P/1- Philippe boa tarde.
R- Boa tarde.
P/1- Obrigado por ter aceitado o nosso convite aqui do Museu da Pessoa. Eu gostaria de começar solicitando que você fale o seu nome completo, local e data de nascimento.
R- Meu nome é André Philippe de Seabra, nasci em 4 de novembro de 1966 em Washington [trecho inaudível].
P/1- Como é o nome dos seus pais?
R- Alexandre José Jorge de Seabra e Silvia Mara Brasil de Seabra.
P/1- O que eles faziam?
R- O meu pai trabalhava no consulado americano em Belém na década de 1950 porque, claro, a capital Brasília não existia ainda e quando ele veio... Você tinha um corpo diplomático, você tinha representação. A embaixada ficava no Rio de Janeiro e tinha o único consulado, né, que ficava em Belém. Aí ele saiu um dia pra ver uma peça de teatro com a minha mãe e o resto da história, né? Minha mãe, filha de deputado, morava em Belém, 19 anos apenas, né, meu pai encontrou uma menina 20 anos mais nova, casou e foram embora pros Estados Unidos. E nós três nascemos lá, tenho mais dois irmãos.
P/1- Philippe você falou que viveu lá até o primeiro ano de vida, foi isso em Washington?
R- Não, não, não. Eu nasci em Washington e fiquei lá até os nove anos de idade.
P/1- E quando é que você veio pra Brasília?
R- Eu mudei em 1976.
P/1- Como é que viver, nascer nos estados Unidos e de repente chegar na capital do país?
R- Foi meio estranho. A minha referência era americana, eu era um americano, eu ia pra um colégio católico lá, mas eu tinha essa coisa do Brasil, que eu tinha uma mãe brasileira, mas minha mãe também estava tentando se adequar e tentando ser aceita no comecinho do movimento civil americano, do Civil rights movement, então ela acabou tingindo o cabelo, né, então eu lembro da minha mãe loira, né? Então não tinha muito essa ligação do Brasil não, mas aí surgiu quando o meu pai se aposentou. O meu pai trabalhava diretamente com o presidente americano, né, entre a...
Continuar leituraP/1- Philippe boa tarde.
R- Boa tarde.
P/1- Obrigado por ter aceitado o nosso convite aqui do Museu da Pessoa. Eu gostaria de começar solicitando que você fale o seu nome completo, local e data de nascimento.
R- Meu nome é André Philippe de Seabra, nasci em 4 de novembro de 1966 em Washington [trecho inaudível].
P/1- Como é o nome dos seus pais?
R- Alexandre José Jorge de Seabra e Silvia Mara Brasil de Seabra.
P/1- O que eles faziam?
R- O meu pai trabalhava no consulado americano em Belém na década de 1950 porque, claro, a capital Brasília não existia ainda e quando ele veio... Você tinha um corpo diplomático, você tinha representação. A embaixada ficava no Rio de Janeiro e tinha o único consulado, né, que ficava em Belém. Aí ele saiu um dia pra ver uma peça de teatro com a minha mãe e o resto da história, né? Minha mãe, filha de deputado, morava em Belém, 19 anos apenas, né, meu pai encontrou uma menina 20 anos mais nova, casou e foram embora pros Estados Unidos. E nós três nascemos lá, tenho mais dois irmãos.
P/1- Philippe você falou que viveu lá até o primeiro ano de vida, foi isso em Washington?
R- Não, não, não. Eu nasci em Washington e fiquei lá até os nove anos de idade.
P/1- E quando é que você veio pra Brasília?
R- Eu mudei em 1976.
P/1- Como é que viver, nascer nos estados Unidos e de repente chegar na capital do país?
R- Foi meio estranho. A minha referência era americana, eu era um americano, eu ia pra um colégio católico lá, mas eu tinha essa coisa do Brasil, que eu tinha uma mãe brasileira, mas minha mãe também estava tentando se adequar e tentando ser aceita no comecinho do movimento civil americano, do Civil rights movement, então ela acabou tingindo o cabelo, né, então eu lembro da minha mãe loira, né? Então não tinha muito essa ligação do Brasil não, mas aí surgiu quando o meu pai se aposentou. O meu pai trabalhava diretamente com o presidente americano, né, entre a administração Kennedy até a administração Ford o meu pai era o tradutor pessoal do presidente para línguas latinas; ele era o chefe de departamento de línguas latinas, por exemplo, quando o papa chegava ou o presidente que visitava o papa, era o meu pai que sempre acompanhava. Quando o papa chegava... da delegação chegava nos Estados Unidos, o meu pai que acompanhava. Quando o Juscelino foi pros Estados Unidos o meu pai...as fotos mais famosas do Juscelino são engraçadas: você vê o John Kennedy, você vê o outro JK, né, o JFK; o JK, e o meu pai no meio ali, parecendo um grande estadista, né? Aí se aposentou em 1966 durante a administração do Gerald Ford e acabou mudando de volta para o Brasil. O porquê eu não sei direito, mas minha mãe queria ficar perto da família dela. Nós todos mudamos e como eu tinha apenas nove anos de idade eu não tive muito parecer na história, eu tive que acompanhar, né? E chegando aqui foi muito estranho porque, como eu já tinha falado, eu não tinha essa ligação do Brasil, nem minha mãe; a minha mãe tinha cabelo loiro, eu não fazia associação. Passava na televisão os desenhos animados do Zé Carioca. Nunca esqueça que a Carmem Miranda foi contratada pelo Departamento de Estado Americano pra tentar melhorar as relações latino americanas e do Brasil, só que a América Latina era uma grande... era uma coisa só, né? Tipo, capital Buenos Aires onde todo mundo dançava o tango.
P/1- A galera usava banana na cabeça, né?
R- Banana na cabeça. Não era tangível pra mim, mas minha mãe querendo voltar pro Brasil, ela colocou a gente pra aprender espanhol, porque não tinha nenhum curso de português; curioso isso, né? Não tinha nenhum curso de português e também curso particular pra criança nove anos de idade.
P/1- Você não aprendeu português quando era criança?
R- Não, não, não. Eu comecei a aprender um pouquinho de espanhol. Eu lembro... a única coisa que eu lembro andando pelo colégio, cantando feliz [entrevistado canta]: “Feliz na vida, feliz na vida. ” Assim, um corinho é nada. Nós mudamos pra camas…. até hoje você deve reparar um certo sotaque meu. Eu não ingressei direto no Brasil, isso ajudou muito na minha transição. Eu fui direto pra escola americana, porque o meu irmão veio antes, né? Os três irmãos. O meu irmão (Rick?), do meio, ele veio antes e não gostou da experiência de estudar numa escola brasileira, não se adaptou. Então quando eu cheguei eu já fui direto pra uma escola americana e é o mesmo tipo de horário: você estuda de oito e meia às três horas da tarde.
P/1- A mesma coisa.
R- Você está imerso dentro de uma cultura tão cosmopolita quanto Washington, bem ou mal, que eu acho uma coisa fantástica que nem essa. Hoje me dia não, hoje em dia escola americana é essa coisa de novo rico e, bem; eu não posso citar os nomes, né, mas todos esses graúdos aí que você vê, todo o escândalo financeiro, eles estão lá. Então pra mim não seria mais um lugar legal pra você mandar um filho, mas naquela época você tinha todo um corpo diplomático era muito interessante, sabe? Na minha sala de aula tinha pessoas do mundo inteiro. Eu estava mais ou menos acostumado com isso em Washington, eu acho, né? E isso ajudou a minha transição. Mas chegando em Brasília, bem... vindo de Washington que é a cidade mais arborizada do mundo, né, assim mais árvore per capita do mundo e chegando era completamente árido.
P/1- Como é que era a cidade, você tem como descrever, assim?
R- Seco, não tinha nada. Asa Norte não existia, Lago Norte, um ano depois, né. No final de 1976 a gente comprou nossa casa que foi a primeira casa aqui no Lago Norte e não tinha nada, nem iluminação. Quer dizer, iluminação pública, né, era estrada de terra até chegar lá, assim. As QI, as Q8, as Q10 tinham asfalto, mas entrando no conjunto não tinha nada. Muito seco, muita poeira eu lembro disso. Eu fiquei um tempo na 105 morando com o meu avô.
P/1- Norte?
R- 105 Sul, acho que nem tinha a 105 Norte ainda, né? E a Asa Norte a gente via como uma coisa meio...bem, isso é visão de criança, mas eu sentia que as pessoas melhores de vida moravam no Lago Sul e na Asa Sul. Sentia que a Norte - hoje em dia não - Asa Norte era meio ralé assim, mas na visão de uma criança, né? Foi muito estranho assim, mas a experiência Brasil foi muito estranha pra mim. O leite tinha um gosto diferente, a roupa que as crianças usavam, esse jogo estranho que você fica correndo atrás de uma bola redonda e não aquela bola oval de futebol americano.
P/1- Como que era um menino sair de Washington e chegar pra se divertir em Brasília? Como é que você fazia?
R- Criança?
P/1- É já criança, adolescente.
R- Bom, tem várias fases. Como criança eu comecei a andar com a turma do bloco, né? Que é uma coisa bem Brasília, né? Mas eu só tinha oito anos de idade. Eu lembro uma vez a gente passou um tempo na 705, né, 705 você tinha as casas. Na época você tinha só as casas, hoje em dia você tem muitos comércios, muita coisa provavelmente funcionando sem alvarás [Risos]. Uma vez eu queria sair com a minha bicicleta e minha mãe, acho que bastante orgulhosa desse lado americano, ela comprou uma bicicleta (trecho inaudível) importada e era toda vermelho, azul e branco, né?
P/1- Sua mãe é americanizada, né?
R- Total, total. E eu fiquei meio envergonhado com aquilo, né? Eu tinha visto uma preta que eu queria comprar, né, tipo, foi uns brinquedos que a gente comprou antes de mudar pro Brasil. E eu lembro disso, eu criança já estava meio ligado nessa coisa de você ser...eu tinha oito anos de idade só, de você ser um estrangeiro num outro país e você ostentar a sua nacionalidade. Isso já me incomodava com aquela idade. E essa bicicleta, eu provavelmente apanhei por causa disso, o moleque tentou roubar, mas um dia quando eu queria sair com as crianças, meu avô - que o meu pai ainda estava cuidando da mudança lá dos Estados Unidos, terminando a aposentadoria e não sei o que- … Então a gente estava morando com o avô, né, depois a gente passou pra 705 enquanto que a nossa casa estava sendo construída na QI8, né? O meu avô me deu um tapão, assim, na cara porque eu quis sair com as crianças, não quis deixar, eu nunca esqueci e aí eu comecei a ver as coisas cultural também, sabe? A relação, talvez, do Norte, Nordeste, sabe? Sociedade mais patriarcal. Eu não sei direto, assim, mas isso lembra que é uma análise de uma criança, né, meus pais nunca levantaram um dedo pra mim e eu nunca esqueci, até o meu avô faleceu já há alguns anos e acho que até hoje eu não o perdoei por causa disso. É meio... olha só que coisa doida, né? E aí eu comecei a andar com a turminha da rua, mas a minha grande turma mesmo era dentro da escola porque a escola americana ou o sistema americano de ensino - pelo menos um lado positivo - é que ele estimula muito esse lado extracurricular das crianças. Não é só aquela coisa você de estudar das sete ao meio dia e todo mundo vai embora.
P/1- Você tem oficina de marcenaria, várias coisas, né?
R- Tudo, o que levou começar a tocar vilão, e começar a me interessar mais por música. Meus irmãos faziam esportes e a gente morava longe; na época o Lago Norte era longe mesmo porque não tinha nada. A padaria mais próxima ficava na 9 Norte pra você ter uma ideia. Não tinha nada, o comércio nada.
P/1- É como se fosse casa de campo assim.
R- Exato, exato. Nem sei porque a gente mudou pra lá. Tivemos duas opções: de mudar pra 113 ou era a 111, onde morava os americanos, muitos americanos assim, da embaixada ou mudar pro Lago Norte, né? No caso tinha um apartamento que estava sendo construído na frente da nossa...o apartamento que a gente estava olhando e minha mãe não gostou muito do barulho por causa da construção, ia ter ainda anos daquilo, né? Aí mudei pro Lago Norte. Essa mudança pro Lago Norte foi uma mudança de vida e realmente minha vida deu uma bifurcada ali, né? É porque foi ali que eu conheci o André, que eu fundei a Plebe Rude e foi ali que andava a galera do Aborto Elétrico na época que todo mundo ficava na casa do Fê ou na casa.
P/1- Tinha a galera Colina aqui também, né?
R- Exato. Colina já na área da UnB [Universidade de Brasília], mas foi toda essa convergência da rapaziada, mas isso meio que começou através da escola americana também porque o Dinho estudou lá, o Dinho Ouro Preto, o irmão dele Afonso Ouro Preto, que foi o primeiro guitarrista do Aborto Elétrico, né, e o primeiro do Legião, bem no comecinho. E foi por causa do Ico - Afonso, Afonso Ico, né? Chamo ele de Ico - que eu comecei a tocar violão, porque eu vi uma turma em volta, depois do colégio, na escola americana e tinha uma turma em volta. Eu não sei se foi a música que estava tocando que me encantou ou se foi a platéia em volta que me encantou, não sei, mas eu comecei a tocar violão por causa disso. Porque meus irmãos faziam esportes e a gente só tinha uma carona pra casa, então tinha que ir todo mundo junto. Então eu tinha que ficar das três horas, quando o colégio terminava, até às cinco, né? E aí eu comecei a tocar violão por causa disso, né? É engraçado como vai moldando isso, né?
P/1- Esses caminhos por Brasília. E você estudou numa escola americana até terminar o High School?
R- Até terminar o High School sim. Mas eu fui o primeiro da minha família, né, meus dois irmãos se formaram: o Alex se formou em 1980 e o (Rick?) se formou em 1982 e eles foram embora pros Estados Unidos estudar, que a escola americana te prepara pra isso, né? O currículo tudo certinho. E eu, sei lá, nunca me identifiquei com essa coisa. Sei lá, eu sempre fui o mais brasileiro dos irmãos. Olha só que engraçado: desde criança eu tinha até vergonha da bicicleta com as cores da bandeira cheio de estrelas, “USA” escrito. Me incomodava aquilo, então eu acho meio que carreguei aquilo na minha infância, assim. Nada se ser anti americano, não é nada disso, muito pelo contrário.
P/1- Você criou raiz, assim, eu diria aqui.
R- Mas eu sempre me senti mais brasileiro, assim, apesar de ter nascido lá, crescido lá. Mas o que realmente deu o estalo pra mim é que eu fui umas das primeiras pessoas da escola, que eu lembre, que começou a ter amigos fora da escola, né? Eu comecei a andar com a turma tinha, 13, 14 anos.
P/1- A turma de onde? De onde é que veio essa turma aí?
R- Essa turma veio através do André, o André Muller, né, que também estudou na escola americana e o irmão dele, Bernardo Muller, que também estudou na escola americana, né? E eu acabaria por fundar a Plebe com o André um, dois anos mais tarde.
[PAUSA]
R- Assim essa linha está legal porque você está fazendo umas perguntas que nunca me perguntaram antes, estou achando um barato isso aqui. É por aí mesmo? Uma entrevista mais concisa?
P/1- É o que eu te falei, a gente tem outra preocupação.
R- Ok, mas aí vocês editam junto com fotos, não sei o quê?
P/1- Isso. Aquelas fotos vão entrando juntas.
R- Ok, então é fácil a edição qualquer coisa. Ok.
P/1- Então vamos lá. Você comenta que sai do Plano vai pro Lago, assim, galera diferente e conhece pessoas fora da escola americana. De alguma maneira você teve ... em que espaço de Brasília você estava presente nesse momento assim? Pós-adolescência, pós High School ou nesse período final da adolescência que espaço você frequentava em Brasília que você ocupava, assim?
R- Pois é. Tudo no seu contexto, né? Lembre que, quer dizer, quando eu comecei a conhecer música Punk, né, porque o grande lance nessa turma toda, o elo que juntava tudo foi a explosão do Punk. Quase que simultâneo, por que? Porque nós tínhamos acesso a todos os diplomatas aqui, então a gente conseguia... eu lembro que eu fui o primeiro cara a conseguir o disco do Depeche Mode. Eu consegui uma semana depois do lançamento porque a gente tinha uma tramóia assim: sempre os filhos de embaixador - não era nada ilegal não - [risos], eles tinham o direito de importar, então importava pra gente, né? E foi isso meio que deu aquela faísca assim de todo mundo dessa turma que acabou virando essa coisa conhecida como rock de Brasília, né? Só que você tem que lembrar que naquela época, né, o governo Figueiredo tinha censura, repressão, policial na rua, sabe? Era um ambiente um pouco estranho aí você põe um jovem aqui em Brasília uma cidade sem identidade; o adolescente sem referência aqui, sabe? Os filmes demoravam pra chegar, os poucos que vinham. Eu lembro que chegava quatro, cinco meses depois de chegar no Rio, peças de teatros não vinham, a gente tinha poucas opções de cultura mesmo que era... isso foi bem legal acho que na formação: por exemplo, a Cultura Inglesa passava filmes alternativos; a embaixada da Espanha passava umas coisas assim; a embaixada da França... e nós tínhamos acesso a isso. De vez em quando a gente ainda conseguia entrar no Itamaraty pra ver algum filme. Eu lembro...essa história é famosa, assim: ia passar ET no Brasil, ia ser a primeira exibição do ET no Itamaraty. ET, aquela explosão vários meses antes do mundo e todo mundo foi lá no Itamaraty conseguir entrar de penetra que a gente conhecia algumas pessoas. Aí começou... aí começou uma menina de cachinho... começando cantando e eu falei: “Ué?” O presidente não estava, mas eu lembro que tinha várias pessoas importantes, né, e eu lá atrás olhando. Aí começou entrar um musical e apareceu, sabe aquele musical daquela criancinha órfã? Eles trocaram os filmes, né? [Risos] Mandaram o filme errado e então ninguém viu o ET, tinha que ver no cinema, né? [Risos] isso foi muito engraçado. Então você perguntando os espaços que tinham, não tinham. Não tinha onde, mas isso que foi o mais legal, sabe? Isso meio que forçou a gente forjar alguma coisa. Onde não se tem se cria, né? Ninguém era passivo naquela época. Isso foi a coisa mais bonita, assim, o grande legado acho que dessa turma de Brasília e que não foi à toa que virou essa coisa, esse movimento, provavelmente o movimento de música mais forte que teve desde a Tropicália, sabe? Em termos de êxito e penetração na mídia. Porque eu vou fazer o quê? 14, 15 anos pegando carro, né, meio escondidão pra poder ir pra um lugar. Vou fazer o que: se eu não tenho lugar pra ir, então vamos criar. Você tem aquelas quebradas todas de Brasília, você tem os lugares beira do lago.
P/1- Os espaços abertos de Brasília.
R- Para o carro ali, abre as portas, abre o porta mala, põe uma fita, né, porque era fita cassete na época, abre um vinho, abre um som e pronto, a festa está feita, né? Não tem roupa legal? Pô, a gente pega roupa velha, costura, pões um broche, não sei o quê e ba, ba, ba e pronto, a gente tem roupa. Não tem música? Não tem banda jovem legal? Porque na época não tinha nada legal da rádio, tocava 14 Bis, tocava Caetano, assim, legal pra jovem, essa música jovem para jovem pra gente se identificar não tinha, não tinha mesmo. Sabe, era um pop ruim e o pop da cidade era um pop ruim assim,. Bandas legais eram bandas que tinham “terra”, “sol”, sabe? Tinha isso no nome, sabe, e só pelo nome você já via. Então a gente não se identificava com isso. Então onde não tem, se cria, então a gente acabou fazendo... não tem música legal nacional, então a gente acabou fazendo música legal pra gente, né? Isso foi meio que se catalisando entre a turma e cada um começou a fazer suas bandas e não sei o quê.
P/1- Você sempre morou em Brasília, desse momento até hoje?
R- Não, não. Você quer saber essa história?
P/1- Não, eu queria saber se você chega a sair e volta, você sai e volta?
R- Não, não,.Eu... bem... Cheguei em Brasília com uns 8, 9 de idade. Eu fiquei aqui até os 18 e eu lembro que a minha mãe me enchia o saco: “Ah, fica, esse negócio de música não vai dar em nada. ” E a Plebe já estava começando a ficar uma das grandes bandas de Brasília. Eu entendo, eu olhando pra trás eu entendo a preocupação dela e tudo mais, né, claro. Porque não é uma coisa tangível ser a artista no Brasil, imagine naquela época, né? E ela falava: “Mas o que que você quer, que um contrato caia do céu, é?” E “pau”: duas semanas depois o contrato caiu do céu, bem... fui embora, sabe? Fechei o contrato rolando e... Fui embora pro Rio e fiquei lá até 1994, né? E daí a pouco tempo depois estava falido o governo Itamar, né? E aí o meu pai tinha falecido e eu resolvi dar um tempo do Brasil. Como eu tinha esse passaporte americano e como eu sempre tive essa curiosidade sobre como é que seria morar como adulto nos Estados Unidos... Porque tanta gente que eu conheço: “Pô, se eu tivesse um passaporte americano eu ó, ia dar no pé. ” Então às vezes eu falo que eu sou mais brasileiro do que muita gente porque eu estou aqui por opção. Tem pessoas que não têm opção. Eu estou aqui porque eu quero, porque eu acredito, né? Não vai dar um passaporte pra Nego dar no pé,. Aí fiquei morando em Nova Iorque até o ano 2000. Aí voltei pro Brasil; eu estava meio que morando entre os dois países, né, com dois projetos em paralelos, mas aí eu acabei me apaixonando de novo mesmo nesse país confuso, estranho e bagunçado e eu resolvi mudar de volta, voltei ao Brasil de novo. Aí fiquei no Rio, grande erro, né, devia ter ido pra São Paulo, e aí de uns três anos pra cá, 2001... não, 2003. eu acho resolvi mudar de volta pra Brasília.
P/1- Como é que foi a sua chegada na cidade? Daquele menino que chegou com nove anos, de repente aquele cara já descolado tinha passado por muita coisa e volta pra Brasília. Quais são as principais transformações que você percebeu na cidade?
R- É, realmente foi um pouco estranho voltar pra cá porque a cidade cresceu, ela não é uma cidade mais circundada só pelo poder e pelo funcionalismo público. Realmente ela respira por conta própria, isso é legal. Ela começa a aparecer, ela começa a demonstrar os mesmos problemas de qualquer cidade grande. Você tem violência, você tem poluição, você tem até engarrafamento. Tudo bem, engarrafamento aqui em Brasília é de 30 quilômetros por hora, mas não deixa de ser engarrafamento. Mas eu sempre me senti um pouco sem raiz, né, porque eu comecei a desenvolver algum senso de cidadania, algum senso de alguma coisa e eu fui arrancado dos Estados Unidos e vim pra cá. Aí fiquei em Brasília e quando eu vi já estava morando no Rio. Então nunca consegui muitas raízes, eu sempre estranho isso, mas agora eu sinto assim. Obviamente eu estou em outra fase da minha vida, né? Ano que vem eu estou pensando em ser pai e eu gosto muito de Brasília. A cidade já me deu muito e eu estou querendo devolver isso na forma de produções culturais, assim, ajudando da maneira que eu posso, claro, né? Mesmo que ninguém está curando câncer, né, gente, é só uma banda, mas eu tento fazer como produtor, como agitador cultural eu sempre tento ajudar da maneira que eu posso, que eu acredito. Posso soar um pouco romântico, mas pô, eu acredito nesse país, eu estou aqui por um motivo, né? E não me arrependo dessa escolha não de ter vindo morar em Brasília. Mas o que me ajuda muito, porque, poxa, assim, eu não estou querendo ser arrogante, mas eu morei sete anos em New York, né, então eu sinto falta de algumas comodidades, sabe? De acesso a uma variedade enorme de cultura, de restaurantes, de eventos, eu sinto falta disso e não vou negar não, mas eu posso compensar isso através de idas freqüentes ao Rio e São Paulo porque o momento econômico que (trecho inaudível)... também pra você ver a estabilidade bem ou mal do país e realmente as passagens estão mais baratas. Então viabiliza ficar aqui em Brasília. Eu consigo morar aqui em Brasília porque eu posso “estar no pé” de vez em quando, mas mantendo a minha base aqui. Isso ninguém me tira, viu? Eu sou brasiliense mesmo, mas eu preciso sair fora de vez em quando. Não me entendam errado não, por favor. [risos]
P/1- Muitos afirmam que Brasília não tinha cultura, muita gente coloca isso: “Pô, Brasília é uma cidade meio perdida assim. ” E hoje?
R- É claro que você tem todas as produções locais, você tem cineastas locais fazendo coisas.
P/1- Você poderia dizer que o Brasil tem perfil cultural próprio?
R- Não sei. Naquela época, olhe só: eu sou produtor de inúmeras bandas, né? E eu sempre falo pra essas bandas: “Olha na nossa época”, talvez na proporção de dificuldade, talvez a dificuldade foi a mesma, não sei. Mas como não tinha nada, era muito fácil a gente dominar essa cidade. A Legião, Plebe e Capital chegaram fulminando todo mundo, não tinha nada, ninguém tinha visto nada igual. Ms não tinha mais nada pra competir. Hoje em dia você tem o mercado saturado, você tem (trecho inaudível), você tem festa, você tem Lan House, tem música (zabelê?) tipo Zeca Baleiro que hoje é aceito por jovens, porque se um jovem ouvisse aquilo naquela época ia ser linchado pela gente. Hoje não, você já tem esse mercado, já tem essas coisas. Você tem internet, você tem DVD 5.1 em casa, entendeu? Então eu sempre falo pras bandas que eu produzo: “Cara, faça alguma coisa especial, faça alguma coisa especial pra arrancar essa pessoa de casa.” Tem que valer a pena gastar o dinheiro, gastar o dinheiro com gás, o IPVA [Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores] do seu carro, gastar pneu, sabe, ter risco de ser sequestrado num sequestro relâmpago e tudo mais. Faça valer a pena a pessoa sair de casa pra poder competir com todas essas coisas que eu tinha mencionado, né? E se eu estou vendo o movimento cultural, assim, puxando as pessoas pra fora de casa eu confesso que não sabia. Não estou sentindo muita firmeza não. Nem no meu meio, assim, eu sinto muita firmeza não. É claro que você tem muitas pessoas trabalhando com dança, teatro, lógico, né? E toda força pra eles, mas eu não sinto muita união assim. Está muito em cima do que foi o grande problema dessa cidade no começo, muito em cima mamando nas tetas do governo. A gente tem um projeto aqui, cacete... não posso falar mal do (FAC?), peraí. Corta aí. Corta aí. Corta aí. Corta aí. Porque aí vou estar falando mal não é uma coisa...
P/1- Pode ficar tranquilo.
R- Bem; são projetos... Da mesma maneira que eu vejo a Embrafilme [Empresa Brasileira de Filmes S.A.] como um meio do governo fazer o cinema brasileiro depender dele e, consequentemente, ter controle; a mesma coisa que eu vejo, assim, com algumas vertentes culturais que dependem mais do governo pra financiamento. A área privada não está interessada e isso logo de cara já castra. Então se eu tô vendo esse movimento vindo por baixo, eu confesso que não... Isso foi o grande erro dessa cidade. Tudo dependia do governo. Lógico, né, você cria uma cidade do zero. Em quanto tempo Brasília ficou pronta? Em três anos, sabe? Quanto tempo Brasília ficou pronta? Em quatro anos. Em quanto tempo Brasília ficou pronta? Em quatro anos. E aí? Sabe, é louvável, foi louvável a experiência de Brasília, eu acho fantástico, assim, mas o que esqueceram é que, né, no papel ficou muito bonito, afinal, pô, tinha um comuna na área fazendo Brasília também, o que você quer também, né? Sabe, uma cidade, né, projetada por um comunista no governo militar e a gente ouvindo punk rock, você quer o quê também, né? Claro que a gente vai ficar puto. Porque a juventude aqui de Brasília não tinha identidade, então a gente tinha que criar isso e esbarrando muito com a policia lá. Naquela época fomos vamos fazer o nosso negócio, claro que policia não quer gente na rua; mais de três pessoas juntas consideradas já...
P/1- Baderna.
R- Baderna, subversão. Você tinha o Nilton Cruz batendo na cara de todo mundo, entendeu? Esse movimento de rock não teria acontecido senão fosse Brasília. Teria sido diferente, mas não teria sido com essa força, né? Aí você vê, claro, o expoente maior, o Renato, o Renato Russo, que a gente chama de Manfredini frequentava... pô, a gente frequentava a casa dele, ele frequentava a nossa casa e ele lá no ensaio do Aborto Elétrico... mas Brasília, ou melhor, talvez o tédio de Brasília meio que sublinhava tudo, né? E a gente via as coisas, sabe? Ninguém era bobo, todo mundo ali era viajado, isso é o que é mais engraçado, né, por isso no livro do Paulo Marchetti eu acho que isso tinha que ter sido mencionado. Todo mundo ali era viajado e eu não estou dizendo isso de uma maneira arrogante, mas a gente via o Brasil de uma maneira diferente, a gente tinha uma outra perspectiva, né, que você só consegue ter saindo ou tendo outra realidade, isso é um fato. E vendo o Brasil de cima do Planalto a gente tem essa outra visão e isso sendo expresso através das músicas e, por isso, quais são músicas que perduram até hoje, né? A temática é extremamente forte e eu sempre falo com as pessoas que trabalham com cultura: “Faça algo, cara, que vai durar, faça algo sério. ” Não tem nenhuma musiquinha engraçadinha, dessas três bandas, né, Plebe Rude, Legião Urbana e Capital. Não tem nada engraçado, é muito sério. Ser jovem numa cidade que não oferecia nada, é muito sério, né? É claro que ninguém está se comparando com Revolução Russa ou algo assim, pelo amor de deus, mas Brasília era extremamente árida em todos os sentidos. A gente tinha muita sede, assim, sede de cultura, sede de fazer alguma coisa e foi através disso que a gente acabou fazendo. Cada um foi meio que criando, fazendo, sabe, as suas próprias coisas e carregando isso até hoje assim. Até as pessoas que não trabalham com música. Eles têm esse lado meio contramão que é uma coisa bacana e que Brasília ajudou muito, porque você tem, claro, pessoas do Brasil inteiro, lógico. E era uma convivência forçada, então isso acaba criando uma cultura. Você tem uma personalidade geral, você junta uma porrada de gente, vai ter uma personalidade geral. Então você junta uma porrada de gente, com cultura diferente e idiomas - quando eu falo de idiomas, assim, dentro do Brasil de todos os sotaques -, todas as vertentes culturais de tudo, todas as perspectivas, vai sair alguma coisa interessante dali. Mas eu não sei se isso estava nos planejamentos não porque Brasília foi feito, lembra? Brasília foi feito pra ninguém questionar.
P/1- Pra não ter tumulto, né?
R- Por que é tudo tão vago? Por que é tudo tão vasto? Por que aquela área onde fica o Congresso Nacional é tão vasto? Porque tem cinco saídas, só que você consegue fechar a cidade em cinco minutos, sabe? Quando eu tinha 16 anos de idade, quer dizer, ia fazer 16 anos de idade, ia pra Cabo Frio com a turma do colégio e foi quando a emenda Dante Oliveira ia ser votada. Aí teve estado de sítio, quer dizer, coisa mais próxima que a gente sentiu disso, né, fecharam tudo e, foi 1980, 1984? Ou foi em 1983.
P/1- O bloqueio Dante de Oliveira em 1984.
R- É?
P/1- Porque aí o Tancredo Neves já vai ser eleito e já vai assumir em 1985.
R- Não, mas foi a primeira votação quando foi...
P/1- Ah, tá. 1983, 1983, isso.
R- Então quando a emenda Dante de Oliveira foi recusada...Pera, desculpa, quando a emenda Dante de Oliveira foi recusada eu estava em Cabo Frio vindo para Brasília, né? A gente foi parado na entrada, subindo com metralhadora, foi uma coisa engraçada porque era tudo filho de diplomata. Eu não, né? Mas eram todos filhos de diplomatas, assim, embaixadores e com metralhadoras na nossa cara, né? Então você vê que são coisas diferentes, coisas que você só consegue viver em Brasília, né, e foi daí que saiu a Proteção, consequentemente um dos maiores sucessos da Plebe. Então esse lado de Brasília, sabe, essa forma de evitar conspirações, evitar grupos subversivos, você tem o setor disso, setor daquilo, tudo setorizado então ninguém pode... você não pode juntar esse com aquele porque pode sair faísca, sabe? É muito bem planejado; é muito bem planejado. É muito bem no mal sentido, eu acho, e acabou tornando a cidade muito fria, muito fria em todos os sentidos. Demorou muito, agora que Brasília tem uma vida própria, ela respira por conta própria; isso já não existe mais, pessoas que vivem em clube particular. Porque lembra que o funcionário do Banco do Brasil ele vai trabalhar no Banco do Brasil, ele mora na (trecho inaudível) do Banco do Brasil e vai pro clube no Banco do Brasil, clube do Banco do Brasil, é um pouco estranho isso, né? E tem um até hoje - eu não entendi direito o que é -, mas tem uma função, tem uma coisa meio maquiavélica nisso. Mas aí tem o outro lado: tem um comuna que estava ajudando no planejamento. Então onde é que ele entrou com isso ou pelo menos o lado falido comunista que de repente é essa coisa de setorização também, né? Então não sei. Você que é o historiador, você que se vira aí.
P/1- Você poderia definir pra gente Brasília em poucas palavras?
R- Brasília. Agora?
P/1- Agora.
R- Bem, eu até posso citar a música da Plebe, né [entrevistado canta]: “Brasília a capital da esperança, asas eixos do Brasil longe do mar e da poluição, mas o fim que ninguém previu. Brasília, utopia na mente de alguns, utopia só na mente de alguns. ”
P/1- Tá certo. Philippe muito obrigado.
R- Essa música é Brasília, né, assim, você viu, né, sei lá. [risos]
P/1- Lógico. Em nome do Instituto Museu da Pessoa a gente agradece a sua participação e espero que você tenha gostado de participar desse bate papo.
R- Bacana. Não, sério, você... olha, eu não ouvi nenhuma vez 1980, isso pra mim já foi uma grande vitória.
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