Dessa época de infância, eu me lembro que, quando o pirarucu estava na desova, o papai não matava. Deixava desovar, criar os pirarucuzinhos. Só iam arpoar o peixe quando já estava com 15 centímetros, para os outros peixes predadores não mais o comerem. Era o acordo entre aquelas pessoas daque...Continuar leitura
resumo
Aqui Pedro nos conta a saga de sua família, principalmente de seu pai, Marturano, que foi um exímio pescador e contador de histórias, homem que marcou sua vida. Nos fala causos e os mais diversos aspectos da pescaria, sua maior herança e profissão, além de nos contar sobre sua infância, as brincadeiras e a história da Ilha Beija-Flor, municipio onde nasceu. Neste depoimento também vemos as histórias das "visagens"da região, como o boto-cor-de-rosa, e outros aspectos culturais, como o comércio, a juta, a caça de jacarés e as festas - que pouco frequentou Pedro. Ao fim de sua história, Pedro faz uma reflexão restrospectiva de sua vida, sua profissão, nos fala um pouco de sua relação com a Alcoa, e registra aqui os seus sonhos para o futuro.
história
Pedro Santarém Marturano
Homem em pé em frente a uma casa. Há árvores ao fundo.
Pedro Santarém Marturano
Pedro Santarém Marturano
Pedro Santarém Marturano
Detalhe das mãos do entrevistado manuseando uma corda.
Pedro Santarém Marturano
Homem de pé segurando instrumentos para pesca. Há plantas em torno.
história na íntegra
- Vídeo na íntegra
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Áudio na íntegra
(não disponível) - Texto na íntegra
- Ficha técnica
Depoimento de Pedro Santarém Marturano
Entrevistado por Tiago Majolo (P/1)
Juruti, 18 de Abril de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista n° MB_HV104
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Heci Regina Candiani
Tags: família, infância, pescaria, brincadeiras, Ilha Beija-Fl...Continuar leitura
Depoimento de Pedro Santarém Marturano
Entrevistado por Tiago Majolo (P/1)
Juruti, 18 de Abril de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista n° MB_HV104
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Heci Regina Candiani
Tags: família, infância, pescaria, brincadeiras, Ilha Beija-Flor, boto, espíritos, folclore, maresia, comércio, juta, jacaré, Alcoa, sustentabilidade.
P/1 – Pedro, a gente começa com o nome completo, onde nasceu e qual o dia.
R – Meu nome é Pedro Santarém Marturano. Eu nasci na Ilha Beija-Flor, um município bem próximo de Juruti, em 27 de agosto de 1957. É como diz aquela novela: “o nosso cérebro eletrônico muitas vezes esquece de fazer alguma coisa, mas muito está gravado”. Eu estou com 52 anos completos, tenho muita coisa gravada na minha mente. Por isso eu vou ver se consigo dizer pra você alguma coisa que aconteceu na minha vida, conforme as suas perguntas.
P/1 – E os nomes dos seus pais? O que eles faziam?
R – O nome do meu pai era Marturano, e minha mãe era Maria de Lourdes Santarém. Eu fui o segundo filho homem, e tinha sete mulheres. Nós éramos nove ao todo, e vivíamos com eles lá na várzea. Eu me entendi lá na várzea, vivendo com todos esses meus irmãos, me entendi vendo uma facilidade e uma fartura muito grande nessa comunidade onde eu vivi.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente como era.
R – Era na beira do Rio Amazonas, água corrente. Você sabe que, aqui nessa região, seis meses enche e seis meses vaza. Pra não dizer que são seis meses, tem dois meses em que a água fica parando, pra poder voltar e pra poder baixar – vazar e também encher. Então, tem um mês de cada um pra dar esse espaço, pra ela poder encher e também vazar. Mas naquela época, nós tínhamos lagos, bem atrás de casa tinha lagos. Nossa renda era mais a juta, o peixe e algumas outras frutas e legumes que a mamãe e o papai plantavam, como feijão, melancia, jerimum, macaxeira. E ela tinha também horta. Nós vivíamos muito tranquilos naquele tempo, sem preocupação do pão de cada dia. O peixe se pegava bem atrás de casa, com muita facilidade. O peixe que papai queria, a gente afastava um peixe (com o arpão) pra pegar o outro, pegava o pirarucu. Era interessante aquela época: hoje tem a Secretaria do Meio Ambiente, que zela muito pelo meio ambiente, tem Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e tem diversos órgãos, tem a proibição da pesca na época do defeso, tem leis que estão se formando, tem o reconhecimento do peixe quando está em desova e essas coisas. Naquele tempo, não. Naquela época, as pessoas tinham educação de natureza, deles mesmos. Eu me lembro que, quando o pirarucu estava na desova, o papai não matava, deixava desovar, criar os pirarucuzinhos. Quando ele saía com os pirarucuzinhos pra dar alimento pros peixinhos, pros alevinos – fazia o papai, como outros daquela época –, só iam arpoar o peixe quando escutavam de longe ele estalando. A boca deles, quando comiam aqueles bichinhos no mar, fazia um “to, to, to, toro, to, to, to, toro, to”. Aí estavam bons de matar, porque estavam com quinze centímetros, mais ou menos, então os outros peixes predadores, como a piranha, o jacaré e outros não mais comiam aqueles peixes. Os peixinhos pirarucus já se defendiam. Então, era o acordo entre aquelas pessoas daquele tempo pra que não pegasse o peixe que estava na desova e que estava com peixinhos miúdos, com alevinos bem adolescentes ainda. Só ia pegar quando estava jovem.
P/1 – E isso o teu pai te ensinava?
R – Ele sempre me dizia: “Olha, meu filho, a gente faz isso porque, se matar um pirarucu desses que está desovando, primeiro vai perder milhões de pirarucus, setenta, oitenta mil peixes. Se você matar também quando o peixe está pequeno, o alevino vai ficar sem mãe e sem pai e aí os predadores vão atacar, se não acabar, vai escapar de acabar. Para os que vierem encontrar a mesma fartura em que estamos agora”. E hoje é o contrário que eu vejo: com essas tantas leis que eu ainda agora disse, o homem mudou muito. É difícil ele obedecer às regras e às leis, e continua. Muitas pessoas continuam. Já tem uma lei contra arrastão, mas eles vão, circulam o pirarucu quando está na desova e pegam todos os dois, ou então, quando está com peixe miúdo, também pega os dois. E hoje se você visse o tempo passado e hoje, a fartura que tinha, você não acreditaria no que eu estou falando agora. Os lagos daqui tinham muita fartura – vou citar um: o Balaio. O Balaio era um lago de muita fartura. O pescador, quando estava lá para arpoar o pirarucu, era provável ele sair de lá todo molhado de tanto o pirarucu jogar nele, era muito peixe. Tambaqui, os pescadores pegavam de tarrafa lá no meio do rio, sem dificuldade. O papai perguntava para nós: “Que peixes vocês querem comer?” A gente dizia que peixe queria e ele trazia. Então, a fartura que tinha antes, hoje não existe mais. Pra gente pegar um pirarucu grande já custa muito, tambaqui também é muito difícil pegar com fartura aqui nessa redondeza. Tem lugares mais longe em que ainda se encontra com mais facilidade, dá pra pegar esses grandes, mas aqui por perto, é difícil.
P/1 – Eu gostaria que você me contasse da infância. Qual era a brincadeira que vocês tinham?
R – [risos] Essa é importante! Eu era só lá em casa, porque meu irmão mais velho era o primeiro e eu nem me lembro quando ele casou, e eu fiquei só, no meio das minhas irmãs. Aí, eu brincava sempre com um maracazinho chamado cuinha. Eu brincava com aquelas cuinhas de gado – papai também tinha gado, papai tinha diversas redes lá – e aí eu brincava com aquelas cuinhas. Eu colocava chifres de pau nas cuinhas. Aí, colocava o rabo da vaca de juta, porque a gente trabalhava com juta, formava aquele rabinho da vaca e fazia o olho dela na cuia. Fazia o curralzinho e fechava as vacas lá. Quando era de noite, papai criava porcos também, a porca vinha e comia as minhas cuias, o meu gado. Quando eu ia pro curral, sentia falta do gado e dizia: “Pô, uma onça comeu minha vaca!” Mas eu tive dificuldade de estudo. Eu ficava só lá, não pensava nada de estudo. Aí a Tonha, minha irmã, teve uma criatividade: fez vacas de pau pra mim, e em cada vaca ela colocou uma letra do abecedário: A, B, C, D, até o final. Aí eu fiquei com aquelas vacas. E ela disse: “Olha, Pedro, essas vacas a onça não vai mais comer. E eu quero que tu decores essas letras aqui, porque quando eu chegar aqui eu vou perguntar se as vacas ainda estão aqui”. Aí eu aprendi as letras do abecedário. Ela vinha pra cá, pra Juruti, pra estudar. Eu ficava lá porque, quando ela chegava, perguntava: “Pedro, as vacas estão todas aí?” e eu: “Estão!” [risos]. Foi assim, nessa parte a brincadeira foi meio que só assim, quase. E o peixe. Eu tinha meu canicinho, que papai fazia pra mim, e eu ia com ele pescar. Desde quando eu comecei a me entender eu ia com ele. Era uma luta! Ele não queria me levar porque eu era pequeno, mas eu fazia um escândalo pra ir com ele. E ia mesmo. Aí eu via como ele pegava os peixes, botava a linha no espinhel, pegava, naquele tempo, com a isca de maracá, de caranguejo, de castanho, pirapitinga, tambaqui grande, todos esses peixes graúdos. E tudo eu estava com ele. Não era lanterna que a gente tinha, era abajur, uma lamparina que tinha uma defesa pro vento, chamada abajur. Eu andava com ele, me acostumei muito com papai, ele foi meu parceiro desde quando eu nasci, desde quando eu me entendi até quando ele morreu, eu me dei muito bem com ele.
P/1 – Você tinha algum sonho na infância?
R – Olha, eu acho que eu fui o homem mais tolo de todo o Brasil, de todos os brasileiros! Vivi desde essa época e nunca fui influenciado pra ter alguma coisa de bens na minha vida. O que eu me preocupava era só com o pão de cada dia. Tendo o pão de cada dia com fartura na mesa. Como eu me entendi vendo o pão de cada dia com fartura na mesa, assim também eu fiquei com aquilo na mente, que era importante só o pão de cada dia. A moradia, eu nem tinha visão de ter casas bonitas, prédios, não tinha pensamentos de ter bens materiais. Até pra estudar. Eu nunca pensei que o estudo tivesse algum valor, e aí me parece que eu passei um bom tempo despercebido dessas coisas boas que tem por aí afora.
P/1 – Como era a sua casa lá em Beija-Flor?
R – A nossa casa da Ilha Beija-Flor era assoalhada de madeira. Lá em cima era de palha, me lembro mormente dessa parte, que era de palha, porque eu vivi na Ilha Beija-Flor até os sete pra oito anos. De lá nós passamos pra Terra Preta. Nós morávamos lá perto de um japonês, o nome dele era Kubaiashi e o da mulher era Kubaian – Kubaian e Kubaiashi, o homem e a mulher, e a gente morava lá junto deles. Depois passamos aqui pra esse outro lado do rio, que chamava Sítio Boa Vista, mais conhecido como Terra Preta, onde está implantada agora a Alcoa. Aí também passamos a morar perto de outro japonês, Maruoka e Maruoka, mais um casal de japoneses. Papai trabalhou muito com esse japonês na Ilha Beija-Flor, muito mesmo. Foi até capataz deles. Teve um tempo durante a II Guerra Mundial em que o Brasil brigou com o Japão – 1948, ou 1946, não estou bem lembrado – mas o papai ficou tomando conta de todos os negócios deles lá, porque eles foram presos na cadeia de Juruti. Prenderam todos os japoneses, porque eles estavam fazendo um movimento da Guerra na Vila Amazonas. Eles passavam por aqui com armas pra Vila Amazonas, e quando os brasileiros viram, prenderam os japoneses. Aí o papai ficou tomando conta dos negócios deles lá na Ilha Beija-Flor.
P/1 – Você teve muito contato com os japoneses quando era pequenininho?
R – A gente teve muito contato com eles. Eu digo assim: eu só não aprendi japonês porque naquele tempo, como eu disse, eu não tinha visão do que era bom, do que eu podia fazer. Falava perto da gente, mas a gente não sabia nem o que era. Algumas coisas a gente aprendeu com eles pelo tempo que a gente foi passando com eles, mas não foi suficiente, né?
P/1 – Como eram os caminhos pra ir para os lugares? Como eram os barcos da época?
R – Eram canoas. A gente só andava assim, com canoa e remo. Depois foi começando a chegar os barcos, mas era muito difícil. A gente usava também a vela. A canoa e a vela. Minhas irmãs ainda andaram muito aqui pra Juruti, elas mesmas velejando na canoa com velas pra chegar de volta.
P/1 – Tinha muitos naufrágios?
R – Não. O Amazonas era estreito e não tinha muita maresia. Pro outro lado do rio, mais lá pra frente, lá pra Boca da Ressaca, é que tinha maresia forte, mas aqui perto da cidade era tranquilo. A gente sempre atravessava.
P/1 – Você não tinha medo?
R – Não. A gente foi acostumado a cair na água lá no meio do rio desde pequeno, mergulhava os pés nos capins, por onde desse a gente caia n’água. Nos não tínhamos medo nenhum, acho que os peixes e os botos já conheciam a gente, não ligavam pra nós. [risos]
P/1 – Tem algumas histórias suas de infância com o seu pai? Conta alguma delas pra gente.
R – Olha, tem muitas histórias, mas eu vou contar umas duas. Não sei se vai dar pra acreditar. Num certo tempo a gente tinha lanterna. Nós estávamos com papai pescando no meio do igapó, o igapó era muito grande. Quando foi uma hora, o papai foi tirar um tambaqui que estava no espinhel – um tambaqui grande, de doze pra treze quilos – aí o tambaquizão bateu no braço do papai. Caiu a lanterna na água. E a lanterna foi acesa pro fundo. Aí: “Ah, perdeu a lanterna. Agora só no abajur, mesmo”. Aí continuou no abajur. Quando foi umas três horas da madrugada, nós fomos ver o espinhel e o papai viu claro lá no fundo. No que ele foi ver, era um bacu que estava com a lanterna embaixo do braço, focando papai. [risos] E outra foi assim: na época da vazante, ele colocou um espinhel pra pegar pirapitinga. Quando vai vazando, a pirapitinga se pega com isca de peixe também, aí colocou lá pra pegar a pirapitinga. Mas tem um predador, que é a piranha, que acaba com a isca. Aí a piranha ficou comendo, sobrou uma isca no anzol. Veio o surubim, mais ou menos de quatro quilos, e pegou no anzol, se bateu e o anzol varou na bochecha dele, um anzol grande, número dois. Aí ficou lá o surubim, se batendo, se batendo. Quando foi lá pras onze horas, onze e meia, meia-noite, passa um surubim grande. Quando esse surubim grande deu com esse surubinzinho lá no anzol – sabe, tem muitas pessoas grandes que gostam de judiar dos menores – esse surubim foi bater com a cabeça, assim: “grum”. O anzol, que estava com a ponta desocupada, topou com um osso que tem no surubim. Tem um osso no espinhaço nele – e varou! Ficaram dois surubins só num anzol. E a ponta do anzol ficou desocupada. Quando foi pras bandas das três horas da madrugada, passa uma pirara. Quando ela deu com os dois peixes que estavam no anzol, ela bateu com o rabo dela – “grum!”. O anzol pegou [risos]. Rapaz! Segurou no ânus da bicha e ficaram três peixes num só anzol! Tudo isso são histórias de fartura! [risos] Não é verdade? É a fartura que faz isso. Se fosse hoje, não pegava mais nenhum.
P/1 – E vocês vieram pra Juruti com quantos anos?
R – Eu não tenho muita certeza, mas de sete pra oito anos eu fui pra Terra Preta. De Terra Preta, nós estudávamos, vínhamos pra cidade. Lá eu tirei minha quinta série. Quando eu vim pra cidade eu estava com 18 anos, dos 18 anos pra cá que eu vivi na cidade. Até agora.
P/1 – Tem muita história aqui na Amazônia de visagens. Você chegou a ver alguma coisa, a ouvir alguma coisa? Tem alguns “causos” bons disso?
R – As visões, muitas vezes, o que faz é o medo. Mas existe. Aqui perto da Boca do Piranho tem o Encante. Esse Encante faz algumas coisas que faziam medo: batia pilão lá dentro, barulhada lá no fundo do mar. Então, o pessoal ficava meio com medo e contava: “Ó, eu ouvi um barulho!” e tal. Uma vez, um camarada ficou de porre, deitou na canoa e ficou lá com a perna de fora, na água. Quando ele acordou, tinha um peão puxando a perna dele pro fundo, queria levar ele pra lá. Aí ele se despertou e, num instante, passou a cachaça dele com aquele medo! Essas histórias. Mas a gente vê assim: cada região tem suas coisas pra apresentar. Óbidos tem seus peixes, seus botos, suas cobras grandes, tudo. Mas eles andam, tem vezes que estão pra cá, tem vezes que não estão. O camarada, pescador, estava lá num lago chamado Jacaré, lá pra cima, no limite do Amazonas. Quando ele estava lá esperando pra matar um pirarucu, um boto veio e borbulhou embaixo da canoa dele – “blublu blublu” – soltou aquele bolhume. Aí ele pensou: “Se esse boto tornar a me espantar o peixe, ele vai já pro arpão” e saiu pro igarapé. Aí veio o boto e fez a mesma coisa. Ele arpoou o boto. A canoa dele tinha João de Pau, que é o que guia a canoa – e a canoa era pequena. Ele arpoou o boto e o boto saiu pra fora, pro Amazonas, e ele pegou na boia, na linha – no final da boia tem uma linha de segurar – e o boto saiu pra fora com a canoa dele, direto pra baixo. Uma maresia forte! A canoa dele tinha só na maresia. Quando ele chegou aqui perto do Coró-Coró, ele já estava meio com medo: “Pô, esse boto não pára!” Aí começou a puxar a linha, começou a puxar... E quando começava a chegar mais perto, o boto sempre boiava. Quando chegou mais perto, ele viu que tinha um arranhado nas costas do boto e não sabia o que era. Aí puxou, puxou mais... Quando o boto chegou mais perto, que ele boiou assim – “chuá” – deu pra ele ver o que era: estava escrito “Óbidos” nas costas do boto! Pensou: “esse boto é de Óbidos”. Aí ele cortou a linha do arpão e o boto foi embora pra Óbidos. São essas coisas que a gente vê por aqui, mas medo mesmo a gente sente quando vê as coisas. Olha, o boto faz medo pra gente: ele assobia, ele faz adeus, ainda mais quando é fêmea que está passando no rio. Aí eles fazem adeus com os rabos deles, assobiam. Quando a gente enxerga um jacaré grande, a gente fica com medo – o jacaré faz medo pra gente também – quando a gente vê o início de uma cobra grande, a gente fica com medo. Uma vez nós corremos de uma cobra grande. Eu estava com um parceiro e nós pegávamos pitiú. Primeiro, como eu já falei, era muito farto de tudo. Tinha muito bicho de casca: pitiú, tracajá, tartarugas. Quando a gente estava trabalhando na juta e ia descansar lá embaixo da rama, se quisesse fazer um travesseiro com o tracajá, a gente colocava embaixo da cabeça e podia dormir [risos]. Tracajás serviam de travesseiro pras pessoas daqui, porque era muito farto. Então, muitas coisas fazem medo, mas muitas não fazem, como esses bichos de casca, que faziam fartura e não medo. Nós íamos setembro, outubro e novembro pegar pitiú no barranco na praia. Eu peguei muito pitiú, tracajá e tartaruga. E eu vendia. Era quando eu ganhava dinheiro: setembro, outubro e novembro. Três meses ganhando dinheiro só de vender bicho de casca. Ele subia pra botar ovo e eu pegava ele. Aí eu vendia e dava pra me manter. Nesse dia foi um parceiro comigo e esse parceiro tinha medo de ir de noite por aí. Meio feio, com maresia, muitas vezes com um temporalzinho, uma chuva. Aí quando foi nessa noite estava escuro pra dar uma chuva, estava ventando. Quando dobramos o ponto que era pra pegar o pitiú, que a praia era pra lá, quando dobramos, a cobra estava lá rente à água. Só fomos enxergar o foco dos olhos da bicha. Estava rente à água, um fogo meio iluminado, meio brilhando, quase igual a essa câmera. Ah, rapaz! Eu disse pra ele assim: “Cobra grande está aí, ó! Calma, vamos devagar!” Mas o parceiro ficou com medo: “Vamos embora, voltar! Vamos embora, voltar!” E eu disse: “Não rapaz! Vamos embora pegar pitiú! Não vai bater a canoa, não vai jogar a água da canoa pra barulhar!” Mas ele não quis ir de jeito nenhum. Dobrou a canoa pra trás e nós viemos embora pra casa sem pegar nada. Mas a bicha estava lá fora – a cobra grande. Então mete medo pra gente, mas não é um medo que faça a gente não ir mais pescar. Naquele momento é preciso que a gente tenha um medozinho, porque se não tiver um medozinho, a gente também já está abusando das coisas, não é?
P/1 – E as maresias bravas? Tem alguma história dessas?
R – Quando eu era pequeno, eu tinha medo de maresia. Esse meu irmão, quando ia lá pra casa, metia a canoa no meio da maresia, a canoa batia e eu ficava com medo. Depois não fiquei mais com medo, pra mim já era graça. A gente sabendo equilibrar na maresia, uma canoa é melhor que um barco grande, porque o barco grande fica tombando, balançando daquele jeito. A canoa, não. Quando a maresia vem, a gente passa por aqui e vai só pelos porões da canoa. Igual aquelas coisas que tem ali no Rio de Janeiro, como chama? É skate, né? Então, eu me admiro deles. Eu acho que não fazia dessas não, eles fazem. Mas aqui, pra nós, também é fácil. Quando alagava uma canoa, a gente desalagava. É muito fácil desalagar uma canoa: pega na popa da canoa e dobra ela. Depois sacode na popa da canoa, sacode na água da lagoa, se aguenta com o pé na água, se equilibra. E lá a gente já é acostumado assim. Só se a canoa for muito grande, não dá pra tirar. O tio do papai e o papai se alagaram no Macuricanã pescando pirarucu, e lá tinha muita piranha, mas muita piranha. Quando eles deram, estavam lá no fundo, aí o tio do papai deixou a canoa boiar e fez isso, desalagou a canoa. Eles embarcaram na canoa quando as piranhas chegaram pra devorar o que eles tinham – o pirarucu e tudo. Foi uma bênção isso aí.
P/1 – Eu queria que você me contasse de quando você veio pra cá, que já estava mais adolescente, homem, e começam os namoros. Como é que foi essa época?
R – Eu acho que no namoro eu fui panema, porque foi mais difícil pra mim. Não foi muito fácil pra mulher. Eu acho que eu trabalhei muito e quando a gente trabalha muito de dia, à noite a gente não quer estar andando muito – e é mais fácil à noite, pra estar agarrando as mulheradas [risos] – aí ficava meio difícil pra mim. Aí foi passando o tempo. Mas eu também combino comigo que eu era meio panema pra mulher. Por sinal, estou solteiro até agora – com 52 anos – e não é fácil, não. Aí eu não posso contar em detalhes [risos].
P/1 – Quando você veio pra cá, você veio trabalhar? Por que você mudou pra cá?
R – A profissão ficou a mesma. A profissão continuou: eu pescava, trabalhava em juta e trabalhava na roça. Quando eu era mais novo, eu dava conta de todos esses trabalhos. Pra mim era graça: eu pescava de noite, ia trabalhar na juta ou na roça, mas não fazia despesa com comida – a comida já estava definida – aí ia fazer outro trabalho. O cansaço era só à noite. Aí ficava cansado e ia dormir cedo. A profissão continuou aí.
P/1 – O que mudou pra cá?
R – Mudou só que já tinha energia e tinha mais facilidade de vender o produto. Aqui na cidade é melhor pra vender do que no interior. No interior é mais difícil. Não só a juta. Mas a farinha, o peixe, o legume, o jerimum. Eu continuo trabalhando com jerimum, feijão, melancia. A gente traz para a cidade e na cidade é mais fácil, até mesmo aqui na casa da gente a gente vende. Já vendi muito peixe aqui em casa, também já vendi no mercado. A cidade oferece essas condições de comércio pra gente.
P/1 – Você estava falando da juta.
R – A juta foi uma das economias que vieram pra cá, pro município de Juruti. Como aqui não tinha emprego pra suportar a demanda de muita gente, então a juta facilitava. Muita gente trabalhava na juta, era muito animado. As primeiras jutas, por sinal, foram trazidas por japoneses. Depois que houve o fomento do Governo Federal é que as primeiras sementes vieram para cá para ser plantadas por todos, mas primeiro foram os japoneses que inventaram de plantar essa juta aqui – aqui na Ilha Beija-Flor. Depois teve muita gente era trabalhadora – chamadas de juteiros. Era tanta juta que o município de Juruti era o primeiro lugar na fibra de juta. Tinha os armazéns que compravam a juta, como o Chocron e outros. Eu ainda fui comandante de barco de levar jutas lá pra Óbidos, era muita juta. Deu uma boa renda pra nós a juta. Por sinal, quando ela deixou de ser comprada aqui, porque foi descoberto o cerrado da Índia e o Brasil passou a comprar de lá a juta, ficou fraco pra nós. Muitas pessoas, como estavam acostumadas a fazer, ganhar um dinheirinho, não ganharam mais, não. Agora é o peixe que aguenta as pontas, o peixe não só pra gente vender aqui na cidade, mas também pra exportar. Tem muitos peixes que são exportados para os frigoríficos aqui de Santarém, de Belém. E daí ninguém sabe pra onde vai. Tem a época do surubim, do peixe liso, dourado filhote. Os peixes saem de lá e a gente fatura uma pontinha. Já dá pra aguentar um pouco, mas a juta deixou a gente na solidão.
P/1 – Eu queria que você contasse um pouco da pesca, então. Se você puder contar mais como era o dia a dia, o processo, os truquezinhos, pra gente entender um pouco a pesca aqui no Amazonas, que é um pouco diferente das outras regiões.
R – Como a gente tinha facilidade de peixes, primeiro que o peixe era barato. A gente fazia essa comercialização do peixe, mas era barato, tinha que pegar muito e vender uma boa quantidade pra poder ter um dinheiro. Por outro lado, a gente fazia trocas. Eu dava o peixe e o fulano dava a farinha, quando eu não tinha a farinha. A gente conheceu lá no interior, então pegava o peixe e a pessoa dava o sal, o açúcar e a gente fazia uma troca desses produtos. Mas havia uma troca desses produtos, havia facilidade de pegar o peixe naquela época.
P/1 – Você saía de manhã?
R – Saía de madrugada pra tarrafear. Tem as épocas de usar os materiais. Tem a época de usar a tarrafa, que é o tempo das áreas de várzea e tem o tempo das malhadeiras. Então, quando é época da tarrafa, é mais fácil. A gente sai duas, três horas da madrugada e “tarrafia”, pega os peixes e chega cedo em casa. Quando é malhadeira não, é mais difícil. Vai com a malhadeira. Sai, digamos, dez horas da manhã e chega só no outro dia de manhã, umas sete horas da manhã.
P/1 – Como é a malhadeira?
R – Ela é um tecido postiço, que a gente vai tecendo, tecendo e depois entralha. Tem malhadeira que é entralhada por baixo e por cima. Eu não uso minha malhadeira entralhada por baixo, só por cima, mas sou eu quem faço minhas malhadeiras todinhas. Eu tenho muita malhadeira dentro de casa. Se quiser dar um espaço pra eu buscar lá eu vou buscar uma lá pra mostrar. (...) Ó, essa malhadeira aqui a gente tece sem estar assim, tralhada. Eu até tenho uma aqui, que não deu pra eu trazer, mas depois a gente mete a tralha nela e ela fica assim na água. Fica desse jeito lá na água, aí o peixe vem e entra nela. Essa malhadeira é pra pegar os peixes menores, como curimatã, acari, carauaçu, tucunaré, piranha, e alguns outros peixes miúdos.
P/1 – E quanto tempo fica na água?
R – Se a gente chega umas dez horas da manhã, a gente já põe as malhadeiras na água, no meio do cerrado. Aí, quando for umas seis horas da tarde, a gente vai ver as malhadeiras, pra ver peixes nela, quando for umas nove horas da noite, a gente vai de novo ver peixe na malhadeira, umas duas horas da madrugada, a gente vai de novo, e só vai tirar às cinco horas da manhã. E eu tenho as malhadeiras de pegar peixe graúdo: tambaqui, sabe?
P/1 – E do que elas são feitas?
R – De nylon, linha de nylon. Tem a mica e o nylon, essa aqui é de nylon.
P/1 – E é você quem faz?
R – Eu quem faço. Sou eu quem tralho, eu quem pesco, eu quem faço tudo. Conserto os buracos que as piranhas fazem.
P/1 – Qual o tipo de peixe se pega com a tarrafa?
R – Nós também temos a tarrafa de diversos tipos. Tem uma de malha graúda, que é só pra pegar peixe graúdo: surubim, dourado, tambaqui, pirapitinga. E tem a tarrafa pequena, mais fina, que é pra pegar o curimatã, tucunaré, e outros peixes. Nós temos aqui uma época de piracema, um tempo em que a gente pega essas miudezas de peixes. É a salada, em que vem pacu, cachorro, aracu, curimatã, e um bocado de peixe. E tem também uma época em que passam os peixes guias, como o surubim. Eu gosto muito de pegar o surubim. A gente pega surubim exatamente pra vender para os frigoríficos. É chamado de pintado em Minas Gerais, em Mato Grosso, chama-se pintado e aqui chama-se surubim. O filhote de dourada também. Só que os filhotes de dourada não fazem cardume, como fazem a dourada e o surubim. A piramutaba também é um peixe guia, porque tem esporão e tem que ter cuidado, porque tem um esporão muito valente e estrepa a gente. Deus me livre! Quando estrepa a gente, caboclo grita de dor. Mas a gente tem cuidado com ele. Dá muito, passa muita piramutaba. Então, as tarrafas têm que ser adequadas para esse tipo de pescaria, porque se for tarrafear com a tarrafa mais fina, com esses peixões aí a tarrafa não aguenta. Aí tem que ter uma tarrafa segura: linha 18, 24, bem feita, porque aí aguenta o peixe graúdo. Na tarrafa a gente pega surubim de 15 quilos, 20 quilos, 12 quilos, dez quilos. Olha, é uma força que parece de um boi, leva a tarrafa lá pro fundo. É bonito. A gente equilibra o peixe até que ele vem pra cima d’água e a gente caceta. Consegue, mas se for numa tarrafa fraca, ele fura, ele deixa os buracos, porque ele tem força, muita força. Mete a cabeça na tarrafa. Ou nós seguramos ou ele volta. É assim.
P/1 – Tem algum truque que você conhece e que seja bem seu, bem o seu estilo de pescar? Alguma coisa que você aprendeu com o seu pai, algo que você não conta pra ninguém?
R – Não, não tem. O que papai sempre me dizia é que tem a panemice. Tem certas pessoas que dão panemice que a gente pega – o peixe, né – e pode judiar da gente. Papai dizia que quando a pessoa quer judiar do pescador, pra ele não matar mais peixe, aí manda uma mulher mijar no osso do peixe: come o peixe e depois de comer fica aquele osso no prato, depois manda uma mulher mijar no osso, aí caboclo fica panema que nunca mais acerta em peixe. E já aconteceu comigo, de eu ir lá pro lago e não pegar nada, porque eu estou panema. Outro dia eu vendi um peixe pro vizinho e depois não peguei mais nada. Eu fui duas vezes e não peguei peixe. Aí eu disse pra ele: “Ê rapaz! Tu me judiou, rapaz! O que tu fizeste pra mim?” E ele: “O quê que foi, rapaz?”, “Tô panema, rapaz! Não peguei mais nada de peixe!”, “Ah, mas não fomos nós, não!”... Porque a gente gosta de brincar também. Mas eu acho que foi a mulher dele que comeu e a panema veio. A pessoa que é muito preguiçosa, dizia meu pai, uma mulher que não é acostumada a fazer nada, o peão que não quer fazer nada (tem peão que é muito preguiçoso), essa pessoa que come a imbiara da gente deixa a gente também preguiçoso. Então, essa á a artimanha que a gente sempre ouve aqui. Muitas vezes é até desculpa: “Pô, não pegou nada!” “É panema” [risos]. Aí quando chega com a família da gente, às vezes acontece isso comigo – eu moro com minha irmã – aí eu chego: “Pô, tu és panema!” “Num sei quem me panemou!” Pode até não ser panemice, mas a gente tira aquela desculpa.
P/1 – E como era o comércio? Pra quem você vendia no começo da sua profissão?
R – Eu vendia para o pessoal daqui mesmo da cidade. O que a gente vendia antes era o pirarucu, que era o mais vendido. O pirarucu era pegado lá na várzea. Papai fez muito isso, até minha irmã uma vez mergulhou atrás do pirarucu, porque ele estava engatado.
P/1 – Como é essa história?
R – Lá no lago o papai fazia o pari. Já ouviu falar? Faz uma cerquinha e fica vigiando pra arpoar o peixe. Aí o papai arpoava cada pirarucuzão! Mas ele sabia da época certa e ia pra lá esperar o peixe. Um pirarucu grande, de 70 quilos, 80 quilos, dá quatro postas. Quatro postas com mais ou menos um metro de largura. A gente abre bem aberta, fica um terçado, com uma faca bem abertinha. A posta fica com uns três centímetros de altura. A gente passa o sal nela – se chama salmorar –, depois dessa salmora, ia secar o peixe no sol, penduradas aquelas postonas de pirarucu. O que a gente comia era só o “mistrial” do peixe, comia a cabeça do pirarucu, chamada Santo Antonio – é muito bom. Santo Antonio é onde fica o centro da cabeça do pirarucu.
P/1 – Como faz?
R – Assado. Assa, depois põe numa panela – a panela tem que ser bem grande. A gente usava umas panelas bem grandes lá no interior, porque era porção. Aí a mamãe dividia pedaços daquela cabeça pra colocar na panela depois de assado. Meu amigo! Dá um caldo daquele...Temperado com cebola, com cheiro verde. Meu amigo! Nem aos vizinhos a gente oferece! [risos]
P/1 – Então você é bom cozinheiro também?
R – Não. Eu tive sorte porque eu tive essa quantidade de irmãs perto de mim e cozinhar é coisa que eu não faço, é bem difícil eu fazer. Lavar pratos, fazer comida, passar roupa, essas coisas as minhas irmãs sempre fizeram por mim. A roupa do meu trabalho eu lavo, mas essas coisas eu não manjo. De comida eu não manjo também, mas gosto de comer uma comida gostosa. Aí, na hora do nosso almoço, todo mundo queria um pouquinho do Santo Antonio, daquele miolo do pirarucu que a gente tira e bate no prato. É uma gordura. Não sei com o que é comparado, mas é muito gostoso o Santo Antonio.
P/1 – E quando vocês estão no barco esperando vocês comem peixe também?
R – Comemos peixe. Os espinhaços eram todos pra nós. Aí papai fazia essas postas pra vender. Ele trabalhava com a juta, que era naquela altura da juta, e o peixe, que era o pirarucu. Mas na época da juta era até difícil ele pescar, ficava difícil. Mas aí deixava o espinhel de dia e quando a gente voltava do roçado já tinha peixe lá. Pra vender não tinha, mas pra comer tinha. Então não só papai, mas muitos pescadores viviam naquele tempo de vender as postas de pirarucu secas. Um tempo também deu uma compra de jacaré aqui em Juruti. Jacaré. Vendia o couro – acho que os parentes de vocês ainda usaram aquelas bolsas de couro de jacaré.
P/1 – Você pegava jacaré também?
R – A gente matava o jacaré, comia. Até hoje a gente come jacaré. Se der jeito de pegar um pra comer, a gente come mesmo.
P/1 – Como se pega jacaré?
R – Às vezes, pega na malhadeira e morre na malhadeira, aí a gente traz mais fácil ele. Mas eu não pesco assim, como tem muitas pessoas que pescam – em definitivo, pra comer, mas eu só como ele se for pego na malhadeira, se tiver morrido na malhadeira, aí eu trago ele. Mas tem pessoas que saem de arpão para arpoar o jacaré. Focam com a lanterna, aí enxergam o olho do jacaré, que fica aceso no foco da lanterna, aí vai devagar lá e arpoa o jacaré. Aqui tem uma família que gosta muito de pegar o jacaré pra comer. Quando foi ano retrasado – tem anos aqui em Juruti em que fica difícil o peixe, quando enche um bocadinho a mais e fica tudo inundado, o peixe vai embora e fica difícil o peixe – e essa família andava toda, pai, filhos, pegando jacaré. Depois de uns dois meses que eles já andavam em busca de jacarés para pegar pra comer, os jacarés já reconheciam eles, que vinham com lanternas. Quando eles começavam focando, os jacarés só fechavam os olhos [risos]. Deixavam eles passarem com a lanterna e aí tornavam a acender os olhos. Assim se defenderam da família que matava eles [risos].
P/1 – E a língua do pirarucu, vocês usavam para alguma coisa?
R – A língua do pirarucu servia pra serrar, fazer remédio. Naquele tempo mamãe usava mangarataia. Secava aquela língua pra poder servir de ralador e ralava mangarataia e algum remédio que ela precisasse.
P/1 – Conta mais causos pra gente.
R – Tem centenas de coisas que a gente gosta de ver, que passaram pela gente, que a gente não sabe qual é melhor pra gente contar. Aí, fica nesse impasse. Tem muitas coisas que são boas, são alegrias que o pescador passa:
comendo o peixe lá no lago, pegando o peixe pra comer, fazendo no fogo, comendo peixe assado, o curumatá, o acari. Pega o peixe, o peixe está vivo. “Vamos fazer o fogo pra a assar o peixe e comer!” Aí vai lá, faz o fogo, assa o peixe, come o peixe. Toma aquela água do rio mesmo, onde está pescando. Aquilo é saudável. Aquilo é uma alegria que a gente tem com o dia a dia da profissão da gente. Eu também acho muito bom quando o pescador ata uma maquira no meio do igapó. Tudo por aí é água. Ata uma maquira lá e fica pra pernoitar aquela noite, esperando pra tirar aquele peixe, pra verificar a malhadeira dele para a piranha não roer e não estragar muito a malhadeira. Também os jacarés. Muitas vezes a malhadeira está onde estão os jacarés.
Então, ele vai pernoitar lá naquelas ramas lá no meio do mar, do lago. Aquilo é muito bom. Muito bom pra mim. No meu caso é muito bom estar por lá dormindo naquele clima, escutando a nossa bicharada gritando, o jacaré, os pássaros. A gente estar escutando aquelas horas da noite o pompo. O pompo é um pássaro igual a um pato, que sabe que está enchendo. Ele canta: “Pompo, pompo, pompo. Pompo, pompo, pompo.” Aí a gente sabe: “Ó, o pompo está cantando. Está enchendo o rio”. A gente está escutando aquele canto dele. E o jacaré quando escuta um maguari ou outro pássaro também se espantar e gritar, ele também dá os urros dele lá: “Uh! Uh! Uh!” faz o jacarezão lá. E também é um bicho que a gente respeita. Tem jacaré grande, tem jacaré muito grande aqui nessa região. Ele respeita a gente também, porque os bichos são obrigados a respeitar a gente, porque nós somos semelhança de Deus e nós viemos para ser respeitados na face da Terra por tudo quanto é animal. E ao acaso pode acontecer algum acidente. Muitas vezes o homem abusa: vai passar no meio do capim, onde tem água e não sabe o que tem pelo fundo, então pode ter um jacaré grande lá e pode atacar ele, como já aconteceu aqui em Juruti. Eu conheço um homem que tem um sinal de jacaré aqui na perna dele. Segundo informações, o nosso avô morreu por causa de um jacaré. Existem muitos animais grandes aí no mar. Nós devemos respeitar muito, não abusar de nada. O homem não deve abusar de nada da natureza, porque a natureza tem que ser respeitada. Mas por outro lado, nós somos muito mais respeitados por eles, porque segundo meu irmão, quando a gente se espanta, faz ”Eh!” e abre os braços, aí é a semelhança de Jesus pregado na cruz, aí o bicho já sabe que é filho de Deus e vai embora, não quer nada com o homem. Mas por outro lado nós devemos ter cautela. Os animais também: assim como nós convivemos aqui na terra, eles convivem lá, sabem um do outro, se respeitam. Você acredita que um tem paixão pelo outro?
P/1 – Acredito.
R – Um rapaz já encontrou uma capivara apaixonada por outra. O caçador matou a capivara fêmea e ficou vivo o macho. Quando um outro pescador foi pescar lá no meio do aningal ele viu – lá pro meio do aningal, feio – e escutou “fi ihi...” e ficou com medo e disse: “O que é isso? O que é isso?” O parceiro dele disse: “Eu não sei. Bora lá!”, “Não! É visage!”, “Não, bora lá!”, aí chegou mais pra frente, lá adiante, de novo: “Fi ihi... To pu”. “Ó, é visage! Bora lá voltar!”, “Não, vamos lá!” O da frente era mais corajoso, o de trás mais medroso (o da popa da canoa). Aí foram mais pra frente espiando no meio do mato. Quando eles viram estava mais perto. Aí fez “Fi ihi... To pu.” Aí veio uma maresia e deu lá no casco da canoa deles e o casco meio que balançou. Aí eles: “Vamos ver o que é!”. O da popa não queria, mas o da proa queria ver o que era. Aí foi e quando chegou lá meio perto: “Fi ihi... To pu”. Veio aquela maresia de novo na canoa deles e foi, foi, até que ele deu: era uma capivara que estava em cima do pau, chorando. A lágrima dela caía na água e fazia “To pu” [risos]. Era ela que fazia a maresia [risos]. Então existe a paixão também, né? Assim como tem aqui na terra pro homem, os animais também sentem quando mata o parceiro dele. Aí fica triste.
P/1 – Qual foi a época em que você mais pescou?
R – Olha, eu tenho pescado muito, mas tem só um período de tempo em que eu deixo de pescar. O período de outubro, novembro, dezembro, janeiro e fevereiro, que é quando eu fico colhendo as plantas que a gente planta na área de várzea: o feijão, o jerimum, a melancia, o maxixe. Então, eu deixo mais um pouco de pescar, mesmo porque tem a época da desova, a gente respeita até março e depois de março, a gente continua. Mas agora eu tenho um projeto de sustentabilidade com uma empresa, que é a Alcoa. Ela deu um edital pra gente entrar em um projeto, então eu fiquei um pouco atarefado com os dados do projeto e com o meu serviço, então este ano que está passando [2010] foi o ano que eu pesquei menos. Mas não porque eu não tenha gostado da profissão, mas porque me impede de pescar. Mas na hora em que eu fico desocupado, eu fico pescando. Eu gosto de ir lá pescar o peixe.
P/1 – E quando você não pesca qual é a sua renda?
R – A outra renda sem ser pescaria? Este ano, a nossa produção aqui dessa várzea deu uma praga – um tal de mela-mela – e as melancias estavam pequenas quando deu a praga e as árvores morreram e as frutas não ficaram boas, a gente não vendeu nada. Mas tem vezes que eu vendo o jerimum – que é chamado de abobrinha aí pra fora, no Rio de Janeiro, de Belém pra lá, mas aqui pra nós é jerimum. Aqui pra nós tem o jerimum de leite e o jerimum caboclo. O jerimum de leite dá uns grandões, caboclo é pequeno, mas é bem gostoso. Então, a gente vende o jerimum, vende a melancia, vende o melão, vende o maxixe. Essas são as rendas diferentes que a gente tem, que eu tenho. O resto é do peixe. Desde que eu me entendi, eu nunca fui empregado: estou com 52 anos e nunca fui empregado. Eu trabalhei de forma voluntária, mas na igreja. Na igreja eu trabalhei muito, desde jovem, mas só voluntário, fazendo cursos, encontros, essas coisas. Eu participei muito. Eu assumi diversos papéis na igreja, até recebi um ministério de evangelizar. Com tudo isso eu trabalhei, mas esse papel foi mais na igreja. Mas nunca fui recompensado. Só mesmo gratuito.
P/1 – E qual peixe que dá mais renda pra você?
R – Olha, tem algumas diferenças, tem épocas. Como eu já lhe disse: quando vai vazando vem os peixes lisos. Nesse tempo a gente não quer ir pro lago, porque no lago a gente tem que consertar essas malhadeiras, as piranhas furam muito e a gente tem que consertar, fica o dia inteiro consertando os buracos das malhadeiras. E quando passa o peixe aqui na beira do Amazonas, a gente pega o peixe de tarrafa: não dá muito trabalho e fatura mais dinheiro. Um surubim, hoje, de dez quilos, que a gente pegue é 40 reais. A gente vende por quatro reais o quilo, aí dá 40 reais. Aí a gente sempre pesca com um parceiro, aí dá 20 pra cada um e, se der sorte de pegar mais, vem mais rendimento. Às vezes a pescaria dá cem, dá 70, é variável. É melhor ir por aí. Nesse tempo aqui não adianta tarrafear porque não vai pegar nada, está tudo inundado, não tem peixe. A gente vai pro lago botar a malhadeira pra gente pegar: a gente pega o curimatá, pega o acari, o tucunaré, o pacu. Entremeado. Às vezes, a gente pega mais o curimatá, que é o peixe que dá mais.O tambaquizote, que dá um quilo, um quilo e meio, dois quilos. Esses peixes. Não tem um peixe que seja fixo o tempo todo aqui no lago. É sempre uma salada.
P/1 – Assim como você aprendeu com seu pai, você ensina pra alguém hoje em dia?
R – Eu tenho ensinado muito pra meus parceiros quando vão comigo. Eles sempre dizem: “Ó, o Pedro não conta falsa pescaria pros outros não!”, mas o pescador que vai comigo eu digo: “Ó, ‘tarrafia’ aqui, faz assim, bota a malhadeira assim.” Eu dou as dicas. E eu vou na proa: “Faz assim”. Eu gosto de estar coordenando, sempre gostei de ir na proa, porque eu não tenho dificuldade de ir mandando eles fazerem. Eles vão aprendendo comigo. Muitas pessoas não gostam de pescar comigo exatamente porque eu sou assim: “Ó, vai pescar assim, tem que ser assim”. Sou eu que coordeno a pescaria. Muita gente diz: “Pro Pedro, parece que a pescaria só pode ser do jeito dele”. Aí, tem vezes em que não concordam comigo.
P/1 – Pedro, com toda essa sua vivência, o que é pescar pra você? O que significa pescar?
R – Olha, pescar é a palavra “adquirir”, “buscar o peixe”. É muito boa a palavra, dá certo. Mas é assim (não sei se vai chegar ao ponto em que eu queria chegar): o tempo que eu pesquei eu achei bom, muito bom, pescar, até agora eu acho bom pescar. Mas por que eu acho bom pescar? É porque não tem outro jeito pra eu fazer. Se eu tivesse uma visão, desde muito cedo, a pescaria seria pra mim um esporte. Um dia que eu quisesse pescar, eu iria. Mas de um certo tempo pra cá é que eu fui pensar isso: que a pescaria não vem ajudar a pessoa a crescer na vida. São só alguns pescadores que crescem na vida, a maioria dos pescadores envelhece naquela profissão e não tem um bom apartamento, o estudo dele é pequeno, não tem como ele pegar um emprego. Se eu soubesse que a pescaria era assim – e também não teve uma visão pra me tirar isso aqui – eu não teria ficado com essa profissão. Eu teria estudado, pra hoje estar muito bem empregado. Eu não estou desprezando a pescaria, mas pela convivência que eu já tive nessa pescaria, pra hoje eu estar na mesma situação, eu tenho que dizer pros nossos futuros que estão aqui que eles não fiquem pensando em ficar nessa profissão, mas que eles procurem outra profissão, porque essa profissão dá muito lucro na mesa pra comer, pra passar bem, pra encher a barriga, mas pra fazer outras coisas, principalmente bens materiais (que o homem precisa pra que possa viver até a velhice dele), eu não teria optado pela pescaria.
P/1 – Qual o seu sonho?
R – Hoje eu tenho o sonho de ser rico. Estou com 52 anos, mas hoje eu estou preparado para receber e não deixar que passem despercebidas por mim muitas chances que já passaram, pra que eu pudesse hoje ser melhor de vida. Agora, com essa idade, eu não deixo mais passar. Tudo o que vier pra mim, eu estou pegando de mão firme. Uma vez que eu pegar, está seguro. Hoje eu trabalho numa associação. Nós começamos com uma associação com duas pessoas a trabalhar um ajudando o outro, nessa produção que a gente tem de melancia e de jerimum. Depois foi pra trinta, hoje nós temos uma associação de 105 pessoas e a associação está legalizada, pronta pra fazer qualquer projeto. Já fizemos projetos. Nós temos um projeto de criação de peixes agora para maio, se Deus quiser, vai começar a funcionar. Vamos começar com cinco mil alevinos. Depois, no outro mês, mais cinco mil alevinos. Essa oportunidade foi que a empresa Alcoa, que chegou aqui em Juruti em 2007, lançou esse desafio para os diretores administrativos – um deles sou eu, chamado Presidente de Associação – pra fazer um trabalho experimental. Se a gente executar esse projeto como os dados da empresa estão escritos, então, depois da despesca, nós vamos ter possibilidade de fazer projetos muito bons, muito grandes através da empresa. Quem sabe a gente possa fazer outros projetos aí, com o banco. Depois que nós entramos nesse projeto da empresa, começaram a abrir as portas para nós. Então, daqui mais uns dias, vamos ter as portas abertas. Meu sonho é ter uma associação que atenda centenas ou milhões de pessoas com o nosso projeto de criação. Aí começa a mudar as coisas, de pescador para empresário.
P/1 – Pedro, obrigada pela entrevista, que foi ótima.
R – Agradeço eu, porque muitas vezes a gente tem as coisas gravadas na cabeça e muitas vezes pensa que aquilo não vai servir para outras pessoas, mas serve e vocês, como estão fazendo esta entrevista e vieram de muito longe, eu estou dando valor no que eu falei. As coisas que eu falei são sérias, são o que já passou pela minha vida. Tenho 52 anos de convivência aqui nessa região e, se fosse escrever num papel, um livro, estaria tudo organizado, mas como a gente não pensa em um dia servir pra outras pessoas, então fica tudo na mente. Mas eu volto a dizer: aquela novela “Tempos Modernos” diz que o cérebro é capaz de fazer e também incapaz de fazer. Então, a gente está à disposição de mais alguma conversa. Quem sabe um dia a gente não vai se encontrar de novo, reajustar alguma coisa. Nós estamos inteiramente à disposição de vocês.
P/1 – Obrigada.Recolher
Título: Como se escrevesse as pescarias num papel
Data: 01/01/1900
Local de produção: Brasil / Pará / Juruti
Personagem: Pedro Santarém Marturano Transcritor: Michelle de Oliveira Alencar Revisor: Heci Regina Candiani Entrevistador: Thiago Majolo Autor: Museu da PessoaO Museu da Pessoa está em constante melhoria de sua plataforma. Caso perceba algum erro nesta página, ou caso sinta falta de alguma informação nesta história, entre em contato conosco através do email atendimento@museudapessoa.org.
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