o pessoal do Banco é sempre bem tratado. Quer dizer, geralmente é bem tratado quando vai levar dinheiro; não tão bem tratado assim quando vai cobrar a conta. Mas durante a análise as pessoas tratam, e a gente tem sempre o cuidado de manter as coisas... E esse é um outro cuidado que a gente tem que ter para tratar a coisa com absoluto profissionalismo e isenção. Até porque o pessoal do Banco é muito conhecido, o Banco é muito respeitado, a gente tem que tomar cuidado para ser absolutamente... E conseguimos. Nunca houve nenhum tipo de questão sobre isso. Mas a ideia é que o pessoal nos dá um tratamento VIP, e que a gente tenta colocar: “olha, vamos com calma...” A gente tenta dissuadir as pessoas desse excesso de cuidados conosco. E era comum em viagem, depois... Em São Paulo, reunirem dois, três grupos, e... Tinha às vezes o hotel onde boa parte era do banco, que na década de 70 e na década de 80 foi um propulsor efetivo da distribuição de importação. O povo viajava muito, trabalhava muito. E tinha também um incentivo fiscal que ia acabar, o que fez com que a gente trabalhasse mais. E sempre viajamos muito. Fomos ao Jari, Carajás, interior da Amazônia, Pantanal. Eu já fiz mais de uma viagem ao Pantanal; a primeira viagem que eu fiz ao Pantanal eu ainda era do DTEC. Nós estávamos fazendo um acompanhamento nas fazendas porque a gente tinha financiado lá experimentos agrícolas. E era um monomotorzinho, que estava eu e um outro técnico do banco, um contador. E quando enche o Pantanal, o gado vai para o lugar mais alto, que é geralmente a pista de aviação. Então, antes de pousar o sujeito tem que dar uns dois ou três rasantes para tirar as vacas da pista para poder parar, e você não sabe se a vaca vai voltar. Então cada aterrissagem, cada... A gente foi numas seis ou sete fazendas, cada uma era um horror. Além do quê, na última viagem - por sorte a última, senão teria sido a última por essa razão -, a gente levantou de uma fazenda e caiu um temporal. Mas o temporal no pantanal cai de uma maneira... Você não vê nada. Eu estou vendo o piloto olhando assim, para baixo, e perguntei: “o que houve?”: “é que eu estou sem bússola, então eu tenho que achar o rio, porque esse rio dá de novo em Corumbá, onde nós estamos.” (riso) Até que ele achou o rio, aí falou: “agora eu tenho que ver se a gente está indo no sentido certo ou errado, então tem que olhar a correnteza.” Então ele tentava baixar o avião no meio daquela confusão para ver o sentido da correnteza, porque na correnteza do rio a gente ia parar em Corumbá, do outro a gente caía por falta de combustível. (riso) Então tinha essas emoções fantásticas. Ele falou ainda: “acho que estou no caminho certo.” Por sorte estava. A gente chegou a Corumbá. E eram três; o avião parecia que batia asa, aqueles aviões de pano, não sei; parecia que ele batia asa. E essa por sorte era a última, ou teria sido a última, porque eu não ia entrar num avião daquele de jeito nenhum mais, para ir para fazenda coisíssima nenhuma. Então tinha essas... Mais de uma vez tivemos problema com pane de avião. Uma vez, em cima da Floresta Amazônica, tivemos problemas com o Avro, da FAB. E o Avro da FAB era um avião antigo, tinha dois motores, e um começou a pifar no meio da Floresta Amazônica. Uma outra vez aterrissou com a turbina pegando fogo. Você viajava toda semana; a gente tem hora de voo para burro no Banco, então acho que nós todos temos histórias emocionantes para contar sobre viagens e sobre voos...
P/1 - E essa coisa de estar sempre no Rio de Janeiro e de repente começar a ver o mundo? Outras distâncias, outras localidades...
R - Mais do que isso, além da localidade, você vai encontrar com a pessoa local, você tem essa questão cultural. Quer dizer, como é que o empresário, porque a gente lida com empresários dos mais variados setores... E aí você começa olhando, começa a perceber... O pessoal da área social então... Eu nunca fui da área social, mas o pessoal da área social deve ter mais ainda, porque lida com gente, com pessoal... Relações muito mais humanas do que empresarial. Mas nós mesmos, que lidamos com os empresários... Quer dizer, não só você chega e vê o local, como você vê como é que os empresários de todos os lugares tratam a questão do Fundo de Desenvolvimento, do crescimento das suas firmas. É muito interessante, porque a visão do empreendedor do Sul brasileiro não é nem parecida com a visão do empreendedor do Norte-Nordeste. Então é um outro mundo. A gente tem a possibilidade de conhecer não só os locais. Como a gente não vai como turista, a gente tem a oportunidade de conviver com as pessoas. E eu, por exemplo, sempre aproveitei o motorista que ia me levar de um lado para o outro, a pessoa que me atendia no hotel, para perguntar coisas. Não tinha ainda, a televisão não era tão difundida quanto é. Quer dizer, então a realidade brasileira, quando eu vi o “Bye bye Brasil”, é muito aquilo que a gente viu durante muito tempo. Hoje não, hoje os canais de informações são muito maiores. Mas sempre foi uma experiência muito interessante essa de conhecer as peculiaridades do local, e não só a parte física, como as pessoas. Então é uma oportunidade única. Lá no Banco realmente a gente conhece o Brasil. Não só as localidades, como a gente conhece as pessoas que moram lá, e como atuam nos seus locais. É um aprendizado fantástico. E quando você fala de desenvolvimento, você está pensando... Você sabe o que você está pensando, você sabe o que precisa fazer.
P/2 - Seria possível traçar alguns tipos de empreendedores? O empreendedor do Sul, do Nordeste... O que chamou a atenção nesse choque?
R - Olha, primeiro tem uma característica pessoal. O empreendedor do Sul, até por uma formação de imigração europeia. Tem muito, principalmente no Paraná, Santa Catarina, tem muito alemão, italiano... Então você tem um distanciamento... A visão dele é mais fria. Ele tem um censo de organização mais acentuado talvez. Enquanto o do Nordeste é caloroso. Quer dizer, ele trata, ele está mais interessado em você enquanto pessoa. E as dificuldades são diferentes, então ele tenta mostrar a você um lado... Ele faz muita questão de dizer: “olha, aqui nós temos um problema; não adianta ter essa empresa...” Tem uma dificuldade de infraestrutura bastante diferente. Enquanto o Sul e Sudeste são providos de infraestrutura, de dimensão, no Norte e Nordeste tem questões: “olha, aqui eu não só preciso do dinheiro, mas preciso que as autoridades locais, e vocês enquanto autoridades federais, vejam a infraestrutura.” Então a maneira de conversar já é diferente. Geralmente são pessoas cordiais, mas umas com mais coisas pessoais, enquanto o outro é mais... E a visão, o pessoal do Nordeste dá sempre a impressão de que tem uma questão de sobrevivência, enquanto o pessoal do Sul e do Sudeste tem mais na cabeça um crescimento da firma. Isso nós estamos falando em termos gerais, mas é muito por aí. Claro que eu estou falando... Há muitos anos que eu não sou de área operacional; eu estou falando de 70, 80. A partir de 86. 87, eu virei muito mais executivo, e passei a ter uma opção menos desse contato. Como chefe de gabinete, depois, como diretor da BNDESPAR, uma visão mais distante desse dia-a-dia. Então eu não saberia comparar, mas se perguntar ao pessoal mais novo, que continua viajando do mesmo jeito, podem ter uma visão diferente. No tempo em que eu viajava como técnico, depois como gerente, essas questões eram mais, acho que possivelmente mais flagrantes. Mas eu parei de fazer essas viagens; eu as fiz durante dez, doze anos seguidos. A gente não passava um mês sem pelo menos passar uma semana viajando, quando não passava quinze dias seguidos, o que aconteceu. Então hoje eu não saberia diferenciar, porque você já lida mais na capital. Mesmo na BNDESPAR, onde eu passei a atuar depois como executivo, é mais mercado de capitais. É um pouco diferente; o dia-a-dia da viagem é um pouco diferente.
P/2 - Voltar um pouquinho, então. Quando o senhor entrou no BNDES, qual era o foco da atuação do BNDES nos anos 70?
R - Quando eu entrei, em 73, o Banco estava no milagre brasileiro. O primeiro foco mesmo, teve a parte... E aí teve a crise do petróleo em 74, depois em 76... Então o foco do Banco era muito a substituição de importação. O primeiro movimento que eu fiz parte, já como funcionário do BNDES, foi a substituição de importação, que era muito forte. Foi o final da década de 70 todo. Em um segundo momento, já aí o Márcio Fortes como presidente, um pouco antes, a visão do planejamento estratégico. O Banco incorporou o planejamento estratégico, e no planejamento estratégico veio a questão das privatizações... Mas o primeiro movimento foi o de substituição de importação.
P/2 - O senhor lembra de algum grande projeto da época?
R - Ah, todos os projetos na época eram grandes. Não tinha nenhum projeto pequeno, não.
P/1 - (riso)
P/2 - Mais relevante, ou que o senhor considera mais significativo, enfim...
R - Olha, todos os projetos de química, O maior de todos é o pólo petroquímico da Bahia, que é gigantesco. Toda a parte de siderúrgicas foi muito financiado: USIMINAS, COSIPA, Tubarão... Toda a parte de bens de capital, criação de máquinas... O banco sempre financiou a empresa no contexto de alguma coisa. Então o contexto era química e petroquímica, depois teve o programa grande do Proálcool, mais ou menos concomitante, mas um pouco depois. A questão das máquinas e equipamentos sempre foi um item de muito peso na balança de importação, então a substituição, a criação de fábricas. E toda essa questão da siderúrgica que veio dar nessa organização, a ponto de os Estados Unidos nos retaliarem porque hoje nós somos muito mais eficientes em siderurgia, química fina... O pólo da Bahia e o pólo do Sul. E aí as empresas entravam como partícipes destas questões que o Banco elegeu. E o Banco criou três subsidiárias: uma que era a Fibase, para a indústria de base, que era a questão exatamente de química, petroquímica; a Embramec, que era bens de capital; e a Ibrasa, que era as chamadas indústrias tradicionais e mercados de capitais. Então o Banco não só queria participar como financiador, como criou basicamente essas duas subsidiárias - a Fibase e a Embramec -, para criar a mentalidade de participação societária institucionalizada, que também não tinha. O Banco também é pioneiro nisso no Brasil, entre tantas coisas. Então essa missão era muito mais assim, você tratava com grandes setores industriais do que com projetos de cada empresa. O projeto de cada empresa tinha que se inserir nessas lógicas. Participei de vários projetos de empresas, mas sempre nesses grandes contextos. A não ser no DTEC, que eram projetos de empresas menores, como é no CONTEC também, continua. Então a gente via mais esses grandes conjuntos do que questões separadas.
P/2 - O senhor chegou a ir para o Ibrasa também, não?
R - Em 79 eu fui para a Ibrasa, primeiro como advogado, depois como consultor jurídico. Fiquei como consultor jurídico até 82, quando juntaram. O Banco juntou Fibase, Ibrasa e a Embramec, e criou a BNDESPAR. Aí eu continuei na BNDESPAR com gerente jurídico, depois fui superintendente jurídico da BNDESPAR até sair para ser emprestado para a CVM, em 86. Eu fui para lá porque eu já tinha me especializado... Não falava tão bonito assim, mas já tinha a questão do direito societário, que era muito importante para a Ibrasa. Para as três subsidiárias, e para a Ibrasa muito acentuadamente, porque ela que lidava mais com mercado de capitais; a função principal... A Ibrasa tinha inclusive um programa de financiamento do acionista, era o Procap, que era um financiamento exatamente para criar um mercado de capitais brasileiro.
P/2 - Nesse sentido, o BNDES teve uma participação importante na criação mesmo do mercado de capitais no Brasil, que era...
R - Fundamental. O mercado de capitais no Brasil tem 150 anos, a bolsa. Mas essa... Trazer. E o Banco criou isso como... Logo no início da década de 70, teve um quase encilhamento, houve um boom no mercado de capitais advindo de incentivos fiscais; as pessoas entraram, as empresas começaram a ter lançamentos, as pessoas começaram a ganhar dinheiro, dava filhote... Só que era uma enorme bolha que, quando se desfez, as pessoas todas perderam dinheiro. Era o mesmo sistema dessas correntes. Vai todo mundo entrando e... Enquanto todo mundo estiver comprando, vai subindo. Sobe barbaramente. As pessoas começaram a vender apartamento para botar dinheiro no mercado de capitais, para depois comprar dois apartamentos, vender os dois e comprar quatro... E depois tiveram que usar todo o dinheiro do mercado de capitais para alugar um apartamento, porque perderam todos e mais alguns. Então a BNDESPAR, o BNDES quando criou, foi tentar dar uma organicidade e densidade ao mercado. Quando criou esse programa, as pessoas tinham financiamento para entrar em empresas, que era o Procap, foi para dar sustentabilidade e organicidade ao mercado de capitais. O Brasil teve dois encilhamentos, um no início do século - já o passado (riso) - e esse, logo no início da década de 70. Que eram os fundos de... Como chama? É o 157, o decreto-lei 157, que você podia pegar parte do seu dinheiro, parte do seu imposto de renda, e investir. Isso fez com que alavancasse o negócio, e esses fundos permaneceram até uns dois ou três anos atrás; a CVM até deu uma limpada nisso. E as pessoas até esqueciam; era um negócio meio... As pessoas botavam e esqueciam; tiravam quando caiu, e depois... Tinham suas contas, e depois até elas foram valorizadas. Mas eram criadas empresas com a exclusiva intenção de captar esse dinheiro, e não para financiar alguma coisa. O que o BNDES fez quando criou as três - foi na época em que o presidente era o Marcos Viana - foi melhorar essa visão. A especialidade do BNDES, que é a inserção profissional nesse mercado, que isso fosse dado. E a BNDESPAR vem fazendo esse trabalho muito bem, tem uma carteira de ações fantástica, tanto em quantidade quanto em valor. Depois eu saí para ser superintendente geral da CVM. Saí em 86 e voltei em 92.
P/2 - E o senhor poderia falar de algum projeto significativo do BNDESPAR? Têm vários, mas algum o senhor destacaria?
R - Olha, destacar processo ou projeto é um pouco complicado, porque você acaba tendo que discutir especificidades que são... Quer dizer, eu acho que o grande projeto era essa questão do mercado de capitais como um todo. Do mesmo jeito que na substituição de importações você tinha os setores, a intenção era criar um mercado de capitais, a intenção da BNDESPAR sempre foi criar um mercado de capitais. O projeto mesmo é o fortalecimento do mercado de capitais. Esse é o projeto. As empresas, de novo, com a mesma lógica que entravam nos outros negócios dentro desses grandes grupos, na BNDESPAR entram enquanto o banco acha que será útil para elas a participação do Banco, e útil para o mercado de capitais que elas virem empresas de mercado. Então o Banco agora criou ou ajudou a criar um novo mercado. A questão da bolsa... O banco ajudou a criar a Soma [Sociedade Operadora do Mercado de Ativos], que era o mercado de balcão do Brasil, de ativos, que funcionava aqui no Rio. Está tendo um processo agora. O Banco, por exemplo, foi o principal utilizador do acordo de acionistas da lei de S/A. O banco já fez centenas... A última reforma da lei de S/A... Quer dizer, a primeira lei de S/A, em 76, quando foi criada, quando ela, por exemplo, estipulou, pela primeira vez legislou sobre acordo de acionistas no Brasil, diz lá na explicação justificativa que é baseado exatamente nas subsidiárias do BNDES. Ainda eram as três, e sempre fizeram via acordo de acionistas. Quer dizer, quem introduziu o instrumento de acordo de acionistas, que é fundamental, foram as três subsidiárias. E agora, na modificação da lei - eu estava até na CVM como diretor - a melhoria da legislação sobre acordo de acionistas também se baseou no BNDES. O Fundo de Empresas Emergentes, que é fundamental, foi feito baseado no CONTEC; quer dizer, o que o CONTEC fazia na inserção que o BNDES fez no capital de risco. Aí criou-se o Fundo de Empresas Emergentes. O BNDES quando se coloca no mercado é uma bandeira. O Banco criou o private act no Brasil, foi o primeiro a criar private act. E o Banco alguns anos atrás, em 97, nós ganhamos o plano de criatividade do mercado de capitais. Quer dizer, os grandes instrumentos de mercado de capital, as calls, put que são instrumentos modernos, vieram para o mercado de capitais brasileiro por utilização da BNDESPAR. Então o grande projeto da BNDESPAR sempre foi essa questão, é o mercado de capitais. Esse é o grande projeto. As empresas são componentes dessa grande ideia que é o fortalecimento e o crescimento do mercado de capital. Essa sempre foi a participação. As grandes operações, agora como a venda pulverizada de Petrobras, de Vale, são todas... Na privatização, o BNDES e a BNDESPAR tiveram atuação decisiva. Então eu diria que o grande projeto da BNDESPAR, que vem se realizando ao longo do tempo, é a questão do mercado de capitais. As empresas são... A Aracruz. Se a gente quiser citar um exemplo de sucesso, a Aracruz foi criada porque o BNDES... Ainda nesse tempo era a Fibase, depois a BNDESPAR, fez uma participação acionária. A Aracruz é uma empresa tipicamente que... A Própria Bahia-Sul, que fez lá todo... Todas as empresas do pólo tiveram participação da Fibase. As empresas que fizeram máquinas e equipamentos tiveram participação da Embramec. Mas sempre o foco é o desenvolvimento, e no caso da BNDESPAR o desenvolvimento do mercado de capitais.
P/1 - E daí como dá a saída do senhor para a CVM [Comissão de Valores Mobiliários]?
R - Eu era diretor da BNDESPAR e fui convidado para ser sócio de um escritório de advocacia, um escritório bastante grande, o Motta Fernandes Rocha, que é do Nelson Motta, onde eu fui ser sócio sênior desse escritório. Eu saí do banco já a primeira vez para a CVM, como gerente geral, depois saí para ser vice-presidente do BANERJ [Banco do Estado do Rio de Janeiro], também quando o Márcio Forte foi para lá, depois fui para a Nova América, que é uma empresa privada, depois voltei para o banco. Fiquei no Banco até 97, quando fui convidado para ir para esse escritório. Voltei quando... E o presidente da CVM é, ou era na época, um funcionário do BNDES. O BNDES hoje contribui com isso. O presidente do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] também é do BNDES, o presidente da CVM é do BNDES, o presidente da Infraero é do BNDES. Então os quadros do BNDES são usados. E nessa época o presidente da CVM era o Costa e Silva, que me indicou ao ministro Pedro Malan, depois eu fui entrevistado pelo Malan. E com a minha experiência de BNDESPAR, de mercado de capitais... Basicamente o que fez diferença foi eu ter sido diretor da BNDESPAR, e aí o Presidente da República me nomeou para a diretoria da CVM. Até que eu saí e voltei, aí já fui ser superintendente da administração, já com o (Francisco Grou?). Mas claramente no que o ministro Malan se baseou foi a experiência de BNDESPAR.
P/1 - O que mudou no cotidiano de trabalho?
R - Quando?
P/1 - Do BNDESPAR para a CVM.
R - É outro mundo. A BNDESPAR inclusive é uma companhia aberta, portanto regulada e fiscalizada pela CVM. Para começo de conversa, você pula para o outro lado, que é o lado regulador, fiscalizador. E o lado mais nobre da CVM é exatamente esse lado regulador. No que eu pude contribuir foi exatamente mostrando, dizendo: “olha, tal coisa com tal empresa aconteceu isso.” Para o bem e para o mal. Para o mal: “olha, acho que a gente precisa regulamentar isso aqui, porque as empresas costumam fazer assim.” A BNDESPAR sempre usou o acordo de acionistas muito bem usado; os acordos de acionista do BNDES são padrões. Então a gente sabe que você pode coibir determinadas práticas de governança corporativa, desestimular a má governança e estimular a boa governança via acordo de acionistas. E essa experiência, por exemplo, eu levei. Tanto é que, por exemplo, que esse capítulo da lei sobre acordo de acionistas foi muito modificado dada a minha experiência, não minha só, mas BNDESPAR na feitura e no uso dos acordos de acionistas. No fundo, o escopo final é a mesma coisa. Tanto a CVM quanto a BNDESPAR querem o fortalecimento do mercado de capitais. Então, se por um lado eu passei de um órgão regulado e fiscalizado para um órgão regulador e fiscalizador, a concepção de incremento do mercado de capitais, de regulação, de bom mercado, é a mesma. Tem dessemelhanças, mas tem a semelhança principal, que é o principal, que é o fortalecimento do mercado de capitais. E é diferente, porque você... A experiência mais complicada da CVM é que você também é julgador. A diretoria da CVM também é julgador. Os diretores são relatores, e julgam as práticas inadequadas do mercado de capitais. Então você passa - foi uma experiência nova minha - a ser relator e julgador de empresas e pessoas do mercado de capitais. Essa é uma experiência nova; essa experiência de julgador eu nunca tinha tido. Essa é uma diferença bastante grande da mudança do órgão. E esse negócio de julgar é sempre muito complicado, exige muita ponderação e discernimento.
P/1 - E quanto tempo o senhor ficou nessa...
R - Eu fiquei um ano. Quer dizer, eu fiquei um ano como superintendente geral primeiro, depois fiquei um ano como diretor.
P/1 - E volta para o BNDES.
R - Voltei para o BNDES, aí para ser superintendente geral de administração, cargo que eu ocupo até hoje.
P/1 - Na chefia do gabinete?
R - Não, agora eu sou superintendente da administração, eu fui chefe de gabinete em 86. Quando eu voltei da CVM em 86, quando eu voltei de ser superintendente geral, eu fui ser chefe de gabinete. Eu fui ser chefe de gabinete da presidência do Márcio Fortes, que era presidente. Depois de chefe de gabinete, eu fui superintendente de mercado de capitais e superintendente de operações especiais. Foi quando o Márcio foi para o BANERJ e me convidou para ser o vice-presidente. Aí eu saí, fui emprestado para o governo do estado para ser vice-presidente do BANERJ, onde fiquei até 91, quando mudou o governo do estado, e aí eu voltei. Quer dizer, eu não voltei. Eu pedi uma licença de vencimento e fui para a empresa privada, para a Nova América. Quando eu voltei da Nova América que eu voltei para a BNDESPAR, e aí como superintendente dessa área. Eu acumulava a superintendência jurídica de novo, com essa área que era do CONTEC, de tecnologia.
P/1 - (pausa) Agora acho que é falar um pouco da superintendência. Quais foram as principais... (riso) Ações dentro do mercado de capitais?
R - As grandes ações foram ações de modernização. As ações em que o BNDES usou instrumentos que eram basicamente usados nas economias mais desenvolvidas do ponto de vista de mercados de capitais. Mais sofisticadas. A principal função da BNDESPAR foi trazer esses instrumentos que são modernizantes para o mercado de capitais brasileiro. Porque o BNDES é que tem experiência para isso, tem recursos, e tem a obrigação de correr riscos, desde que seja para o desenvolvimento econômico. E não há desenvolvimento econômico sem um mercado de capitais forte. Eu diria que a principal função da BNDESPAR foi a de trazer instrumentos modernizantes, a inserção moderna do mercado de capitais brasileiro e a sua tentativa de equalização. E a principal função da BNDESPAR é abrir empresas. Ou seja, a ideia da BNDESPAR era sempre entrar na empresa, ela sendo fechada ou aberta, e fazer com que ela vire uma empresa de mercado, que ela vire uma companhia aberta e, tanto quanto for possível, com as melhores práticas de governança corporativa. Esse conceito de governança corporativa, por exemplo, o BNDES sempre usou. Um conceito hoje muito difundido, mas que veio através da presença do BNDES. E a criação, por exemplo, de fundos; o Fundo de Empresas Emergentes, o private act, um fundo que a gente chama de liquidez... Grande parte dos instrumentos novos - call, put - vieram ao mercado de capitais via BNDESPAR. E nisso a BNDESPAR... Para a pulverização de ações... A contribuição da BNDESPAR sobre regulação de mercado... Então essa é a função que a BNDESPAR faz muito bem. Essa coisa de desenvolver instrumentos. E mais. O que a BNDESPAR sempre fez foi resolver questões que precisavam ser resolvidas via... Até criação de institutos. A BNDESPAR criou um negócio chamado debêntures conversíveis. O Banco criou uma espécie de debênture substituta, uma coisa nova que o Banco usou na lei de S/A, e fez toda a privatização das distribuidoras de energia utilizando esse instrumento. Instrumentos de sociedades para partes específicas... E utilizou sempre esses instrumentos para melhorar as empresas e fortalecer o mercado de capitais. Quando não havia disponíveis no mundo e precisava, dada as peculiaridades locais, serem desenvolvidas, o Banco os desenvolveu.
P/1 - E sempre através desses contatos, dessas viagens? Como é que...
R - Nesse ponto, a BNDESPAR se parece muito com o Banco. Geralmente há uma demanda das empresas. Essa demanda é analisada; o grupo vai, viaja, acompanha a empresa, e faz adequar os interesses da empresa à realidade. A empresa quando pede a participação, quando pede... Óbvio, está no papel dela, pede o mundo. (riso) E cabe ao BNDES dizer: “olha, o mundo eu não te dou não, eu te dou isso aqui.” Que é o cuidado que a gente tem que ter com o dinheiro público; o BNDES é um órgão que gere dinheiro público, então tem profundas obrigações sobre isso. Então as empresas chegam: “eu quero pela minha ação 25 reais.” Aí você chega, analisa e diz: “olha, a sua empresa vale 2.” E aí essa busca, que a gente chama de precificação das ações, esse por exemplo é um espaço de negociação enorme, tem que ter muita técnica. Grande parte do pessoal do BNDESPAR é pós-graduado, tem mestrado em finanças, em operar em mercado de capitais, vai ao exterior estudar; tem vários funcionários que têm formação no exterior. E mais. Muitas viagens são feitas para os Estados Unidos bastante, Nova Iorque... Quer dizer, o Banco é um parceiro sempre importante dos grandes bancos de investimento do mundo: - Goldman Sachs, Salomon Brothers. Todos esses projetos têm sempre um componente internacional, que é um componente de profissionalização e de modernização. Então nas grandes operações... Eletrobrás, a gente pode citar; Petrobras... Quem levou a Petrobras para o mercado americano foi o BNDES, foi a BNDESPAR. Quem colocou as ações da Petrobras no mercado, quem fez com que a Petrobras olhasse o mercado exterior, foi a BNDESPAR. Toda a pulverização... A desconcentração da participação em Eletrobrás foi feita pela BNDESPAR. A privatização da Light só foi possível porque a BNDESPAR participou. Na privatização da VARIG a BNDESPAR participou, na privatização das teles a BNDESPAR fez participação acionária. E sempre fez procurando colocar essas coisas com os seus aspectos mais modernos no mundo sobre mercado de capitais. Então esses são grandes projetos. A Petrobras certamente, essa desconcentração, que acabou na pulverização efetiva, foi todo um trabalho que foi feito pela BNDESPAR ao longo de anos. A Eletrobrás, por exemplo, desde a década de 80 que a BNDESPAR vem negociando com a Eletrobrás a sua colocação efetiva no mercado de capitais. Essa empresa estatal a gente pode citar, a meu ver sem qualquer problema, porque são, temos o mesmo acionista controlador, que é a União.
P/2 - Assim, um pouquinho para situar, quais foram as primeiras privatizações?
R - Acho que essa é uma boa questão também. O BNDES/BNDESPAR, tinha 17 empresas sob seu controle. Da Caraíba a Máquinas Piratininga, Nova América... Essas empresas eram de propriedade, os seus controles eram de propriedade da BNDESPAR. A Aracruz, uma participação importante... Então, quando no planejamento estratégico do Banco os cenários demonstravam a necessidade de privatização, o que o banco fez? O banco fez assim: “bom, não adianta você falarem sem dar o exemplo; vamos dar o exemplo e vender todas as nossas empresas.” Então, a curva de aprendizado, que o BNDES depois foi usado pela União como órgão de privatização, deu-se com a experiência que o BNDES/BNDESPAR tiveram vendendo as suas próprias empresas. Toda a curva de aprendizado deu-se... Quer dizer, como se faz leilão, o que você tem que fazer, como você entra na empresa, o que você tem que ajeitar na empresa para vendê-la, ou chegar à conclusão de que aquela empresa era melhor ser extinta do que ser vendida, porque não tinha condições de ser vendida... Esse aprendizado deu-se com o BNDES vendendo suas próprias empresas. Essa curva foi basicamente quando o Márcio Fortes era presidente do Banco. Inclusive o Banco já falava de planejamento estratégico, de 86 até 93, e o cenário do ano 2000 já mostrava a necessidade de privatização. Não havia por que, por exemplo, o Estado Brasileiro ter uma fábrica de cobre, uma mineradora de cobre como era a Caraíba. Quer dizer, os recursos que podem ser muito mais bem utilizados em saúde, educação, acabavam sendo para poder manter essas firmas. Então o BNDES entendeu que essas empresas deveriam ser privatizadas, até a nível do setor público, mas não dava para começar por aí. O Banco tinha que aprender a fazer isso e aprendeu vendendo as suas próprias empresas. Que de resto foi um sucesso; o banco arrecadou e essas empresas existem aí. O primeiro órgão a privatizar foi o BNDES, privatizando as suas próprias empresas. E eram projetos de dois, três, quatro anos. Ir para lá, primeiro assumir o controle, e depois, quando era o caso, mudar a administração; quando a administração resistia, trocava a administração inteira. O que tinha que ajeitar, o que tinha que fazer; o que tinha que fazer em termos de balanço, adequar as coisas, adequar a empresa... Para que a gente vendesse empresas efetivas. E quando chegasse à conclusão que as empresas não deveriam ser vendidas, as empresas também não deveriam existir, e aí era proposta a sua extinção. Como foi. Nessa questão da privatização, as lições foram aprendidas em casa, com extremo cuidado. O pessoal estudou muito. Eu nessa época era superintendente jurídico. A gente examinou muito o modelo inglês, que era o modelo mais usado na época. Como é que pulverizava, como é que não pulverizava; como é que vendia, se vendia em bloco, que tipo de leilão, como é que era o leilão... E em cada privatização aprendendo para fazer a próxima. O conhecimento sempre é progressivo. E o BNDES ter virado depois o órgão da privatização decorreu dessa coisa, que começou vendendo suas próprias empresas. No início de 86, 87, 90% das reuniões de diretoria eram usadas para problemas nas empresas que eram controladas. Hoje não tem nenhuma empresa controlada pelo BNDES. A BNDESPAR tem algumas onde ela é sócio de um grupo de controle, mas ela não gere mais a empresa. As participações voltaram ao que deveriam ter sido feitas desde o início, que eram participações minoritárias e transitórias. Então a curva de aprendizado da privatização deu-se por aí. Foi uma experiência extremamente interessante e educativa. Hoje o pessoal da BNDESPAR domina a privatização sem... Claro que cada uma tem uma dificuldade, mas sabe bem o que está fazendo.
P/2 - Puxando mais um pouquinho para a questão das privatizações, qual foi a ruptura? Porque o Plano Collor que fez plano nacional de desestatização, o Programa Nacional de Desestatização. O...
R - Não, não foi, não. Posso esclarecer?...
P/2 - Deve. (riso)
R - O que o Plano Collor fez foi continuar, foi se basear nesse planejamento estratégico que foi feito em 86. Chamava Cenários para a Economia Brasileira, e que mostrava a necessidade de privatização. O que ele fez sim foi nomear o BNDES como gestor de toda a privatização. Mas a ideia da privatização, a concepção da privatização, e a necessidade... A primeira pessoa a falar de privatização no setor público foi o Rangel, que era um dos economistas mais brilhantes que o Brasil já teve, e era funcionário do BNDES. E foi quem começou a mostrar a necessidade de privatização, e exatamente porque a capacidade do Estado de poder investir não era adequada; esse dinheiro devia ser melhor utilizado em outra coisa. E mais do que isso: vender ainda, arrecadar para as funções referentes às funções de Estado. O que o Plano Collor fez quanto à privatização foi claramente... Inclusive o diretor que foi nomeado para o BNDES para a privatização era o que tinha começado como superintendente da BNDESPAR para as privatizações, que era o Sérgio (Zendron?). Então o que eles fizeram foi dar dimensão a isso que o BNDES tinha começado em 86. E o Collor é 91. E as conversas da equipe de transição foram... - acho que o Julio Mourão vem depois... - baseadas nesses estudos que o Banco já tinha feito. É verdade que ele incrementou a privatização, mas o conceito é o conceito que veio do BNDES. (pausa) A privatização veio daí. E aí virou órgão gestor. Teve a lei ___ e o órgão virou órgão gestor nacional. Que é como ___________.
P/2 - Dentro desse processo ainda de desestatização, muda um pouquinho a própria concepção do papel do Estado no desenvolvimento...
R - Muda completamente.
P/2 - O senhor poderia falar um pouquinho desse novo papel do Estado?
R - Passa a ser um papel de financiador e de regulador. As agências estão aí exatamente por isso. Quer dizer, a União deixa de ser necessariamente acionista; quer dizer, o papel de dono das empresas, para ser acionista das empresas quando é o caso, para ser o órgão regulador, e o financiador via os bancos públicos, principalmente o BNDES. Muda muito. Quer dizer, todas essas agências, ANATEL, ANA, ANEEL, são exatamente essa mudança no papel do Estado, que ele passa a ser regulador. Fiscalizador também, mas regulador. E deixa de ter uma intervenção como dono da empresa. Então muda conceitualmente a questão. Na década de 70, quando foi feita... Isso vem da criação do Banco, do tempo do Getúlio. O Banco está fazendo 50 anos, porque foi criado exatamente em 52 pelo Getúlio. O banco foi criado exatamente para fazer infraestrutura. Infraestrutura econômica. E veio adaptando o seu papel, e na verdade sendo o indutor dos processos. Quer dizer, o Banco se orgulha, tendo como sua missão ser agente de mudança. Essa que é a missão do Banco. Em todos esses negócios, seja no mercado de capitais, seja na privatização, o que o Banco fez foi ser agente de mudança. E essa nova proposta do papel do Estado, de regulador, vem da década de 80, desse planejamento que o Banco veio fazendo. Muda completamente. A visão do Estado passa a ser... O Estado precisa de educação, saúde, segurança... São as funções mais nobres do Estado, e não ser dono de empresa. E regulador das relações econômicas.
P/2 - Só para finalizar essa questão das privatizações, até o Banco como agente de mudanças. A quê o senhor atribuiria essa resistência da sociedade, pelo menos aparentemente, ao processo de privatização?
R - Olha, a resistência da sociedade à privatização, primeiro, não é própria do Brasil. Quando a gente começou fazer a privatização, via que a privatização tinha resistências no mundo inteiro. Países tidos como liberais como a Inglaterra, o processo que veio da Margaret Thatcher como o principal movimento de privatização. Depois os países todos, Alemanha, principalmente depois da junção das duas. E a ideia que as pessoas têm é que aquilo ali é um bem de todo mundo. Já que o Banco tem, todo mundo é dono, a Petrobras... Então resiste a ideia. Por quê? Porque quando você vende uma empresa, você vende a empresa, e não o que a gente costumaria... A gente via muito isso: “o patrimônio dessa empresa é 10 bilhões e vocês querem vender por 2.” Só que quando você fala em patrimônio, esse patrimônio só se realizaria se você desfizer a empresa e vender aquelas partes todas. O que você vende, até porque ela que dá emprego, ela que gera imposto, ela que faz produção, é a empresa como um todo. Portanto, você vende a capacidade daquele empreendimento de gerar resultados, e isso é um cálculo extremamente complexo. E as pessoas não conseguem entender porque também é complicado mesmo. É mais ou menos inteligível e perceptível: “como a soma das partes vale 10 bilhões e você quer vender o controle por 2? Que maluquice é essa?” Só que você pode ter um patrimônio que gere prejuízos, então o que gera prejuízos ninguém quer, porque ninguém vai comprar prejuízo. Então essa valoração - os americanos chamam de evaluation de uma empresa, quanto ela vale, e principalmente quanto é que vale a parte de... Além do que você nem sempre tem 100% da empresa. Como nas teles, o que a União tinha era 20% do capital total das empresas. 20%. 80% já não era mais da União. Só que isso é muito complicado: “você é dono da empresa, você pode fazer tudo com ela.” O que é uma visão contrária à visão da governança corporativa. O que a governança corporativa diz é: “não, você como controlador tem obrigações - e a lei de S/A diz isso - para a sociedade, para a comunidade e seus acionistas.” Na verdade, o ser dono gera direitos e obrigações. O que as pessoas no geral fazem é: “se eu for dono de uma empresa, eu mando nela; o caixa dela é meio uma extensão do meu caixa.” O que é uma visão completamente errada do que é uma empresa. Então a resistência era muito assim: “não estou entendendo; por que está vendendo as empresas lucrativas?” Pela simples razão de que as pessoas só querem comprar empresas lucrativas. Ninguém quer comprar empresas... As pessoas dizem: “por que você não vende as com prejuízo e fica com as lucrativas?” Pela simples razão de que ninguém quer. E a outra visão é a seguinte, você para manter uma empresa tem que fazer sempre aumentos de capital. E a União tem um orçamento. E orçamento é finito por definição, como qualquer recurso. Economia é exatamente a ciência da gestão da escassez. Ora, se você tem uma relação de dinheiro para usar, ou você vai usar no combate à AIDS, ou você vai usar para a educação, ou você vai investir para ter uma empresa de cobre? Por que razão? Ou investir numa empresa de celulose? Ela vai muito bem sozinha. O que você vai receber ou é participação minoritária, ou imposto que ela vai gerar. Porque na verdade isso é finanças. Finanças é muito complicado. (riso) As pessoas têm dificuldade de gerir suas próprias finanças: cheque especial, cartão... (riso) No final do mês, como é que compatibiliza; todos os nossos recursos são finitos. Como é que paga aquele montão de conta? Se vai pegar o cheque especial, ou se vai usar o cartão de crédito... É finanças. Só que isso, falando em termos macro, o Estado tinha que gerir isso tudo. E, portanto tem prioridade para isso. Então a resistência diz: “ora, como vai vender um patrimônio que é de todo mundo para alguém que vai se beneficiar disso?” Aparentemente, na visão geral, em detrimento de nós todos. Não é em detrimento, é em favor. (pausa) É em favor. A venda das teles foi um sucesso fantástico. Agora, porque primeiro o Banco tinha vendido as teles - o governo, nem foi o Banco; o Banco só ajudou - muito barato, né? Aí agora tem a crise das teles, e o pessoal diz que o problema é que vendeu as teles caras demais. (riso). Bom, vamos resolver. Ou vendeu barato, ou vendeu caro. Mas na época, quando se arrecadou cento e tantos bilhões de dólares com a venda. Vinte e tantos bilhões, o evaluation foi de cento e tantos bilhões, o pessoal falou: “ah, está vendendo barato.” Agora tem uma crise, e as empresas dizem que o problema é que elas pagaram caro demais. Aí vai todo mundo: “ah, vendeu caro demais.” (riso) Resolve: ou vendeu caro demais, ou não vendeu caro demais. Agora não dá para criticar todo mundo por fazer e por não fazer. Mas é normal que as pessoas tenham essa resistência no mundo inteiro. O programa de pulverização das ações na Inglaterra se deu exatamente porque se entendeu que se você fosse ter uma parte da empresa diminuiria a resistência, o que é verdade. Só que a lei brasileira de concessões, pelo menos a atual, exige que haja um dono. Você tem que fazer um contrato de concessões, e para isso você tem que ter pelo menos um bloco de controle. E essas são questões muito complicadas e delicadas. A gente acha que é perfeitamente inteligível dar as resistências, e o que a gente fez o tempo todo foi minimizar essas resistências e tentar fazer sempre o melhor para o Brasil.
P/1 - Acho que a gente pode encaminhar para o final. (riso) Então eu queria que o senhor falasse agora a área que o senhor está atualmente.
R - A minha área agora é a área de administração. Administração do Banco. É uma área em que a sua clientela é só do resto do pessoal do Banco. E é a área que todo mundo reclama. Obviamente, todo mundo tem demandas para fazer, e ela mexe com recursos humanos. E mexer com recursos humanos, nós estamos falando de gente, e gente sempre, por definição, tem que ser sempre cuidada com muito carinho. Nesse tempo, além da área de privatização em si, a diretoria do Banco me nomeou como coordenador da implantação da reforma. O Banco fez uma reforma muito grande o ano passado, nomeou um grupo para tirar essa reforma do papel e implementá-la e nesse grupo eu sou coordenador. Hoje eu tenho duas funções principais: a coordenação desse grupo, que é uma função nobre; e a superintendência de administração, que tem uma função muito nobre também. Em ambas há repercussão em todo o grupamento de pessoas do Banco. Na hora que tem o racionamento e nós temos que respeitar o racionamento, precisamos tomar medidas: fechar o Banco mais cedo, mexer no ar condicionado, mexer no conforto das pessoas, um pouco na liberdade das pessoas de ir e vir, porque a gente restringiu o horário... Quando falta alguma coisa, é a área de administração, o treinamento é na administração... Então a administração é uma área extremamente sensível do Banco. Se as pessoas soubessem o que chega na minha mesa todo dia, sobre o detalhe do detalhe, é impressionante. E a gente tem que lidar com o dia-a-dia. Ao mesmo tempo que eu lido com esse dia-a-dia, planejo, ajudo a planejar a administração do banco, e também tenho que coordenar esse grupo de implantação, que está fazendo um trabalho muito interessante. Tanto é que a gente está fazendo agora já o exame da implantação, que é o que está em vigor agora. Então a administração é, e passaram por lá vários técnicos... O atual vice-presidente foi superintendente da área de planejamento, o Costa e Silva, que foi presidente da CVM, foi superintendente da área de planejamento. O Perroni foi diretor da área de administração. Então a área de administração é uma área extremamente delicada, altamente desafiante, altamente interessante. Mas também não é para ficar muito tempo lá não, porque cansa um bocado. (riso) Dá um trabalho desgraçado. Mas é uma experiência fantástica. Ter passado por lá e estar lá é uma experiência profundamente interessante, porque você conhece o Banco profundamente. E aprende a lidar com o outro lado. Quer dizer, eu sempre fui o demandante dos serviços da administração, agora eu tenho que prover os recursos. E a missão da área é exatamente prover os recursos para que o Banco possa atingir os planejamentos estratégicos, que é a visão do cliente. A viagem, a caneta, um móvel, o local, a viagem, para que o Banco desempenhe a sua missão última, é uma questão de logística. E essa, a área de administração é a área que provê a logística para que o Banco funcione. Meu avô dizia que se você acordar de manhã e sentir algum órgão do seu corpo, é porque ele não está funcionando bem. Quando está tudo bem você esquece dele, ninguém liga. Ninguém lembra que tem um fígado ao acordar, a não ser que ele esteja doendo, por você ter bebido um pouquinho na véspera. (riso) Então a concepção que a gente tenta colocar na área de planejamento é de que ninguém perceba que nós existimos. Se não perceberem, é porque estamos fazendo o nosso trabalho direito. Se tiver dor de cabeça, machucou o dedo, é porque alguma coisa nossa não funcionou, ou as pessoas acham que não funcionou. Mas não importa. Então a administração é altamente estimulante, é altamente desafiante, mas é intensivo. Uma missão que você tem ao longo da história do Banco. A área de administração foi gerida durante um período não muito longo por superintendentes diferentes, e é muito interessante, porque é meio parecido com servir o Exército. Eu me lembro que quando eu servi o Exército era terrível, mas depois que você sai você acha ótimo que você serviu o Exército. E a área de administração é um pouco isso. É muito complicado estar lá, mas as pessoas que saíram sempre fazem ressalva de que foi muito interessante de trabalhar; apesar de desgastante, cansativo, foi muito bom, foi uma boa experiência ter passado pela administração. Eu acho que quando eu sair de lá - é mais quando sair do que quando estar lá - eu vou ter essa mesma visão. E continuo achando um barato ter sido, estar lá.
P/1 - Encaminhar para as perguntas finais, mesmo. Se o senhor fosse mudar alguma coisa na trajetória do senhor de vida profissional, mudaria alguma coisa? Faria diferente?
R - Não. Eu pautei a minha vida profissional no Banco por tempos. Eu sempre fiquei algum tempo, não muito tempo em cada local. Eu passei por todas as áreas do Banco, com exceção da área de planejamento. E tinha sido da área de administração. Fui da BNDESPAR, fui da Finame, foi do gabinete, das áreas operacionais, fui de tecnologia... Quer dizer, ao longo desses 29 anos no banco, com exceção da área de planejamento, eu fui de todas as áreas. Eu passei, fiquei dois, três anos em cada uma delas. E foi sempre muito interessante. E foi sempre muito interessante mudar, porque todas as vezes que você muda tem um desafio novo, e sempre alguma coisa a vencer. E isso é altamente estimulante. Em todas as áreas que eu passei, o lado bom sempre superou as áreas adversas que podem ter ocorrido. Então eu não mudaria, não. Acho que a minha vida profissional, da qual eu gosto muito, porque eu acho que deve se gostar daquilo que se faz, foi muito satisfatória. Eu não mudaria nada, não.
P/1 - E o que o senhor achou de ter passado esse tempo com a gente?
P/2 - Eu ia fazer só uma pergunta, se possível.
P/1 - Tá.
P/2 - Queria sintetizar qual o papel do BNDES na história do Brasil, na perspectiva do senhor mesmo?
R - Eu acho que espelha isso perfeitamente. O Banco sempre foi, sempre procurou ser e efetivamente foi, um agente de mudança. Quer dizer, um agente modernizante, que topou os desafios, que venceu os desafios, sempre foi o BNDES. Todas as crises brasileiras, principalmente de algum tempo para cá, quando houve crises, o BNDES foi chamado. Na crise de energia, foi o pessoal do BNDES que foi; quando você quer examinar o problema da aviação, o BNDES que vai lá... Então, toda vez que foi demandado... A privatização... Com todos os riscos... Por exemplo, a privatização era sabidamente de grande resistência, nós tivemos grandes dificuldades. Eu me lembro de ir nas festas e ser cobrado, na festa, porque o Banco estava privatizando: “está privatizando!” (riso) Era um papel extremamente antipático, e o Banco sempre foi demandado a fazê-lo. Seja simpático, antipático... A inserção modernizante na área social é do BNDES. Todas as vezes que o BNDES foi demandado - e o foi muitas vezes - foi como agente de mudanças. E a gente tem a vaidade e o orgulho de achar que a gente fez, e vai continuar fazendo. Então eu acho que a missão do Banco, o agente de mudança, espelha bem o papel do BNDES.
P/1 - O que o senhor achou de ter passado esse tempo com a gente contando a sua vida?
R - Acho ótimo, e acho ótimo o projeto do Banco com 50 anos. O banco, e a gente acha, e eu tenho impressão de que a sociedade também acha, o Banco tem uma trajetória de êxito. E eu acho que essa demonstração, não por mera vaidade, mas demonstrar essa questão do agente de mudança, e as consequências do agente de mudança, e que o Brasil hoje é diferente porque o BNDES desempenhou o seu papel, é muito importante, para que as pessoas percebam: um, que o Estado é operante, o Estado é um Estado operante; outro, que o Estado tem o seu papel. O BNDES, eu sempre achei que o Banco nunca foi um órgão de governo. O Banco sempre foi um órgão de Estado. E essa questão de ser um órgão de Estado é uma função fundamental. E acho que esse projeto dos 50 anos... não é mera vaidade: “estamos fazendo 50 anos!” Não. É que mostrar essa trajetória para que o Brasil perceba que mudou. E que é muito importante que... Todos nós achamos que estamos longe do que devemos chegar, principalmente na questão de distribuição de renda, na equalização de padrões, e eu acho que isso tem que continuar. Eu acho importante mostrar: se fizer, tem consequências.
P/1 – O que achou de ter retomado a trajetória profissional do senhor dentro do Banco?
R - Olha, na verdade nunca houve essa retomada porque eu nunca me afastei.
P/1 - Não, contando agora para a gente.
R - Ah, é ótimo! É ótimo porque organiza muito a cabeça. O que você vai encontrar, acho, nas entrevistas que vocês fizerem, é um grupo de funcionários muito orgulhoso do seu papel, da condição ética que o Banco sempre teve, da respeitabilidade que o Banco tem. Então isso é fundamental. Eu adorei estar organizando isso conversando com vocês. Acho que as perguntas foram muito bem colocadas e foram bem dirigidas para esse fim.
P/1 - Obrigada.
R - De nada.Recolher