Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Rafael Henrique Ferreira Rodrigues (Pogó)
Entrevistado por Luís Gustavo Lima e Fernanda Prado
Paracatu, 08/06/2017
Realização Museu da Pessoa
KRP_HV011_Rafael Henrique Ferreira Rodrigues (Pogó)
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Bom dia, Pogó.
R – Bom dia.
P/1 – É um prazer estar aqui contigo. Gostaria de agradecer a sua disponibilidade em nome do Museu da Pessoa e da Kinross, por você estar aqui.
R – A satisfação é toda minha.
P/1 – Pra começar e pra deixar registrado, queria que você falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Rafael Henrique Ferreira Rodrigues, eu nasci numa cidadezinha chamada Várzea da Palma, uns 45 mil habitantes, é em Minas [Gerais], a gente pega de referência Montes Claros, ali na região...
P/1 – A data de nascimento.
R – Eu nasci no dia 30 de março de 1993.
P/2 – E qual é a história do seu apelido?
R – Quando eu tinha uns oito anos de idade... A minha família é muito grande, a minha avó teve 16 filhos e todo mundo sempre foi muito ligado com samba, pagode, essas coisas. Inclusive as festas da minha família, no final da confraternização, têm sempre uma roda de pagode, de samba. Desde pequeno, eu já fui muito ligado à música. Quando tocavam essas rodas de pagode eu muito pequeno ficava dançando no meio da roda assim, brincando. Aí alguns tios meus começaram a me chamar de Pagodinho por causa do pagode, entendeu? Só que aí eu fui crescendo e foi diminuindo esse Pagodinho. Foi pra Pagode, aí depois uns primos me zoando me chamando de Pagodó. Aí uma hora meu irmão falou Pogó e esse Pogó pegou, sabe? Esse Pogó foi... Depois, um dia ele falou isso na frente dos meus amigos de escola, aí acabou com tudo, aí foi Pogó pra sempre, eu fiquei com o pseudônimo de Pogó. Só que eu nunca achei ruim, sabe, que era uma coisa relacionada à minha família, então não me importava. E também porque Pogó não tem significado nenhum (risos). Eu procurei no Google uma vez e eu vi que é um tipo de roda punk, então não tem muito significado. O significado é o que eu levo da minha família mesmo, aí ficou esse Pogó. Eu fui crescendo, aí quando eu vim pra cá, pra Paracatu, por terem outras pessoas da minha cidade que vieram pra cá comigo e me chamarem de Pogó, outras pessoas viram e começou. Aí ficou. O dia que falaram na faculdade Pogó pros meus alunos, ai... Não tinha mais outro Rafael, era Rafael Pogó. Aí eu já aceitei, né, as coisas acontecem na vida, a gente aceita.
P/2 – O apelido veio junto então.
R – Veio junto. Foi de nascença, de família, vamos dizer assim.
PAUSA
P/1 – Você está falando da família, então, quem são seus pais, qual é a atividade deles?
R – Meu pai chama Eveleno Rodrigues, minha mãe Lindalva Ferreira Rodrigues. Eles também são dessa região de Minas, Noroeste, meu pai é contador e minha mãe é professora de História. Desde pequeno, eu tive muito desse conteúdo das coisas, de vida, então minha mãe sempre conversou muito comigo, meu pai a mesma coisa. É legal ter uma pessoa de exatas e de humanas na sua família ao mesmo tempo, eu me sinto muito sortudo por isso. Você acaba vendo os dois lados da coisa durante seu crescimento. Mas sempre me apoiaram em tudo o que eu sempre quis, nunca foram me prender demais ou me forçaram a fazer algo que eu não queria mesmo eles sabendo que poderia ser benéfico pra mim. Então, eu só segui o caminho que queria seguir e eles sempre me apoiaram, nunca teve dificuldades em relação a isso, não.
P/1 – Você falou da cidade que você nasceu e a gente está entrando na sua família agora. Então eu queria que você contasse um pouco da casa da infância, como era esse lugar, se você tem irmãos.
R – O sonho do meu pai sempre foi ter um menino e uma menina. Eu tenho dois irmãos, e por acaso um menino e uma menina. Aí meu irmão mais velho nasceu e o meu pai foi muito ninja, que ele fez certinho, meu irmão nasceu e dois anos depois minha irmã nasceu, então, ele teve um menino e uma menina num período de um ano ou dois anos, desculpa, eu não sei a diferença de idade do meu irmão pra minha irmã. Aí acabou que eu fui um acidente porque sete anos, oito, anos depois eu nasci, foi assim: teve mais um filho então vamos criar (risos). Aí acabou que eu fui crescendo. Mas uma coisa que eu gosto muito disso é porque, por meus irmãos serem mais velhos eu acabei aprendendo muito com os erros deles, sabe? Então coisas que eles faziam que eu via que não se adaptava muito pra mim, era benéfico eu já fazia de outro jeito. Lógico que a gente sempre erra em muitas coisas, né? Mas eu me senti muito agraciado também de ver que eu podia aprender com os erros deles. Tem até um caso uma vez que meu irmão quando passou na faculdade a primeira vez, é muito engraçada essa história, ele chegou pro meu pai e falou assim: “Passei na faculdade, pai!”. Aí ele olhou pra ele: “Não fez mais do que a sua obrigação” (risos). Tipo, assim, eu já sabia que eu não ia falar pro meu pai que eu passei na faculdade, eu só ia mostrar que eu passei e que eu ia para algum lugar (risos). Então, essas coisinhas pequenas que foram me ajudando muito. A cidade, como eu falei pra vocês, é muito pequena, então, eu cresci, lógico, com meus irmãos, só que meus irmãos saíram muito cedo de casa, todos eles já são formados também e assim que terminaram o ensino médio eles foram para o superior. Aí eu cresci mais com meus amigos de rua, da frente, dos meus vizinhos, etc. A gente brincava de bola na frente da rua, essas brincadeiras de infância, pica-esconde, garrafão, essas coisas. Eu tive muito essa recreação; esse meu caráter e convívio com as pessoas vêm de brincadeiras com os vizinhos de rua também. Meus pais nunca foram de ficar me prendendo muito. Sempre teve horário, essas coisas, mas foram bem tranquilos em relação a isso. E escola também, né, a gente faz muita amizade em escola.
P/2 – Vamos entrar nessa escola. Como foi, você tem as primeiras lembranças dessa escola, quais são, onde era essa escola, qual o nome?
R – Pela minha mãe ser professora, ela mudava constantemente de escola. E para facilitar meu transporte até as escolas, eu também mudava. Eu estudei em todas as escolas da cidade, entendeu? Desde a pior escola que tinha lá, à melhor. Isso me ajudou muito também porque eu comecei a ver essa disparidade, sabe, essa diferença de escola particular com escola pública, o convívio que você tem com as outras pessoas, o jeito das pessoas lidarem. Nas escolas públicas, eu particularmente me sentia mais à vontade, mas nas particulares eu sentia que a qualidade era maior, sabe? Tinha mais aulas de conteúdo como inglês, essas coisas mais, que eram mais trabalhadas nas particulares do que nas estaduais. Mas, nossa, meu período de escola estadual nem se compara com a particular. Foi a época onde eu mais cresci culturalmente, sabe? Comecei a conviver com pessoas que tinham um estilo de vida totalmente diferente do meu, desde drogas a trabalho mesmo, cara que trabalhava a tarde toda e eu, sei lá, com 14 anos de idade já tinha gente que trabalhava o dia inteiro na minha sala e eu não reparava nisso. Sempre ajudei meu pai no escritório mas nunca trabalhei fora do escritório, sabe? Essa realidade me mostrou muitas coisas e me fez crescer muito também em relação a isso. E tinha vários amigos de escola, vários casos de escola também que eu não vou contar porque fica muito grande (risos) a entrevista, mas tem muitos casos.
P/1 – Mas essas afinidades que você está contando, você tem lembranças de um grande amigo dessa época?
R – Então, tenho, tenho sim. Tem um amigo meu, não era um amigo na verdade, era um grupo de amigos. Inclusive foi aí que o hip hop entrou na minha vida, essa cultura do rap, do hip hop. Quando eu tinha de 13 pra 14 anos eu comecei a dançar break dance porque eu gostava muito da MTV [Music Television], na época que a MTV passava os clipes, etc., eu assistia. E na escola, na hora do recreio sempre ficava uma musiquinha tocando e tal, aí tinha uns meninos que dançavam já. Vendo eles dançarem eu fiquei admirado e vi os clipes e gostava e quis aprender. Quando eu aprendi eu virei um dos melhores dançarinos lá da escola, tal, aí a escola tinha torneio, era bem bacana. Aí eu comecei a fazer uma amizade com essa galera, todo mundo que dançava, que era desse meio, entendeu? Eu não tinha muita ligação com o rap no geral, mas com um dos elementos do hip hop, que era a dança, o bboy, tal. Fiz break dance durante boa parte da minha vida, ganhei vários torneios de escola, essas coisas, que eu gostava mesmo, só que depois que veio o mundo real, que você tem que fazer faculdade, estudar, aí eu meio que parei de mexer com essas coisas. Mas sempre quando tem uma festa, alguma apresentação assim, o pessoal me chama às vezes pra fazer alguma coisa. E nesse meio foram várias pessoas que eu conheci e uma das lembranças maiores que eu tenho disso foi de uma turma minha do terceiro ano, da Escola Estadual Emília de Paula, que é uma escola maravilhosa, é uma escola que me engrandeceu muito culturalmente. Eles tinham teatro, eles tinham apresentações festivas, tudo quanto era relacionado à cultura tanto específico da cidade, quanto do país, tinha apresentações. Então essa turminha minha do terceiro ano, nossa, o João, o Iago, o André. Nossa, o André era muito brother meu, a gente fazia tudo junto, sabe? “Ah, vamos fazer um teatro?” “Vamos”. Eu lembro de uma peça que a gente fez, chamava “A Venda do Meu Pai”, que contava a história da cidade, que era um escritor que engrandeceu muito a história de Várzea da Palma, sabe, e foi muita honra fazer porque a esposa do cara, bem velha, ela tinha uns 70 anos, ela foi lá pra assistir à peça. E assim, ficou incrível, ela até chorou, nossa, foi muito nostálgico e emocionante. Foram várias amizades e várias escolas em ambas escolas. Brigas em escola, eu era muito brigão na escola. Eu sou muito hiperativo, então não gostava muito de ficar quieto. Bullying também, por ser magrinho e usar óculos, essas coisas, isso você acaba acostumando como lidar com essas coisas. Só que o tempo foi passando e você vai crescendo e amadurecendo esses quesitos.
P/2 – Conta dos primeiros passos de break, como você aprendeu, você ia imitando, treinando em casa, como é que foi?
R – Foi mais imitando mesmo. Eu pegava os clipes da MTV, gravava em um DVDzinho velho que tinha na época, aí ficava assistindo e voltando. Tinha um filme, que quando eu assisti esse filme a cabeça: “boom!”, explodiu que era aquele Se Ela Dança Eu Danço e o, como é que chama? Nossa, estou tentando lembrar o nome dele em inglês só que eu não consigo lembrar, sempre quando eu lembro em inglês eu lembro o nome dele em português... é um filme de uns amigos que dançavam, que tem até o Omarion, que é um cantor americano e tal, o Chris Brown. Nesse filme, um grupo de amigos que se juntam querem vencer o torneio da cidade. É um filme com uma narrativa bem rasa por sinal (risos), mas é muito interessante as danças, as coreografias, então aquele filme me deixou muito assim: “Cara, eu posso fazer o que eu quiser dentro da dança. Eu posso passar uma mensagem, eu posso explicar pras pessoas coisas que elas não têm noção a partir dessa parte cultural”, isso abriu a minha cabeça muito pra esse lado, sabe, de entender também como o hip hop era. E por aí vai (risos).
P/2 – E como foi de você admirar assistindo, ver que você também conseguia fazer, que você entendeu que o seu corpo era capaz de se expressar do jeito que você quisesse, ou através dele?
R – Eu acho que foi naquele momento que eu vi pessoas que eu tinha convívio diariamente pela escola fazendo isso. Aí foi aquele pensamento: “Uai, se Fulano de Tal faz, por que eu não posso fazer? Vou tentar”. Se eu não me engano, eu fiquei um ano assim, tentando, aprendendo, aí depois de um ano eu já sabia fazer uns passos, já chamava atenção, esse tipo de coisa. Eu geralmente levo um ano pra aprender alguma coisa de maneira que eu fique pelo menos amador na coisa. Depois que eu aprendi, eu comecei a buscar as apresentações. Tinha um grupo na minha cidade que chamava Stardance. Eram uns meninos muito “boy”, sabe, tinha uma galera assim, meio, eles chegavam na escola e as meninas ficavam: “Ah, não sei o quê, tal, é o Stardance”. Isso quando a gente é mais novo chama muito a atenção, né? “Pô, eles estão fazendo a diferença, chamando atenção do pessoal”. Esse grupo influenciou metade da cidade a gostar também de dança, de hip hop, tal. E eles também eram influenciados pelas mesmas referências da gente, que eram filmes, clipes e etc. isso influenciou muito os outros grupos a montarem seus próprios grupos e começarem a batalhar na cidade, essas coisas. Não tinha muitas batalhas na cidade, tinha mais apresentações festivas de colégio, semanas culturais na cidade, sempre quando tinha, tinha apresentações. Mas grupo, grupo mesmo, que eu me lembro que existia, que era físico, que usava camiseta, tinha banner, era o Stardance. Eles apresentavam na cidade. Aí, pegando esse gancho, o Stardance, eu lembro uma vez, acho que eu tinha 14 anos, eles apresentaram no maior palco da cidade, que na cidade tem uma festa cultural que chama Forró da Palma, e essa festa é muito boa, vão várias cidades da região pra lá, entendeu? Porque é tudo de graça e só dá show bom, entendeu? Aí junta muita gente na cidade. E o sonho de todo mundo que fazia apresentação no decorrer do ano na cidade era apresentar lá. E o Stardance apresentou e eu fiquei com isso na cabeça muito tempo: “Nossa, que maneiro, deve ser da hora apresentar”. Porque eu sempre gostei de público, eu era muito hiperativo, aparecido como diz, quando eu era mais novo. Aí, quando eu vim pra faculdade, meu primeiro ano de faculdade eu voltei pra minha cidade nas férias, e nessas férias eu combinei com dois amigos meus: “Gente, vamos apresentar lá?” “Vamos” A gente procurou o rapaz que disponibilizava pra gente apresentações lá, a gente se juntou em três, a gente fez uma coreografia super legal. No dia, deu super certo, a gente apresentou no palco da cidade, meus familiares estavam lá, pessoas de outra cidade. Acho que foi o maior palco que eu me apresentei na minha vida. Foi uma parte marcante da minha vida. Acho que foi até nesse ponto que eu vi que eu realmente gostava disso, sabe, de me apresentar, de conversar, essas coisas. Isso que me influenciou a dar aula também. Eu gosto de conversar com as pessoas, de mostrar, apresentar, então isso cresceu muito em mim na época. Você olhar assim: “Pô, estou no palco que um dia eu me imaginei fazendo alguma coisa e hoje eu estou fazendo essa coisa”, isso é interessante.
P/2 – Você falou de referências de filmes e também da MTV. Você lembra quem eram os artistas?
R – Nossa, muito, cara! Na época, quesito break dance, né? O Chris Brown, o Omarion. Tinha também o Usher, que na época que lançou aquela música (imita melodia), que chamava Yeah!, se não me engano. Essa música ficou muito estourada. Eu era muito pequeno, sei lá, tinha uns 12 anos de idade, eu via os clipes, ficava em frente da televisão imitando, sabe, era muito engraçado. E são referências de mais novo, não são coisas que depois que eu cresci continuava sendo um coisão, mas na época era muito instigante, eu assistia e ficava: “Nossa, quando eu crescer, eu vou ser isso e não sei o quê e tal”. Eu não tinha muito as coisas nacionais, entendeu, até porque a maioria das coisas que se passavam tanto na MTV quanto até no canal de TV a cabo, Multishow, era mais de coisa internacional. E eu não via muito cenário nacional, até porque o cenário nacional, hoje mesmo não é tão badalado quanto internacional, então, o que chegava pra gente era mais isso, sabe? Referências nacionais que eu tinha era de um DVD que um amigo meu me emprestou, nem lembro mais quem foi que emprestou, que mostrava raps de Brasília, cenário do hip hop de Brasília. Aí tinha uma galera que cantava. Só que assim, eu era novo e os nomes dos grupos de Brasília eram nomes bem esquisitos pra época, Vadios Loucos, Viela 17, Ovelha Negra da Família. Meus pais não permitiam muito ver essas coisas, mas depois que eles assistiram e viram que não tinha nada demais aí eu assisti, então era tranquilo. Mas, enfim, não tinha muitas referências nacionais, igual eu tenho hoje. Quando você procura, depois desse boom da internet você acha muita coisa nacional. Era só coisa mesmo que era vinculada em TV aberta ou TV a cabo.
P/1 – A gente já está entrando na adolescência, nessa fase de encontrar mais pessoas. Isso ainda é um movimento seu muito na escola também, você chegou a fazer essas danças na escola.
R – Sim. O dançar, hoje, eu só faço quando pedem apresentação mesmo, aí eu chamo a galera, os meninos que querem aprender a dançar, aí eu faço. Quando eu trabalhava num projeto cultural, que é [a Fundação] Conscienciarte aqui da cidade, que eu dei aula lá muito tempo também, eu dava aula de Informática, Filosofia e de Hip Hop, aí eu dava aula de dança e tal, era bem bacana. Depois que eu saí de lá, que eu comecei a dar aula na faculdade, aí eu já parei com as danças. Mas como os meus alunos descobriram que eu faço rima, rap, essas coisas, dança, de vez em quando durante as aulas eles ficam me enchendo o saco pra fazer umas rimas pra eles durante as aulas (risos). Mas não tem mais nada de apresentações como eu tinha antes. O que a gente tem hoje, que eu faço, é só a Roda Cultural que a gente tem aqui no sábado e apresentações que o pessoal pede pra gente fazer.
P/1 – Eu quero chegar nessa parte da Conscienciarte, da sua prática docente, mas queria que você falasse das referências de professores, quem é que ensinava na época o break, se você lembra do nome, quem era a figura.
R – Então, o break, essa parte do hip hop, eu aprendi tudo sozinho, eu não tive um tutor, um professor, sabe? O que eu tinha eram mais amigos que competiam com você e você acabava se dedicando pra ser melhor do que eles (risos). Mas assim, uma pessoa que eu tinha de referência, assim, como eu te falei, era o grupo que tinha na cidade. Aí desse grupo a gente via eles dançando e queria aprender. Aí tinha um amigo seu que dançava também, vocês ficavam competindo: “Olha o que eu aprendi a fazer, olha o que eu consegui fazer!”, a gente ia aprendendo um junto com o outro, entendeu? Mas referências mesmo, pessoais, pessoalmente, nunca tive muito não.
P/1 – Pra quem não é do break e não imagina as dificuldades, você se lembra de alguma coisa que foi difícil?
R – A primeira coisa, flexibilidade, cara. Você tem que acordar, fazer movimentos pra você deixar seu corpo mais leve; depois disso você solta o corpo, você imita uma cobra, imita o que você achar que seu corpo se sinta mais leve, entendeu? A partir disso você vê os movimentos, pelo menos eu aprendi assim, você vê os movimentos e começa a imitar. Você sentiu seu corpo mais leve, tranquilo, aí você começa tentar a imitar. E você vai fazendo, tem um termo no Sistema de Informação que a gente utiliza que chama algoritmo de força bruta, é quando você testa a coisa muitas vezes que uma hora ela vai funcionar, entendeu? E é isso, você vai fazendo até que uma hora funciona. Se você não tem referência, você não tem ninguém que te mostre os passos corretos, você tem que ir cavando até você achar o túnel, então, foi meio assim pra mim. Lógico que tinha referências do pessoal que já dançava antes, mas não era coisa de tutor, uma galera que te ajudava, era mais: “Esse cara é bom, eu tenho que ser pelo menos o nível desse cara pra cima”...
P/2 – Você estava contando que a primeira apresentação em um grande palco da escola e aí tinha os caras do Stardance, de repente você começa a assumir esse lugar de destaque. Como era isso, como foi isso pra você lá?
R – Ah, foi surreal, cara. Assim, a cidade, Várzea da Palma que eu estou falando, não Paracatu, eles não dão muito valor nessas partes de: “Ah, eles dançam”. Eles realmente gostam de falar em Semana Cultural, essas coisas, entendeu? O que não é de se reclamar, mas lógico que a gente pode melhorar essas coisas. Eu não acho que foi muita coisa pras pessoas que estavam assistindo, é nesse ponto que eu quero chegar. Mas ao mesmo tempo foi muita coisa pra gente que tinha esse sonho, entendeu? Quem gosta e quem via e quem estava lá pela festa e que assistiu a gente gostou, todo mundo gostou, mas quando você me pergunta: “O que foi pra você?”, pra mim vai ser outro universo, entendeu? Pra outras pessoas não, vai ser mais pessoas que estavam lá dançando. Então assim, nossa, sabe quando você tenta uma coisa muitas vezes e quando você conquista dá aquela satisfação de você ter conquistado, não só por você ter conquistado, mas você saber que você lutou muito pra conquistar isso? É por aí, foi esse sentimento de realização que eu senti. Acho que mesmo se tivesse sido ruim a dança, se tivesse errado, eu acho que eu iria me sentir satisfeito porque as pessoas que viram a gente dançar sentiram que a gente era suficiente pra estar lá nesse palco dividindo com artistas que rodam o Brasil todo, fazem shows, entendeu? É esse o ponto que eu quero chegar. Foi um coisão pra mim independente se às vezes, sei lá, se não foi um coisão pra quem estava lá vendo, entendeu?
P/1 – E como você continuou na escola depois desse momento? Que abertura foi essa, que novo universo foi esse? Na escola e na vida.
R – Na Conscienciarte foi mais tranquilo porque eu pude continuar com esse lado cultural que eu já tinha de dança e hip hop. Agora na faculdade não, por ser uma coisa mais séria e eu sou professor, você tem toda uma postura, eu não passo muito esse lado pros alunos, é realmente nos momentos de recreação que a gente tem com os alunos. Mas, nossa, na Conscienciarte era outra coisa, cara, é uma das melhores empresas, tanto pra você trabalhar quanto pra você aprender culturalmente e socialmente, sabe? Porque era outra realidade, os alunos da Conscienciarte são realmente alunos carentes, é menino que mora do lado de boca de fumo, sabe? É onde o tráfico é intenso, é onde eles não têm tantas oportunidades. E quando eles entram em um lugar onde eles têm vários cursos de várias coisas, que eles veem que a vida não é só aquele caminho com muitas pessoas do bairro dele seguiam, sabe, nossa. Conscienciarte é um lugar muito, admiro demais.
P/1 – Mas aí Conscienciarte já é Paracatu. Como é que se deu essa passagem...
R – De Várzea da Palma pra Paracatu, né? Foi uma coisa mais comum, sabe? Eu formei no ensino médio, eu já tinha esse lado muito cultural que eu falei pra você de break dance, apresentações teatrais na escola, em todas as escolas que eu estudei foi assim, sempre que tinha alguma coisa cultural, eu participava. Acabando isso eu formei o terceiro ano, a gente cresce, segue a vida. Fiz Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], aí passei com bolsa pra cá, com Prouni [Programa Universidade para Todos] e tal. Por eu passar com bolsa pra cá eu conversei com meus pais, era um curso que eu queria fazer, estava a fim de sair da cidade, fui. Aí acabei ficando em Paracatu. Quando eu cheguei aqui eu morei de república muito tempo, morei acho que a faculdade inteira eu morei em república, então foi praticamente quatro, cinco anos da minha vida morando em república aqui em Paracatu. Nesse período foi estudando e pegando bico pra fazer essas coisas, por ser Sistema de Informação aprende muita coisa, de formatar computador, passar antivírus, essas coisas você vai ganhando um dinheirinho. E meus pais tinham condições, mas não tinham condições de ficar me bancando, entendeu? Então a condição que eu tinha era só, por exemplo: “Rafael, você tem aqui 50 reais pra você comprar comida pra comer, o resto você tem que se virar”. E também nunca fui de reclamar, sempre me virei, etc. Nesse tempo, eu trabalhava e estudava, fui conciliando normal, um ano antes de eu acabar a faculdade eu encontrei a Conscienciarte por um amigo meu, Thiago, que estudava comigo na mesma sala que eu, ele falou: “Rafael, a gente está precisando de um professor de informática, você tem perfil, você quer ir lá pra conhecer a vaga?” “Quero”, eu estava precisando, aí fui e comecei a trabalhar. Aí lá que eu conheci esse nível, tanto cultural quanto social que essa empresa tem aqui na cidade, essa instituição tem na cidade. E não foi muito assim, eu trabalhei em outros lugares antes da Conscienciarte, mas eram coisas mais corporativas, era uma loja de informática, era uma empresa de desenvolvimento, então, não era uma coisa muito da parte docente, foi na Conscienciarte que eu senti essa parte docente. Mas sempre que tinha palestra, essas coisas, eu gostava de participar porque eu sempre tive esse lado de querer dar aula, etc. Aí quando surgiu a vaga eu peguei ela.
P/2 – Quais foram as suas primeiras impressões de Paracatu? Como foi chegar aqui, ver essa cidade?
R – Cara, eu não gostava dessa cidade, de verdade. Eu odiava Paracatu! Era a cidade que as pessoas, não é porque Paracatu é ruim, é porque Várzea da Palma é muito bom. As pessoas em Várzea da Palma são muito humildes, são muito tranquilas. Sabe aquele lance de você trabalhar, o mesmo tanto que você trabalha é o mesmo tanto que você tem que divertir? É Várzea da Palma. Você anda em Várzea da Palma, as pessoas ficam na porta da casa chamando pra participar de churrasco, pra te conhecer, é uma cidade maravilhosa. Não é porque eu nasci lá, é porque realmente o lugar quem vai pra lá fica encantado, entendeu? E quando eu vim pra Paracatu não tinha muito isso, as pessoas, não sei, não tinham uma relação forte com você, sabe? As que você conhecia, que tinha essa relação, era realmente uma relação boa, saudável e forte, mas era difícil você achar essas pessoas. Eu não sei se era porque Várzea da Palma era muito fácil ou se realmente era difícil achar essas pessoas em Paracatu. Mas as amizades que eu tenho daqui que são de Paracatu mesmo, elas são fenomenais, são pessoas que eu admiro demais, mas são poucas, sabe? Esse que é o ponto! São poucas. As outras pessoas que eu me relaciono muito aqui são pessoas realmente de fora. Até pela identificação, convívio de vida, etc. Mas foi difícil para mim conciliar esse tipo de relação com as pessoas de Paracatu. Então os primeiros anos, nossa, foi superdifícil porque além de morar em república tinha esse ponto, né, de: “Ai, é outra vida, tenho que me acostumar”, etc., mas aí foi passando o tempo e não tem nada que a gente não se acostume, né? Eu comecei a acostumar, comecei a crescer mais também, amadurecer esse lado, levar de outro jeito e eu fui encontrando pessoas que tinham essa mesma “vibe” que eu, que eram de Paracatu também, aí eu acostumei. Depois que eu fui pegando serviços, trampos, comecei a dar aula, eu comecei a conhecer esse lado mais gostoso de Paracatu. Mas uma coisa que sempre teve aqui, que é muito evidente pra mim desde que eu cheguei na cidade, eu gostando da cidade ou não, era cultura. Nossa, aqui exala cultura, você chega perto do museu tem tudo coisa, imagem que você só vê nos seus livros de História, aí você entra no lugar e tem tudo certinho, igual as fotos que estavam no livro, sabe? Você encontra pessoas que contam coisas muito importantes da história do Brasil, sabe, desde da época da escravidão até, sabe, época dos tropeiros chegando e tal, da mineradora também. Então aqui você acha cultura muito fácil, isso é uma coisa que eu gostei muito da cidade, acho que foi o ponto maior que eu gostei da cidade, na verdade. Então, às vezes quando não tinha nada pra fazer durante o meu estudo eu passava no museu, passava na Casa de Cultura, sabe? Ia trocando ideia com essas pessoas que tinham essa parte mais cultural da cidade.
P/1 – Você veio pra cá fazer que curso?
R – Sistemas de Informação.
P/1 – Como é que foi o período?
R – Ah, o melhor lugar da cidade pra mim era a faculdade. Eu vivia na faculdade. Porque eu sempre fui meio nerdizinho, pela cara já dá pra identificar, mas é porque eu realmente gostava de estudar, de conhecer, de conversar. Então assim, essa aprendizagem já é de casa, de gostar de estudar, etc. E quando eu vi a faculdade, que pô, é uma biblioteca gigante, qualquer livro você pode pegar, sabe, tem computador com internet boa pra você pesquisar, você pode ficar lá o dia inteiro, tem laboratórios pra você testar coisas, sabe, as pessoas querendo te colocar em lugares ali que você pode ajudar, seja voluntariamente ou não, sabe, ou com ajuda de custo pra você também. Tudo o que tinha pra fazer na faculdade, eu fiz. Tanto que acho que do meu curso, eu e o Nilton Rafael que é um outro aluno que foi da minha sala. Pirapora (MG), que é grudada com Várzea da Palma, Pirapora é 36 quilômetros de Várzea da Palma, minha família inteira é de Pirapora, só que a gente cresceu em Várzea da Palma, meus pais, aí acabou que minha família, pai, mãe, irmãos foram em Várzea da Palma, mas a gente sempre teve esse convívio com Pirapora, desculpa não ter falado no início. Mas esse Nilton Rafael foi um menino de Pirapora que veio pra cá. A gente trabalhou tanto na faculdade que a gente morava na faculdade. Se a gente olhar nossas estatísticas lá, eu e ele somos os alunos que mais têm horas voluntariadas, mais tem horas de estágio, mais tem horas de tudo, horas complementares porque a gente comia, vivia e dormia na faculdade, que era muito bom. Eu já fui voluntário, estagiário, monitor e hoje virei professor da faculdade (risos). Então assim, tem uma bagagem muito grande pra, no trabalho que eu faço hoje.
P/2 – Conta como foi que você, através do seu amigo, conheceu Conscienciarte, começou a dar aula. O que você sentia nessas aulas, desse contato com os meninos, em poder estudar e se preparar pra dar uma aula de Filosofia e outra aula depois com mais movimentos, quer dizer, como você lidou com tudo isso?
R – Então, na faculdade, quando você chega em determinado período você pode tirar o CAT, que é o Certificado de Avaliação de Título, pra você dar aula. Eu poderia dar aula de Matemática, Informática e Filosofia pela grade da faculdade. Aí eu peguei a de Informática e fiquei com ela. Só que igual eu te falei, os alunos da Conscienciarte são alunos que vêm de lugares carentes, de famílias carentes. As aulas da Conscienciarte além de serem aulas têm que ser um exemplo de vida pros alunos que vão lá, eles têm que ver que tem outro caminho além das coisas ruins que eles já convivem diariamente. Isso foi muito pregado em mim pelos diretores de lá. Eles falaram: “Você vai dar aula de Informática, só que os meninos daqui são humildes, você tem que ser de determinada maneira, você tem que se comportar de determinada maneira, você tem que ser exemplo” e assim, assado. Quando eu conheci os meninos, nossa, foi outra coisa, sabe? Você via menino ali que o irmão era traficante, ou que o pai estava preso, coisas do tipo. Então você chegava e o tipo de conversa que você tinha que ter com eles era uma conversa mais como se fosse irmão, uma pessoa próxima pra mostrar pra eles que de certa forma eu tinha uma identificação, mesmo que eu não tivesse uma identificação com ele, mas eles tinham que se sentir naturais ali, confortáveis. Então o que eu pude fazer do máximo, sabe, de brincadeiras, dinâmicas, conversar, mostrar a vida. Nossa, tinha aulas que eu achava um vídeo interessante na internet de história de vida de outras pessoas, mostrava pra eles, tinha aluno que saía chorando. Às vezes no final da aula aluno voltava pra conversar comigo particular sobre coisas que eles viviam e tal. Tem história de um menino, que eu nem quero citar o nome dele assim, mas foi uma história bem marcante pra mim, que eu nunca tinha acontecido comigo, foi a primeira vez e, sei lá, Deus queira que nunca aconteça, mas ele era um aluno dedicado, legal, mas que a história dele, da família dele era muito errada, sabe? Desde tráfico a assalto, etc. Enfim. Um belo dia eu chegando pra dar aula, a diretora vira e fala comigo que o menino morreu. Aí eu tipo assim: “É sério?” “É sério. Às quatro horas é o enterro dele, você vai lá pra pelo menos dar um abraço na mãe dele, falar que você era o professor dele, que ele conversava muito com você, etc” “Tá, mas morreu de quê?” “Correndo da polícia, atiraram nele, acertaram a perna de um amigo dele e acertaram ele e ele morreu” “Ok”. Aí deu quatro horas, eu fui lá, dei um abraço na mãe dele. Assim, ver ele no caixão, um menino que você via, uma semana atrás, você estava com ele todos os dias, foi uma parada forte pra mim, sabe? E ele tinha 12, 14 anos. Eu fiquei assim... É, a vida realmente não é brincadeira mesmo. Por mais que eu já tivesse consciência, quando a gente vê as coisas na pele, bem próximas da gente, que a gente sente essas coisas. Depois desse dia, eu tive mais ainda responsabilidade do que eu já tinha antes, sabe? Então, nossa, era conversa todo dia com os meninos, era dinâmica, sabe, coisa assim. Essa parte da Filosofia mesmo, eu que quis meio que implementar com a diretora geral, eu falei com ela: “Olha, eu sinto que eu tenho embasamento pra dar aula de Filosofia pros meninos, eu quero mostrar pra eles umas vertentes diferentes dessas que eles veem normalmente. Sei lá, eu quero mostrar filósofos que mostram pra eles que eles podem seguir, ter noção das coisas da vida, por mais que seja difícil. Lógico que eu não iria mostrar um Sartre pra eles, sabe? Mas você pega vertentes da Filosofia que mostram que a vida é mais alegre, que as coisas podem ser mais trabalhadas, sabe? Nossa, era de brilhar os olhos, eles: “Nossa, como o cara pensou nisso? Como que ele leva a vida desse jeito? Que interessante”. Desde você explicar ali por que Pitágoras achava sentido nos números e conseguia levar a vida dele assim e implementar isso numa aula de Informática e Matemática e dar sentido pras aulas, não só para eles aprenderem as funções, sei lá, de um Word, de um Excel da vida, isso era o mais importante que eu sentia, sabe? O menino falar comigo que ele teve um bom convívio com a mãe dele porque ele explicou pra ela uma coisa que ele aprendeu na sala de aula, sabe? Ou que ele viu um vídeo lá do jeito, sei lá, viu a história do Ayrton Senna, e viu que o cara nunca desistiu daquilo que ele queria fazer e tal e mesmo morrendo virou uma lenda, sabe? O menino ficava muito interessado e conversando essas coisas. Todas as pessoas que a gente conseguiu mudar de vida nesse período, pra mim foi, nossa, dinheiro nenhum conta, sabe? Uma das maiores vitórias que eu tenho da minha vida foi realmente sentir que a gente da Conscienciarte fez essa diferença na vida desses alunos. E continuam fazendo hoje em dia. Eu não estou mais lá, mas ainda tenho contato com o pessoal de lá. Então isso, sei lá, é outra coisa, é outro patamar, tem um embasamento muito bom.
P/2 – Que triste a história do menino!
R – Nossa! Sei lá, eu lembro muito assim porque é muito pesado mas, foi um aprendizado forte. Sei lá, a gente sabe que todo mundo vai morrer um dia, não é tipo uma coisa: “Ah, que diferença”, mas pô, faz diferença, sabe? A pessoa morreu, ela estava com você ontem, no outro dia... enfim. Próximo tópico aí (risos).
P/1 – Você está contando histórias da Conscienciarte e tinha as aulas de Informática, de Filosofia e tinha mais...
R – Era Informática, Filosofia e Hip Hop.
P/1 – Como é que é dar aula de hip hop?
R – Essas aulas de Hip Hop eu tive embasamento no meu terceiro ano quando eu ensinava os meninos nas apresentações, aí já era mais tranquilo pra mim. Quando eu cheguei na Conscienciarte, que eu já tinha, sei lá, lugar disponível, caixa de som disponível, essas coisas, aí ficou bem mais fácil, sabe? Eu só estruturei o meu cronograma, professor tem muito disso, você sabe como que é (risos). Aí fui separando os meninos que tinham mais dificuldade e os que tinham mais facilidade. Aí ensinava para os que tinham mais dificuldade e os que tinham mais facilidade ia passando tarefas mais difíceis pra eles. Aí foi nivelando, foi naturalmente ocorrendo. Os meninos gostavam bastante. Tinha uns que não se interessavam muito, é normal de acontecer, mas os que se interessavam eles gostavam, apresentavam comigo às vezes, era legal.
P/1 – Mas conta como que era tirar da cartola esses métodos. Como é que era: “Hoje eu vou falar de tal coisa”, como era?
R – A gente sempre tem um método pra fazer as coisas, quando não tem um método a gente inventa. Então, eu não tinha essa coisa de saber o que era o método, fui aprender isso tudo na faculdade, método científico, sabe? De saber que você tem que ser referência, tem que seguir um determinado tipo de pesquisa, etc. Lógico que isso não encaixa na realidade que a gente tinha na Conscienciarte, mas quando você começa a estudar você percebe que tudo isso é derivado, tudo o que você fez, todo o método pra você chegar num lugar é derivado desses métodos científicos já comprovados. O meu método era separar direitinho o cronograma, os passos mais fáceis que era jogada de corpo, passos base que vai te dar posição pra você fazer um passo mais complexo, isso aí tudo eu fui separando em escadinhas, em níveis, fui ensinando e motivando os alunos a fazerem coisas que desafiassem eles mesmos, sabe? E mostrando coisas legais, apresentações que eu já tinha feito, filmes, essas coisas. Aí eles empolgavam muito, sabe? Não era tão difícil. Por eu já fazer a minha vida inteira, era natural, foi muito natural pra mim trabalhar nisso. Acho que a maior dificuldade que eu tive foi realmente fazer alguns alunos se interessarem porque tinha muitos alunos que: “Ah, dança não é comigo, meu corpo não é bom pra dançar”, etc. Então fazer eles entenderem que corpo é igual no quesito você pode fazer coisas com ele que você achava que você não pode, sabe? Lógico que alguns vão dançar melhores do que outros, mas aprender todo mundo pode, entendeu? Independente do seu peso, da sua estatura, então fazer esse entendimento foi o mais complicado. Mas ensinar mesmo, mostrar: “Esse é o passo base, isso é um flé, isso é uma jogada de quebra de corpo, isso é um break”, foi suave, foi natural.
P/2 – E a gente está falando aqui dos movimentos e tal. E quando que entraram as rimas? A outra parte dessa cultura.
R – Na minha vida, a primeira referência que eu tive de rima foi Racionais e Marcelo D2, coisas que eu assisti muito novo e não tinha noção da realidade, mas eu achava incrível o jogo de palavras que eles faziam nas músicas, entendeu? Marcelo D2, Gabriel o Pensador, Racionais. Eu via aquilo, escutava aquilo e falava: “Cara, a música não precisa ter só melodia, você pode contar uma história dentro da música! E não é uma coisa igual Legião Urbana, que você pode seguir um único ritmo e ficar naquilo a vida inteira, não, você pode mudar”. Não que o Legião Urbana seja ruim, tá gente? A música é infindável e quando você aprende rima você fica infindável com as coisas que você pode fazer. Aí, por eu ser muito hiperativo e criativo, eu criei um canal no YouTube quando eu tinha 14 anos de idade. E esse canal no início deu super certo, sabe, com meus amigos de escola e tal. A gente fazia vídeos de zoeira, não enchendo o saco das outras pessoas mas festas a gente dançando, brincando um com o outro, sabe? E uma coisa que eu sempre gostei de fazer foi fazer paródias. Eu pegava a letra de algumas músicas, alterava e colocava as rimas no meio. E foi daí que começou a me influenciar essas rimas, entendeu? A querer brincar com palavras em música, etc. Tem até um vídeo que é muito engraçado, foi o vídeo que estourou o canal na época, deu umas 8 mil visualizações quando eu postei; é um vídeo chamado Garota Gamer, que eu juntei seis amigos e a gente gravou no quintal de casa, numa parte recreativa que a gente fazia festa lá. E todo mundo com estereótipo de nerd, nerdizão, a gente forçou mesmo. E a gente cantava uma música, que eu que escrevi a música, era bobagem, besteira que a gente fazia, que era falando sobre uma menina dos sonhos, só que era uma menina dos sonhos com todo estereótipo nerd. E cantava, se eu me lembro o refrão era assim (canta): “Garota Gamer gosta de Star Wars, já zerou Super Mario e até God of War”. E tipo assim, não rima Star Wars com God of War, sabe, mas no português, no inglês abrasileirado rimava. E era hilário. E ficou muito engraçado. A gente fez toda a coreografia, bonitinho, dançamos, sabe? Hilário, hilário! É uma das coisas que eu tenho muito orgulho de ter feito, não por ser algo grande, mas porque foi algo muito engraçado e algo muito nosso, dos nossos amigos. Esse vídeo estourou na cidade, meus amigos passaram, eles trabalhavam em supermercado, que os meninos do supermercado ficavam zoando eles: “E aí, vocês já encontraram a Garota Gamer?” (risos), essas coisas. Então era hilário. Aí, voltando às rimas, por eu trabalhar muito com paródia, brincar na verdade, eu tive muita facilidade pra rimar. Sempre de pequeno: “Vamos fazer uma brincadeira, vamos fazer uma música”, aí meu colega, o Pablo, o Pablo toca violão. Porque eu sou horrível pra instrumentos, eu não sei nada de instrumentos. Quando eu tinha 16 anos, eu pedi ao meu pai um baixo, ele disse que não tinha dinheiro suficiente pra comprar e eu falei: “Então tá, pai, eu vou aprender a fazer uma coisa que eu use só meu corpo”. Aí eu já gostava de hip hop e segui isso. Aí nunca tive, se você me falar o que é um acorde eu não sei, de verdade, mas eu faço beat, essas coisas tudo no programa, entendeu? Instrumental, batida eu consigo fazer, mas porque o programa facilita muito. Mas musicalmente eu sou horrível, então o Pablo tocava no violão tudo o que eu precisava e a gente fazia as rimas em cima, brincava. Isso foram várias paródias que na época bombaram muito, pro quesito de visualizações que tinha na época do YouTube, entendeu? Mas nada que deixasse a gente famoso ou coisa do tipo. Mas era legal pela convivência e reconhecimento que a gente tinha na cidade, sabe, da gente, a gente brincava muito, foi a partir daí que eu tive essa facilidade de ficar fazendo rimas e brincadeiras. Então eu nunca tive dificuldades pra isso.
P/1 – Estou aqui pensando nos temas que vieram surgindo nessa convivência com a Conscienciarte e, enfim, isso vai agregando outros assuntos pra sua jornada, né? Como é que você pode contar um pouco desses assuntos que vieram aparecendo na sua rima.
R – No quesito da rima?
P/1 – É, você falou no começo lá, aos 14 anos, era Garota Gamer. E aí, provavelmente esses assuntos foram mudando. Você tem outras histórias de assuntos e temas que vieram?
R – Ah, com certeza. Logicamente, naquela época, a gente deslumbrava muita coisa, mas eram coisas que a gente não tinha consciência da profundidade delas, entendeu? Então sei lá, a gente era tão retardado que se a gente visse alguma garota com alguma camiseta de Dragon Ball Z, por exemplo, era endeusada, sabe? Isso é bobagem, quando você começa a crescer e entender mais profundamente. Isso parece até ridículo eu falando, mas é porque realmente acontecia isso. Eu não estou falando que eu era assim, todo o grupo de amigos era assim. Isso é uma coisa que até é estruturada socialmente da gente. Se você pegar até qualquer garota que começa a jogar videogame online, as chances dela não querer ficar naquele ambiente é muito maior do que um menino, entendeu, porque ela vai sofrer um certo tipo de preconceito, um certo tipo de machismo, porque vai ter aquela coisa: “Ah, menina não sabe jogar” “Ah, você está aqui só pra você mostrar pros meninos que você sabe jogar, você quer é conhecer os meninos, etc.”. Sempre tem isso. Então, eu estou falando de casos que aconteciam comigo, mas se você for pegar tanto historicamente quanto qualquer caso, você vai encontrar mais casos de meninas que não se sentem bem nesses meios do que meninas que se sentem bem, entendeu? Logicamente que no decorrer da nossa vivência, de sociedade, isso vem melhorando, mas tem que melhorar muito ainda, entendeu? Esses temas, a profundidade dessas coisas, você só começa a entender depois que você começa a crescer mais, criar mais caráter, entender. É o tal do machismo existente em você que você não sabia que existia, né? Isso foi acostumando, foi aprendendo essas coisas e começando a trabalhar mais em mim, entendeu? Todo ser humano acho que chega numa certa idade, começa a ter essa identificação com essas coisas, entendeu? Ver o que é bom, o que é ruim e o que ele fazia em relação a esses dois lados. E você sempre tenta pender pro lado bom, então isso foi aprofundar nesses temas que a gente brincava quando era mais novo, essas coisas, foi um dos motivos que me levou a querer conhecer mais coisas, entender mais coisas e levar isso, seja pras minhas aulas na Conscienciarte, seja pras minhas aulas na faculdade, seja para uma rima que eu faço aqui na roda, entendeu? Porque na Roda aqui mesmo, querendo ou não, ainda rola um pouco de misoginia, sabe, em relação a algumas partes de menino de 14, 15 anos que vem aqui. Ele chega pra fazer uma rima legal e acha que falar que pega a prima de Fulano de Tal a rima vai ficar engraçada e todo mundo vai achar legal, vai gritar, entendeu? Então rola essas coisas às vezes, isso é uma coisa que a gente sempre tenta abolir dentro da Roda, entendeu, justamente por isso. Os meninos, alguns deles são muito novos, de 14, 15 anos, então eles não têm muito essa noção de saber que isso é errado. E eu não estou falando isso só da nossa Roda, tipo, no Brasil as maiores rodas, se você procurar ainda rola muito dessas coisas, entendeu? São coisas que precisam ser melhoradas e abolidas nesse sentido meio pejorativo das coisas. Então voltando à sua pergunta, é realmente isso. Esses temas de junção da sua rima, da aula que você dá, da vivência que você passa pras outras pessoas têm que ser muito bem aprofundada e trabalhada pra você justamente não passar uma mensagem que às vezes não condiz com o seu caráter, que você não quer que se identifique com você, porque você não quer que passe isso pra você. Todo mundo tem mãe, todo mundo tem irmã, sabe? Todo mundo tem que ter respeito ao mesmo tempo. Então esses temas, principalmente em Roda cultural tem que ser muito trabalhado e debatido.
P/1 – Como é que faz pra conversar isso com adolescente?
R – Um dos métodos que a gente utiliza na Roda é justamente a conscientização a partir da arte. Por exemplo, de cinco meninos, quatro fazem uma rima ideológica, sabe, uma rima com algo legal e que a rima fica superinteressante e que não precisa você xingar o amiguinho ou a família do amiguinho, entendeu? Esse é um dos lances que a gente mais leva. Porque é muito difícil você conversar essas coisas, de falar: “Ah cara, você não pode falar assim de Fulano de Tal, você não pode falar assim”. Por mais que às vezes seu pai ou seu tio acha que é assim, você não pode ter esse pensamento. São coisas bem profundas, que vai desde machismo a feminismo. E pra fazer um homem, principalmente um garoto de 14, 15 anos entender o que é feminismo, por exemplo, nossa! É muito difícil! A gente tenta mais colocar o lado da arte pra eles entenderem que é bem mais da hora eu fazer uma rima com coisas que vão agregar do que fazer uma rima com coisas que vão prejudicar alguém, falar mal de outra pessoa. Os maiores exemplos que a gente tem dessa Roda são de pessoas que fazem rimas mais ideológicas, com consciência, etc. Uma hora ou outra sempre tem um que faz, a gente fala que é no calor da batalha, o cara: “Ah, não sei o quê”, e faz uma rima meio, deixa a desejar. Mas de forma pejorativa. A galera não grita, a gente sempre fala: “Gente, tentem não gritar para rimas assim quando sair. E vocês que são MCs [mestres de cerimônias] tenham consciência, não façam rimas assim”. Esses temas sempre foram muito bem trabalhados. A gente fala vivência, a gente fala igualdade, sabe, conscientização, respeito aos pais, tudo o que é cultura da cidade a gente fala. Tanto que o nome da batalha é Batalha do Ouro, justamente devido à maior renda da cidade ser devida aos recursos do ouro que a Kinross tira daqui e investe na cidade, né? Tudo isso é pautado dentro da Roda Cultural. Quando eu falo Roda Cultural não é só a batalha e sim a galera que vem pra cá trabalhar, a galera que vem pra cá conhecer, desde os meninos mais novos aos meninos que vêm aqui pra mostrar uma música que eles escreveram, conversar sobre coisas que eles aprenderam, que é relacionado ao hip hop, entendeu?
P/2 – Como que foi criada essa roda aqui com esse nome? Conta o processo de criação desse espaço, de ocupar o espaço, de fazer essa movimentação.
R – Foram três pessoas. Eu, o Gabriel e o Henrique, o apelido dele é o Chaples, o apelido do Gabriel é GB. O GB, o Pogó e o Henrique. Tinha um outro cara que ajudava muito a gente, que era o Paulo. No início não tinha eu, eu fui o último a entrar. Tinha o Henrique, o GB e o Paulo. Aí não existia Roda Cultural, existia um grupo de amigos que vinha pra cá, pra esse lugar, rimar na pista de skate que era fechada, isso aqui nada era aberto. Então, a pista, por ser fechada, a gente vinha, ficava aqui no canto todo mundo, aí alguém trazia uma caixinha de som e a gente ficava rimando, brincando, né? Aí tinha uma galera que vinha pra cá que era só pra ficar assistindo, ou pra descansar e tal. Lógico que tinha maus elementos e pessoas que só vinham pra aproveitar também a roda e tal. Não existia a Roda Cultural, existia um grupo de amigos que vinha pra cá. Enfim, um dia o Gabriel viu esses vídeos meus do YouTube, tal, descobriu que eu rimava. Aí ele falou: “Ô Pogó, vamos lá pra você conhecer e tal, é da hora. A gente faz uma roda lá zoando, brincando com os meninos, eu quero mexer com ela”. E eu: “Vamos, Gabriel”. E quando a gente chegou aqui foi a primeira roda que teve, que deu MCs suficiente e deu pra gente fazer um campeonatinho, um torneiozinho pequeno. Aí todo mundo rimou, foi legal, etc, foi a primeira vez que eu rimei aqui, inclusive. Eu achei muito interessante e a partir desse momento eu já falei pros meninos: “Velho, tem potencial, o lugar é bom, vamos juntar todo mundo, vamos fazer isso acontecer”. E eles já tinham essa ideia de chamar Batalha do Ouro por causa dos recursos da cidade, o que mais sustenta a cidade, querendo ou não, é a mineradora, pelos recursos que elas tiram daqui, etc. e investem na cidade, parte investida na cidade. Tem toda história também por trás que não vem muito ao caso (risos). Mas a gente quis chamar Batalha do Ouro justamente por isso. Existe já uma roda chamada Batalha de Ouro em outra cidade, a gente até viu o canal deles no YouTube, tal, mas como a gente já tinha criado a gente deixou Batalha do Ouro. Aí como eu falei não tinha roda, a roda foi criada a partir desse dia que juntou todo mundo e a gente falou: “Vamos fazer?” “Vamos”. Aí a gente denominou a batalha, criou página no Facebook, marcou um horário, que é todo sábado cinco horas, entendeu, fez banner, chamou todo mundo, criou canal no YouTube, gravamos as batalhas, editamos as batalhas e começou a divulgar mesmo, mandar pra todo mundo. Aí com essa divulgação o pessoal começou a chegar. Aí foi crescendo periodicamente, entendeu? Chegou num ponto onde, tem até o projeto cultural aqui da cidade, que é a TV Caroço, que faz parte da Conscienciarte também, tipo assim, eu trabalhei na Conscienciarte e não tinha falado nada com o pessoal de lá e o pessoal de lá acabou conhecendo a roda pela visibilidade que ela já está tendo na cidade. Aí eles vieram pra cá entrevistaram a gente também, foi muito legal esse dia. E assim, só está crescendo a roda. A nossa meta é deixar realmente como um ponto cultural da cidade. É chegar aqui um dia e ter um carrinho de cachorro quente aqui, um cara vendendo pipoca, um trailer, num sábado à noite pra família poder vir prestigiar, entendeu? Porque até então vem uma galera, mas não é uma galera a ponto de, sei lá, alguém querer por um ponto de comércio aqui pra aproveitar a Roda Cultural. Mas a nossa meta ainda é essa, crescer a ponto de chegar nesse nível.
P/2 – E como funcionam essas batalhas? Você falou de número suficiente de MC, são quantos? Vai um por vez, tem tempo, tem tema?
R – Pela lógica matemática o mínimo são quatro pra gente dar uma semifinal, né? Geralmente, vem oito MCs, quando tem muito dão 16, aí dá pra gente fazer umas oitavas de final. Mas é sempre umas quartas de final que dá, quando vem oito. Aí a gente chega, levanta um papel: “Gente, quem vai rimar hoje?”, o pessoal escreve o nome, a gente separa as chaves direitinho e fala. Não tem tema específico, o cara tem que virar do jeito que ele quiser. Mas é igual eu te falei, a gente sempre deixa explícito as regras: “Ó, ideologia é mais considerado, se você for fazer uma piada...”, a gente chama de Gastação. Gastação é quando você fica gastando a pessoa, zoando ela, etc. Gastação é aprovada? É aprovada, mas olha o nível da gastação que você está fazendo e compara com a ideologia que você está fazendo. Então isso é muito conversado com os MCs. Então, acaba que esse trabalho é feito com eles antes da gente começar as rodas, entendeu? Quando começa as rodas aí vai de cada um. Aí tem as quartas de final, ganhou um, passa; ganhou, outro passa, até que só sobram dois. Esses dois disputam e tem um vencedor. Esse vencedor faz o free do campeão, que ele fica durante o tempo que ele quiser rimando, só ele sozinho, agradecendo e com o tem que ele quiser, entendeu? Sei lá, se ele vai falar de igualdade, se ele vai falar do impeachment da Dilma, pode falar, entendeu? É o momento dele, ele foi o campeão e ele pode gravar ali. E as batalhas funcionam da seguinte forma: cada lugar no Brasil tem um jeito diferente nas suas regras. O que a gente estipulou aqui, a gente pegou muito referência do Museu, que é o Museu de Brasília, chama Batalha do Museu, é uma das mais conhecidas e é uma das que são aprovações por nacional, que tem a batalha de MCs nacionalmente, que rola em BH [Belo Horizonte, MG], no Viaduto Santa Teresa, que é genial, nossa, o sonho de todo MC é ir pra lá. Mas o do museu é assim, cada MC pode fazer quatro rimas em oito versos, então, ele tem oito versos pra fazer e nesses oito versos ele faz quatro rimas, entendeu? Passou essas quatro passa pro outro MC, aí o outro MC também tem oito versos, quatro rimas. Passou pra esse segundo, aí volta pro que começou a rimar, ele tem que fazer quatro versos e duas rimas agora, aí volta pro outro e esse também tem que fazer quatro versos e duas rimas e vai intercalando. São seis vezes essa intercalação. Depende muito do calor da batalha, se tiver muito bom tem juiz que até deixa eles fazerem mais uma rondinha, sabe? Aí eles são julgados em três rounds. O primeiro, o MC que tiver mais fluência, mais consistência, tem a rima mais interessante, a galera gritar mais, ele ganha. Vai o segundo round, é a oportunidade do MC que perdeu tentar empatar. Geralmente é assim, tira par ou ímpar, o primeiro que começou, o que ganhou no par ou ímpar escolhe quem vai começar. O primeiro que começou o primeiro round agora vai ser depois, ele vai responder e no segundo round esse MC que respondeu no primeiro começa no segundo, entendeu? Então ele começa a fazer uma rima e no segundo round o MC responde. É porque é mais fácil você responder algo que já lhe foi dado do que você tirar alguma coisa zero da sua cabeça. Muitos MCs gostam mais de responder do que começar, mas isso varia muito da disposição, do jeito do MC de levar a rima. Eu particularmente gosto de começar, sabe? Porque eu coloco o tema na batalha. Às vezes eu conheço mais ou menos o cara, eu coloco um tema que ele não é muito afiado e trabalho em cima disso. Mas a rima depende do dia, depende do jeito. E ganha, logicamente, quem a galera gritar mais. Se der empate a gente tem os jurados que são outros MCs que já assistem, que a gente estipula antes, e eles escolhem o vencedor. Se der empate mesmo assim, jurados e plateia, aí a gente pede as mãos pra plateia e todo mundo levanta a mão e a gente vai contando um por um, aí, deu a vitória.
P/2 – E como o rap ajuda nesse processo de construção e afirmação de identidade? Se a gente pensar da identidade de Paracatu, da identidade negra, de repente, ou da identidade das minorias que participam.
R – Nossa! Muito, muito, muito mesmo! Porque o que a gente mais tenta pregar aqui é justamente essa parte. Rap, hip hop é coisa de minoria. Veio de minoria e, na minha visão, tem que continuar sendo de minoria a origem e a raiz disso, mas, o conhecimento, o curtir, o aproveitamento disso tem que ser pro mundo inteiro. Então é aquela coisa, por exemplo, branco pode fazer rap? Lógico que pode, só que em momento nenhum branco pode falar que o branco que criou o rap, esse tipo de coisa. Todo mundo pode fazer e é uma coisa muito legal pra todo mundo. Então aqui na roda a gente tenta trabalhar muito isso, entendeu? Também porque a gente tem muitas referências. Se você pegar o Eminem, por exemplo, ele é um branquelo e é um dos maiores rappers do mundo, sabe? Não tem muito essa coisa de rap é meu, o rap só pode ser assim, não, é uma igualdade. Todo mundo pode fazer isso, só que a gente tem que saber a raiz das coisas, as histórias. Por exemplo, uma coisa que às vezes ocorre aqui que a gente cai muito em cima da pessoa que faz isso, é quando a pessoa faz rima chamando a outra de macaco, por exemplo, sabe? Faz uma analogia a macaco, essas coisas. Ou a escravidão. Ou até quando é rima contra uma menina e fala alguma coisa, sabe? Ah, sei lá, eu vou fazer tal coisa, conotação sexual com algum familiar seu, esse tipo de coisa. A gente não gosta, sabe, vai em cima. A gente trabalha justamente esse fator de mostrar que a raiz nossa é de pessoas que precisam de visibilidade, pessoas que precisam mostrar que elas estão ali e o rap é um meio de mensagem, ele é só um transporte pra mostrar às pessoas que essas minorias existem. A galera que vem pra cá, além de curtir: “Ah, os meninos fazem repentes, lá, eles fazem freestyle lá, é legal”, eles têm que sair daqui com uma mensagem, entendeu? Não é só ver que a gente rima, etc. É ver que respeitar a identidade de gênero da pessoa é importante, respeitar a cor da outra pessoa é importante, respeitar o trabalho do outro é importante. A família do outro é importante. Essas coisas têm que ser trabalhadas, então a gente sempre tenta trabalhar isso nas ideologias. Quando a gente faz músicas fora da batalha, sabe que a gente faz junto, a gente chama de Sci-Fi, que é chamar três MCs, um cria um beat e os outros fazem uma música em cima do beat, rima e tal, é sempre com mensagem, não é nada muito... Vou fazer uma analogia com o funk, por exemplo, nada muito falar de ostentação, festividade, sabe? Não que não possa ter, a gente não impede de ter isso, mas o que a gente mais prega é isso, entendeu? Rap, hip hop, é de minoria, é de pessoas que precisam de voz, todo contexto histórico, sabe? Desde os Panteras Negras ao Jay Z, um dos maiores rappers hoje no mundo, todas as letras deles, vocês podem ver que são realmente de pessoas que precisam de voz. E a gente tem que continuar esse legado, é isso que a gente tenta pregar na batalha: “Cara, se você curte uma música do Kendrick Lamar, sabe, você tem que seguir esse fluxo. Sei lá, você gosta de funk, não tem nada de errado, você tem que seguir esse fluxo também, só que a ideologia que você passa dentro de isso aí, você tem que estar dentro de uma linha muito tênue, é do que você quer passar e do que isso agrega nos lugares que você vai, entendeu?
P/2 – E como é ver esse movimento crescendo? Ver que as pessoas se juntam em volta pra fazer essas batalhas, que alguns estão tendo voz pra sim, colocar suas questões, questões de identidade, questões de igualdade.
R – Ah, pra mim é um sonho, sabe? Porque eu por ser muito ligado nesse lado mais cultural e por mais que eu tenha feito um curso de Exatas, eu gosto muito dessa área de Humanas, sabe? E acaba que a gente na roda dá uma aula pra essas pessoas de 14, 15 anos de idade a partir da cultura, entendeu? Isso que é o mais da hora que eu acho da batalha, que eles não estão vindo aqui só pra aproveitar a batalha, sabe, eles estão vindo aqui pra aproveitar e aprender, sair com uma mensagem, querendo ou não, sabe? Ele vai escutar um verso que algum menino fez aqui e falar: “Pô, Fulano de Tal é assim, ele fala disso, ele conhece disso aí. Eu não sabia que se eu chamar alguém de branquelo não é considerado de racismo, mas se eu chamar alguém de negro, isso é considerado racismo” “Eu não sabia que o feminismo trabalha com determinadas vertentes, que teve ondas do feminismo” “Ah, eu não sabia que o 50 Cent tem umas músicas totalmente ostentação, mas se você procurar outras músicas você vai ver que ele fala de outras coisas da vivência dele, de tudo o que foi tirado dele por ele ser minoria e depois que ele chegou no topo ele mostra isso pra gente. É a mesma coisa com o Kendrick Lamar, com Eminem, com todos esses artistas que chegaram no topo e que, como admiradores e principalmente mensageiros. O hip hop e o rap mostram isso”. E uma coisa que eu fico muito feliz também, além da batalha, é o rap nacional hoje em dia, atualmente. O cenário está crescendo, está muito intenso, sabe? Tem um projeto de uma empresa chamada Pineapple, depois é até interessante vocês procurarem, se eu não me engano é no Rio de Janeiro ou em São Paulo, chama Poetas no Topo, eles pegam os maiores rappers nacional que estão nascendo atualmente e colocam eles pra fazer uma música juntos. E é incrível as rimas que saem, ideologia de lá, é uma coisa que, cara, se você perguntar pra qualquer criança de 14 anos aqui que vem na roda: “Você conhece Poetas no Topo?”, eles: “Nossa, que massa! Eu quero ser esses caras quando eu crescer”. E até porque são pessoas que fazem parte da nossa realidade, são caras de Brasília, sabe, que é aqui do lado, caras de BH, são pessoas que a gente até já viu nessas festas e eventos de hip hop que a gente já foi e que hoje eles estão estourados no país e estão levando tanto a voz de quem sempre foi oprimido quanto a cultura do hip hop em si.
P/2 – Aí eu queria fazer um pedido, meio desafio, eu tenho um par de palavras que, de repente assim, se você pudesse fazer uma rima pra nós. Então assim, sei lá: memória, tradição, ouro, Paracatu e história.
R – Memória, ouro, Paracatu, História.
P/2 – E tradição.
R – E tradição?
P/2 – É.
R – Memória, ouro, Paracatu, História e tradição.
P/2 – Elas não rimam, mas... não precisa ter todas.
R – Memória, ouro, Paracatu, História e tradição. Tá. Pode começar?
P/2 – Pode!
R – Então pera aí, se eu errar acontece, tá gente? Freestyleiro.
P/2 – Eu não sei fazer rima, só com aumentativo e é ridículo, então eu não sou uma julgadora.
R – (Rima): “Olha pessoal, olha essa vista! Muito obrigado, por essa entrevista. Estamos aqui estudando a nossa história, para passar para o pessoal de Paracatu nossa memória. Porque aqui a gente é intenso”... Pera aí gente, estou montando, vou começar de novo, calma. (Rima): “Olha pessoal, olha essa vista! Muito obrigado, por essa entrevista. Porque aqui nós estamos”. Ô, eu estou nervoso, espera!
P/2 – Ah, desculpa.
R – Eu vou fazer, vou fazer, vou chegar lá. Não tem um lit aí pra rimar não? (risos).
P/2 – Ah, eu não sei fazer (risos).
R – Vai, eu vou fazer sem lit, vou fazer lento, tá? É... (Rima): “Vamos pessoal, vamos nessa vista. Muito obrigado, por essa entrevista. Pois estamos aqui com um tesouro, em Paracatu, na Batalha do Ouro. Obrigado por aqui vocês virem registrar nossas memórias, porque isso vai fazer intensamente a nossa história”. Qual é a outra palavra? Me mostra aí que eu vou olhando.
P/2 – É que a minha letra é feia ainda por cima. Mas era isso mesmo: memória...
R – História, ouro... pega todos que eu vou fazer, eu vou fazer um bonitinho, pensar em um bonitinho.
P/2 – Eu tinha pensado em tradição, mas tradição sai demais, né?
R – Não, tradição, vamos lá. MC que é MC... Beleza, melhorou demais! (Rima): “Vamos lá pessoal, estudar a nossa história, porque assim vamos guardar nossas memórias. Porque aqui nossas partes de vida são nosso tesouro, mantemos assim, junto, o nosso ouro. Porque aqui viemos mostrar pra tu, toda essa história linda de Paracatu. Essa galera que vem de outra cidade e aqui faz uma ação, vem explicar pra todo o Brasil nossa tradição. Porque aqui é engraçado, nesse improvisado, a gente vai mostrar pra vocês, esse incrível trabalho. Eu agradeço muito a visita de vocês e espero encontrar vocês mais vezes”.
P/2 – Obrigada!!! Obrigada, valeu.
P/3 – Vamos fazer a última frase de novo?
R – Posso.
P/3 – Só o finalzinho.
R – É porque não dá pra lembrar mais porque você faz na hora, mas agora eu vou fazer, vamos lá. (Rima): “Quero agradecer a visita de vocês e faço mais um convite pra vocês virem mais de uma vez”. Beleza?
P/2 – Ê, muito legal! Obrigada, viu? Eu aqui estou satisfeita, se você quiser fazer alguma pergunta pra encerrar...
P/1 – Quem é o Pogó nessas identidades, nesse fluxo de identidades. Como é que você se vê, se coloca nesse fluxo?
R – Cara, essa é a única pergunta que eu não consegui responder até hoje, de todas... Isso não é um ditado, mas quando eu escutei isso, eu levei pra minha vida. Nós somos o reflexo daquilo que nós inspiramos e vivemos. Acho que eu sou um produto de tudo o que passou pela minha vida, desde do hip hop, desde o meu lado nerd, desde a convivência que eu tive em Várzea da Palma com a minha família e esse relacionamento que eu tenho nessa postura de professor, sabe? Acho que eu sou o reflexo de toda essa vivência, mais o reflexo das minhas inspirações de toda a minha vida, desde musicais a inspirações de desenhos, a inspirações de vídeo e por aí vai. Aos livros que eu já li. Sou um pouco de cada coisa dessa. Nós, no fundo do nosso âmago, somos muito desse produto, entendeu? E acho que é esse produto que consegue tocar as outras pessoas. Uma música faz sucesso não é só porque a melodia é boa, é porque você se identificou, eu me identifiquei porque aquela vivência foi parecida com a gente. Um vídeo faz sucesso não é só porque o vídeo é bom, é porque o cara conseguiu passar pra vocês na narrativa dele a essência dele, que se teve uma identificação. Acho que qualquer coisa que vocês fazem, que a gente faz na vida, é o produto do que a gente já viveu ou já inspirou um dia. Isso é o que muda o mundo na minha visão.
P/2 – E praquele menino que chegou em Paracatu e teve aquela primeira impressão meio esquisita porque era diferente do acolhimento da cidade natal, como que está a sua relação com a cidade hoje, como foi ficar aqui, o que te fez ficar aqui e aí estabelecer uma outra relação com a cidade?
R – O que eu falaria para esse Rafael que chegou aqui, é isso?
P/2 – É, também. E como está essa sua relação hoje com a cidade, vendo envolvido com os jovens, com a Batalha do Ouro...
R – Minha relação hoje com a cidade é maravilhosa, sabe? Hoje eu já tenho minhas rotinas prontas, tenho o meu trabalho. Fim de semana, eu faço coisas que eu quero fazer e ainda venho pra Batalha, gerencio a roda. As pessoas já me conhecem pela faculdade ou pela roda, eu já tenho um ciclo de amizade meio fechado. A cidade me proporcionou muitas coisas boas, isso eu não nego em momento nenhum, eu gosto muito de Paracatu por esse lado. Então, tudo o que eu vivi e aprendi aqui são coisas que acho que eu não iria viver em outro lugar no mundo. Então isso é de extrema importância pra mim. E se fosse algo que eu fosse falar pro Rafael que chegou aqui, acho que eu ia falar pra ele parar de comer besteira pra gastrite dele não aumentar, que aí... “Cara, não acorda quatro horas da manhã e não come batata frita, por favor”, acho que isso que eu ia falar.
P/1 – E como foi pra você estar aqui com a gente contando a sua história?
R – Ah, nostálgico! Acho que essa é a palavra (risos). Bem nostálgico. Porque, sei lá, você voltar na sua vida inteira e perceber no que você se tornou. Muitas vezes é algo que você esperava e outras vezes não, mas você ter orgulho disso eu acho que isso é mais importante, sabe? Você sentir que você virou algo pelo menos, não se perdeu no meio do caminho de uma maneira que você não iria se orgulhar, acho que é isso.
P/1 – E o que você pretende daqui pra frente, como você vê?
R – Cara, dominar o mundo. Quanto mais pessoas que puder conscientizar nas coisas que eu gosto, quanto mais pessoas eu puder dar uma aula no segmento que eu trabalho, lógico, mas mudar a vida delas nesse sentido, seja fazendo vídeos pra algum site na internet, seja dando aula, seja aumentando a roda aqui, é o que eu quero, sabe? Eu não preciso de muito pra viver, acho que eu preciso só de pessoas felizes ao meu redor, acho que só isso.
P/1 – Então é isso. Rafael Pogó, muito obrigado pela sua presença aqui e por você contar a sua história tão bacana pra gente.
FINAL DA ENTREVISTA
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