Moro na Baixada Fluminense, onde a cultura vive muito a reboque e às margens da cidade do Rio de Janeiro. Temos alguns talentos artísticos não reconhecidos, manifestações culturais esquecidas, mas também sofremos, assim como grande parte do país, um aculturamento promovido pela mídia. E não acho que seja um outro tipo de cultura: é aculturamento mesmo, é o vazio.
Nunca esqueço de quando, em 1993, trabalhei como animador cultural das escolas estaduais (governo Brizola). Um dia, promovi um show de calouros nas turmas (5 a 12 anos) para discutirmos diversas formas de música. TODAS as crianças só conseguiam lembrar daquela de Chitãozinho e Xororó: "chuva no telhado...", depois o refrão: "quando você chegar, com sua roupa molhada...", um clássico popular no melhor estilo romanticóide. Parecia que estava num pesadelo. O dia foi passando, e em cada turma eu tentava, mas só caía "Chuva no Telhado". Descobri que eles só conheciam esta música e, com o tempo, descobri que isso era quase tudo o que conheciam.
Quando eu era pequeno, eu sabia "Meu limão, meu limoeiro", a do Topo Gigio, os iê-iê-iê, a "Luciana" da Evinha, “Datemi un martelo” da Rita Pavone, as cirandas, mas também sabia os tangos, as guarânias e os boleros que meu pai ouvia, os Beatles, as músicas francesas e italianas que meus irmãos gostavam. No rádio, tinha a "Ave Maria" às 6 horas da noite sagradamente, o Inspetor Silva e seu parceiro chinês, o Teatro de Mistério, as radionovelas, o Haroldo de Andrade e o horóscopo de Omar Cardoso.
Lá em casa quase não tinha dinheiro, mas tinha um monte de irmãos, amigos, primos, vizinhos, um monte de bichos (cachorro, gato, pato, marreco, ganso, cabrito, cavalo, vaca, cágado, passarinho), um monte de plantas (cajá, laranjeira, goiabeira, carambola, limoeiro, fruta-do-conde, bananeira, sapoti, jambo, tinhorão, bambú, beijo, margarida, papoula, pinheiro, pimenteira) e uma vida cultural farta, alimentada pelo passado de meu...
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Moro na Baixada Fluminense, onde a cultura vive muito a reboque e às margens da cidade do Rio de Janeiro. Temos alguns talentos artísticos não reconhecidos, manifestações culturais esquecidas, mas também sofremos, assim como grande parte do país, um aculturamento promovido pela mídia. E não acho que seja um outro tipo de cultura: é aculturamento mesmo, é o vazio.
Nunca esqueço de quando, em 1993, trabalhei como animador cultural das escolas estaduais (governo Brizola). Um dia, promovi um show de calouros nas turmas (5 a 12 anos) para discutirmos diversas formas de música. TODAS as crianças só conseguiam lembrar daquela de Chitãozinho e Xororó: "chuva no telhado...", depois o refrão: "quando você chegar, com sua roupa molhada...", um clássico popular no melhor estilo romanticóide. Parecia que estava num pesadelo. O dia foi passando, e em cada turma eu tentava, mas só caía "Chuva no Telhado". Descobri que eles só conheciam esta música e, com o tempo, descobri que isso era quase tudo o que conheciam.
Quando eu era pequeno, eu sabia "Meu limão, meu limoeiro", a do Topo Gigio, os iê-iê-iê, a "Luciana" da Evinha, “Datemi un martelo” da Rita Pavone, as cirandas, mas também sabia os tangos, as guarânias e os boleros que meu pai ouvia, os Beatles, as músicas francesas e italianas que meus irmãos gostavam. No rádio, tinha a "Ave Maria" às 6 horas da noite sagradamente, o Inspetor Silva e seu parceiro chinês, o Teatro de Mistério, as radionovelas, o Haroldo de Andrade e o horóscopo de Omar Cardoso.
Lá em casa quase não tinha dinheiro, mas tinha um monte de irmãos, amigos, primos, vizinhos, um monte de bichos (cachorro, gato, pato, marreco, ganso, cabrito, cavalo, vaca, cágado, passarinho), um monte de plantas (cajá, laranjeira, goiabeira, carambola, limoeiro, fruta-do-conde, bananeira, sapoti, jambo, tinhorão, bambú, beijo, margarida, papoula, pinheiro, pimenteira) e uma vida cultural farta, alimentada pelo passado de meu pai, que foi peão da fronteira no Rio Grande do Sul, fumava cachimbo, tomava chimarrão na cuia e adorava música e enciclopédias. Tínhamos uma tia casada com um alemão e sua casa ficava na “Europa”, ou seja, na vila de funcionários da Bayer. Lá tinha casas que nem de cinema: cerca branca de madeira, caixa postal no portão, gramado, floresta de coníferas, telefone, parede lisa e pintada, móveis nunca vistos, eletrodomésticos ainda nem inventados. Meu primo tinha um trenzinho elétrico todo iluminado que ocupava uma mesa grande, com uma cidadezinha e luzes que acendiam. Tínhamos amigos alemães e japoneses de Itaguaí, um espião italiano amigo de meu pai que morava em nossa casa (Seu Álico) e o povo de Belford Roxo-RJ. Isso é que era globalização.
Minha avó materna, Iracema, era filha de uma índia que foi caçada no mato por um português bisavô meu, em Pernambuco. Ela chamava-se Iracema Cavalcante e dizia que era prima de Tenório, o dono da Lurdinha. Minha avó jurava que os Demônios da Garoa tinham usado seu nome numa música trágica deles porque eram amigos de seu marido, meu avô, que era filho de um casal de franceses e vivia enfiado na Rádio Nacional. Essa sopa cultural era celebrada nas festas de fim de semana que meu pai promovia compulsivamente e para onde, vez por outra, ele trazia músicos e cantoras de churrascaria, sanfoneiros, e matava um porco – isso quando não vinha um tio meu que era mágico de circo, o tio Bira.
Nosso bairro não tinha uma praça decente (ainda não tem), mas as casas tinham quintal e tudo que se fazia era partilhado pela vizinhança. O Bairro Jardim Bom Pastor, em Belford Roxo, hoje extremamente populoso, não existia na década de 1960: era uma área rural onde íamos fazer piqueniques. Fazíamos muitos piqueniques de que participavam os velhos, os maduros, os novos e a pirralhada. A rua fervilhava o tempo todo. Dentro das casas, as pessoas estavam costurando, plantando, fofocando, colando bandeirinhas, regando as plantas, cuidando dos bichos, rezando, contando estórias. Minha irmã lia contos de fada para mim e cantava “carneirinho carneirão-neirão-neirão...” para eu dormir. Na televisão, eu via “Meu pé de laranja lima”.
Me parece que as crianças do Ciep de Heliópolis não tinham pai, mãe, avó, quintal, alguém que contasse uma história de um outro tempo ou que tivesse paciência ou tempo para isso. Parece que a televisão e o rádio preencheram “bem” (bem mal) este espaço. Não é mais necessário trocar nenhuma experiência: agora isso compete à mídia. Está tudo lá, prontinho e pasteurizado para não estragar, sem precisar sair do lugar. Agora, velho só anda com velho, funkeiro só conhece funkeiro, criança só brinca com criança. Os guetos estão formados. É a distância, o estranhamento, a intolerância. É o vazio.
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