Projeto Memória Morro dos Prazeres
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Sérgio Ferraz Magalhães
Entrevistado por Paula Ribeiro
Rio de Janeiro, 20 de agosto de 2002
Código: MP_HV027
Transcrito por Cristina Eira Velha
Revisado por Paola Feltrin Ramos
P/1 - Bom dia Sérgio,...Continuar leitura
Projeto Memória Morro dos Prazeres
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Sérgio Ferraz Magalhães
Entrevistado por Paula Ribeiro
Rio de Janeiro, 20 de agosto de 2002
Código: MP_HV027
Transcrito por Cristina Eira Velha
Revisado por Paola Feltrin Ramos
P/1 - Bom dia Sérgio, eu gostaria de começar nosso depoimento pedindo seu nome completo, data e local de nascimento.
R - Meu nome é Sérgio Ferraz Magalhães, sou nascido em ___, Rio Grande do Sul, em 1944.
P/1 - Sua formação?
R - Sou arquiteto.
P/1 - E vindo para o Rio de Janeiro, quando foi, por que foi, como se deu?
R - Eu me formei na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e logo que terminei o curso vim fazer mestrado em Saúde Pública, na Escola Nacional de Saúde Pública, onde estava começando o primeiro curso de mestrado com acesso para arquitetos em Brasília, isso foi em 1968. Eu fiquei, não cheguei a terminar o curso, mas fiquei trabalhando no escritório de arquitetura do arquiteto Henrique Mindlin, porque nós tínhamos tido um vínculo no ano anterior por conta do concurso de escolas de Arquitetura que nós participamos na Bienal de São Paulo. Fiz contato com ele e resolvi trabalhar no escritório dele.
P/1 - E em termos de vida profissional no Rio de Janeiro? Tem escritório? De forma sucinta.
R - Trabalhei alguns anos no escritório do Mindlin; depois tive escritório próprio, em sociedade com a minha mulher, Ana Luiza. E depois trabalhei um tempo em parceria com o arquiteto Luiz Paulo Conde. Depois fui para a prefeitura, no Instituto Pereira Passos, ser subsecretário de urbanismo na gestão do Saturnino Braga, cuja secretário era o Flávio Ferreira, fui ser diretor do urbanismo em Niterói, na primeira gestão do Jorge Roberto Siqueira, depois fui para o Rio de Janeiro e fui secretário de habitação na primeira gestão do César Maia.
P/1 - Em que ano foi isso?
R - 1993 e na gestão do ___ também. Fui durante oito anos secretário de Educação e depois fui secretário do Estado de Projetos Especiais, quando terminou o governo Conde, até abril deste ano. E sou professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], fui também professor da Faculdade de Arquitetura de ___. Fiz mestrado na Escola de Comunicação,na UFRJ, em 1989 e agora estou fazendo doutorado no Programa de Urbanismo do ___, na UFRJ.
P/1 - Qual é sua tese? Qual o assunto da tese?
R - A perda da centralidade no centro do Rio de Janeiro. A minha hipótese, é que, com o fortalecimento da Barra da Tijuca, se reforça a perda de centralidade do Rio de Janeiro, os espaços do ponto de vista material permanecem os mesmos, porque são tombados, mas a perda de significado nos espaços, pelo (esmilinguamento?) do uso e pela perda de referenciais na população, faz com que se fortaleça todos os vínculos da região metropolitana com a Barra da Tijuca. Quando a Barra da Tijuca assumir a hegemonia da centralidade carioca, terá se concluído a transferência da capital para Brasília.
P/1 - Muito interessante.
R - A capital de Brasília começou ______em Brasília, e se conclui...
P/1 - Quando o Rio deixa de ser capital, né?
R - É, e se conclui essa transferência com a hegemonia da Barra da Tijuca, da qual eu sou contra, eu defendo a centralidade no centro. Mas,
estou reconhecendo que há um conjunto de circunstâncias e que agora eu estou querendo identificar também, como circunstâncias políticas, de interesse nacional, que fazem com que, por variadas razões, a Barra da Tijuca tenha tido essa atratividade tão forte.
P/1 - Mas os cariocas têm uma relação de afetividade com os bairros que eles moram, não tem um pouco isso?
R - Não, mas o que
acontece é que o centro do Rio de Janeiro é um repositório de arquitetura de 400 anos, é o lugar do Brasil mais densamente histórico, não de um período, mas desse tempo todo. Não há outro lugar no Brasil que seja tão representativo da história nacional, mas especialmente é representativo da história dos últimos 150, 200 anos e mais ainda dessas primeiras décadas do século XX. A pregnância do centro do Rio de Janeiro, dos significados republicanos, é de tal magnitude que é talvez o único lugar que durante muito tempo foi representativo das instituições, ele adquiriu essa exuberância simbólica. Mas, diferentemente de outras representações arquitetônicas parciais que também são significativas para as suas culturas e seus povos, por exemplo, o edifício ___ de Nova York, a Torre Eiffel em Paris, a torre de Londres, algumas representações arquitetônicas de Roma, diferentemente disso, o Rio de Janeiro tem expressões arquitetônicas que são simbólicas, mas tem expressões geográficas e topológicas que também são representativas. E quando se cruzam essas duas, a representação geográfica faz um reforço tão expressivo que consolida muito a imagem arquitetônica. Então essa manutenção da imagem arquitetônica, em acordo com a imagem geográfica, cria uma imagem simbólica que perdura muito. Eu não provei ainda, mas talvez venha a provar: há um interesse na transferência da capital para Brasília que esta imagem simbólica tão fortemente associada ao Rio de Janeiro seja combatida, porque a destruição dessa imagem simbólica é capaz de levar a que as novas imagens simbólicas do Brasil, centralizadas em Brasília e em outras expressões, inclusive em São Paulo,
a centralidade econômica se transferiu para lá, é inegável. Então essas novas imagens adquirem alguma autonomia que, preservando-se a imagem simbólica no Rio de Janeiro, são muito mais enfraquecidas que as outras, então este é um caminho que pode dar algum resultado. Por que a Barra da Tijuca adquiriria este valor nesta hipótese de que a destruição da imagem simbólica no Rio de Janeiro, centro, interessa à nova hegemonia brasileira?
Porque a Barra da Tijuca não está situada no âmbito do símbolo geográfico da cidade, ela diferentemente de outros bairros do Rio de Janeiro, como Copacabana que tem um reforço muito grande nas imagens simbólicas, geográficas, o Pão de Açúcar, especialmente o Cristo Redentor, a Baía de Guanabara, a Barra da Tijuca portanto utiliza outros símbolos geográficos, novos, que não estão portanto referenciados aos símbolos anteriores, por outro lado, sob o ponto de vista da expressão arquitetônica, é uma expressão também em oposição à expressão hegemônica no Rio de Janeiro, que é o contínuo construído. O Rio de Janeiro se expressa arquitetonicamente por um contínuo de construção muito diferente das outras cidades brasileiras, onde o edifício alto isolado é o privilegiado, mas na Barra da Tijuca é o edifício alto que é privilegiado, então a imagem da Barra da Tijuca é uma imagem consentânea com a imagem das cidades grandes e médias do Brasil, portanto ela se dissolve, não é capaz de ter uma autonomia, ela não constrói símbolos autônomos. Em contraponto com as outras imagens brasileiras, ela é mais uma, diferentemente do centro do Rio de Janeiro ou de Copacabana, cuja imagem arquitetônica é peculiar, é sui generis, não se reproduz nas outras cidades brasileiras, médias ou grandes.
P/1 - Conseguir desenvolver isso é bacana.
R - Então, isso é uma questão muito importante para o Rio de Janeiro.
P/1 - Isso me vem à cabeça o Campo de Santana, ali no Centro. Eu acho que ele é um marco em todos os sentidos,
um marco histórico, arquitetônico, urbanístico, paisagístico, se mantém ali. Aqueles prédios todos em volta, o Ministério da Guerra, a Central do Brasil, aquele casario de um lado, que é Praça da República e o Saara, tinha o Supremo Tribunal ali.
R - É, então você vê o seguinte: o Rio de Janeiro é uma cidade que, pela conformação geográfica, pela condição histórica, pela estrutura cultural,
foi capaz de criar sub-cidades, os bairros são sub-cidades, com peculiaridade e você não pode dizer que o Rio de Janeiro tenha uma imagem arquitetônica, tem uma multiplicidade, todas elas de algum modo representando a cidade parcialmente. Então você tem Copacabana com uma expressão totalmente peculiar, diferente do centro, diferente de Santa Tereza...
P/1 - E que é datado historicamente também de outra época, né?
R - É, mas que é reconhecido como Rio de Janeiro. Você tem favelas que são reconhecidas e que têm uma expressão arquitetônica diferente, tem a Tijuca com outra expressão, a Penha que também tem expressão. O Rio de Janeiro é uma cidade cuja multiplicidade espacial é um fator de fortalecimento cultural, porque ela é múltipla, diferentemente das outras cidades, isso que eu quero ressaltar, diferentemente de Belo Horizonte, de São Paulo, de Porto Alegre.
P/1 - Você vai fazer essa análise comparativa também com outras cidades?
R - Não. Talvez sim, mas diferentemente disso, porque essas outras cidades têm uma hegemonia muito clara do edifício alto em convívio com os edifícios baixos.
P/1 - Em São Paulo isso é muito claro, né?
R - E em todas as outras, você dificilmente vai conseguir duas imagens da escala urbana que convivam em São Paulo, a não ser essa do edifício alto. Aqui você tem: todas que eu te falei são imagens que convivem e que você não pode dizer que o Rio de Janeiro é exclusivamente uma, Belo Horizonte é a mesma coisa que São Paulo. Então, isso é uma característica muito forte e que constrói símbolos no Rio de Janeiro.
P/1 - Bom Sérgio, eu gostaria que você contasse um pouquinho como foi o seu trabalho no Morro dos Prazeres, de que forma você chegou nesse trabalho relacionado ao Casarão.
R - Bom, eu fui trabalhar lá por conta da Favela bairro.
P/1 - A Favela bairro, você sabe me pontuar quando entrou no Morro dos Prazeres, qual era a perspectiva ?
R - Ela entrou no Morro dos Prazeres na primeira fase, portanto foi a partir de final de 1994, quando foi feito o primeiro projeto. Prazeres e Escondidinho, os dois juntos, e foi um projeto muito complicado, porque nós tivemos muitas dificuldades técnicas, dificuldades operacionais muito sérias também. Escritórios que foram selecionados tiveram dissensões internas, tivemos que trocar o escritório. Depois que esses projetos foram concluídos, tivemos dificuldade também nas obras das construtoras, duas ou três, por razões independentes do lugar, razões econômicas de outra natureza que não a da obra em si, uma delas faliu, outra teve que abandonar, então foi uma obra muito tumultuada e continua sendo.
P/1 - Agora estão acabando a creche?
R - Já estava pronta há muito tempo, mas na Favela bairro uma das questões importantes não é simplesmente fazer urbanização, não é implantar serviços públicos, os equipamentos urbanos que sejam necessários, é de fato a constituição de um sentimento de pertencimento ao Rio de Janeiro, à cidade, o que o favelado tem que ter para que de fato ele tenha condições de permanecer naquele lugar. Isto é, a Favela bairro será bem sucedida se as pessoas puderem progredir e permanecer onde estão. Aliás como o __é a mesma coisa que vai acontecer. Eu defendo que mudar de bairro deve ser uma opção e não uma compulsão, seja por perda de renda, seja por aquisição, tem que ser outras razões que levem essa mobilidade espacial. No caso da Favela bairro, uma questão crucial é: para que isso seja viável, para que as pessoas possam permanecer querendo e sair querendo também, sem ser por razões externas, para que isso seja possível não basta ter a infra-estrutura, ser legal, ter os equipamentos. A percepção das pessoas que moram na favela e que moram no bairro tem que ser nova em relação à favela,
tem que mudar,
tem que ser de tal natureza que quem mora na favela sinta que a favela tem uma forma diferenciada, mas que é tão cidade quanto o bairro vizinho, e que tem os serviços, que se preserva o serviço, que estão lá permanentemente. Essa história de que a polícia, que é um serviço público, vai ocupar a favela é ridículo, a polícia tem que estar na favela assim como está em Ipanema, permanentemente, não é uma ocupação. Eu vou para a favela do Escondidinho, fico lá dois dias, três meses ou um ano, isso não tem cabimento, o bairro tem que fazer parte da cidade integralmente. Mas isto é uma situação nova, o essencial é que a pessoa, morando na favela ou no bairro, se perceba de modo diferente,
mas integrada. Para que isso seja possível, nós temos que trabalhar em outro âmbito. Não é trabalhar simplesmente nas obras físicas, temos que trabalhar conforme a subjetividade. “Onde está isso?”.
Está na educação e no conhecimento, o preconceito diminui com o conhecimento. Fez parte da estratégia da Favela bairro a inserção de programas que fizessem a ponte entre uma área e a outra e esses programas são muito mais positivos quando ligados à educação e à cultura.
P/1 - Você pode citar algum que tenha sido feito no Morro dos Prazeres?
R -
O Casarão tem esse destino. Por variadas razões, ele preenche muito bem isso, porque a nossa proposta de uso do Casarão era uma __, não sei se está mantendo isso, era uma educação livre através da arte e para jovens que pudessem estudar música, pintura, escultura, cerâmica; um conjunto de ações vinculadas à cultura e à arte. Isso de um lado, localizado daquele modo ali, na fronteira entre um e outro, é capaz de atrair tanto moradores da favela quanto moradores da cidade formal, a ligação através da cultura, da arte, da educação dos jovens das duas cidades no mesmo espaço,
aumenta o conhecimento e diminui o preconceito e portanto é capaz de ajudar na mudança da percepção. Nós fizemos em alguns lugares isso; o
esporte é um outro instrumento para isso, mas o Casarão especialmente, pelo fato dele ter um valor intrínseco e a recuperação dele ser um desejo também da coletividade de Santa Tereza, de ver ali um lugar em degradação, uma obra expressiva em decadência, isso contaminando negativamente o bairro. E também uma ideia que o carioca tem de que ele é muito receptivo à restauração, dos prédios mais antigos, que tenham tido um bom cuidado, que sejam melhorados, isso é valorizado pelo carioca. O Casarão então preenche muito bem também essa faceta, de um modo difícil, raro, porque isso não está abundante por aí. Então isso foi muito bom, tanto que essa exposição está sendo feita é por essa razão. É ou não é?
P/1 - Eu acho que é.
R - Isso é um estímulo para a integração, para o fortalecimento desta proposta inicial de que ele tenha uma atividade artística, cultural, educacional, lúdica e de ligação das sociedades.
P/1 - Conta para mim qual foi a sua primeira impressão ao ver aquela casa, você consegue se lembrar?
R - Eu conheço aquela casa há muitos anos, há 40, 30 e tantos anos. Conheço de passar por ali e ver aquilo como uma casa mal assombrada; é uma casa que despertava sempre a curiosidade, justamente pela localização dela no topo do morro, com uma vista fantástica, uma arquitetura também de muito interesse, as esquadrias são muito bonitas, muito ricas, como formulação da forma.
P/1 - O que você acha que passou na cabeça do arquiteto que fez aquela casa? Ela é uma casa mista do ponto de vista arquitetônico, do estilo? Como você define
arquitetonicamente aquela casa?
R - Ela é predominantemente de inspiração art nouveau, mas é também eclética, porque ela não é um só estilo,
ela tem também uma forte raiz vinculada à sua localização, faz parte daquele lugar,
não é uma casa concebida para qualquer lugar, tanto que tem perspectivas muito interessantes, que enquadram o Pão de Açúcar e o Cristo. Então não dá para achar que o arquiteto fez aquilo ali por acaso, embora aquele lugar fosse um lugar totalmente privilegiado, sob o ponto de vista das paisagens. Tem a paisagem da Baía, de Guanabara
que hoje está um pouco prejudicada pelo enquadramento, que não é muito bonito, mas imagino que originalmente fosse um deslumbramento também. Há um forte componente na produção daquela arquitetura, um forte componente do lugar e o arquiteto foi sensível,
soube tirar partido disso. Eu não acho que seja uma obra prima do ponto de vista das proporções, acho que ela tem muitas dificuldades dessa natureza, mas é inegável que ela tem muitos valores também. Hoje mudou um pouco porque o projeto teve que valorizar aquele espaço muito bonito, não tinha aquele espaço, era só de madeira e aquela chegada da escada tinha aquele enquadramento muito bonito dos dois lados, que se preservou um pouco, mas é um requinte. O piso todo de madeira na parte de baixo, que não se manteve por conta do uso- eu não sei se você se deu conta, nós fizemos uma laje intermediária
e revestimos de madeira por baixo e por cima, para dar a mesma sensação do projeto original -. mas tem uma laje, ali teve uma questão também, uma disputa conceitual com o (Eduardo?),
presidente da ação de patrimônio, que eu tive que defender uma ideia, que não simplesmente a restauração pura e simples. Assim como em outros projetos que nós fizemos no centro da cidade, tinha uma briga grande para defender que não basta a restauração tal qual foi concebido o edifício, precisa ter condições de ter um uso novo, porque é o que vai dar condições de preservação, se você __ simplesmente as condições originais e não dão um uso adequado, este uso inadequado vai deteriorar de tal modo o edifício que ele não vai se preservar, nós vamos ter que refazer o edifício. Até que ele se __ completamente, que vai ser um dinheiro __ o tempo todo. Se nós vamos tratar de botar água que não tinha, não tinham banheiro adequado, nós vamos instalar isso, nós não podemos simplesmente repetir as mesmas condições e deixar deteriorar, mesmo porque nós não temos madeiras tão bem tratadas como tínhamos antes, não temos artesãos com tanta capacidade de repetir exatamente aquilo e se aquelas madeiras apodreceram, vão apodrecer as novas num tempo muito mais curto. Mas só que essas coisas
ainda não são aceitas, tem que ter um convencimento, tive que defender o projeto,
ir para o Departamento de Patrimônio do Município, defender que não bastava restaurar, mas que para restaurar precisava ter uma modernização de ornamento, botar para o dia de hoje, para que aquele novo uso fosse compatível. Nós não vamos fazer agora um curso de cerâmica, um curso de pintura, que não tem disponível. Se botar um balcão com água em cima do piso de madeira o tempo todo ele vai estragar com muito mais facilidade; as esquadrias, a mesma coisa. Então para isso teve um projeto que não é simplesmente de restauração, é um projeto de modernização também. Um fator muito interessante foi a construtora, muito sensível ao apelo, que
trouxe artesãos de Minas e esses artesãos, nós treinamos jovens da comunidade, enquanto fazia as esquadrias para ter um trabalho, uma certa formação mesmo, que ainda é muito inicial, mas que pudesse ajudar em outros projetos de restauração da prefeitur. Não sei se chegou a ter consistência isso mais adiante, mas de qualquer modo foi um primeiro embrião para isso.
P/1 - Mas essa obra toda de restauração foi feita a partir de uma documentação original ou foi feita a partir do que foi encontrado na casa e foi reconstruído?
R - A partir do que foi encontrado na casa e investigado o que foi encontrado. O Ricardo se dedicou a procurar as razões que estavam por trás daquelas aparências deterioradas, investigou as argamassas, os pisos, as madeiras. Ele concluiu coisas,
que muitas daquelas madeiras, que aparentemente eram originais, não eram. Quando nós começamos lá, tinha não sei quantas pessoas, mais de dez seguramente, morando lá em condições de absoluta precariedade.
P/1 - É?
R - É, como se fosse um mendigo morando lá. Nós tivemos que assentar as famílias, comprar casa para elas, levar para outro lugar, para elas ficarem bem acomodadas e também tornar disponível.
P/1 - Sérgio, a prefeitura acabou desapropriando o imóvel. O que fez você se empenhar nesse processo de desapropriação? O que te moveu nesse sentido?
R - Isso era o meu trabalho. O meu dia a dia era esse.
P/1 - Mas por que não outro, por exemplo?
R - Mas em outros também. No caso do Casarão só tinha lá, mas tinha outras coisas. Uma das grandes riquezas da Favela bairro é justamente que ela não é um projeto de carimbo, não é um projeto único que se implanta em qualquer lugar, cada lugar é um lugar. O projeto urbanístico tem que considerar as peculiaridades do lugar, e o projeto social a mesma coisa, não é um modelo a implementar, há uma metodologia que tem que ser seguida, buscar quais são as relações anteriores, o que é característico daquele lugar, como é a melhor forma de se estruturar um projeto urbanístico
ali, quais são os valores que a gente tem que buscar em apoio a essa proposta. Então isso é encantador, isso faz com que eu, como arquiteto e no caso secretário com interesse em que o projeto fosse bem sucedido e gostando do que eu estava fazendo...claro, é lá, mas também é nos outros lugares. Por exemplo, no bairro do Caju tinha um pavilhão do tempo da Segunda Guerra que fazia parte do esforço nacional da Guerra, que foi lugar de munição. Estava em abandono, nós recuperamos e tinha uma casa que era a sede da antiga Chácara do Caju e que estava em ruínas, nós resolvemos fazer a creche, recuperamos, está bonita e é um símbolo para aquele lugar.
P/1 - O que é interessante no caso do Casarão é essa coisa do símbolo e de pertencimento porque a comunidade, por incrível que pareça, tinha um certo distanciamento dessa casa, na medida que a casa sempre teve uma ocupação particular. Então a sensação que a gente tem é a seguinte: à medida que o governo desapropria, o governo inclusive faz uma obra, que transforma ou que tem uma tentativa de aproximação desta casa à comunidade Morro dos Prazeres, porque, pelos relatos orais, as pessoas têm esse distanciamento da casa. Era sempre particular, inclusive é virada para a Rua Almirante Alexandrino. Quer dizer, a comunidade é como se fosse os fundos da casa e de uma forma muito interessante, a prefeitura acabou fazendo com que a casa também tenha o seu dinamismo. A sua frente, você pode também entrar por ali, então eu acho que isso é um movimento interessante e aí é uma coisa para se pensar. Quer dizer, quando você desapropria a casa, tinha-se essa clareza de que era para fazer essa aproximação?
R - Tinha.
P/1 - Você falou no começo?
R - É.
P/1 - É com a comunidade carioca, do bairro de uma forma geral ?
R - Isto é uma estratégia do programa Favela bairro e que no caso da comunidade dos Prazeres e Escondidinho contou com essa facilidade, digamos, da existência daquele casarão ali,
essas coisas não ocorrem gratuitamente, a gente encontra aquilo que procura, dificilmente a gente encontra alguma coisa sem estar atento para encontrá-la, isso no geral. Eu até me lembro de meu professor de História no ginásio, que era um baiano, baixinho, professor (Clementino?), que ficava furioso quando diziam que os fenícios tinham descoberto o Brasil muito antes de Portugal e que também não sei quem tinha descoberto não sei o que. Ele dizia: "Olha, se você vai na calçada e tem um brilhante. Você olha aquele brilhante, depois vem um outro cara, olha aquele brilhante, pega... “Isso é um brilhante!'". Quem é que descobriu aquele brilhante? [risos].
P/1 - [risos].
R - Então o Casarão estava ali, mas ele poderia ter permanecido ali e ter sido destruído, mas foi um investimento grande, o que se gastou de dinheiro para conseguir aquela recuperação é um dinheiro forte, foi perto de 1 milhão de reais,
tem que valorizar essa __,se a gente não tivesse esse tipo de visão, eles diriam: "Olha, é melhor destruir, porque é um esforço desgraçado recuperar". A briga que eu te falei, essa discussão do que ia poder fazer com verba de preservação teria evitado, estava caindo mesmo, não era tombado.
P/1 - E não é ainda?
R - É, então constrói novo. Não, isso faz parte da procura, não é sem razão.
P/1 - Na sua opinião, você consegue datar arquitetonicamente a casa? Qual a sua opinião em relação à época de construção da casa?
R - Bom, com certeza antes de 1930. Eu não tenho dúvida de que é antes de 1930.
P/1 - Por que?
R - Pelo tipo de desenho dela. Depois, acho que ela provavelmente será entre 1910 e 1920, pode ser até que seja antes, mas acho mais que isso, porque nesse período, em 1890, 1910, veio o apogeu do art nouveau na Europa e essa é uma casa rica, desde a origem, então dificilmente um arquiteto produziria uma obra muito distanciada do que estivesse sendo valorizado na Europa naquele momento. Nos anos 1930, já vigorava o art déco, então dificilmente alguém muito rico, como é o caso do dono ali, produziria uma casa com 20 anos de defasagem das concepções vigentes, então é possível, você hoje pode fazer uma casa art deco, mas não me parece que seja razoável imaginar que essa casa possa ser muito depois de 1920.
P/1 - É possível dizer, por exemplo, que ela foi feita por um arquiteto estrangeiro, com uso de material estrangeiro, importado?
R - Alguma coisa sim, mas nada ali que seja de tecnologia desconhecidas na ocasião, porque você vê, claro, é mais rica, mas é a mesma tecnologia adotada na Confeitaria Colombo, que é de 1890 e tantos, é mais rica, tem uma envergadura superior, mas é a mesma origem estética. Lá é simplificado, digamos, é um art nouveau estilizado, quase, não é um art nouveau do modernismo, pode ser que seja dessa época.
P/1 - A gente que tem um olhar também leigo dessa coisa estética, encontra traços. Olha só isso aqui! Isso aqui tem muito na casa, né?
R - Tem. Eu acho que ela tem coisas antigas mesmo, por exemplo, aquela varanda é da arquitetura vernacular.
P/1 - O que é arquitetura vernacular?
R - É a arquitetura do cotidiano.
P/1 - Agora você poderia dizer que tem traços da cultura brasileira ali, da arquitetura brasileira, do material brasileiro, existe alguma coisa, ou ela foi feita muito chupada mesmo ?
R - Mas a arquitetura brasileira era isso naquela época, é a arquitetura que se faz no Brasil mas assim como o resto da cultura brasileira, com forte influência européia. Vai se dizer que o Municipal não é brasileiro? Que a Biblioteca Nacional não é brasileira? Que a República não é brasileira? ___no Brasil, do modo que o Brasil pode construir a República. A sociedade ocidental, à qual o Brasil aderiu, não é uma sociedade inventada no Brasil, então a arquitetura também, não é totalmente importada nem totalmente autônoma, ela não é autóctone, nem totalmente externa, porque a medida que as influências existem, das pessoas que têm formação lá, que procuram valorizar a cultura cêntrica dos países que estão mais fortes naquele momento, assim mesmo, ao se construir aqui tem todas as limitações e passa por todas as teias que são pertinentes ao país.
P/1 - Mas, por exemplo, essa questão da varanda, eu fico tentando ver se a gente consegue olhar nessa casa essa adaptação ao clima do Rio de Janeiro, ao estilo de vida do Rio, isso é visível, por exemplo, nessa casa?
R - Não, porque o Rio de Janeiro era assim naquela época, sob o ponto de vista da arquitetura, da expressão arquitetônica, um lugar com forte influência francesa.
Tem muitas casas em Santa Teresa que têm influência alemã, e de outras origens também, são coisas episódicas, a largueza da influência é francesa no começo do século, mas aí é uma fase que não é de uma erudição extraordinária, não é. Aquela proporção da varanda é uma proporção modesta, não chega a ser uma varanda, aquilo ali é mais uma passagem.
P/1 - É, não é um sobrados e mucambos [risos]. É um uso de varanda como a gente concebe.
R - A varanda não tem essa mesma função da casa colonial brasileira. Agora o fato de não ser tombada tem um certo valor, no tombamento diz alguma coisa sobre essa questão da erudição, mas não diz excessivamente também,
porque o tombamento no Brasil sempre valorizou os períodos coloniais e os períodos modernos, esse período eclético, do final do Império e começo da República, os órgãos de tombamento não privilegiavam, que eles fizeram a ponte __ de tombamento,
foi criado em...
P/1 - 1938, né?
R - Anos 1930, ele fez a referência com a cultura brasileira no colonial. Deliberadamente, ele passou por cima de todo o período do Império e do período republicano inicial, toda a referência ___, ele quis fazer a ponte para isso. “Por que?” Porque, na medida em que ele valorizasse o período eclético, ele teria menos força para enfrentar a arquitetura moderna, porque a arquitetura moderna se implantou em oposição à que era vigente e o que era vigente era o eclético. Se o ___reconhece anteriormente ____, ele não tem tanta força para implantar o modernismo arquitetônico. O ____, que fez essa implantação, fez através da ____ modernista,
Lúcio Costa é o principal deles, então aí há um paradoxo que em princípio tem que entender. Ao mesmo tempo em que um Casarão como esse não está tombado pode significar um valor intrinsecamente pouco claro pela questão da tradição arquitetônica, mas pode significar, e seguramente é o mais forte disso, o fato dele ser uma arquitetura eclética, não valorizada pelos órgãos de tombamento.
P/1 - Porque o bairro de Santa Teresa tem aquela área de proteção, a maior parte do bairro, do ponto de vista municipal tem preservação ali.
R - Mas aí já é outra época em que já se começa a preservar ambientes, isso é muito mais recente. ___ isolado, a ambiência é pouco percebida como interesse maior, engloba a favela, tudo isso. Chegou numa época, essa preservação do ambiente, chegou numa época em que aquilo lá já estava condenado.
P/1 - Então Sérgio, para a gente ir finalizando, você viu a obra pronta?
R - Vi, eu inaugurei.
P/1 - [risos] Então conta um pouquinho como foi essa inauguração, como foi? Que satisfação que isso te deu?
R - A inauguração em si foi um momento não muito ____________(Interrupção da fita) se dedicou, do ponto de vista profissional, a vida toda, à música.Recolher